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Arauto do Caos; 2023
Extraído de “Liber Kam-Azoth: O Livro do Morcego”
Quando tratamos de espiritualidade, especialmente caminhos obscuros e menos dispersados entre as massas populares; nos deparamos com inúmeros conhecimentos escondidos atrás de metáforas e simbologias, o que nos exige uma capacidade de raciocínio lógico e pensamento crítico para lidar com elas.
É o exemplo dos ‘amuletos de invisibilidade’ tão retratados em grimórios antigos como o famigerado ‘São Cipriano’ ou os Quadrados Mágicos de Abramelim; e o ‘ritual para uma mulher dançar nua’ presente no ‘Grimorium Verum’. O primeiro claramente não te deixa translúcido e ninguém fará um strip-tease para você com o segundo, seus reais objetivos ocultos por baixo de uma camada de fantasia que atualmente só poderia ser descrita como ‘hollywoodiana’.
Isso significa que eles são mentiras ou menos funcionais? Claramente não é o caso. Apenas não servem para propósitos fantásticos, mas possuem um sentido aproximado.
Caso semelhante ocorre com a mitologia vampírica. Não é o caso de beber literalmente sangue e ser um ‘serial killer’ descontrolado e improdutivo, mas saber reconhecer os símbolos por trás destas lendas e literatura e saber incorporá-los a sua ‘persona’, tanto mágica quanto no cotidiano.
Podemos observar a presença de ‘simbolismo magico’ em vários mitos, desde os mais primitivos como os Strigoi e Morooi até os mais próximos a nós, como na literatura de John Polidori, Anne Rice e Bram Stoker. Todos eles possuem alguns atributos em comum que merecem ser identificados e estudados e faremos isso razoavelmente aqui, apontando um Norte para aqueles que desejam se aprofundar nesta estrada. Para isso, tomaremos como exemplo de base fundamental a mitologia de Drácula/Conde Vla-dislav Tepes III, tanto em sua fonte real quanto no imaginário de Bram Stoker.
Maiores fontes sobre sua história foram fornecidas no capítulo pertinente a ‘Sangromancia’ no nosso ‘O Manual do Necromante’, deste mesmo autor e não serão repetidos aqui integralmente, podendo ser conferidos no mesmo.
Ao analisarmos a figura vampírica de Vlad, temos em característica comum a ambas suas formas (real/literária) o choque. Vladislav, quando criança, sofreu de um pai autoritário e foi abusado, inclusive sexualmente, por seus rivais otomanos, desenvolvendo por eles um ódio mortal. Já sua versão literária em Drácula sofre o choque da perda de sua esposa, que comete suicídio após ser comunicada falsamente da morte de seu amado. A perda do amor faz com que Drácula entre em um estado de ira gnóstica onde acaba recebendo as bençãos do Diabo ao blasfemar dentro de uma capela ortodoxa. Em ambas as versões o vampiro em questão utiliza a energia de sua frustração, realizando uma catarse psicossomática para romper o véu e alterar sua consciência como um todo. A ideia aqui é de que aqueles que usam o vampiro como ferramenta espelhada devem conseguir mudar a dor das intempéries naturais da vida, sejam ela em maior ou menor escala, como forma de se tornar mais fortes. A vida não é simples e nem fácil e como diria Nietzsche, ‘aquilo que não nos mata deve nos fortalecer’. Devemos saber romper os ciclos e seguir adiante quando um evento fracassar.
Vampiros são, de maneira geral, uma apresentação simbólica daquilo que representa o subconsciente humano. Não é por coincidência que vivem no lado noturno, separando a totalidade humana em duas metáforas: O Dia, apresentado como o consciente, o racional, a mente cotidiana e a Noite, onde habitam, representando todos os comportamentos e pulsões violentas e sexuais os quais a sociedade não aceita devido a seu status de ‘Sociedade Sã’. Sabemos que em meio a sociedade doente a máscara de virtude posta pelas massas rege a música na qual dançamos durante a vida, mas que por baixo desta falsidade ideológica habita uma sociedade completamente disfuncional. E não é raro termos que apelar para nossas pulsões de sobrevivência para podermos nos defender, afastar sociopatas e narcisistas, fugir da violência urbana etc. Não é raro que esta mesma máscara de falsa virtude seja utilizada também no sexo, enquanto aqueles mesmos pastores e moralistas que o pregam fazem coisas piores do que podemos imaginar.
A figura vampírica, aliás, sempre se apresentou no limiar da sexualidade humana. Enquanto a sociedade repressiva abomina qualquer forma de fetichismo (ao menos no âmbito público, diga-se), homossexualidade, entre outras, a figura do vampiro sempre foi associada a estas práticas. Temos por exemplo o poema Christabel, do poeta Samuel Taylor Coleridge e o romance Carmilla de Sheridan Le Fanu que expõe personagens com tendencias ao lesbianismo. O Vampiro, de John Polidori tem em seu protagonista uma sátira as práticas sexuais abominadas pela sociedade ‘diurna’, das quais Lord Byron era reconhecidamente adepto. Pode-se citar ainda os vampiros bissexuais de Anne Rice e a declarada não monogamia de Drácula, com direito a três noivas e uma esposa; bem como sua relação com Mina Harker, onde ele protagoniza uma forma de sexo ‘nada pudica’ que John, como ‘homem de bons costumes’ não faria igual com sua esposa.
Este aspecto dominante o torna um vilão tão bem caracterizado e, claro, dotado de grande ‘sex appeal’. Creio, em minha análise, que parte da chave do sucesso destas histórias e dos mitos vampirescos de mulheres possuídas que atacavam homens e homens que seduziam mulheres repousa justamente no aspecto sexual reprimido, que ainda permanece atualmente, onde a sexualidade é largamente objetificada e muito pouco exercida de fato, deixando grandes lacunas e por vezes até mesmo distorções na mente humana comum.
O próprio ato do ‘Abraço/Beijo’ vampírico com troca de sangue e contato físico tão intenso que por vezes é descrito como um prazer mais intenso do que um orgasmo para ambos, vítima e predador; é uma claríssima alusão ao sexo. A figura metafórica do vampiro sintetiza de maneira magistral desde o início dos tempos até a modernidade os princípios de ‘Eros e Thanatos’, a pulsão de vida e morte a qual nos cita Freud em seus estudos da psiquê humana. Ele é ambos, predador sedutor e vítima voluntária, porém não se limita somente aos desejos de prazeres carnais de camponeses (e cidadãos médios atuais); mas contém ainda em si o desejo transcendental de cruzar as barreiras da Morte, de ver através dos Véus, da Juventude Eterna e dos Poderes que vêm através dessa orgásmica iniciação presente em sua cruenta mordida, conforme suas presas, seu falo noturno penetra intensamente na pele ávida por poder de sua vítima.
Finalizando esta análise de uma perspectiva psicológica, os Vampiros representariam o que os psicanalistas facilmente enquadrariam em um Arquétipo da luta entre Ego e Superego ; a própria ‘Sombra’ de Jung, que simboliza todo nosso potencial de agressividade auto defensiva e de Sexualidade intensa e reprimida, livre de suas amarras na busca por um prazer carnal; possuindo um lado espiritual, quase religioso, no qual repousa o ato de sugar o sangue. Este ato não é apenas um mero consumo compulsivo, mas quase uma comunhão, o mais íntimo contato possível, que transcende a sexualidade e forma uma aliança, um ‘laço de sangue’ entre os envolvidos. Mais do que sexo, a figura vampírica também simboliza a busca por poder. De um ponto de vista esotérico, podemos analisar a relação dos vampiros com os animais, que também se inclina ao contexto da bestialidade latente no ser humano que se manifesta para fora. Suas fraquezas nos trazem uma análise a parte.
O Sol e sua luz matam os vampiros das lendas, pois quando a sombra é trazida para a razão, ela desaparecer, sendo sublimada pela mente racional. Em um contexto esotérico, aqueles que trabalham com magia vampírica tendem a preferir locais escuros, pois a luz do sol fere o ‘perispírito’ que se forma através das moldagens de energia, causando severo desconforto, porém jamais outro tipo de dano além disso.
Outrora a prata também feria os vampiros, mas essa fraqueza acabou sendo omitida nas lendas posteriores. Isso porque o vampiro, como ser ‘alienígena’ a todas as outras espécies naturais, era rejeitado por ambos, sol e lua, tendo assim uma dupla vulnerabilidade, que também incluía objetos de prata. Os espelhos feitos na época de lâminas de prata eram a expressão máxima da rejeição lunar do vampiro, cuja mera visão os afastava. Em outros contos, eles eram simplesmente rejeitados pela reflexão da luz, sendo incapazes de contemplar a própria imagem. Algo interessante, se analisarmos a figura ‘sedutora’ dos vampiros mitológicos, essa aversão a sua ‘face verdadeira’ refletida pela prata, não como algo belo, mas uma visão aterradora, servia como uma quebra da própria máscara, uma degeneração da persona construída através das eras, que causava completa repulsa. Exatamente como ocorre com as pessoas Narcisistas, cujas máscaras, figuras projetadas e sombras fortalecidas ao longo de muitos e muitos anos e relações abusivas sob outros se esfarelam ao verem sua real faceta de incapacidade, improdutividade e parasitismo, resultando numa reação bestial agressiva ou numa fuga desesperada como mecanismo de defesa do ego ferido o qual tentavam proteger. Em uma perspectiva esotérica, diferente da psicológica, o adepto do caminho da magia vampírica claramente não sofre problemas com espelhos, que pelo contrário, agem como ferramentas extremamente úteis.
Para podermos finalizar esta breve análise, existe a questão do Sangue. Certos sectos dizem que a alimentação sanguínea deve ser literal, outros dizem que é apenas metafórica. A realidade é que o Sangue serve como um vínculo poderosíssimo quando utilizado em rituais, especialmente o do próprio adepto, ofertado por si mesmo em ofício sagrado.
Gotas de sangue sacrificial, seja de animais ou de si adicionados a bebidas rubras as tornam energeticamente pungentes. São os elixires da Magia, que transportam energia tal como o Sangue contém em si a Vida. Portanto, as duas coisas estão certas: O Sangue é símbolo da vida drenada através das torrentes de energia e ‘vitae’ que fluem da vítima de ritual; quanto literal no tocante a conter em si energia poderosa suficiente para ser ofertada a entidades (frequente nos cultos de Quimbanda, por exemplo); ou consumido pelo magista. Metafórico ou não, o Sangue definitivamente é como um rubi, raro e sagrado e não deve ser derramado levianamente ou por exibição. Mais detalhes são dados no capítulo pertinente a Sangromancia no ‘O Manual do Necromante’. Podemos alcançar a conclusão com este estudo de que o vampiro literário/metafórico serve a ambos os propósitos, tanto de análise psicossexual quanto espiritual de um iniciado, sendo um arquétipo de sedução, busca por poder e fome por conhecimento, vindos do lado obscuro/subconsciente, que muito pode auxiliar quando conciliado com o lado solar/diurno/consciente.
Através de sua ‘jornada anti-heróica’, figuras como a de Vlad Tepes nos apontam um caminho que resulta nos atributos os quais ele ostentava: A Visceralidade, intensidade, honra, comprometimento, Etiqueta, Cortesia e toda Nobreza sanguínea daqueles que partilham da mesa dos Deuses.
Extraído de “Liber Kam-Azoth: O Livro do Morcego”: um grimório contendo filosofias e rituais de Magia Negra crua relativas ao culto ao antigo Deus Camazotz, dentro da perspectiva do Caminho da Mão Esquerda e das práticas transcendentais além dos horizontes da Não-ortodoxia mágica. A versão expandida do livro conta com 273 páginas, adicionando muito conteúdo inédito a antiga versão circulada uma década atrás em forma de cartilha ritualística. Um belo exemplar para aqueles que desejam por em prática esta forma de culto e espiritualidade.
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