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Todos os que façam pesquisas, por mais superficiais que sejam, a respeito de um satanismo que não seja puramente a perversão dos dogmas e rituais cristãos, se depararão com esta máxima que, ao menos desde a fundação da Church of Satan nos idos 1960, tem marcado a filosofia satânica: Satã é o arquétipo da liberdade. Baseado nisso, é comum vermos muitos dizerem que satanistas são seres livres, em contraposição a um rebanho dominado pela alienação religiosa, cultural e política. Dizendo que satanistas são livres, afirmam também, cheios de orgulho, que são seres livres e que regozijam-se de tal liberdade estando em comunhão com o Opositor. Pensando, contudo, a condição humana, nossa existência, e a constituição de nossa consciência, sinto-me obrigado a questionar: até que ponto realmente é possível ao ser humano ser livre? Inspirado nisso, venho a escrever esta pequena reflexão. Não tenho interesse em provar nada a ninguém ou mostrar qualquer “caminho certo”, mas acredito que este artigo possa nortear as problematizações de alguns adeptos, e por isso o desenvolvo.
Vários foram os teóricos que, ao longo da história, tentaram pensar o ser humano, sua essência e a condição dos mesmos enquanto seres humanos, inseridos em uma sociedade, desenvolvendo pontos de vistas diferentes sobre o mesmo. Pensadores como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, pioneiros na “teoria geral do Estado”, traçam importantes reflexões em suas respectivas obras “Leviatã” e “Do Contrato Social”. Ambos defendem, a grosso modo, que o homem é provido de uma natureza eminentemente voltada à destruição, uma natureza em essência “má”, egoísta, individualista, contraposta à vida em sociedade. O Estado, neste sentido, erguer-se-ia como uma instituição antinatural e “sobrehumana”, que deteria o monopólio da violência impedindo que os seres humanos “predassem” uns aos outros, ainda que pelo uso de leis coercitivas visando o “bem geral”.
Posteriormente, Karl Marx, tecendo uma forte crítica aos pensadores contratualistas, positivistas e iluministas clássicos, negaria a existência de uma “natureza humana” que condicionasse suas noções de moral e ética. Adam Schaff, em sua obra “História e Verdade”, aborda vários pontos do pensamento marxista sobre o indivíduo e a formação de sua consciência. Expondo a chamada “teoria modificada do reflexo”, o mesmo parte do princípio que o ser humano é eminentemente social, e sua consciência, não sendo inata ou fruto de qualquer “natureza”, é constituída de acordo com o meio social em que o sujeito vive. Sua forma de enxergar a realidade à sua volta, neste sentido, seria fruto de uma série de condicionamentos sociais provenientes da educação que recebera, suas noções de ética, moral, cultura, espiritualidade, ciência, entre outros aspectos. Por isso é comum muitos marxistas dizerem que “o homem é fruto de seu tempo”, pois as várias formações que o mesmo recebera é que constituíram, em uma síntese dialética, sua individualidade.
Nietzsche, contemporâneo de Marx, contrapõe-se também, em seu pensamento sobre o sujeito, a toda uma gama de teorias provenientes da tradição iluminista, sendo ao mesmo tempo crítico dos contratualistas, positivistas, marxistas, entre outros. Este, constantemente assombrado pelo impasse gerado pelo niilismo schopenhaueriano, busca na “Vontade de Potência”, na vontade de poder, a única forma de elevar o ser humano para além do vazio decadente de seu tempo. Segundo o mesmo, a potência era o que caracterizava a condição humana, tendo “até mesmo um servo o desejo de tornar-se senhor”. A potência era, deste modo, algo eminentemente ligado à condição humana, diferentemente à “Vontade”, que era algo inato e espiritual. A sede de poder humana, tomando uma conotação diferente dentro de cada realidade analisada, pode ser vista em guerras entre países, na defesa de interesses inerentes a grupos, classes e estamentos sociais (sejam constituídos por dominantes ou subalternos), bem como na defesa de interesses individuais também.
De um modo geral, podemos dizer que todas estas teorias, com suas limitações, possuem coerência e nos possibilitam pensar a condição humana e a questão da liberdade. Embora eu, em particular, não concorde com a ideia de que o ser humano seja constituído de traços “morais” inatos (egoísmo e individualismo, por exemplo), como pensavam Hobbes e Rousseau, defendo a ideia que, realmente, o Estado é aquele que assegura o monopólio da violência, ainda que seja apropriado por uma dada classe hegemônica e que, em situações extremas, esteja pronto a lhe defender. De igual forma, também é inteligente afirmar que a consciência humana é constituída por traços sociais advindos de uma dada formação social, como dizia Marx, e que a potência é algo inerente à condição humana, como dizia Nietzsche. Se formos ver, grosso modo, a própria “força”, que muitos defendem com unhas e dentes, não existe senão em dinamismo (a própria física é categórica em afirmar que, em inércia, não há força). Deste modo, o poder é algo que só se materializa no dinamismo das relações humanas, em um processo de interação social.
Embora muitos satanistas defendam a individualidade (e o individualismo, que é bem diferente) à qualquer preço e enquanto lei máxima, temos que reconhecer que a vida social é necessária para a reprodução e conservação da espécie humana. Desde os primórdios era necessária ao ser humano a vida em agrupamentos simples, como clãs e tribos, ainda que nômades. Naquele momento, não tendo o homem praticamente nenhum domínio sobre a natureza, este se encontrava vulnerável como qualquer outra espécie animal. Isolamento, neste caso, era morte certa, pois a não ser em grupo, não se poderia vencer a hostilidade que o meio natural silvestre abrigava. Posteriormente, com a formação das primeiras sociedades sedentarizadas, é que o ser humano, desenvolvendo um maior domínio sobre a natureza a partir da tecnologia em desenvolvimento, pode constituir de forma mais concreta sua individualidade. Com a formação dessas comunidades, e vencidos alguns percalços outrora existentes no meio natural, a sociedade se complexificou, formando classes, categorias, estamentos, hierarquizando-se em funções e constituindo lideranças estáveis. Ou seja, até mesmo a individualidade é algo que só se torna possível na vida social!
Qualquer homem em vida social sabe que não é completamente livre e, muito embora tente lutar contra isso, não pode viver isolado do convívio social. Mesmo porque, olhando à nossa volta, vemos o quanto o meio social é importante para a formação da nossa personalidade, do nosso ego. Mesmo sabendo que o ego é apenas uma máscara, sabemos que o mesmo não é possível de ser vencido em vida, devendo deste modo, ser sua “potência” canalizada em prol do atingir de nossa “vontade”. E também, mesmo que não gostemos de nosso meio social, e digamos que as pessoas à nossa volta são fúteis e medíocres, os argumentos, teorias e expressões artísticas que nos utilizamos para combater esta cultura social são conhecidos a partir de nossa experiência social. Por isso temos, até mesmo para lutar contra dogmas religiosos e sociais incrustrados, limitações, tendo em vista que só podemos lutar com base na cultura que tomamos conhecimento e que já foi produzida. Ainda, mesmo que produzamos algo novo, este novo será baseado naquilo que já foi produzido. Um bom exemplo disto é a própria Church of Satan. Anton Lavey, quando escreveu sua Satanic Bible, baseou-se em todo um legado deixado por importantes pensadores, como Nietzsche, Maquiavel, Jung, Freud, entre outros. Ou seja, ele só pode criticar o cristianismo tomando como base um pensamento conhecido em seu tempo. Tivesse escrito o livro em outro momento histórico, com certeza o teor de sua crítica e a formação do que chamava de satanismo seria muito diferente. Baseando-se nisto é que Marx, em seu “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, afirmará que “os homens fazem sua história, mas não a fazem como querem, mas sim sob condições determinadas”.
Deste modo, podemos chegar à conclusão de que o ser humano não é, em última instância, um ser completamente “livre”. Ser humano é estar condicionado por limitações culturais e por regras estabelecidas em seu meio social, mas que são necessárias à preservação do ser humano enquanto espécie. Ainda que cheguemos à um estágio mais evoluído, ainda que despertemos nosso potencial divino, ainda estaremos, enquanto seres humanos vivos e encarnados, sujeitos à limitações, ainda que contra a nossa vontade. Limitações provenientes tanto de nossa formação, de nossas necessidades sociais e até mesmo das restrições de nosso corpo físico. Podemos ser “deuses”, mas qualquer medida política ou restrição econômica influenciará nossas vidas, seja positiva ou negativamente. Sendo deuses, temos a consciência de que nosso ego será transbordado por nossas novas capacidades, mas ainda assim sabemos que a única forma de libertação completa está na transcendência da matéria (e creio que nem para todos será a libertação). Sendo assim, fecho esta reflexão com uma brilhante citação de Eduardo Pinheiro em seu “Livro dos Fnords”:
“5. Abandonar quaisquer sistemas de crenças, embora desejável, é impossível. Existem programas compulsórios tanto biológicos quanto ambientais. O livre arbítrio é paradoxal. Quem abandona quaisquer referências “externas” se torna um psicótico, e está condenado a não interagir. O poder verdadeiro vem da liberdade relativa que o indivíduo obtém dentro de seu ambiente (semântico, social, etc.).”
Hail Satan!
Frater Thanatos Daemon
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