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por Bosco Chancen[1]
A encantaria Marajoara é um conjunto de crenças religiosas de origem africana e indígena da ilha de Marajó/Pa, profundamente relacionada com a natureza, composta de lendas e narrativas orais, que tem como ideia principal a crença de que, ao lado do mundo em que vivemos, existem mundos paralelos habitados por seres mágicos. Para essa crença a morte não existe para alguns indivíduos, que se tornam “encantados”, tornando-se seres lendários: curupiras, botos, sereias. Ou seres da natureza: animais, plantas ou objetos inanimados, que passam a viver entre o mundo dos humanos e dos seres encantados.
Curiosamente, lendas amazônicas possuem muitos pontos em comum com lendas europeias, apesar de toda a distância e diferença cultural entre seus povos. Seria por que as lendas trazem em si uma gramática universal dos anseios humanos, como acreditava o antropólogo Lévi-Strauss? Ou porque trazem símbolos elementares de um inconsciente coletivo presente em todos os indivíduos, produto de nossa evolução, que conta nossa história evolutiva, como pensava o psicólogo Carl Jung?; eis algumas delas:
Encantados
Assim como na encantaria amazônica, em que os “encantados” são transportados para outro mundo sem passar pelo advento da morte, o mesmo pode ser encontrado em lendas europeias, na lenda portuguesa do rei Dom Sebastião (1554 – 1578) que, dizem, teria se “encantado” em plena batalha contra os muçulmanos no ano de 1579, no Marrocos, e transportado para um mundo encantado — lenda que deu origem ao Sebastianismo, movimento messiânico que professa a crença de que um dia Dom Sebastião voltará para tomar para si o trono de Portugal.
Portais Mágicos
Na Amazônia há toda uma mística oriunda dos povos originários que comporta portais mágicos, em que gigantescas árvores de samaúma são tidas como passagens místicas para seres encantados da floresta; portais que uniria o mundo dos humanos ao mundo dos seres encantados — nada tão diferente da crença europeia de que velhos carvalhos seriam moradas de duendes.
Para povos originários da Amazônia, rios e igarapés também são considerados portais mágicos para cidades submersas dos caruanas — seres espirituais, mediadores entre os pajés e os poderes da floresta.
Por seu poder de reflexo e brilho, rios e lagos também podem ser associados a espelhos (espelhos d’água), cujas lendas europeias os concebem como portais mágicos capazes de tornar cativos espíritos dos mortos — daí o antigo costume inglês de cobrir com tecido os espelhos da casa após a morte de um familiar.
Vampiros
Entidades vampíricas estão presentes em quase todas as culturas. E nesse imenso caldeirão de lendas e mitos, que é a Amazônia, não poderia faltar um de seus representantes: o boto.
A característica vampiresca do boto, em geral, é pouca conhecida da maioria, porém está presente nos relatos de ribeirinhos, que afirmam que botos são atraídos pelo sangue menstrual de passageiras em pequenas embarcações, ao ponto de vir até o barco para virá-lo.
O que gerou a tradição que ensina a amassar dentes de alho e a jogar no rio, a fim de afugentar botos e impedi-los de que, transformados em um belo rapaz, entrem nas casas de ribeirinhos, seduza mulheres presentes e as leve para o fundo do rio, como se pode ver pelo relato retirado da tese de mestrado “Cosmologias da Encantaria da Ilha de Marajó”, de Dione Leão:
“Quando eu era criança e a gente morava no interior, meu pai viajou e ficou eu, minha mãe e meus três irmãos. Uma noite a gente estava dormindo e a mamãe assustada acordou a gente, pois ela sentia que tinha gente dentro da casa, no corredor. Quando ela fez o barulho, a coisa correu pela cozinha, desceu ao redor da casa e pulou na água. No outro dia, minha mãe amanheceu com muita dor de cabeça, febre, vômito e, em frente a casa um monte de boto boiando. Foi preciso bater um monte de dente de alho dentro de uma cuia e meu irmão mais velho foi jogar lá no meio do rio pra espantar os bichos e, nós fomos pra cassa da vovó pra ela cuidar da minha mãe.”
A mesma tradição também aconselha pôr “cruzes nas portas, jogar água benta no rio, dentre outras técnicas, além do tratamento com benzedores”.
É impossível não identificar os mesmos procedimentos usados em lendas europeias para afugentar vampiros.
Romance de Realismo Mágico Amazônico
O romance “Após a Chuva da Tarde – A Lenda de Camille Monfort, a Vampira da Amazônia” nasceu do interesse do autor, Bosco Chancen, pelas curiosas semelhanças entre lendas europeias e lendas amazônicas, da busca de entender o que são as lendas e o porquê de povos tão distantes entre si possuir lendas tão semelhantes, e também do desejo de extrair delas conhecimentos sobre a estrutura narrativa das lendas — da magia da encantaria amazônica (hoje em vias de desaparecer), da mitologia grega (particularmente do simbolismo iniciático do mito de Orfeu e Eurídice) e também da famosa lenda dos vampiros, que serve de referência entre lendas europeias e amazônicas (vampiro = matintas perera).
Para tanto, o romance aborda a breve estadia da enigmática cantora lírica francesa Camille Monfort (1869 – 1896) em Belém do Pará, para concertos no ano de 1896, em plena explosão da riqueza proporcionada pela venda da borracha amazônica para o mundo. E de como sua estadia deixou um rastro de lendas e boatos nascidos não apenas do seu talento musical e grande beleza (que provocou interesse em ricos senhores e ódio em suas esposas), também por seu comportamento de mulher independente (ela incentivava o direito das mulheres ao conhecimento, algo incomum na época) e por seus misteriosos passeios noturnos à beira do rio Guajará; mas, sobretudo, por sua doentia palidez que, junto com desmaios de jovens mocinhas durante seus concertos e a chegada do surto de cólera à região, levou à suspeita de seu vampirismo e de sua misteriosa morte.
O romance também conduz o leitor pela grande seara de lendas e de ensinamentos da boa relação do humano com a natureza, oriunda dos ensinamentos dos povos originários e da encantaria amazônica, com seus portais mágicos que são explorados pelo livro através de descrições de experiências xamânicas com seres mágicos da natureza por meio da ayahuasca.
O livro é narrado, tendo em vista as diferentes formas que a artista assumiu para os mais diferentes segmentos da sociedade amazônica: uma grande artista, para os jornais da época; uma mulher à frente de seu tempo, para os influentes membros da sociedade; uma matinta perera, para membros do povo; e uma vampira, para excêntricos.
Por meio do conceito de lenda — narrativa oral nascida de algum acontecimento que impactou uma comunidade, ao ponto de ser acrescentado a ela posteriormente elementos mágicos — o romance conduz o leitor a separar o imaginário do mágico e do real.
Link Para Adquirir o Livro:
A Lenda de Camille Monfort: “A Vampira da Amazônia”
Bosco Chancen é autor de romances, se dedica a divulgar a cultura amazônica por meio de livro e palestra; é colecionador de lendas da encantaria e urbanas; tem o blog Bornal onde publica casos misteriosos; mora em Belém do Pará.
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