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Shirlei Massapust
A Bíblia hebraica menciona pelo menos dois casos inequívocos em que a manufatura de imagens de seres viventes ou de quimeras compostas por partes de imagens de seres viventes não fere a lei básica de não assimilar ídolos ou imagens ao culto (Ex 20,4; Dt 5,7-9) porque o próprio deus YHWH ordenou que alguém fizesse tais coisas e as expusessem diante de si.
Querubins esculpidos por humanos
Na Bíblia hebraica o kerub (כרוב), plural kerubîm (כרבים), é um modelo iconográfico com função decorativa e valoração religiosa. YHWH domina a arte da olaria, é capaz de esculpir e dar vida a estátuas de argila, mas deus preferiu contratar um carpinteiro israelita, chamado Beseleel, quando desejou que lhe fizessem um baú de madeira folheada a ouro decorado com um kerub (כרוב) à direita e outro kerub (כרוב) à esquerda (Êxodo 37:8). Na antiga suméria e suas vastas áreas de influência o kerub, plural Karibu, era um homem adulto, forte e robusto, de barba e cabelos encaracolados, trajado em roupas típicas, dotado de dois pares de asas emplumadas – duas com pontas voltadas para cima e duas para baixo. – Os artistas freqüentemente esculpiam este ente mitológico em temas heráldicos onde o par decorava caixas, placas, mobília, etc. Era tão bonito que até o bíblico YHWH desejou ter aquilo diante de si enquanto outras imagens de animais ou humanos permaneciam proibidas (Êxodo 20:2-4).
Elohim YHWH também instalou um conjunto de dois ou mais kerubîm (כרבים) e uma única “lâmina encantada” (החרב להט) para demarcar a fronteira de sua propriedade privada no extremo leste de Gan Eden (Gênese 3:24). Na mitologia grega o raio é a arma de Zeus. A Maçonaria descreve lahat chereb como um flamberge – tipo de espada com lamina ondulada que imita o raio. – Porém lahat (להט) se refere ao ilusionismo ou estado alterado de consciência causado pelo uso duma técnica própria dos encantadores de serpentes (Êxodo 7:11). Era costume entre os ferreiros de Tel Dan e Hazor criar serpentes em suas oficinas metalúrgicas. Suponho que vendiam veneno. Provavelmente os israelitas eram tão espertos quanto os ameríndios que envenenam flechas e armas para caçar ou guerrear com menos esforço e mais eficiência.
Imagino um baixo relevo em Gan Eden com a arma branca flutuando no meio e um par de homens alados ajoelhados, um de cada lado, com mãos erguidas em louvor. A arma não pertence a nenhum deles (porque tudo que se vê entre dois querubins é sagrado). Fica subentendido que YHWH punirá a todos que desrespeitarem a placa sinalizadora, talvez com veneno de serpente.
Finalmente talvez não seja inútil mencionar a hipótese de Édouard Langton, onde a fome e a peste, Deber (דבר) e Keteb (קטב), seriam carrascos mitológicos personificados no Salmo 91:5.[1] Por associação lógica teríamos a trilogia Fome, Guerra e Peste.[2] Dois agentes naturais e um artificial representando todas as possíveis causas de morte.
Serafim autômato
Na bíblia hebraica o nāḥāš śārāp (שרף נחש), plural nāḥāšîm ha śərāpîm (השרפים נחשים), ou simplesmente śārāp (שׂרף), plural śərāpîm (שׂרפים), nem sempre é um ente mitológico. Deuteronômio 8:15 fala no perigo de atravessar o habitat natural do escorpião (מוליכ) e de nāḥāš śārāp (שרף נחש). Existe também o nāḥāš ṣepaʿ (צפע נחש), plural nāḥāšîm ṣepaʿîm (צפענים נחשים). Portanto se tivéssemos de classificar isso em categorias taxonômicas nāḥāš seria um gênero contendo as espécies śārāp, ṣepaʿ e talvez outras.
Uma lenda bíblica afirma que certa vez a população israelita acampou numa montanha e começou a chorar miséria porque em casa onde falta pão todo mundo grita e ninguém tem razão. Sabendo que o problema da preguiça humana em cuidar da própria vida não seria resolvido, YHWH enviou um grupo de nāḥāš ha śərāpîm (השרפים נחשים) para morder (נשכו) gente ali, causando a morte de diversas pessoas. (Números 21:6) O povo pediu a Moisés que tomasse providências. Então o profeta recebeu de Elohim YHWH a incumbência de fazer (עשה) um śārāp (שרף) e colocá-lo sobre um pedestal (נס).
A visão daquela escultura feita por um homem implicava na cura desta enfermidade específica mediante uma inexplicada relação de causa e efeito (Números 21:8). Seria isto um cetro similar ao caduceu do deus grego Hermes ou ao emblema do deus mesopotâmico Ningishzida adorado em Gishbanda?
Vaso proveniente de, Lagash, com emblema de Ningishzida. (c. 2350 a.C.).
Hermes observa Hypnos e Thanatos carregando um cadáver. (c. 515 a.C.)
No tempo em que Isaías instruiu o Rei Ezequias a realizar uma reforma religiosa, todos os altares de tipo bāmoṯê onde os israelitas cultuavam YHWH foram destruídos e suas estatuetas votivas apreendidas para a reciclagem de metal. Um dos objetos que Ezequias espoliou era uma estátua de serpente feita de cobre (הנחשת נחש), de nome Nəḥuštān (נחשתן), que diziam ser a mitológica estátua forjada por Moisés (2 Reis 18:4). Nota-se que nəḥuštān é uma variante da raiz nāḥāš (נחש) que, por sua vez, é uma transliteração ou corruptela da palavra nāga (नाग), existente em sânscrito e páli, que designa um tipo de divindade da mitologia hindu com a forma de uma cobra naja gigante.
O livro deuterocanônico opina que o caduceu de Moisés era um mero ponto focal para onde o israelita olhava rogando pela cura quando ferido pelas “flechas do dragão” (ιοβολων δρακοντων), que são os dentes dos śərāpîm (Sabedoria de Salomão 16:5 e 16:10). Contudo, duas questões continuam sem respostas: Por que da construção de uma imagem para curar mordeduras de serpentes? Por que a serpente construída por Moisés ou uma réplica física do objeto mitológico acabou se tornando um objeto de culto permanente?
O argumento de que esta construção era o cumprimento de uma decisão divina, o que no fundo, como vimos, estaria em sintonia com a própria passagem em questão, não deixa de estar certo, porém, não deixa também de ser uma redundância. Um segundo argumento de que YHWH teria lançado mão da serpente, da mesma forma que ele poderia ter usado qualquer outro símbolo, deixa de considerar as trocas culturais que perpassavam as diversas sociedades localizadas no Mediterrâneo Oriental, incluídas aí, as próprias crenças religiosas, entre as quais, aquelas que consideravam os poderes mágicos das imagens das serpentes, que não só os povos pagãos, como também, uma parcela considerável dos judeus deveriam acreditar. Diante das questões apresentadas, fica muito difícil evitar a seguinte colocação: Sendo YHWH poderoso, por que ele decidiu pela construção de uma imagem, ao invés de extirpar o mal simplesmente ordenando que ele deixasse de existir?[3]
Se estivéssemos falando em fatos históricos seria plausível assumir que os israelitas interpretaram um ataque de cobras venenosas como castigo divino; confundindo o evento natural com considerações sobrenaturais. Porém admitimos o êxodo como mito ou conto folclórico totalmente fictício, de cunho religioso. No mundo das idéias anjos são anjos e serafins são serafins. Não há que se falar em equívocos, pois existem quimeras em Passárgada.
Mandar nāḥāš morder pessoas desagradáveis continuou a ser um dos hobbies favoritos de YHWH mesmo depois do êxodo (Amos 9:3). Se por acaso alguém já tivesse visto a estatua de nāḥāš śārāp ou nəḥuštān e ficado imune ao veneno daquela espécie, deus mandava os nāḥāšîm ṣepaʿîm (צפענים נחשים) porque não existia nenhum amuleto profilático (לחש) representando um nāḥāš ṣepaʿ (Eclesiástico 8:16). À época da morte do rei Uzias o santuário (hekal) em Israel tinha uma representação de YHWH sobre um trono cercado por śərāpîm articulados. O modelo iconográfico dessas estátuas apresentava um par de asas nas costas. Também exibia um par de asas enfeitando a cabeça e outro saindo dos calcanhares, igual ao Hermes da mitologia grega. (Isaías 6:2) Eram autômatos, posto que ao soar de um gongo um śārāp bateu asas, agachou em meio à nuvem de fumaça de incenso, abaixou a mão que segurava uma tocha e um blasfemo se deixou purificar encostando a boca nela (Isaías 6:4-6).
O cronista de Isaías 6:2 pôde ver asas nos pés que os ofídios da vida real não possuem porque ele viu um modelo antropomorfo possivelmente inspirado na mitologia grega. O desenho de uma estatueta de mulher com cabeça de serpente, de pé sobre um altar, foi encontrado durante escavações em Tel Dan. O homem foi identificado como sendo o faraó egípcio Ramsés II [4] talvez porque foi encontrado no templo funerário de Ramsés II, em Tebas, um túmulo mais antigo de um sacerdote contendo diversas serpentes de bronze.[5]
Fragmento de um jarro de cerâmica e escaravelho (amuleto mortuário) encontrados em Tel Dan.
Uma serpente de bronze de 12,7 cm foi encontrada em Timná dentro de um templo midianita de 1150 a.C., sendo o único objeto de culto encontrado no santuário central. Em Canaã foram encontradas serpentes de bronze nos territórios de Meguido, Gazer, Hazor, Tel Mevorakh e Schehem. Em Hazor, duas serpentes de bronze foram descobertas na parte mais sagrada do templo, sugerindo que as serpentes eram um símbolo sagrado em Israel.[6] Isto pode ou não ter sido usado em rituais de magia simpática ou para fim apotropaico.
Reis serpente (por representação)
O nome mais comum para designar serpente na Bíblia é nāḥāš (נחש). Isto aparece cerca de trinta vezes. Isto define o maior produtor de artesanato (ערום) entre os animais (Gn 3:1), que, quando na forma da espécie śepîpōn (שפיפן), é o emblema da competência do poder judiciário de Dan (דן) sobre as tribos de Israel, (Gn 49:16-17). Na fauna local existem cerca de quarenta espécies de serpentes das quais nove são venenosas. Sendo isto o totem da tribo de Dan, não é admirável que cada uma tivesse um nome bíblico diferente:
A Bíblia cita (…) peṯen (Dt 32:33), cobra peçonhenta, naja; śepîpōn (Gn 49:17), a Vipera ammodytes; ʿākšûḇ (Sl 140:4), víbora venenosa; qipôz (Is 34:15), uma espécie de serpente que faz ninho no deserto e ali põe ovos; zōḥălê ʿāpār (Dt 32:24), serpente do deserto que se arrasta sobre o pó; ṣepaʿ (Is 11:8), outro tipo de áspide venenosa do deserto; śārāp (Is14:29; Nm 21:9; Dt 8:17), espécie de (…) réptil mais ou menos mítico. (…); tannîn é nome usado quando o escritor fala de um tipo de réptil do qual não tem claro conhecimento.[7]
Na natureza não existe nada parecido com Quetzacóatl, Kukulcán, Damballa, Boitatá e outras serpentes emplumadas do folclore mesoamericano e sulamericano. Se o śārāp emplumado (מעופף שרף), mencionado pelo cronista de Isaías nos versículos 14:29 e 30:6, não for um homem pássaro não seria absurdo imaginar que alguém descreveu ofídios com escamas que lembram penas de ave, pois existem ofídios venenosos com escamas coloridas.
Curiosamente certos humanos muito seletos recebiam ordem de atuar como nāḥāš! Por exemplo, quando os filisteus atacam e vencem os israelitas o mensageiro de YHWH diz ao povo conquistador que haverá retaliação, pois “da árvore genealógica de nāḥāš sairá um śārāp emplumado”, ou seja, informam que o novo líder apto a suceder ao trono vacante virá da invencível tribo de Dan (Isaías 14:29). Aqui evoco o auxílio de Moses Maimônides para não enchermos estas páginas de vampiros mordedores:
Indubitavelmente tornou-se claro e manifesto que a maioria das profecias dos profetas procede por interpretação de parábolas; posto ser a imaginação um instrumento próprio ao método. De fato, algumas coisas devem ser conhecidas por meio de linguagem figurativa e hipérboles, visto que às vezes ambas ocorrem nos livros proféticos.
Se as palavras forem interpretadas conforme seu sentido literal e não for sabido que se trata de uma hipérbole ou exagero, ou se interpretar de acordo com o significado convencional imediato – não sendo sabido que se trata de sentido figurado – as incongruências saltam aos olhos.[8]
No Egito, as máscaras fúnebres e diademas reais dos faraós traziam o emblema do uraeu (uma naja de metal). Este é um símbolo particularmente importante, porque era tratado como uma entidade individual que, entre outras funções, servia como proteção à vida do soberano. Ao assumir o trono, dirigiam ao uraeu um hino no qual o intitulavam “serpente abrasadora”:
Ó Coroa Vermelha, Ó Inu, Ó Grande, Ó Mago, Ó Serpente abrasadora
Permita que exista terror de mim da mesma forma que o terror de ti.
Permita que exista medo de mim da mesma forma que o medo de ti.
Permita que exista respeito a mim da mesma forma que o respeito a ti.
Permita-me imperar como um líder dos viventes.
Permita-me ser poderoso, um líder dos espíritos.
(FRANKFORT apud CURRID,1997, p. 91, grifo nosso, tradução nossa).[9]
Achados arqueológicos demonstram que os israelitas habitantes de Tel Dan costumavam copiar essa iconografia egípcia na cara dura… Será que uma estátua feita por um ser humano poderia ganhar vida na imaginação dos povos antigos? Giordano Bruno supunha que sim:
Os deuses deram ao homem o intelecto e as mãos e fizeram-no semelhante a eles, dando-lhe poder sobre os outros animais; este poder consiste não só em ser capaz de trabalhar de acordo com a ordem normal da natureza, mas ainda em ultrapassar as leis desta; de tal modo que, dando forma ou podendo dar forma a outras naturezas, outros rumos, outros sistemas com a sua mente, com essa liberdade sem a qual a referida semelhança não existiria, acaba por se assemelhar a um deus na terra.[10]
As trocas culturais fazem parte de um contexto de normalidade no interior do mundo mediterrâneo oriental. Os egípcios faziam emprego de amuletos com a forma de cabeça de serpente para evitar mordeduras de cobra. Destaca-se, entre eles, o monumento Metterniche Stele onde uma figura humana com chapéu de mascara segura cobras, escorpiões e outros bichos. Creio em meu âmago que é somente por coincidência que isto lembra o fato de Moisés ter passado a usar máscara depois que YHWH tomou a liberalidade de por chifres, raios ou uma figura de Lichtenberg em sua fronte (Êxodo 34:35).
Metterniche Stele
Notas:
[1] LANGTON, Édouard. La Démonologie. Trd. G. Waringhien. Paris, Payot, 1951, p 58-59.
[2] A fome não personificada é raʿab (רעב) em Jeremias (21:7 e 24: 10), etc.
[3] CHEVITARESE, André Leonardo. “Reflexões sobre um Tema Polêmico: afinal os Católicos são Idólatras?”, p 16. Artigo não publicado, disponibilizado para alunos do curso de história por meio de xerocópia aos alunos da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), campus Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), sob autorização do Laboratório de História Antiga.
[4] No Egito as cenas do Livro dos Mortos sempre mostram o espírito diante do trono de Osíris. Neste caso o homem de costas, de face oculta, segura o tradicional cetro do poder diante de um altar onde, no lugar de Osíris, existe uma deidade antropomorfa com cabeça de serpente e corpo feminino. Por isso acredito que a figura humana não seja Ramsés II, mas sim o espírito do proprietário do amuleto que fora enterrado com ele.
[5] DAVID, R. “Rationality versus irrationality in Egyptian medicine in the pharaonic and graeco-roman periods”. Em: HORSTMANSHOFF; H. F. J.; STOLL, M (Eds.). Magic and rationality in ancient near eastern and graeco-roman medicine. Leiden, Brill, 2004, p 135-136.
[6] AMZALLAG, N. “Yahweh, the Caananite god of metallurgy?” Em: Journal for the Study of the Old Testament. Thousand Oaks, v. 33, n. 4, ano 2009, p 399.
[7] ARTUSO, Vicente e CATENASSI, Fabrizio Zandonadi. “A ambivalência do simbolismo da serpente em Nm 21,4-9”. Em: Horizonte, v. 10, n. 25, p 176, jan./mar. 2012.
[8] MOSES MAIMONIDES. The Guide of the Perplexed. Trd. Shlomo Pines. Chicago, University of Chicago Press, 1963, vol 2, p 407.
[9] ARTUSO, Vicente e CATENASSI, Fabrizio Zandonadi. “A ambivalência do simbolismo da serpente em Nm 21,4-9”. Em: Horizonte, v. 10, n. 25, p 190-191, jan./mar. 2012.
[10] BRUNO, Giordano. Spaccio della bestia trionfante. Séc. XVI. In: HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Lisboa, Editorial Presença, 1982, p 354-355.
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