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Mundus Inversus: A Inversão como Fonte de Poder

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por Michael 156.

“Já que o Diabo é o contrário direto de Deus, não há maneira melhor de conhecer Deus do que pelo seu oposto; pela falsidade de um, considerar a verdade do outro; pela injustiça de um, considerar a Justiça do outro; e pela crueldade de um, considerar a misericórdia do outro.”
— Rei James VI, 1597.

Martin Duffy certa vez escreveu que a verdadeira gnose só é alcançada quando a dualidade é compreendida. Em tal afirmação encontramos a doutrina neoplatônica da “concordia discors”, a concórdia discordante: quando elementos contrários estão em harmonia e alcançam uma unidade (‭Ⅰ+‭Ⅰ = ‭Ⅰ, como explicado por Daniel Schulke numa espécie de matemática metafísica). Corroborando com Duffy, Loys Le Roy escreveu em 1576 que a natureza “deseja” a contrariedade porque é só por meio da junção com seu oposto que cada entidade ou qualidade pode sobreviver e contribuir para a ordem do todo: a cura precisa da doença para existir; uma música precisa de notas com sons contrários para formar uma melodia; a justiça necessita da injustiça. De modo análogo, o praticante do Caminho Torto trabalha com “ambas as mãos”, uma prática indispensável para se alcançar a plenitude dos arcanos espirituais.

No que diz respeito ao foco deste texto, a inversão, há um aforismo latino, “opposita iuxta se posita magis elucescunt”, que defende que “quando os opostos são colocados próximos, ambos são vistos com mais clareza”. Quando um praticante mágico ou religioso observa a ordem normal de como as coisas são feitas na prática espiritual que ele está inserido ou que é dominante em sua área, e percebe que as práticas lhe são limitantes ou então que ele não se sente atraído por elas, mas ainda assim quer experienciar seus mistérios, ele decide recorrer à antiga prática da heresia, na qual habita toda a liberdade e poder espiritual — que a religião o impede de possuir — que ele almeja. Em tal ação encontramos os usos rituais e operativos do paradoxo divino e da inversão mágica.

Segundo Andrew Chumbley, quando o praticante inverte uma imagem ou um elemento religioso, seja qual for a religião a qual pertençam e seja lá a forma como essa inversão ocorre (se tratando do cristianismo, inverter a cruz; cruzar a si mesmo com a mão esquerda; desenhar símbolos diabólicos na imagem de um santo; recitar uma oração ao contrário; dar a hóstia para um cão negro comer etc.), ele está se rebelando social e espiritualmente contra a ordem aceita e normal de como o poder que habita aquela imagem ou elemento deve ser aproximado e contatado. Em seu “Qutub”, ele escreve que a inversão é uma maneira de anular as crenças impostas por aquela religião ou sistema espiritual que restringem, limitam e delimitam a aproximação do indivíduo àquele poder, ou, como ele diz, por meio da inversão, o indivíduo destrói tanto os valores que foram culturalmente impostos àquele elemento religioso assim como os modos de pensamento e percepções que o sistema religioso em questão atribuiu à imagem. Dessa forma, o praticante fica num estado zero, puro de pensamento e prática de como ele deve tratar e se aproximar do poder da imagem; ele agora é quem vai decidir como deve comungar e trabalhar com o poder que ali habita, sem qualquer restrição ou limite impostos pela religião. Por tal prática, ele transcende a ordem aceita do cosmos ao ignorar o que a religião estabelece como a única forma de comunhão com determinado poder, alcançando a iluminação espiritual que deseja por meio da oposição, inversão e transgressão.

O cristianismo defende que o Homem só pode alcançar Deus, o divino, por meio de Jesus Cristo e seus ensinamentos; a isso o bruxo diz “não”. A bruxaria é uma das várias maneiras verdadeiras da alma humana passar por uma apoteose que é sua por direito, pois dentro do indivíduo queima o fogo divino, basta que ele a reivindique. As práticas inversas de bruxaria em relação ao cristianismo — pisotear a cruz, ser batizado pelo Diabo, ler o Pai Nosso ao contrário, entre outras — podem ser interpretadas como uma maneira de se alcançar Deus, mas não pelos métodos determinados pela igreja. O bruxo alcança o divino, se une com ele, por meios noturnos do mundo espiritual, pelo Éden da Meia-noite, o Grande Rito da bruxaria — o Sabbath das Bruxas. Toda inversão presente nesta grande convenção onírica e fantasmagórica é uma maneira de se rejeitar o que é material para que o espírito seja exaltado em glória e reunião com a fonte de Tudo.
Confiando no discernimento dos leitores deste texto, sei que quando leem “Deus”, não é invocado em suas mentes o Deus do cristão médio, e sim algo primordial que ultrapassa qualquer delimitação religiosa.

De acordo com Schulke, a junção habilidosa do sagrado com o profano gera um novo poder e capacidade, o que é observável na imagem de um santo que é profanada com símbolos diabólicos que o praticante associa ao espírito ali representado em sua iconodulia. Pela junção do sagrado com o diabólico, o praticante agora consegue acessar tanto os poderes benditos que a igreja defende que o espírito por trás da imagem possui e os malditos que ele associou à imagem motivado pela mitologia apócrifa, inspiração espiritual ou outra fonte que respalde tal associação. O “santo diabólico” incorpora, assim, a doutrina da “concordia discors”.

Em um encanto do “Lux Hæresis”, de Daniel Schulke, para simbolizar a renúncia do corpo físico para que o espírito do praticante seja exaltado, a mitologia de Qayin é aplicada, fazendo uso do que é canonicamente aceito — o exílio — com aquilo que é interpretação da tradição: no feitiço, o praticante determina que assim como Qayin se voltou contra tudo e vaga para sempre, ele fará o mesmo. O exílio de Qayin e sua peregrinação eterna são vistos como sua maneira de se afastar de tudo que é mundano, terrestre, material. A partir da união do que é cânone e o que é interpretação — do que é sagrado e do que é profano —, o praticante gera um novo poder que o permitirá dar início à sua própria apoteose.

A inversão ou inconstância religiosa pode ser encontrada, também, na veneração dos santos no catolicismo popular entre a massa que reúne, por natureza, o sagrado com o profano. Se em um momento o devoto está pedindo humildemente algo para seu santo padroeiro, em outro ele está o atormentando (seja o mergulhando em água, o enterrando de cabeça para baixo, espancando a imagem, o chantageando) para realizar seu desejo. Aqui se encontram os opostos: o pedido e a ordem; o amor e a raiva; o respeito e o desrespeito, para alcançar o que se quer; pelo bem ou pelo mal, o pedido terá que ser atendido.

Na esfera operativa, isto é, na feitiçaria, a inversão também possui sua utilidade. Nos registros históricos de feitiçaria e bruxaria, assim como nas práticas contemporâneas, é comum se esbarrar com praticantes realizando certos atos inversos: ficar seminu durante um rito (vestido e não vestido); fazer genuflexão (nem totalmente ajoelhado e nem totalmente de pé); se dedicar ao Diabo no limiar da porta da casa (nem dentro nem fora); ficar com um lado do cabelo penteado e o outro, não (arrumado e desarrumado. Agradeço ao Alastor Montalban por esse exemplo proveniente da magia portuguesa); vestir meias de cores diferentes, entre outros. Ao realizar um ato inverso, o praticante deixa claro seu desejo — transtornar a realidade. Tal como, se o curso natural do destino determina que um homem continuará saudável, o bruxo irá inverter essa situação para fazê-lo adoecer. Aqui fica claro que o ato inverso que o praticante realiza durante seu rito mágico é uma forma de simbolizar seu desejo de alterar o rumo normal dos eventos e um meio simpático-imitativo para fortalecer e manifestar tal desejo: se ele quer inverter a natureza de determinada situação, ele irá simular tal inversão em seu Círculo ao vestir sua camisa ao contrário, por exemplo. Ademais, quando o indivíduo está em um estado liminar/heterotópico, entre duas coisas dessemelhantes, ele se torna ambas e nenhuma ao mesmo tempo já que uma se opõe à outra, se criando um paradoxo; ele está além de categorias, não sendo possível defini-lo como isto ou aquilo, assim, pela ótica aristotélica, ele se torna potencialmente capaz de ser tudo, fazer tudo e qualquer coisa, e isso é Poder.

Contudo, enquanto os métodos de inversão mencionados atuam mais como um elemento opcional, isto é, podem ser inclusos ou não num rito, há casos nos quais a inversão é crucial, sendo o próprio feitiço a ser feito, como aquele no qual para uma feiticeira fazer com que seu amado corresponda aos seus sentimentos e se apaixone por ela, a jovem deve roubar uma hóstia sagrada e dá-la de comer a um sapo no cemitério de uma igreja. Muito pode ser explorado sobre cada elemento desse feitiço, mas acreditando que a maioria dos leitores são versados sobre a liminaridade do sapo e da igreja, e o poder da hóstia, isso não será examinado. O foco aqui é a própria inversão: quem deve comer o corpo de Cristo são os homens, não as feras. Quando a feiticeira dá a hóstia para um animal, ela está invertendo a ordem correta do ato, e ela faz uso desse poder inverso gerado para reverter o destino e realizar seu desejo: o garoto que a ignora irá agora amá-la. A própria profanação presente no rito também é uma fonte de poder. Há um encanto em latim de 1670 para curar febre catarral em animais, que diz: “Christus Brutus et dutus est Vanum”; traduzindo, “Cristo é tolo e impotente”. Segundo Philippe Pissier, o poder de cura provém do choque causado pela evidente blasfêmia aqui presente. De forma semelhante, a cura pelo choque ocorre, também, em feitiços que prescrevem que o enfermo porte consigo um réptil vivo até a morte da criatura para curar a doença que o atormenta; é impactante e perturbador ter um animal se movendo/contorcendo em meio às suas roupas. O mesmo princípio e virtude estão presentes em amuletos apotropaicos em formato de pênis ou vagina contra o mau-olhado; além dos poderes de fertilidade versus infertilidade, é o choque da ofensa aos olhos pela obscenidade e constrangimento ao ver aquele órgão genital que causa o afastamento do “jettatore”, o indivíduo que porta e lança o malocchio. No caso, o poder do choque é direcionado para atacar uma doença, nos primeiros exemplos, ou uma influência destrutiva, como no segundo. Dessa forma, no feitiço da hóstia e do sapo, a praticante canaliza o poder gerado pelo choque do sacrilégio como o combustível necessário à manifestação de seu desejo de coerção venérea.

Por fim, outro aspecto da união de forças opostas é a luta procriativa entre elas: uma força tenta superar a outra, e neste embate, atrito e fricção, um poder é gerado. É como duas pessoas discutindo, uma tentando contra-argumentar, refutar a outra, para vencer o debate. Como esperado, a força de tal luta de opostos está presente nas Dardaniæ Artes — a Arte mágica —, como é revelado na seguinte historíola (um encantamento na forma de uma narrativa curta) cuja função é aliviar dores e cólicas; nela, Maria diz que irá adoecer a humanidade, e então Jesus a impede. Aqui se vê o entrechoque entre duas forças divinas — uma querendo a destruição; outra, a salvação. O poder gerado por tal embate é, então, aplicado para mitigar as dores físicas; como se acredita que Jesus tem mais poder que sua mãe, ele sairá vitorioso, e o enfermo, curado. Além disso, novamente nos encontramos com o poder gerado pela profanação na fala de Maria:
“The mother of God journeyed over the land, when Saviour met her with His hand. The Saviour spoke thus; Wither art thou going? The Virgin Mary replied: I will plague mankind. The Saviour said: Nay, thou shalt not do so.”

Já que acima é como abaixo, o feiticeiro também faz uso do poder de inversão presente no macrocosmo, especificamente dos quatro momentos liminares do dia, os “tempos entre os tempos”: a aurora, o meio-dia, o crepúsculo e a meia-noite. Todos esses horários são ou momentos inversos (dia/noite) ou de transição de um momento para o outro. Seja qual for, fato é que todos causam alguma alteração ou modificação nos eventos da realidade. Assim, fazer um ritual em algum desses momentos liminares é fazer uso de seus poderes naturais de inversão/alteração para fortalecer o poder do ritual que será performado

Fica evidente, assim, como o paradoxo divino e a inversão mágica são úteis tanto em nível religioso quanto operativo, sendo uma forma de enriquecer e potencializar qualquer prática que se deseja.

Referências

SCHULKE, Daniel. Lux Hæresis: The Light Heretical. Inglaterra: XOANON, 2011.

CHUMBLEY, Andrew. Azoёtia: A Grimoire of the Sabbatic Craft. 2. ed. Inglaterra: XOANON, 2002.

GUIDON. Magic Secrets and Counter-charms of Guidon: Practitioner of Healing by Occult Means. Inglaterra: Society of Esoteric Endeavor, 2011.

PEACOCK, Mabel, GUTCH. County Folklore. 5. ed. Londres: David Nutt, 1908.

CHUMBLEY, Andrew. Qutub: The Point. 2. ed. USA: XOANON, 2009.

CLARK, Stuart. Inversion, Misrule and the Meaning of Witchcraft. Reino Unido: Oxford University Press, 1980.

DUFFY, Martin. The Devil’s Raiments. Richmond Vista: Three Hands Press, 2012.

Cohen, S. Marc and C. D. C. Reeve, “Aristotle’s Metaphysics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2021 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2021/entries/aristotle-metaphysics/>.

DUFFY, Martin. Of Circles and Circling. The Cauldron. Reino Unido, 129. ed. Reino Unido. Agosto. 2008.


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