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Escrito por Geogia van Raalte
Babalon é uma Deusa completamente moderna. Os aspectos de Sua constelação são antigos, mas o sincretismo programático pelo qual Aleister Crowley extraiu Seu arquétipo da lama das eras é algo completamente moderno; uma forma de pensar e abordar a religião possibilitada apenas pelo império e marginalização do antigo oriente. Houveram Deusas do Amor e Deusas da Morte, e grandes Deusas coléricas que foram Cidades, e Rainhas que foram a Deusa, e todas elas compartilham da constelação do que é Ela; mas essa habilidade de reconhecer conscientemente a Deusa como um processo sincrético é uma habilidade distintamente moderna.
A religião sempre emprestou e mudou ideias e o esotérico frequentemente se manifestou nos interstícios das tradições religiosas à medida que as tecnologias sagradas eram utilizadas em novos contextos. O poder que Babalon tem, no entanto, não vem de sua antiguidade, mas de nossa crença no poder duradouro de seu arquétipo, de nossa compreensão contemporânea do que significou a perda da Deusa e de nosso desejo de restabelecer o princípio feminino. Essas ideias não foram uma reação a Babalon, são Sua própria criação.
Nossa Deusa se manifestou primeiro como uma cidade[1], aquela polêmica para uma forma rígida de cristianismo que desprezava a gnose da carne, pois a gnose da carne não faz boas ovelhas-escravas. Ela é a glória da Terra, e nesta, Sua primeira epifania, Ela já era desprezada. Não temos evidências de Suas glórias; as lendas de Marah, de Perséfone, de Ereshkigal — são histórias da Deusa já deposta. Ela sempre foi construída como as outras, e é em sua alteridade que nós, que somos outras, a conhecemos. Ela é um conglomerado de tudo o que é reprimido, o centro tácito do lado não articulado da cultura; Ela é a mulher monstruosa, a mulher demônio, a mulher diabólica. Ela é a súcubo, pois Ela é o vazio que atrai. Ela é um mapa astral sobre o qual tudo e qualquer coisa pode ser organizado, um sincretismo que nega a esquematização e se deleita com o caos.
Podemos traçar a genealogia de nossa Deusa, as semelhanças e inspirações, os vórtices e evoluções de sua história, mas não devemos esquecer que o que adoramos não é uma Deusa antiga, mas uma Deusa cuja forma está no modo do pensamento moderno: o movimento de afastamento do símbolo ao signo, o afastamento do referente metafísico e a perda das certezas fáceis da moral medieval.
Babalon, em Sua forma de baphomet, é Pan, um Deus trapaceiro, Deus do êxtase e do excesso. No entanto, não nos enganemos; não somos bacantes. Inspiramo-nos no passado e criamos algo novo. Não há nenhuma sacerdotisa de Babalon, nenhuma linha de transmissão, nenhum hino antigo ou templos. Babalon é uma deusa moderna.
Ela é tão antiga quanto o próprio tempo e única neste apocalipse – como foi em todos os apocalipses anteriores. Afinal, não há contradição acima do Abismo. Babalon é Binah, que é Saturno, e Saturno é o próprio tempo. Assim, Ela é tanto a coisa mais antiga quanto a mais recente das coisas. “E esta é a graça de Deus, que estas coisas sejam assim. E esta é a ira de Deus, que essas coisas sejam assim.” O julgamento perante a Deusa, a lenda da Taça, o Graal: também são coisas antigas, tornadas modernas e novas à medida que o mundo se despedaça. Como a humanidade testemunhou derramamento de sangue em uma escala nunca antes vista, o sangue no Cálice dos Santos mudou de cor e viscosidade.
Babalon é uma deusa completamente moderna. Suas provações tomam a forma das de Eurídice, ou Perséfone,de Innana e Bearskin. Ela é uma concepção totalmente moderna de um fio antigo e emaranhado. Somos pós-cristãos. Com o medo do Moloch barbudo tirado de nossos olhos, vemos intensamente o luto do mundo por sua Rainha, esta Rainha cuja escuridão parece incidental; mas este é o nosso padrão, nossa profecia. Nós a vemos acorrentada e presumimos que deve ter havido um tempo antes de ela ser colocada em correntes, um tempo da Grande Deusa. Este tempo não existiu; Suas correntes são braceletes de ouro.
O que Ela vela ou significa é o potencial de cada ser humano experimentar o divino, não através da força do Logos-Verbo, mas através daquilo que se chama Entendimento: a sensação do corpo, dos nervos, da pele e das sinapses, e o conhecimento que estes trazem. Chamamos isso de gnose, pois não temos classificação melhor. No entanto, não há uma gnose, mas uma infinidade de formas noéticas, nas quais o que é aprendido é indistinguível da sensação de aprender.
Babalon se baseia em concepções modernas: da forma e natureza do tempo, o conceito de evolução, nossa facilidade com o sincretismo, o conhecimento da estrutura cultural do outro, entendimentos contemporâneos de como a sexualidade, a liberdade e a libertação funcionam. Nossa Babalon é uma revolta e nós somos revolucionários. Ela é a cabeça do feminino em meio ao culto do patriarcado. Conseqüentemente, Ela foi despida e açoitada, como sempre são as Deusas. Mas desta vez, da tortura é chamada Sua glória.
Babalon não é apenas uma visão antiga de templos dourados e esplendor degradado, nem é Ela a manifestação do divino na mulher brincando com Seu próprio fogo; no entanto, Ela também é ambos, pois Ela é uma grande profundidade à espreita, um vácuo de não-significação. É nesta forma Choronzônica que a vemos agora, e começamos a perceber que havíamos chamado de divino tudo o que parecia claro, leve e unificado. Assim, não tinhamos o Entendimento da divindade e buscávamos ainda abandonar nossos corpos, nossos corpos que são os únicos locais da divindade neste mundo. A mente não é uma parte do corpo? Não é o olho interior?
Babalon não é apenas uma reação ao patriarcado; Ela é uma reação ao iluminismo, à revolução industrial; Ela é a sombra das sombras que assombra a falsidade do progresso. Tudo morre. Assim, Ela é a louca do sótão de Rochester[2], o duplo monstruoso da heroína; Ela é todas as coisas assustadoras. Ela é o conceito freudiano do unheimlich[3], a qualidade estranha da dinâmica inconsciente que fundamenta e constrói nossa subjetividade. Babalon é uma deusa completamente moderna, forjada no fogo de uma liberação sexual que falhou em entregar tudo o que havia prometido. É dela a risada no frio cinza depois da orgia. Ela é a Deusa da mãe solteira, da vagabunda, da prostituta, de todas as maneiras pelas quais a liberação sexual nos impediu de sermos livres.
Esta Deusa que buscamos, Ele é Babalon, o centro secreto do Cristianismo[4]. Ela é a revelação de que Kundry e a Donzela do Graal são a mesma coisa. Ela é o medo cristão da mulher, a Deusa que deve ser escura. Ela é uma fusão, a reificação de espaços escuros e coisas não ditas. Ela é a Mulher Diabo, a Bruxa. Diante de nossa recusa em articular o feminino divino, ela deslizou como uma cobra pela cultura. Ela é a taça da gnose, um poder imenso e não dito, coextensivo a nós mesmos. Procure qualquer um dos atalhos do pensamento estranho e proibido e ela estará lá, pois ela espera em sua mente. Babalon é um modo de interpretação. A taça da gnose contém a força de nossa experiência corporal, nosso sacrifício corporal. Tudo isso espera dentro Dela, na taça que é Seu ventre, e Ela dá à luz a Si mesma, uma nova filha para uma nova era: a filha que mataria a mãe, como nós mataríamos a nós mesmos. Tudo isso é Babalon. Ela é a própria Forma e a personificação de tudo o que não foi dito. Ela é a Mãe das Trevas, o Feminino Divino em toda a Sua glória dualista.
Em última análise, é crucial lembrar que Babalon não existe. Ela é uma recriação, um conglomerado de espaço vazio, a restauração virtual do centro vazio da mandala sagrada. Nossa Senhora não é mais nem menos, ao mesmo tempo diferente e a mesma, uma quimera que muda a cada aproximação, um rubi com inúmeras facetas, uma sala de dançarinas todas cobertas de véus. No entanto, ela se senta, estática e saturnina, majestosa em seu trono. Assim é Babalon; uma deusa totalmente moderna.
Tradução: Tamosauskas
Fonte:
https://www.templumabyssi.com/essays/blog-post-title-one-y324z
Notas do tradutor:
[1] A Babilônia foi uma antiga cidade-estado localizada na região da Mesopotâmia, na atual Iraque fundada no século XVIII a.C. Na bíblia cristã é frequentemente retratada como símbolo dos inimigos de Deus.
[2] A expressão “a louca no sótão de Rochester” é uma referência ao personagem Bertha Mason, do romance “Jane Eyre” da escritora britânica Charlotte Brontë. Bertha é a esposa louca de Edward Rochester, que é trancada por Rochester no sótão da sua casa por causa da sua insanidade. A personagem é retratada como violenta e agressiva, o que levou Rochester a mantê-la escondida para evitar escândalos e para proteger a sua reputação.
[3] O conceito de unheimlich é frequentemente explorado por Sigmund Freud para descrever a sensação de familiaridade que pode ser sentida em relação a algo que é, ao mesmo tempo, estranho ou perturbador. Ele argumentou que essa sensação pode estar relacionada a memórias reprimidas ou a experiências traumáticas que ainda afetam a psique de uma pessoa.
[4] Provável referência a Santa Sophia (Santa Sabedoria), figura de extrema importância no cristianismo dos primeiros séculos. Sophia seria a terceira pessoa a trindade, a sabedoria divina que criou o universo e que transmite entendimento divino aos seres humanos. Sua figura foi negligenciada pelos líderes da Igreja dos séculos seguintes que a substituiu pelo Espírito Santo hoje popularizado.
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