Leia em 25 minutos.
Este texto foi lambido por 259 almas esse mês
Shirlei Massapust
O filósofo e sociólogo judeu-alemão Walter Benedix Schönflies Benjamin (1892-1940) se tornou muito influente na atualidade. Seu mais famoso ensaio é Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (1936), publicado pela primeira vez na revista do Instituto de Pesquisas Sociais (ponto de convergência de pensadores que daria origem à Escola de Frankfurt) e republicado postumamente noutras três versões.
Segundo Walter Benjamin as primeiras obras de arte surgiram a serviço do ritual, primeiramente mágico, depois religioso. Os antigos gregos, por exemplo, conheciam apenas dois métodos de reprodução técnica de obras de arte: a fundição e a cunhagem. Portanto suas obras de arte eram únicas e tecnicamente não reprodutíveis, com excessão das moedas, bronzes e terracotas.
Posteriormente a arte se emancipou do vínculo ritualístico. Com a rejeição de toda função social, assim como de toda determinação por meio de uma crise de seu objeto, surgiu uma teologia negativa na forma da ideia de uma arte “pura”.[1]
Quando novas técnicas reprodutivas facultaram a produção massiva de obras de arte mitigou-se o conceito de que peça autêntica é peça única. Por exemplo, todas as fotografias[2] idênticas reveladas a partir de um mesmo negativo são originais. Desde 1933 a International Federation of the Phonographic Industry (IFPI) confere certificados de ouro, platina e diamante para as bandas que vendem, respectivamente, quinhentos mil, um milhão e dez milhões de álbuns idênticos nos Estados Unidos. Também neste caso não existe um único disco de vinil original e milhões de cópias. Todos os discos são originais, salvo os exemplares piratas que não computam mérito neste cálculo.
Segundo Benjamin, “aquilo que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica é a sua aura[3]”; não a aura literal que é o campo eletromagnético das coisas, mas uma qualidade metafórica da valoração tradicional dos objetos. No século XX essa enorme escala de exposição quase deu ao blockbuster a onipresença em escala global que o ministro religioso sempre reivindicou para sua estátua sacra, mas que ela nunca possuiu.
Ideólogos partidários perceberam o potencial propagandístico das reproduções: “No momento, porém, em que o critério da autenticidade fracassa na produção artística, a totalidade da função social da arte é transformada. No lugar de sua fundação sobre o ritual, esta deve fundar-se em outra práxis, a saber: a política”.[4] Pau que bate em Chico bate em Francisco. “Assim configura-se a estetização da política operada pelo fascismo. A ele o comunismo responde com a politização da arte”.[5]
No fim o produto da propaganda progressista do tempo presente estará fadado a se tornar reacionário no tempo futuro: “A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte. O comportamento mais reacionário – diante de um Picasso, por exemplo – torna-se altamente progressista em face de um Chaplin. (…) Igualmente, o mesmo público que reage de maneira progressista diante de uma comédia burlesca deve tornar-se reacionário diante do surrealismo”.[6]
Hoje em dia há quem assegure que o fascismo não terminou com a morte de Giovanni Gentile (1875-1944) e Benito Mussolini (1883-1945). O autor e psicanalista brasileiro Tales Ab’Sáber define a cultura política da violência como “fascismo comum”, também chamado por ele de “neo-escravidão”, o qual abre portas para golpes que desmontam as conquistas sociais dia após dia.
Em ensaios reunidos no livro Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro-brasileiras (1994), publicado pela Fundação Cultural Palmares, o historiador e economista, professor da USP, Dr. Wilson do Nascimento Barbosa defende que os afrodescendentes deveriam rebelar-se contra a alienação trabalhista, dentro deste contexto, deixando de procurar emprego e passando a viver de ginga. Isto é, viver de atividades culturalmente relacionadas à identidade negra. O imbróglio é que não só os negros encaram esses problemas de difícil solução. Outros ideólogos destacam a necessidade do diálogo entre as minorias e os partidos divergentes, de espectro político de esquerda, para combater o antagonismo do fascismo, da ultradireita.
No livro Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992), o pedagogo pernambucano Paulo Freire fala “que só uma política radical, jamais, porém, sectária, buscando a unidade na diversidade das forças progressistas, poderia lutar por uma democracia capaz de fazer frente ao poder e à virulência da direita. Vivia-se, porém, a intolerância, a negação das diferenças. A tolerância não era o que deve ser: a virtude revolucionária que consiste na convivência com os diferentes para que se possa melhor lutar contra os antagônicos”.
Isto, claro, não tem nada a ver com bonecos, mas se refere a pessoas que as vezes tem bonecos e as vezes narram histórias onde a representatividade é requerida. Resta a dúvida: Pessoas com propósito de desconstruir narrativas tradicionais furam a bolha do ócio gerando obras de arte destinadas a um entretenimento engajado?
O paradoxo da singularidade do boneco colecionável
Segundo Walter Benjamin, “seria possível apresentar a história da arte por meio do conflito entre duas polaridades na própria obra de arte, e ver assim a história de seu percurso nos deslocamentos alternados do peso de um polo da obra de arte para o outro. Esses dois polos são seu valor de culto e seu valor de exposição”.[7]
Tudo parece perfeito em teoria. Contudo, na vida real, a reprodutibilidade já era simulada com a consagração de padrões iconográficos recorrentes na arte religiosa. Já a arte sacra, mesmo no teto da igreja, existia para a instrução e apreciação pública. A estátua na casa do Fulano que não mostra a ninguém sempre existiu em paralelo e nunca caiu em desuso, como também não caiu a decoração dos templos, terreiros, etc.
Pense num item reprodutível acrescido da aura característica que o torna único quando um particular atualiza o reproduzido. Essa confusão ocorre na hipótese em que bonequeiros reproduzem em fôrma modelos para customização. Talvez existam vinte, duzentos ou dois mil originais iguais. Entretanto, são itens seriais incompletos, pedaços de corpos ou corpos sem pintura, olhos, cabelo, roupas, etc. Eles são de borracha ou de resina de poliuretano. Datam do século XIX, XX ou XXI. Cabe ao consumidor transformar o ordinário no único, sem, contudo, incorporar valor de culto ou valor de exposição.
Desse jeito é impossível politizá-los aprioristicamente! O brinquedo normal, item serial destinado às crianças, já era um nó nas tripas que Walter Benjamin desejou ver desconstruído, conforme exposto na compilação de artigos Über Kinder, Jugend und Erziehung (1969). Ele não resistiu ao comentário maldoso sobre a falta de empatia do boneco frente à afeição de seu proprietário. Fica preconcebido que altivez, solidão e amargura constituem o lado noturno “de algumas cultas e bem-sucedidas naturezas de colecionador[8]”. O filósofo fala com desprezo sobre o hobby de Karl Gröeber.
Ele jamais ouviu aquela confissão grandiosa e canônica que lábios ardentes balbuciam nos ouvidos das bonecas. “O que te importa se eu te amo?” Quem nos quer fazer crer que é a humildade do amante que o sussurra? É o desejo, o desejo enlouquecido e o seu ídolo, a boneca. Ou não seria antes o cadáver? Uma vez que a imagem do amor, perseguida até a morte, constitui para o próprio ato de amar uma meta, e apenas isto confere ao boneco inanimado, rígido e desengonçado, cujo olhar não é embotado, mas alquebrado, o inesgotável magnetismo.[9]
Mais de uma vez a imitação do humano é associada ao morto ou “redivivo[10]”. Um vampiro que fascina seu vampirizado. “Toda paixão revela de vez em quando seus traços demoníacos[11]”. Para este Pigmalião se libertar do encanto de Galateia seria necessário se emancipar do boneco, deixando-o à mercê da destruição infantil!
Passado este primeiro momento de fúria, Walter Benjamin observa que o autor e colecionador “não almeja o reconhecimento de seu trabalho, mas sim a participação do leitor na beleza revelada pela sua obra[12]”. De algum modo dever-se-ia conciliar tais interesses com a necessidade de garantir o privilégio da classe operária em “prestar a máxima atenção à coletividade infantil, a qual jamais pode adquirir contornos nítidos à burguesia[13]”. O colecionador está mais próximo da criança do que o pedagogo, que trabalha por empatia, pois criança e colecionador se situariam num mesmo terreno.
A verdadeira paixão do colecionador, com muita frequência ignorada, é sempre anarquista, destrutiva. Pois esta é a sua dialética: vincular à fidelidade pelo objeto, pelo único, pelo elemento oculto nele, o protesto subversivo e inflexível contra o típico, contra o classificável. A relação de propriedade coloca acentos inteiramente irracionais. Ao colecionador o mundo está presente em cada um de seus objetos; e mais ainda, de maneira ordenada. Mas ordenado segundo uma relação surpreendente, incompreensível para o profano.[14]
O perigo da desalienação parental vilmente comprada por presentes natalinos não é o diálogo do menor com seu pai, mãe, avô, avó ou com outro adulto convidado. O problema é a inatingível e dúbia orientação ideológica da educação que vem de casa. Como se explica que as crianças, colocadas perante a escolha, prefiram estórias de horror à nova pedagogia? Walter Benjamin lastima o desfavor prestado à educação política por contos tradicionais alemães, como aqueles compilados pelos irmãos Grimm.
Os elementos dos quais o conto de fadas se serve são, com muita frequência, inúteis, antiquados e estranhos à nossa moderna sensibilidade. A madrasta malvada desempenha um papel principal. Assassinos de crianças e ogros são figuras típicas do conto de fadas do povo alemão. A sede de sangue é notória, a descrição de cenas de assassinatos e matanças é apreciada. Mesmo o mundo sobrenatural do conto de fadas é, antes de mais nada, horripilante. A coleção dos irmãos Grimm está infestada pela alegria que as surras despertam. O conto de fadas alemão é frequentemente simpático ao álcool, em todo caso jamais é contrário a ele.[15]
A ficção fantástica se esbalda em referências à monarquia. Contos de fadas com cenários de castelos, habitados por princesas solteiras em perigo, insofismavelmente remetem ao imperialismo. Quanto menos destes “fantasmas e pesadelos da história” se apresentasse às crianças, tanto melhor seria para o desenvolvimento da democracia e da causa proletária. Afinal “brincar significa sempre libertação[16]”. Ou seja, o narrador do conto do reino maravilhoso está pouco a pouco se libertando do ideal republicano.
A noite de nossa República não é ainda tão profunda a ponto de todos os gatos serem pardos e de não mais podermos diferenciar Guilherme II e o rei Barbalonga. Ela ainda encontrará forças para colocar-se no caminho desse intrépido reformismo, para o qual psicologia, folclore e pedagogia não passam de bandeiras sob as quais o conto de fadas, como artigo de exportação, é fretado e enviado para o continente negro, onde as crianças debilitam-se nas plantações de seu piedoso pensamento.[17]
A filósofa novaiorquina Martha Nussbaum que, presentemente, é titular da cátedra Ernst Freund Distinguished Service Professor of Law and Ethics, na Universidade de Chicago, entende que a apreciação de roteiros fictícios onde é descrito qualquer espécie de dualismo extremista é nociva para crianças desprovidas de senso crítico.
Muitas opiniões ofensivas relativas à política internacional revelam os traços dessa patologia, quando as pessoas demonstram estar inclinadas a pensar que um grupo de pessoas diferentes é ameaçador e suspeito, enquanto elas próprias se encontram do lado dos anjos. Percebemos hoje que essa tendência humana profundamente entranhada é alimentada por meio de métodos consagrados de contar histórias para as crianças, que sugerem que o mundo ficará em ordem quando alguma bruxa ou monstro feio e repugnante for morto, ou mesmo for cozinhado em seu próprio fogão. Muitas histórias infantis atuais transmitem a mesma visão de mundo.[18]
O brasileiro Charles Feitosa, doutor em filosofia pela Universidade de Freiburg, esteve empenhado num projeto de desenvolvimento duma “filosofia pop”, que envolve a associação de conceitos com imagens em fala coloquial, acessível e bem-humorada.
A proposta de explicar a filosofia através da arte não se restringe a usar as coisas belas apenas como ilustração ou adorno. Em vez disso, busca-se combinar a ótica do filósofo com a do artista até que se contaminem reciprocamente. São as imagens da pintura, da poesia, da dança ou do cinema que às vezes guiam os conceitos, permitindo assim que se levantem questões para as quais não há respostas prontas, nos instigando a pensar. A parceria entre a filosofia e a arte torna possível tratar com alegria e leveza alguns temas importantes e complexos da cultura e da existência, tais como o sentido da realidade, o lugar da ciência na sociedade, as interpretações do corpo e da natureza, a relação entre arte e verdade, a transitoriedade do amor e a inevitabilidade da morte[19].
Faz-se necessário reconfigurar o papel do folclore, da ficção fantástica e das artes para inspirar no destinatário a vontade de se tornar um cidadão responsável, com consciência política, apto a fazer escolhas adequadas, pondo em pauta temas de importância nacional e internacional. (Ex. defesa da isonomia, das liberdades laicas, etc.). Crianças deveriam aprender a raciocinar com competência cognitiva, ao invés de desenvolver mitomania ou assimilar preceitos fundamentalistas.
Nesta perspectiva a produção artística ideal seria a que reflete a complexidade das relações sociais e da própria personalidade humana, ainda que sob a máscara da prosopopeia ou ficção científica. Seriam preferíveis roteiros e iconografias com uma visão partidária mais delicada e nuançada, na qual os perigos podem vir de fontes reais e complexas, como a relação das sociedades com o meio ambiente.
Seria bom também evitar a contradição da escultura com temática de estética da fome cujo astronômico valor da arrematação não é destinado aos famintos. Em dezembro de 2022 a galeria de arte Livia Dobras estava cobrando quatorze mil reais em serigrafia do ítalo-brasileiro Alfredo Volpi (1896-1988), representando bandeirinhas de festa junina.[20] Sem querer chafurdar no paradoxo da frase Ceci n’est pas une pipe (Isso não é um cachimbo) no famoso quadro com imagem de cachimbo La trahison des images (A traição das imagens), pintado em 1929 por René Magritte (1898-1967), é impossível resistir à observação jocosa de que, ao mesmo tempo, um pacote com cem metros de bandeirinhas custava trinta e quatro reais no Mercado Livre.
Walter Benjamin, sobre os bonecos
A primeira ação dos bolcheviques após erguer a bandeira vermelha foi organizar as crianças reorganizando o teatro infantil proletário pela introdução de viés pedagógico politicamente orientado.[21] Como a criança reage à exposição ao “fogo[22]” no qual jogo e realidade se fundem? Ela sente asco e se afasta, caindo no estado de apatia conhecido como vale da estranheza (inglês uncanny valley, japonês 不気味の谷現象).[23] Ela frustra os interesses do patrocinador, não se afeiçoando à ficção nem se imbricando ao ponto de deixar que sofrimentos simulados acabem convertidos em autênticos ou que surras simuladas se tornem em reais. A raridade das exceções comprova a regra.
Os bonecos falharam na missão de inspirar a horda de proletários a sacrificar indivíduos em prol do coletivo político. A resposta ao estímulo de neurônios-espelho é retardatária e eventual; inexiste sem racionalização da informação auferida e gera empatia pelo objeto visualizado. Ou seja, quem aprecia espetáculos teatrais onde bonecos encenam uma luta proletária, na verdade gosta de 1) teatro e 2) bonecos. Logo, sua prioridade é ganhar dinheiro para comprar bonecos e ir mais vezes ao teatro.
Em algum momento histórico os marxistas concluíram que quem e/ou o que não faz parte da solução deveria ser parte do problema. Walter Benjamin esbraveja: “Quem quiser ver a caricatura do capital, sob a forma da mercadoria, precisa apenas pensar em uma loja de brinquedos[24]”. E não importa o quão pobre seja o artesão bonequeiro. “Frequentemente a assim chamada arte popular é apenas o resíduo de bens culturais de uma classe dominante que, assimilado por um grupo social mais amplo, se renova[25]”.
Tais seriam os bonecos produzidos por Armand Marseille, Kestner, Welsch, Herman Steiner, Bergmann, etc. Embora Walter Benjamin falasse sobre a indústria e comércio de brinquedos na Alemanha desde a origem até da terceira década do século XX, algo de sua critica ainda se aproveita. Os brinquedos da criança são “um mudo diálogo simbólico entre ela e o povo[26]”. É, portanto, equivocada a suposição de que as próprias crianças determinam todos os brinquedos, movidas por suas necessidades.[27]
No século XVI artistas que antes produziam estatuário para a Igreja Católica teriam legado sua técnica à indústria doméstica, atendendo à demanda por artesanato de menores proporções, feitos para a decoração do lar. Daí a estética realista dos novos moldes de bonecos. Em Nuremberg, exportadores compravam “quinquilharias” manufaturadas por microempresários locais, para distribuir em redes de lojas ao redor do globo. Deu-se assim a difusão “daquele mundo de coisas minúsculas[28]”.
Após haver reprovado as narrativas de violência nos contos folclóricos, Walter Benjamin mirou sua atenção nas representações de violência em brinquedos e desenhos animados. Não podemos ocultar nada que seja humano às crianças. Os pequeninos riem de tudo, mesmo dos reversos da vida, irradiando alegria até sobre as zonas mais sombrias e tristes… O desenvolvimento forçado de fantasias sádicas ou de alucinações masoquistas, em certos filmes, teria o condão de impedir o amadurecimento de psicoses de massa, funcionando como uma vacinação psíquica.
A risada coletiva proporciona a erupção precoce e salutar de tal psicose de massas. O consumo de uma quantidade avassaladora de acontecimentos grotescos no cinema é uma drástica evidência dos perigos que ameaçam a humanidade nas repressões que a civilização traz consigo. Os filmes pastelão americanos e os filmes da Disney causam uma explosão terapêutica do inconsciente.[29]
Segundo Benjamin, o desenho animado figurava o universo da loucura.
Muitas das deformações e estereótipos, das metamorfoses e catástrofes que afetam o mundo da óptica nos filmes encontram-se de fato em psicoses, alucinações e sonhos. Assim, essas operações da câmera constituem um conjunto de procedimentos que permitem à percepção coletiva apropriar-se dos modos de percepção individuais do psicótico ou do sonhador. O filme abriu uma brecha naquela antiga verdade heraclítica segundo a qual os acordados têm o seu mundo em comum, e os dormentes têm cada um um mundo para si. E o fez muito menos apresentando o mundo do sonho do que criando figuras do sonho coletivo, como o mundialmente famoso Mickey Mouse.[30]
Conforme exposto, problematizando o riso frouxo e seus emuladores, Walter Benjamin observa que a banalização duma existência insuportável teria aumentado o interesse por itens de gosto duvidoso após o fim da primeira guerra mundial: “O adulto, que se vê acossado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução, liberta-se dos horrores do mundo através da reprodução miniaturizada[31]”.
Buscando “ser justo” em relação a fatos alegóricos, Walter Benjamin conseguiu enxergar apologia ao canibalismo no habito banal de confeitar biscoitos em fôrma de bonecos[32]; ato réprobo repetido no exemplo do “bandoleiro esfolado”, assado ao forno, boneco não comestível do teatro mecânico de marionetes de Julius Linde[33].
O que dizer da marionete de enforcado que se decompõe e recompõe-se[34]? O filósofo vermelho louva a arte escatológica citando Mynona:
Pequenos atentados terroristas maravilhosamente executados, com príncipes que se despedaçam, mas que voltam a se recompor; incêndios que irrompem automaticamente em grandes lojas, invasões e assaltos. Bonecas vítimas que podem ser assassinadas das mais diversas formas e seus correspondentes assassinos – com todos os respectivos instrumentos, guilhotina e forca: pelo menos os meus pequenos não querem mais prescindir de tudo isso.[35]
Promove-se a ode às crianças descaradas e alheias ao mundo, sempre prontas para descarregar a fúria do elemento despótico e desumano nas bonecas.
Uma coisa devemos ter sempre em mente: jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos — sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos — mas as próprias crianças, durante as brincadeiras. Uma vez perdida, quebrada e reparada mesmo uma boneca principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças.[36]
Walter Benjamin levanta a questão da divergência entre os interesses de pais e filhos: “Nós conhecemos aquela cena da família reunida sob a árvore de Natal, o pai inteiramente absorto com o trenzinho de brinquedo que ele acabara de dar ao filho, enquanto este chora ao seu lado[37]”. Logo, quando adultos interpretem a sensibilidade infantil determinando o conteúdo imaginário do brinquedo, acaba-se por criar meras curiosidades que “no quarto de crianças não servem para nada[38]”.
Era necessário sanar tal equívoco pela emancipação do brinquedo. “Quanto mais a industrialização avança, mais decididamente o brinquedo subtrai-se ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais[39]”.
Brinquedo perfeito, nenhum brinquedo?
Contra o realismo das casas de boneca apresentadas por Karl Gröber no livro Kinderspielzeug aus alter Zeit (1928), fica sugerido que tal qualidade de jogo de representação de papéis tem valor oposto ao dos “instrumentos” de brincar formadores dos hábitos da vida adulta.[40] A atenção de Walter Benjamin foi absorvida pelas bonecas de Sonneberg, entre outras do gênero, ao ponto de arrancar-lhe a confissão de que tais coisas “constituem modelos insuperáveis da mais sóbria beleza”, transcendentes às suas “questões de prioridade, que no fundo efetivamente pouco dizem[41]”.
Todavia, o autor cai em negação encontrando conforto na informação de que, antes do século XIX, a produção de brinquedos não era função de uma única indústria. (Esqueceram de informa-lo que isso sempre foi e nunca deixou de ser assim). Diversos fornecedores fabricam aquilo que compete a seu ramo, assim como, hoje em dia, os consumidores de BJD compram carcaças de bonecos num fabricante especializado em moldes de resina, olhos num vidraceiro especializado na técnica complementar, cabelo nos profissionais que mantém contato com produtores de lã criadores de rebanhos na Mongólia ou na América do Sul, etc. Com tantas voltas, o filosofo ficou tonto.
No decorrer do século XVIII, começaram a aflorar os primórdios da fabricação especializada. As indústrias chocaram-se por toda parte contra as restrições das corporações. Estas impediam o marceneiro de pintar, ele próprio, suas bonequinhas; para a preparação de brinquedos de diferentes materiais obrigavam várias indústrias a dividir entre si os trabalhos mais simples, o que encarecia sobremaneira a mercadoria.[42]
Se, por um lado, Walter Benjamin proclama o fim da era das “bonecas com traços realistas” – que existiriam para suprir “supostas necessidades pueris” dos adultos[43] –, por outro, ele aproxima o tema da “falsa simplicidade” do estilo predominante na indústria doméstica, manifesta pelo anelo de “reconquistar o vínculo com o primitivo[44]”.
Seria muito bom se nossos artesãos artísticos não esquecessem com tanta frequência que não são as formas construtivas e esquemáticas que transmitem à criança a impressão do primitivo, mas sim a construção total de sua boneca ou de seu cãozinho, na medida em que ela possa imaginar como esses brinquedos são feitos. É exatamente isso que a criança deseja saber, aquilo que estabelece uma relação viva com suas coisas.[45]
Seria muito bom se Walter Benjamin finalmente entendesse que adultos não dão itens de coleção para bebês mascarem nem para menores de idade destruírem. Até o mais simplório brinde de alimento pode se tornar um item colecionável (desde o momento em que for valorado como tal, o objeto será desclassificado como brinquedo infantil e categorizado como legítima obra de arte). Do mesmo modo, uma obra de arte pode virar brinquedo infantil nas mãos de um irresponsável, a despeito da classificação por faixa etária superior sugerida para certos bonecos. (Se Duchamp pode fazer isso com um mictório, então nós podemos reclassificar qualquer objeto, de qualquer valor, de qualquer origem, com uma mera mudança de perspectiva e função social).
Mas voltemos ao tópico. Segundo a filosofia de Walter Benjamin, a simplicidade e a customização parecem faces da mesma moeda, posto que simples não é a rustica corda de pular, e sim a transparência do processo de produção dos brinquedos por oficinas artesanais. “Assim como antigamente, a autêntica e inequívoca simplicidade dos brinquedos não é uma questão de construção formalista, mas de técnica[46]”.
A brincadeira se rege pela lei da repetição.[47] A essência do brincar é um “fazer sempre de novo”, transformando a experiência mais comovente em hábito. Sendo assim, todo hábito seria uma forma petrificada e irreconhecível de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror.[48]
A bola, o arco, o bambolê e a pipa são autênticos brinquedos os quais desprezam toda máscara imaginária. Porém, numa época arcaica, esses instrumentos teriam estado “possivelmente vinculados a rituais”. Em verdade a prole vermelha não necessitaria de quaisquer instrumentos de brincar industrializados. “A criança quer puxar alguma coisa e tornar-se cavalo, quer brincar com areia e tornar-se padeiro, quer esconder-se e tornar-se ladrão ou guarda[49]”. A animação Toy Story 4 (2019) retrata bem isso.
Diabruras de colecionador
Conforme exposto, no princípio os ensaios de Walter Benjamin passam a falsa impressão de que o autor odiava a todos os bonecos e aos seus colecionadores, motivado pela paixão à causa do proletariado. Todavia ele se curva diante da iniciativa do bibliófilo Karl Hobrecker que, saindo da toca, produziu valoroso volume sobre a história da literatura infantil na Alemanha; importantes obras de arte contemporânea que seus queridos companheiros jogavam no lixo.
Quantas vidas custaram aquele opúsculo? Só uma, notadamente a do próprio Karl Hobrecker. Mas o baixíssimo custo da sua coleção quase justifica alguma coisa. Walter Benjamin sentiu-se especialmente interessado e atraído pelo realismo duma boneca de cera do século XVIII, exposta num museu.[50] Ainda assim titubeou em admitir o quanto gostou doutro livro escrito por Karl Gröeber, autor orgulhoso de seu “material concreto”, uma coleção de brinquedos… A “criança desordeira” se destaca desde o berço. Os primeiros indícios de desajuste social surgiriam na infância, com o acúmulo de troféus de caça de modo “inseguro e irascível”, emporcalhando o próprio quarto:
Toda pedra que ela encontra, toda flor colhida e toda borboleta apanhada é para ela já o começo de uma coleção e tudo aquilo que possui representa-lhe uma única coleção. Na criança essa paixão revela seu verdadeiro rosto, o severo olhar de índio que nos antiquários, pesquisadores e bibliômanos continua a arder, porém com um aspecto turvado e maníaco. Mal entra ela na vida e já é caçador. Caça os espíritos cujos vestígios fareja nas coisas; entre espíritos e coisas transcorrem-lhe anos, durante os quais seu campo visual permanece livre de seres humanos.[51]
Walter Benjamin não se decide. Afinal, o colecionar é burguês reacionário de direita ou militante anarquista? Em dado momento, o autor nos pede para imaginar “um velho e decadente nobre do campo que nos deixa entrar em suas mais recônditas salas de tesouro” onde “desabafa mesmo seus sentimentos mais extravagantes[52]”.
Acaso isto parece o perfil dum anarquista, ou dum mero colecionador, destes que existem aos montes até nas camadas populares? (Que atire a primeira pedra quem nunca guardou moedinhas cunhadas com figuras da Copa do Mundo).
Este parágrafo até parece biografar a infância do joalheiro George Frederick Kunz (1856-1932) a quem nenhuma negativa de pedidos para frequentar universidades de mineralogia conseguiu convencer que pedras baratas não são minérios. O egoísta dará a vida por um tópico específico na sóbria intenção de beneficiar cada organismo racional ou inteligência artificial do universo, mas nunca deixará de estar alheio ao mundo.
Não existe hipnoterapeuta capaz de exorcizar tal mente para fora do corpo que não lhe pertence, ou realocar o cérebro num pênis ou útero aditivado. Não tem jeito. O humano está com defeito. Não é um item de série. Saiu feia coisa sui generis. De nada adianta esbravejar, como Walter Benjamin aos pseudo-anarquistas: “Volte! Nós te perdoamos![53]”. Ninguém trabalha tanto para terminar a vida andando para traz.
notas
[1] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre, L&PM, 2022, p 61.
[2] Benjamin entende que a reprodução da arte sempre ocorreu, porém ela passa a ser diferenciada a partir do advento da fotografia, principal marco da nova lógica de reprodutibilidade. Isso por que, segundo ele, é nesse momento em que as obras passam a ser pensadas e concebidas para as massas.
[3] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p 57.
[4] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p 62.
[5] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p 99.
[6] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p 86-87.
[7] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p 63.
[8] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo, Summus, 1984, p 47.
[9] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 98.
[10] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 65.
[11] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 47.
[12] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 49.
[13] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 85.
[14] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 100.
[15] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 110.
[16] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 64.
[17] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 110.
[18] NUSSBAUM, Martha C. Sem Fins Lucrativos: Por que a democracia precisa das humanidades. Trad. Fernando Santos. São Paulo, Martins Fontes, 2015, p 35-36.
[19] FEITOSA, Charles. Explicando a Filosofia com Arte. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004, p 8.
[20] ALFREDO VOLPI – BANDEIRAS, MASTRO E TRIÂNGULOS. Em: LIVIA DOBRAS, acessado em 28/12/2022. URL: <https://www.galerialiviadoblas.com.br/alfredo-volpi-bandeiras-mastro-e-triangulos/>.
[21] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 84.
[22] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 85.
[23] MORI, Masahiro. Bukimi no tani (不気味の谷): The uncanny valley. Em: ENERGY, 7(4), 1970, p 33–35. Trad. de Karl F. MacDorman e Takashi Minato publicada pelo Dublin Institute of Technology, acessada em 07/04/2016. URL: <http://www.comp.dit.ie/dgordon/Courses/CaseStudies/CaseStudy3d.pdf>.
[24] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 73.
[25] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 74.
[26] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 70.
[27] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 72.
[28] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 68.
[29] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre, L&PM, 2022, p 89-90.
[30] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p 89.
[31] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 64.
[32] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 62.
[33] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 63.
[34] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 101.
[35] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 65.
[36] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 65.
[37] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 64.
[38] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 64.
[39] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 68.
[40] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 70.
[41] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 67.
[42] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 67-68.
[43] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 72.
[44] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 69.
[45] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 93.
[46] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 73.
[47] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 74.
[48] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 75.
[49] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 70.
[50] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 64.
[51] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 79.
[52] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 101.
[53] BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação, p 77.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.