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Shirlei Massapust
Em mandarim yāo (妖) significa um monstro, geralmente de origem exógena, com corpo formado de ectoplasma modelável, como o ātman (आत्म) do hinduísmo. Este termo passou para o nihongo como prefixo de palavras tais como yōkai (妖怪) ou monstro misterioso, yōma (妖魔) ou monstro mágico, yōtō (妖刀) ou kataná monstruosa, etc. Menos frequentemente yāo pode designar um humano que se tornou feiticeiro ou até um fantasma. Geralmente os imaginamos com má aparência, embora a partícula ocorra também em termos venturosos como yōen (妖艶), que designa uma personagem encantadora, sensual. A palavra utilizada para traduzir o inglês faery (fada) é geralmente yāojing (妖精), em mandarim, yojeong (요정) em hangul e yōsei (妖精) em nihongo.
Um ponto leva a outro. Pelas sílabas de yōkai (妖怪) obtemos os sinônimos yōbutsu (妖物) e kaibutsu (怪物), designando poder de mutação; algo que nos leva em trilha semântica ao bakemono (化け物), um ser com poder de metamorfose, apto a assumir ao menos duas formas distintas. Outras combinações do superlativo honorífico o (お) com bake (化け, mudando, corrompendo)[1] e o substantivo mono (物, objeto) dão-nos as variantes sinônimas obake (お化け) e obakemono (お化け物).[2]
No Japão uma casa mal assombrada é uma bakemono-yashiki (化物屋敷). No folclore oriental o ser humano tem ki (氣), uma força vital que nos sustenta e se espalha pelo meio-ambiente do mesmo modo que deixamos fios de cabelo, células mortas, fragmentos de unhas, suor, etc., para traz. Enquanto nossos restos matérias atraem ácaros que produzem fezes, nossos restos de carga atraem yōkai que, por sua vez, recarregam o ambiente com rastros de sua potência mutagênica e vivificante.
Casas repletas de mobília antiga e objetos que nunca são renovados acumulam carga até as coisas entrarem num estado de existência animista[3] indicativo da corrupção ou mudança, chamado de tamashī (魂), reikon (靈魂), konpaku (魂魄) e hakurei (魄霊)[4] em diferentes épocas. Isto que hoje conhecemos por bakemono é um corpo material (objeto, animal ou pessoa) que prodigiosamente muda daquilo que era antes para algo que vem a ser. Um exemplo: No templo budista Mannenji, localizado em Iwamizawa, Hokkaido, existe uma boneca chamada Okiku (お菊人形), antiga e já bastante erodida.
A tradição oral revela que este item foi comprado por Eikichi Suzuki, um rapaz de dezessete anos, no ano 1918, em Tanuki-Koji, na ilha Sapporo. Eikichi Suzuki deu Okiku à sua irmã de três anos, chamada Kikuko ou Kiyoko. A menina amou o presente e não se separou da boneca até morrer de virose no ano seguinte. Após a cremação do corpo da menina, Okiku foi posta no oratório da família bem ao lado da urna funerária. Com o passar do tempo o corte de cabelo em estilo okappa, antes nos ombros, alongou visivelmente. A família interpretou a mudança como sinal de que a sombra da morta penetrou naquele objeto por osmose, vivificando-o.
Em 1938 a família Suzuki se mudou para Sakhalin e doou Okiku ao templo, onde permanece exposta até hoje, junto à urna contendo as cinzas da falecida. Todos os anos romeiros participam duma cerimônia em memória de Okiku. Dizem que os olhos da boneca causam sensação de vigilância real. Dizem que sua boca abriu e que cabelos continuam a crescer. Graças à boneca, este templo acabou virando atração turística.[5]
É triste quando o bonequeiro, ningyōshi (kanji 人形師, kana にんぎょうし), fabrica o boneco, ningyō (kanji 人形, kanaにんぎょう), com propósitos artísticos e o item acaba na fogueira porque alguém julgou aquele objeto como algo capaz de absorver a moléstia e curar uma criança adoentada quando posto no leito onde ela dorme.
No Japão as bonecas não são apenas brinquedos infantis e muitas vezes representam símbolo da história dos costumes do país. Elas são chamadas de ningyō e ao longo de toda a história do Japão foram sofrendo pequenas modificações. As primeiras referências de bonecos são os haniwa, estatuetas de barro encontradas em tumbas pré-históricas, onde o que menos contava era o apelo decorativo. No período Heian (794-1185) eram usados para afastar demônios.
Inicialmente as bonecas eram muito simples, moldadas em palha ou papel sendo que as primeiras serviam para afastar epidemias e eram colocadas nas fronteiras das antigas aldeias. E para purificar corpo e alma, se usavam bonecas feitas de papel que depois eram jogadas no rio para levar embora os maus fluídos. (…) Durante o fechamento do país para o mundo, no período Edo (1603-1868), o país desenvolveu uma cultura própria. Neste período as bonecas ainda carregavam uma forte superstição pois muitas pessoas as tinham como amuleto para afastar pragas de plantações ou para garantir um bom parto. Mas foi em meio a esta mentalidade que surgiram as karakuri, bonecas que tocavam instrumentos e dançavam através de um sistema simples de cordas retorcidas, roldanas e fios.[6]
Noutro artigo já mencionamos a lenda da yōtō (妖刀), espada de uso bélico que se apega à sua função social, tem sede de sangue e induz qualquer usuário a continuar matando mesmo em tempos de paz. Outros artefatos de uso militar também podem ganhar vida, conforme narrativas folclóricas e artísticas. O abumi-guchi (鐙口) é o estribo de hipismo, utilizado por um comandante militar, que com o tempo se transforma numa criatura peluda.[7] Certa vez Ozamu Tezuka preencheu uma página do gibi Dororo (どろろ) com um único quadro onde equinos sem cabeça, de pescoços flamejantes, galopam assustando o protagonista. Parecem com a mula-sem-cabeça do folclore brasileiro.
Não é normal num gibi que o desenhista gaste uma página inteira com apenas um quadro, especialmente contendo uma cena desprovida de pertinência temática com o roteiro. Na página seguinte o menino sonha com o passado, lembrando de como ele se tornou um órfão predestinado à vida de ladrão.[8] Seriam aqueles cavalos de guerra decapitados anunciadores de pesadelos?[9] Na esperança de obter mais informações procurei pela primeira versão animada de Dororo (どろろ; 1969) cuja música da abertura e encerramento é pausada pela recitação de poemas por uma voz feminina. Na primeira interrupção ela fala sobre as posses do samurai moeru yoroini (燃えるよろいに) ou “armadura flamejante” e moeru uma (燃える馬) ou “cavalo flamejante”:
赤い夕日に照り映えて
燃えるよろいに燃える馬
天下めざしてつきすすむ
No crepúsculo vermelho
Armadura em chamas, cavalo em chamas
Correndo veloz, galopando pelo mundo[10]
Na abertura do remake de Dororo (どろろ; 2019) vemos a cena do quadrinho onde vários cavalos sem cabeça galopam numa fração de segundo e não tornam a aparecer no seriado em si, assim como nunca vemos a cena da putrefação do cadáver do protagonista igualmente presente naquela amostragem.
Nossa energia impregna num animal doméstico mimado em excesso do mesmo modo que entra em objetos estimados. Por isso a forma primária dum bakemono pode ser um ser vivo, como o bakeneko (化け猫, gato metamorfo). Um animal selvagem que atinge idade avançada para muito além do normal também se transforma, como o bake-danuki (化け狸, tanuki metamorfo). Isso é o contrário das lendas ocidentais de homens que viram animais (lobisomem, capelobo, etc.) pois no caso nipônico é o gato, o tanuki, a raposa, etc., que vira gente temporariamente ou reencarna como gente.
Quando itens domésticos ganham vida e senciência eles ainda estão apegados aos velhos usos e atuam de modo obsessivo compulsivo. Sendo assim, na China uma zhǒu shén (箒 神), chamada no Japão de wawakigami (ははきがみ), é uma vassoura que, descontroladamente, varre sozinha as folhas que caem em dias de vento frio.[11]
Objetos domésticos de uso regular só se tornam agressivos quando passionais, podendo buscar vingança contra pessoas que os inutilizaram ou os jogaram no lixo. Por conta disso, alguns santuários oferecem o serviço de “consolar” objetos quebrados ou que não são mais usados.[12] Muitos países como a Tailândia, por exemplo, constroem templos para alguns objetos com fama ou origem sobrenatural.[13] No Japão cerimônias de consolação são realizadas em templos budistas e xintoístas. Por exemplo, existe o festival hari kuyō (針供養), celebrado em 8 de fevereiro na região de Kanto, mas em 8 de dezembro nas regiões de Kyoto e Kansai, onde as costureiras levam suas agulhas quebradas para agradecer os préstimos antes do descarte.[14] Assim elas não as furam.
Ningyō kuyō (人形供養) é um serviço de memorial para bonecas antigas, com presença de gueixas e monges, onde as famílias agradecem os préstimos dos objetos que cumpriram sua função social fazendo companhia e protegendo suas crianças, mas que perderam a utilidade e foram entregues à cremação. Isto ocorre desde sempre no templo zen-budista Hōkyō-ji (宝慶寺), em Kyoto, conhecido como Templo dos Bonecos devido ao seu acervo de peças imperiais coletadas e acumuladas durante séculos.[15] Posteriormente o mesmo costume foi introduzido no templo Kiyomizu Kannon-dō (清水観音堂), em Tokyo, e virou matéria da revista Superinteressante (agosto de 1992).
No Japão, até hoje as duas definições (boneca e ídolo) se misturam tanto quanto se misturavam entre romanos e gregos. Há pelo menos 900 anos, todo dia 3 de março, as meninas reverenciam a casa imperial reunindo suas bonecas prediletas numa grande festa. Uma a uma, todas as bonequinhas são visitadas, apresentadas às amigas e, durante o chá, têm o privilégio de serem servidas em primeiro lugar. (…) Para os japoneses, bonecas têm espírito. (…) Ainda hoje, muitos japoneses acreditam que, colocada no leito de uma criança doente, a boneca pode levar a moléstia embora. Se presenteadas no dia do casamento, são consideradas símbolo de prosperidade e felicidade conjugal para o jovem casal. Há pouco mais de vinte anos, o sindicato dos fabricantes e comerciantes de Tóquio aproveitou a deixa dessa crença para promover um grande lance comercial chamado ningyō kuyō. Tradução: “consolo da alma das bonecas”, ritual de cremação que se tornou tradicional na capital japonesa. Todo dia 25 de setembro, as mulheres estéreis que obtiveram a graça de ter um filho levam uma boneca para ser cremada no templo Kiyomizu-Kannon-dō. A ideia é que, queimando a boneca, seu espírito carregado do desejo de maternidade vai embora com a fumaça e a criança pode crescer em paz. Vai-se o espírito infantil, fica o comercial.[16]
Na antologia de poemas Ise monogatari (伊勢物語), seção 63, datada do século IX, lemos a palavra tsukumogami (つくも髪) referente aos cabelos brancos, kami (髪), duma idosa. Setecentos anos depois o autor-ilustrador do pergaminho Tsukumogami emaki (付喪神絵巻) explicou que o intraduzível prefixo tsukumo na palavra tsukumogami (desta vez 付喪神) também poderia ser escrito com o kanji 九十九, que significa um período de noventa e nove anos. Sendo assim uma ferramenta ou utensílio doméstico desenvolveria um espírito evoluído após a passagem de noventa e nove anos. Mas há um problema: A truncagem de kami (髪, cabelo) por kami (神, divindade) sugere que ele não entendia o sentido original de tsukumogami ou formulou um homônimo homófono. Segundo o pergaminho do século XVI, à época as pessoas descartavam objetos antes de completarem o período chamado de susu-harai (煤払い). Conforme exposto, se demorassem mais a ferramenta “mudaria e adquiriria um espírito, e enganaria o coração das pessoas”. Tal ensinamento constaria no livro Onmyō Zakki (陰陽雑記), livro que também informaria sobre a coisa vivificada que assume aparência humana, tanto masculina quanto feminina, tanto idosa quanto jovem; bem como “a semelhança de chimi akki” (aparência de oni) e “a forma de korō yakan” (forma de animais), entre outras. Seu aspecto após a mutação é referido com palavras como youbutsu (妖物).[17]
Há dúvidas sobre se o susu-harai é, de fato, um período de exatos noventa e nove anos porque tsukumo (九十九) pode se referir literalmente a um número ou, menos precisamente, a uma hipérbole no sentido de muito tempo. A boneca Okiku só precisou de um ano para adquirir uma natureza espiritual pois isso representou um terço da vida de sua dona, que a amou com intensidade, agonizou e morreu com ela. No primeiro volume do romance gráfico Tokyo Babylon (東京BABYLON), do grupo CLAMP, editado pela Shinshokan, em 1990, uma personagem adoece e apresenta comportamentos estranhos após comprar uma jaqueta numa liquidação de roupas. Subaru descobre que a jaqueta ficou carregada de energia negativa por conta da competição da clientela por aquele objeto, ao ponto de aquilo necessitar de exorcismo.[18]
Papéis encantados
No Japão, em templos da religião xintó, são vendidos ofuda (御札), que são amuletos de papel produzidos por monges para atrair o amor, a saúde, a prosperidade financeira e até proteger contra mal olhado e fantasmagorias. Do mesmo modo, no taoísmo e noutras religiões chinesas, existe o jufu (呪符) ou gofu (護符), amuleto de papel ou madeira produzido para finalidades que mudam conforma a inscrição.
Os ofuda tem efeito imediato porque o monge xintó é competente para canalizar a energia dos kami (神) aos quais ele presta culto. Porém existem métodos para o leigo carregar papel com os eflúvios energéticos de origem humana, de modo voluntário ou involuntário. Hoje há todo um ritual construído em torno da tradição de confeccionar, expor e descartar o washi ningyō (和紙人形); um ningyō (人形) ou boneco feito de washi (和紙), tipo de papel artesanal feito a partir das cascas das árvores das amoreiras.
Livro de arte com fotografias de washi ningyō produzidos pela artesã japonesa Eika Ito.[19]
Dizem que o washi ningyō teria o poder de remover a dor quando posto no leito dum enfermo que dorme. Logo depois, o boneco descartável carregado pela energia da enfermidade deve ser cremado ou levado para longe e dissolvido em água.
Fotos: 1) washi ningyō produzidos pela fábrica Kyugetsu representando Shinzo Abe, o Primeiro Ministro do Japão, e Caroline Kennedy, Embaixatriz dos Estados Unidos no Japão. (Foto © 2014, The Japan Times). 2) Monges levando um barco cheio de bonecos para o rio.
Com o passar dos séculos este rito individual originou uma festa coletiva. Hina-ningyō (雛人形) é um washi ningyō introduzido no festival Hinamatsuri (雛祭り), o “Dia das Meninas”, realizado anualmente por japoneses e italianos descendentes de japoneses. Neste festival inúmeros bonecos são expostos sobre carpete vermelho.
Bonecos de papel ou palha representando a corte imperial, com roupinhas em estilo antigo, são levados para templos onde ficam expostos ao público desde meados de fevereiro até o dia três de março. Depois o excesso é cremado pelos monges. Contudo, muitos ainda chegam ao fim do procedimento onde as pequenas figuras humanas são postas para navegar à deriva em barquinhos de madeira, empurrados pela correnteza dos rios ou pelo movimento das ondas. Estes se tornam hina-nagashi (雛流し), bonecos flutuantes, que levam as doenças e problemas com eles para longe.
No Brasil existe um costume parecido onde, no dia do Réveillon, os umbandistas pulam sete ondas na Praia de Copacabana e enviam oferendas para Iemanjá dentro de réplicas de barcos em miniatura que podem ou não conter uma imagem da santa.
No Japão até um maço de papel pode ser imbuído de poder mágico. Kyōrinrin ( 経凛々) é um bakemono resultado da transmutação de pergaminhos, livros, etc., que foram negligenciados e deixados sem leitura[20] por bastante tempo. Antigamente o papel branco era produzido com fibras da planta chamada asa (麻) ou o (苧), conhecida em botânica como Cannabis sativa. Havia grandes campos de plantações destinadas a este fim. Na ausência de nanquim a tinta era obtida de materiais biológicos, como gema de ovo e sangue animal. Segundo Aline Ribeiro, durante o shogunato de Tokugawa (1853-1867) os samurais eram submetidos a um rito de passagem:
A lealdade tinha certos rituais muito profundos, como um “contrato” firmado entre o guerreiro e seu daimyō. O documento era escrito com o sangue do próprio samurai, assinado e, logo em seguida, queimado. As cinzas eram dissolvidas em água e bebidas, fazendo com que se criasse um laço eterno entre a linhagem do samurai e a do senhor.[21]
Coisas estranhas acontecem quando um papel impregnado de energia aleatória não é cremado nem exposto aos elementos. Muitos acreditam que o shōji – tipo de porta deslizante feita de papel de arroz, – assim como as fechaduras e outras benfeitorias necessárias do lar, se transmutam em mokumokuren (目目連) e tendem a criar muitos olhos quando deteriorados e esburacados pelo tempo ou pela má conservação.[22]
A lanterna chōchin (提灯お), feita de bambu ou papel de seda, é um objeto de grande beleza, onipresente na decoração nipônica. O yóuzhǐ sǎn (油纸伞), um guarda chuva de papel em estilo chinês, é estruturalmente semelhante ao kasa (傘), o guarda-chuva comum, porém se trata dum item decorativo que os noivos carregam na cerimônia de casamento. Se alguém decidir guardar estes apetrechos perecíveis e descartáveis, em algumas décadas eles se tornarão os monstros folclóricos chōchin-obake (提灯お化け) e kasa-obake (傘おばけ)[23]. Assim como um gato doméstico muito mimado pode se tornar um bakeneko (化け猫), um tanuki eventualmente evolui para bake-danuki (化け狸) e outros animais da fauna local se convertem nas mais variadas fantasmagorias.
Um kasa-obake não precisa necessariamente evoluir de um yóuzhǐ sǎn, mas suponhamos que assim seja. Como todo bakemono ele é um objeto imbuído da força vital projetada por alguém que congelou sentimentos experimentados à época de sua posse. Quem não deseja mudar de atitude ou de opinião faria bem em ter um bakemono amigo. As emoções impregnadas na memorabilia nupcial carregariam e vivificariam o objeto de estimação que transmuta a haste de sua alma artificial num corpo sutil e abre as asas na forma do animal que lhe é mais semelhante: Um elegante morcego.
Este quiróptero etéreo promoveria a união do casal evocando a lembrança daqueles momentos felizes. Enquanto o objeto existisse, ele faria tudo para não deixar seus proprietários se separarem, brigarem ou pararem de desejar um ao outro. Contudo, se fosse jogado fora ou acabasse nas mãos de outrem, por herança ou mero acaso, tumultuaria a vida alheia tentando controlar sua vontade para realizar sua função social. Enfim, o novo dono viraria um mulherengo, um libertino, ou se apressaria a casar.
Ilustração de Hokusai representando um chōchin-obake (1826/1837) e detalhe de uma ilustração de Yoshitoshi (1839-1892) figurando um provável kasa-obake ou morcego associado ao guarda-chuva. Ele pode ser a alma do objeto porque, em nihongo, uma das palavras sinônimas tanto de quirópteros quanto de guarda-chuvas é kōmori (コウモリ ou こうもり), por causa dos dedos e estruturas que suportam tecidos esticados. Cesar Gordon observou que em mebêngôkre, o idioma dos indígenas Kayapó, os guarda-chuvas também são chamados de morcegos (njêp).[24]
No início não havia nenhuma padronização da aparência de objetos mutantes na arte nipônica. E nem seria lógico se houvesse; afinal, eles têm poder de mutação. Hoje, contudo, a variação na aparência depende do tipo de item que os originou, assim como as condições de como o objeto estava. [25] Imagens da lanterna chōchin-obake (提灯お化け), do guarda-chuva kasa-obake (傘おばけ), do chinelo de palha bakezōri (化け草履) e doutros objetos que viram obake muitas vezes os mostram fazendo careta, com língua de fora, certamente por influência do padrão iconográfico estabelecido na era Kanei (1848-1853) pelo bonequeiro Hikoshichi Nishijinya (西陣屋彦七), natural da cidade Kumamoto, criador do boneco mecânico obake no Kinta (おばけの金太).
Arte em de papel machê: 1) Cabeças vermelhas e outros brinquedos obake no Kinta que exibem as línguas na Loja de Bonecos Atsuga (厚賀人形店), em Kumamoto, Japão.[26] 2) Máscara “O Linguarudo” representando o diabo, produzia por Dionísio (1909-2007), em Niterói, RJ, Brasil.
Este brinquedo folclórico tem aspecto duma cabeça humana ou animal de papel machê, fixada sobre haste de bambu, com engrenagens internas que permitem mover os globos oculares, abrir a boca e mostrar a língua quando puxamos uma corda.[27] Os descendentes de Hikoshichi Nishijinya ainda fabricam o brinquedo e explicam que seu nome era Kinta, porém alguém se assustou com o movimento e supôs ser um obake.
Oposição entre valores morais e pecuniários
Uma antiga lenda diz que Bodhidharma () atingiu o nirvana meditando durante nove anos numa caverna. Durante esse exercício meditativo ele permanecia imóvel, observando fixamente o vazio numa posição chamada bìguān (壁觀) ou “olhar perene” até suas pupilas ficarem reduzidas ao tamanho mínimo. Depois que o fundador do zen-budismo na China se mumificou em vida, os chineses começaram a esculpir santos e brinquedos verdadeiros sem pupilas em sua homenagem, transmitindo a tradição aos japoneses que hoje fabricam o boneco-amuleto Darumá (だるま).
Diz a lenda que Bodhidharma meditou em uma caverna por 9 anos sem nem ao menos piscar. Sua persistência foi tão forte, que ele continuou sem parar mesmo depois de seus braços, pernas e pálpebras caírem. Essa lenda (…) é a origem do formato redondo do Darumá. Os Darumás possuem mais peso na parte inferior para que fiquem de pé, não importa quantas vezes sejam derrubados.[28]
Na tradição zen-budista japonesa o devoto compra o Darumá cego, pinta uma pupila no olho esquerdo e faz um desejo. Quando o Bodhidharma atende este desejo o devoto retribui concedendo a visão do olho direito, desenhando a pupila que falta. Esses são bonecos inarticulados, humildes, feitos de materiais baratos, geralmente vendidos em feiras e festivais religiosos, mas também em lojas de souvenir. Ao fim de um ano é preciso devolver o Darumá para qualquer templo, onde ele será queimado num ritual, liberando o seu espírito. Esse ritual pode ser individual ou coletivo. Em razão da enorme demanda, desde 1954 o templo budista Nishiarai Daishi (西新井大師) promove o festival Darumá kuyō (だるま供養) onde milhares de exemplares são queimados juntos.
No Japão, China e Coréia do Sul é comum encontrar bonequeiros e vidraceiros produtores de olhos para bonecos de Resina PU com opções de íris monocromática, sem pupilas, disponíveis inclusive em cores fantasia como salmão e vermelho vivo. A artesã chinesa Heise Jin Yao (黑色禁药) é uma entre os muitos comerciantes de olhos para BJD que parodiam a iconografia do Darumá. Porém seus bonecos não são santos conservadores e ninguém os queimaria em sã consciência, pois hoje cada um chega a valer mil dólares americanos. Eles são personagens fantásticos de novelas de temática BDSM. Um deles, Huika (毁卡), teve o nome inspirado por Huìkě (慧可), discípulo de Bodhidharma, segundo patriarca da escola de zen-budismo na China, historicamente conhecido por haver sido um nobre de pouca virtude, pouca sabedoria, coração raso e mente arrogante, descendente direto de Sidarta Gautama.
O filme de horror coreano The Doll Master (인형사; 2004), dirigido por Yong-ki Jeong, foi patrocinado pela Ai Dolls, atual Custom House. Imagine como seria se a indústria estadunidense Mattel, produtora da boneca Barbie, patrocinasse um filme protagonizado por uma Bárbie assassina. Foi exatamente isto que a Custom House fez com seus preciosos produtos! Estariam decretando a obsolescência e recomendando aos proprietários que cremem todos os modelos antigos, a serem substituídos pela nova coleção? No Brasil juristas formulariam hipóteses de crime contra a economia popular; pois, se não destruir, papões com mãos geladas puxarão seus pés para baixo da cama!
Verificamos que o filme The Doll Master retrata fielmente a antiquíssima crença oriental de que certos objetos inanimados podem prejudicar seus donos quando tratados de modo irregular. Ou seja, que “se você se apegar a um objeto e andar sempre com ele a coisa pode formar uma alma”, e que objetos inanimados “como uma rocha, uma boneca ou uma casa” pela qual alguém se apega desmesuradamente, obsessivamente, acabam carregados de sentimentos deletérios que eles reproduzem e irradiam.
Esta obra de ficção apresenta vários resultados para o que acontece quando objetos feitos de Resina PU desenvolvem alma por culpa de seus donos: Damian, um boneco articulado por elásticos internos (BJD), foi adotado e transportado pela mesma pessoa durante dezenove anos, sete meses e vinte e oito dias. Esta mulher tímida se tornou ouvidora de vozes e dialogava com a coisa. Virou uma excluída social. No mesmo filme uma designer de bonecos encontrou um manequim sentado sobre um túmulo. O espírito vingativo do manequim passou para o corpo da mulher e começou a perseguir todos os descendentes do assassino do seu criador. A artesã possessa disse:
Eu acredito que meu trabalho da vida aos objetos inanimados. (…) Você nunca possuiu coisas às quais era apegado? Você já ficou triste após perder aquelas coisas? Eu penso que quando os objetos perdem seus donos, eles ficam tristes também. Você sabia que quando algo está perdido, há algumas ocasiões em que parece que ele nunca desapareceu do seu local de origem? Eles retornam para os seus antigos donos.
Mina, outra BJD, ganhou alma quando sua dona sofreu um acidente. Com o tempo a menina enjoou da boneca e jogou fora, mas a boneca não enjoou da menina. Mina passou a perseguir sua dona, inconformada com o descarte e esquecimento. A boneca era capaz de projetar seu espírito em forma humana diante da antiga proprietária, fazendo-a acreditar que dialogava com uma menina de verdade enquanto os outros a viam falar sozinha. Por isso aquela mulher deixou de ser uma modelo desinibida e bem sucedida. Ela acabou igualmente rotulada como louca.
O exemplo da BJD Mina, de The Doll Master, é idêntico ao da pequena boneca de porcelana Mary, que aparece no episódio 11 do anime Histórias de Fantasmas (学校の怪談; Japão, 2000), Mary reencontrou o caminho de casa e voltou, querendo brincar, mas só achou a filha órfã da sua falecida dona, que era bastante madura e não gostava de bonecas. O brinquedo problemático assombrou a adolescente até ser entregue a um templo budista onde um monge explicou que o certo teria sido cremar os pertences da falecida junto ao corpo na data do óbito. Enfim, nestas obras de ficção as almas dos brinquedos amados sempre requerem mais amor e as dos brinquedos maltratados devolvem a violência às pessoas. Assim todos continuam absorvendo energia alheia.
Propaganda da microempresa sul-coreana HyperManiac, onde são comercializados personagens da designer de bonecos Ka-Hyun.
No sexto episódio da série Witch Hunter Robin (2002), criada por Sunrise e pelo diretor de animação Shūkō Murase, uma jovem bruxa diagnosticada com transtorno de personalidade múltipla transfere suas personalidades para várias bonecas até restar só uma delas em sua mente. No seriado Another (アナザー; 2012) a filha duma bonequeira extrai um olho tomado pelo câncer e equipa um olho de vidro, um olho de boneca, que transmuta e lhe dá capacidade de ver o mundo sob a perspectiva de um bakemono.
No segundo episódio da primeira versão do seriado Vampire Princess Miyu (吸血姫美夕; 1988), de Narumi Kakinouchi e Toshiki Hirano, algumas pessoas foram transformadas em bonecos articulados por uma criatura de mesma espécie que lhes prometeu beleza eterna. A energia emitida pelos embonecados sustentava o bakemono, porém a Princesa Miyu nada obteve ao mordiscar um aparentemente saboroso menino de plástico. No meio de tudo um personagem coadjuvante se recusou a comprar um brinquedo para sua filha: “Você não acha que as bonecas japonesas são assombradas? O folclore diz que o cabelo das bonecas cresce, e outras coisas deste tipo”.
No desenho animado Dantalian no Shoka (ダンタリアンの書架), sexto capítulo Funsho kan (焚書官), que foi ao ar no Japão pelo canal TV Tokyo, em 19/08/2011, os personagens protagonistas descobrem que todos os coadjuvantes moradores duma cidade misteriosa são bonecos articulados transformados por meios mágicos em shikigami (式神) para servirem de receptáculo das almas dos mortos.[29]
Isto parece uma versão em roteiro de horror da história real da aldeia Nagoro, situada na ilha de Shikoku, Japão, onde a artesã Tsukimi Ayano (月見綾乃) enfeitou áreas públicas e prédios vazios com centenas de bonecos de pano forrados com palha, jornal, etc., para combater a solidão, de modo que sua arte ocupa hoje os lugares dos mortos e dos moradores abduzidos pelo êxodo rural. Esses bonecos são mantidos limpos e substituídos quando se deterioram. Quando a quantidade de falsas pessoas superou a população humana na proporção de dez para um, agências de turismo passaram a chamar Nagoro de Kakashi No Sato (かかしの里), a Vila dos Espantalhos.[30]
Bonecos para um vampiro
Na primeira vez em que assisti ao filme Higanjima (彼岸島; Japão, 2010) pensei que Miyabi (雅) fosse um baquemono tsukumogami pois este personagem, interpretado pelo ator e modelo fashion Louis Kurihara (栗原 類), têm uma presença estética bastante diferenciada da dos demais vampiros. O seu nome significa elegância, refinamento ou cortesania, podendo designar um metrossexual, um destruidor de corações. Enfim, ele parece um boneco e foi achado num templo repleto de bonecos. Além do mais, o jogo Ragnarök Online apresenta uma versão da futa-kuchi-onna (二口女) chamada Miyabi Ningyō (雅人形) vivendo num mapa que obviamente inspirou a criação do labirinto que aparece no capítulo 295 do primeiro romance gráfico da outra franquia.
Miyabi (Louis Kurihara) em Higanjima (彼岸島; Japão, 2010).
Porém tudo se explica no capítulo 39 do romance gráfico, com roteiro e desenho de Kōji Matsumoto (松本 光司).[31] Uma mutação genética ocorrida numa família nobre criou os vampiros. Miyabi foi aprisionado num frigorífico. Durante os cinquenta e sete anos em que esteve preso os ilhéus oraram e construíram ao seu redor. Fizeram um altar para oferendas de alimentos e prosseguiram com as benfeitorias até o local virar um templo ornamentado com estantes de bonecos representando vampiros. No exterior erigiram um torii[32], uma escadaria e tudo que um templo tem direito. Enfim, tentou-se de tudo para apaziguar o vampiro exceto deixa-lo escapar do confinamento. Foi assim até que um turista desinformado e curioso cometeu o erro de abrir a prisão.
Às vezes os seres humanos imaginam que deuses abstratos precisam de olhos e corpos para representação. O mesmo acontece com fantasmas. Em Chihuahua, México, uma loja de roupas chamada La Popular se transformou em atração turística por ostentar a mesma manequim na vitrine desde 25 de março de 1930. Esta manequim com olhos de vidro está sempre vestida de noiva e foi chamada de Pascualita por parecer com Pascuala Esparza, filha da primeira proprietária da loja, que morreu envenenada pela picada duma aranha viúva negra bem no dia do seu casamento.
Desde o início as pessoas espalharam a lenda urbana de que Pascualita observa os clientes da loja e muda de posição à noite. No Japão, a desenhista Naoko Takeucki parodiou uma lenda urbana semelhante: Até 1992 existia uma loja de vestidos de noiva num shopping de Minami Aoyama, que, para chamar atenção, posava uma manequim prestes a pular da janela do terceiro andar. Muitos transeuntes se assustaram pensando ser uma suicida e contaram estórias. Na versão fictícia do quinto ato do romance gráfico Sailor Moon esta noiva manequim[33] foi animada pela yōma (妖魔) do corpo redivivo do avatar dum shitenōu (四天王) controlado por poderes das trevas e pulava da sacada à noite procurando noivos para extrair energia (精力) e, com isso, nutrir o Dark Kingdom[34].
O sepultamento da cultura
Na vida real enquanto milhares de pessoas comparecem ao Darumá kuyō, dispondo peças para consolação e cremação, e bastante gente leva washi ningyō ao festival Hinamatsuri, como deve ser, somente poucas dezenas participam do ningyō kuyō. E mesmo assim a maioria leva washi ningyō, evitando o desapego de bens duráveis e dispendiosos que são o verdadeiro foco desta bonita cerimônia religiosa.
Fica óbvio que japoneses têm dó de entregar qualquer item superior a bichos de pelúcia. Coisas boas são revendidas, pois a maioria entende que o ideal é cremar no templo aquilo que se faz pelo templo e para o templo. Ou então os próprios monges preservam brinquedos seletos para a não-cremação conforme critérios misteriosos.
Se o problema ainda não ficou claro observem o polêmico artesão chinês Ryo Yoshida (吉田 凌) cremando duas bonecas de terracota que ele mesmo esculpiu, numa ilustração da monografia Articulated Doll, Anatomy of the Ball-Jointed Maiden (2007). Tenha em mente que seis bonecas articuladas, em tamanho humano, esculpidas por Ryo Yoshida entre os anos 1986 e 1999 constam na exposição permanente 球体関節人形展・Dolls of Innocence, do Museu Nacional do Japão.[35] Estando o artista vivo e atuante, o valor mínimo para essa categoria de arte gira em torno do equivalente a quatro mil dólares americanos. Então são pelo menos oito mil dólares em obras de arte com qualidade de museu crepitando no fogo. (Pense no Coringa queimando dinheiro).
O que acontece quando monges pedem para cremar uma categoria de bonecos que custa vários salários mínimos? O homem médio obedece ou questiona? Um artista consagrado como Ryo Yoshida pode se dar ao luxo de capitalizar a religião vendendo livro e postais com foto do rito secular, porém os colecionadores guardam itens valiosos mesmo que sejam objetos agourentos. Geralmente, quando solicitado, o colecionador leva qualquer treco dizendo “este é meu boneco”, os monges educadamente fingem que foram enganados e os bonequeiros se divertem desconstruindo o dogma.
A ideia duma dimensão espiritual intrinsecamente relacionada à produção de bonecos aparece ludicamente sugerida nos nomes-fantasia de microempresas sul-coreanas e chinesas, surgidas no século XXI, fabricantes de peças em Resina PU, a exemplo da Loong Soul (龙魂人形社; alma de dragão), Immortality of Soul (imortalidade da alma), Resin Soul (alma de resina), Souldoll (boneca com alma), Angel Studio (fábrica de anjos), Illusion Spirit (espírito ilusório), etc. No catálogo da Souldoll o nome do modelo Kagel vem de kage (影, sombra) e ele existe nas versões humano e vampiro.
O ateliê chinês ★ANother Secret★ produz cabeças para montagem de bonecos e possui uma coleção chamada Hyakki Yakō (百鬼夜行) que leva o nome duma folclórica parada onde uma centena de yōkai percorre as ruas à noite, aterrorizando os humanos.
Esses bonecos orientais de Resina PU destinados ao nicho do hobby específico já não são tão enormes e dispendiosos quanto as peças de terracota e porcelana fria em escala 1/1, mas ainda são maiores que a escala 1/6 adotada perlo padrão ocidental, custando em média de trezentos a setecentos dólares, salvo casos excepcionais.
Por que os bonequeiros do século XXI descontroem e subvertem a religiosidade popular? Quem fabrica peças para consumo em território nacional e internacional são predominantemente mulheres vivendo em países onde a lei e os costumes estabelecem salário diferenciado para o sexo masculino, a fim de assegurar a posição hierárquica do homem como arrimo de família. A existência de artistas de sexo feminino ganhando mais do que o homem médio nas indústrias de publicação de mangás shoujo e josei, nas fábricas de bonecos, etc., quebra todos os tabus. Elas chefiam os seus negócios.
A classe conservadora se mostra hostil às mulheres trabalhadoras e seus iguais, que retribuem com deboche e – no caso das bonequeiras – chegam a utilizar o ônus do folclore como propaganda indireta ao promover produções de horror, como The Doll Master (2004) e Rozen Maiden – Träumend (2005). Afinal, já dizia o velho bordão: “falem mal, mas falem de mim”. Entretanto, não podemos descartar a possibilidade de às vezes estarmos importando objetos feitos por algumas pessoas que sinceramente acreditam na tradição local e tiveram a intenção de nos vender seus receptáculos de programação energética sujeitos ao ganho de vida artificial.
Resumo geral: fluxo e refluxo energético
A queima de artefatos não é uma realidade apagada no ocidente. No Brasil, nos Estados Unidos e noutros lugares onde organizações religiosas cristãs possuem grande influência no ambiente cultural, existe uma ostensiva propaganda de “batalha espiritual” ordenando o exorcismo de pessoas e a queima de determinados objetos passíveis de canalizar a possessão demoníaca (normalmente brinquedos, revistas em quadrinhos, filmes, discos de vinil, camisetas com estampa de banda musical, livros de biologia lecionando sobre os princípios da seleção natural e da ancestralidade comum, etc.).
Isso é diferente do que acontece no oriente porque o cristão queima os objetos proscritos com desdém, em nome Jesus, lutando contra o Diabo, enquanto o zen-budista crema com respeito. O bakemono do folclore nipônico não é um objeto possuído por anjo rebelde. Ele ficou impregnado de energia desprendida por um ou mais humanos e fixou-a como uma espécie de programação, passando então a reproduzi-la e irradiá-la. Ou seja, qualquer objeto pode adquirir o poder de congelar sentimentos havidos à época de seu uso. Por isso quando qualquer coisa absorve um malefício o prejuízo se torna parte da coisa e ela precisa ser destruída, mesmo que seja uma estátua de santo.
A sabedoria oriental aconselha a consolar e cremar, como se morto fosse, quase tudo que vira bakemono porque não é possível transformar tantas coisas em artigos de devoção. Se uma coisa dessas for doada para caridade ou jogada no lixo ela continuará amando e sofrendo, ficará ressentida e retornará ao usuário, podendo expressar desejo de vingança. Depois, em caso de morte do usuário, a herança buscará os herdeiros.
O ser humano exala grandes quantidades de energia durante momentos de angústia, stress, paixão, etc. A energia exalada por um estressado, por exemplo, ficaria impregnada na casa como a poeira que se acumula atrás dos móveis. Isso faria com que os objetos inanimados se transformassem em verdadeiros depósitos de stress. Visitas que sentassem num sofá estressado perderiam a alegria e ficariam estressadas em decorrência da contaminação. Nem o proprietário da coisa conseguiria melhorar e mudar de humor, pois ele continuaria a absorver e exalar o seu próprio baixo astral.
Todos nós conhecemos contos folclóricos sobre imóveis que influenciam novos habitantes porque, no passado, houve ali algum crime violento ou alguém morreu de doença grave, em intensa agonia. Antigos hospícios enlouquecem visitantes. Antigas prisões e cemitérios geralmente são mal assombrados. Museus também. Todavia nem todos as coisas são tão grandes ou carregam experiências tão intensas. A diferença entre uma boneca carregada, uma memorabilia nupcial e uma espada de guerra é que a boneca quer brincar, a memorabilia quer presenciar o amor e a espada quer matar.
Várias narrativas descrevem coisas dotadas de pouca inteligência, emotividade excessiva e inclinação ao cometimento de crimes passionais. Quem descarta algo que foi um dia muito amado deixa a coisa saudosa, indignada, ciumenta e enraivecida. Um bakemono criado a partir dum objeto superestimado será intensamente passional. Quando um homem vive intensamente a paixão por uma companheira ele está feliz, mas quando o sentimento acaba e a mulher rejeitada demonstra um ciúme doentio, ela o persegue e o faz infeliz. Com bakemono é a mesma situação.
Um objeto dotado de espírito precisa ser consolado em sinal de agradecimento e, depois, diluído em água corrente ou cremado para que descanse em paz após a prestação de serviços. Depois que um item não descartável promove uma cura absorvendo um malefício por osmose, a energia negativa absorvida se torna parte da coisa e o objeto precisa receber limpeza espiritual para não causar um refluxo, um efeito reverso, contaminando o ambiente.
Quem não deseja mudar de atitude ou opinião não precisa cremar o bakemono. Ele é literalmente sua alma gêmea (a menos que esteja possuído por um yōkai). Tem gente que programa cristais para catalisar a energia canalizada pelo Eu superior na intenção de auxiliar a si mesmo a manter o foco no serviço ou num objetivo a ser alcançado. Tudo bem se você se apaixonar por um brinquedo, permanecer com ele durante setenta anos e alguém depositar isto no seu túmulo. Provavelmente vocês serão felizes para sempre. O problema não existirá até que você deixe de ter prazer na interação com algo que passou a lhe causar vergonha e incômodo, que te deixa infeliz e escraviza como um vício. Desse jeito este velho amigo pode paralisar a vida do dono.
Não importa se o folclore alerta sobre a possibilidade de o espírito do vampiro de brinquedo sair do baú à noite para penetrar nos seus sonhos e mordiscar seu pescoço. As vezes a carga mitológica só agrega valor ao item de estimação, assim como histórias de fantasmas incitam a curiosidade sobre prédios históricos. Certa vez, no programa Trato Feito, o proprietário duma estátua de cavalo forjada no velho oeste estadunidense ficou feliz por encontrar nela um furo porque no que diz respeito às antiguidades do velho oeste “buracos de bala sempre deixam a coisa interessante”.
Bibliografia recomendada:
AMBROSIUS, Mario. 球体関節人形展・Dolls of Innocence. Tokyo, Nippon Television Network Corporation, 2004. 152p.
ITO, Eika (伊藤 叡香). Washi ningyō o tsukuru 「和紙人形を創る」. Japão, MPC (エムピーシー), 01/06/2002. 140p
YOSHIDA, Ryo. Articulated Doll, Anatomy of the Ball-Jointed Maiden. 「解体人形 吉田良人形作品集」. Japão, Editions Treville, 2007. 152p.
Notas:
[1] O termo bake (化け), “transformando”, é a forma ren’yōkei (連用形), correspondente ao nosso gerúndio, do verbo bakeru (化ける), “transformar” ou “mudar”.
[2] Todos os catálogos virtuais de folclore escritos em idiomas ocidentais classificam o bakemono dentro da categoria ontológica yōkai (妖怪). Porém na série Natsume Yūjinchō (夏目友人) o protagonista explica que existem diferenças entre bakemono e yōkai. “Se você conseguir beber sem se embebedar, você deve ser um bakemono…”.
[3] O animismo é a cosmovisão em que entidades não humanas possuem uma essência espiritual.
[4] WIKTIONARY, verbete 「霊魂」. URL: <https://en.wiktionary.org/wiki/%E9%9C%8A%E9%AD%82>. Acessado em 19/04/2022 14h16.
[5] TRAVI, Mauricio. A misteriosa lenda da boneca japonesa Okiku. Em: DANJOU, publicado em 08/06/2018. URL: <https://www.danjou.com.br/post/2018/06/08/a-misteriosa-lenda-da-boneca-japonesa-okiku>.
[6] NINGYOO – BONECAS. © 2003 Aliança Cultural Brasil Japão de Joinville. Texto salvo do Geocities em outubro de 2009. Acessado em 28/04/2022 às 19h. <URL: http://www.oocities.org/br/japaojoinville/ningyoo.htm>.
[7] ABUMI-GUCHI. Em: Yōkai Wiki. Acessado em 14/05/2022. URL: <https://yokai.fandom.com/wiki/Abumi-Guchi>.
[8] TEZUKA, Osamu. 無残帖Cruel. Em: TEZUKA, Osamu. Dororo: Volume 2. São Paulo, New Pop, 2011, p 07.
[9] Talvez não seja inútil mencionar o MMORPG coreano Ragnarök Online onde os avatares do jogador combatem cavalos pegando fogo chamados “pesadelos sombrios”.
[10] DORORO WIKI, verbete Dororo no Uta. URL: <https://dororo.fandom.com/wiki/Dororo_no_Uta#English>. Acessado em 18/04/2022 16h02.
[11] TUZI. Tsukumogami: yōkai de objetos antigos. Publicado na Radio Hero em 18/03/2021, 01h23. URL: <https://radiojhero.com/tsukinousagi/2021/03/tsukumogami-yokai-de-objetos-antigos/>.
[12] PAN. O que são os Tsukumogami: Os Objetos Possuídos. Publicado no blog Suco de Manga em 31/10/2021. URL: <https://sucodemanga.com.br/saiba-o-que-sao-os-tsukumogami-os-objetos-possuidos/>.
[13] TUZI. Tsukumogami: yōkai de objetos antigos. Publicado na Radio Hero em 18/03/2021, 01h23. URL: <https://radiojhero.com/tsukinousagi/2021/03/tsukumogami-yokai-de-objetos-antigos/>.
[14] TSUKUMO-GAMI: OS ESPÍRITOS ZOMBETEIROS DE ANTIGOS ARTEFATOS JAPONESES. Publicado em Caçadores De Lendas, 06/2013. URL: <https://cacadoresdelendas.com.br/japao/tsukumo-gami-espirito-de-artefato/>.
[15] DAVE, Ronin. Japanese Doll Memorial with Geisha in Kyoto – Ningyo Kuyo 人形供養. Publicado no canal do autor no Youtube em 16/10/2015. URL: <https://www.youtube.com/watch?v=JwiDg7mMU5Q>.
[16] A MAGIA DAS BONECAS. Em: Super Interessante. Publicado em 31/07/1992, 22h00. Atualizado em 31/10/2016. URL: <Leia mais em: https://super.abril.com.br/historia/a-magia-das-bonecas/>.
[17] WIKIPEDIA, verbete Tsukumogami. URL: <https://en.wikipedia.org/wiki/Tsukumogami>. Acessado em 27/04/2022 17h06.
[18] PAN. O que são os Tsukumogami: Os Objetos Possuídos. Publicado no blog Suco de Manga em 31/10/2021. URL: <https://sucodemanga.com.br/saiba-o-que-sao-os-tsukumogami-os-objetos-possuidos/>.
[19] ITO, Eika (伊藤 叡香). Washi ningyō o tsukuru 「和紙人形を創る」. Japão, MPC (エムピーシー), 01/06/2002, p 30-31.
[20] Tsundoku (積ん読) é o hábito de comprar livros e deixá-los de lado sem ler.
[21] RIBEIRO, Aline. Guia Conhecer Fantástico Extra: Samurai & Ninja. São Paulo, OnLine, 2015, p 31.
[22] TUZI. Tsukumogami: yōkai de objetos antigos. Publicado em Rádio Hero, em 18/03/2021, 01h23. URL: <https://radiojhero.com/tsukinousagi/2021/03/tsukumogami-yokai-de-objetos-antigos/>.
[23] Um Kasa Obake (傘お化け) é também chamado Karakasa Obake (唐傘お化け) ou Karakasa Kozo (唐傘小僧).
[24] GORDON, Cesar. Economia selvagem: Ritual e mercadoria entre os índios Xikrin – Mebêngôkre. São Paulo SciELO – Editora UNESP, 2006, p 356-357.
[25] TSUKUMO-GAMI: OS ESPÍRITOS ZOMBETEIROS DE ANTIGOS ARTEFATOS JAPONESES. Publicado em Caçadores De Lendas, 06/2013. URL: <https://cacadoresdelendas.com.br/japao/tsukumo-gami-espirito-de-artefato/>.
[26] SHIRAISHI, Yuta (白石雄太). Kumamoto no kyōdo omocha “obakenokinta” (熊本の郷土玩具「おばけの金太」). Publicado em Story Nakagawa, 27/08/2019. URL: <https://story.nakagawa-masashichi.jp/104515>.
[27] OBAKE NO KINTA お化けの金太 KINTA THE GHOST. Publicado na Daruma Pedia, em 26/05/2015. URL: <https://darumapedianews.blogspot.com/2015/05/mingei-kyushu-obake-no-kinta.html>.
[28] NISISHIMA, Leandro. A surpreendente história do boneco Daruma. Em: GO! GO! NIHON, 12/01/2022. URL: <https://gogonihon.com/pt/blog/boneco-daruma/>
[29] ANIME REVIEW: DANTALIAN NO SHOKA – 6. Publicado no blog Population GO, no Tumblr, em 24/08/2011. URL: <https://populationgo.tumblr.com/post/9338032459/anime-review-dantalian-no-shoka-6>.
[30] CONHEÇA NAGORO, A VILA JAPONESA ONDE BONECOS SUBSTITUEM OS MORTOS. Publicado no portal de notícias Mega Curioso. Acessado em 18/05/2022. URL: <https://www.megacurioso.com.br/artes-cultura/114824-conheca-nagoro-a-vila-japonesa-onde-bonecos-substituem-os-mortos.htm>.
[31] Higanjima (彼岸島) foi originalmente publicada na antologia de quadrinhos Shukkan Young Magazine (週刊ヤングマガジン), pela editora Kōdansha (講談社), desde 04/04/2003 até 06/12/2010.
[32] Um torii (鳥居) é um portão tradicional japonês encontrado na entrada ou dentro de um santuário xintoísta, onde simbolicamente marca a transição do mundano para o sagrado.
[33] NAVOK, Jay e RUDRANATH, Sushil K. Warriors of Legend: Reflections of Japan in Sailor Moon. South Carolina, BookSurge, 2006, p 51
[34] TAKEUCHI, Naoko. コードネームはセーラーV— 1. Japão, Kodansha Comics, 1993, ato 5, p 172-173.
[35] AMBROSIUS, Mario. 球体関節人形展・Dolls of Innocence. Tokyo, Nippon Television Network Corporation, 2004, p 66-71.
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