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Shirlei Massapust
No capítulo 56 de seu tratado sobre Pneumática, o engenheiro mecânico Philo de Bizâncio descreveu uma antiquíssima engenhoca de tecnologia hebreia capaz de girar para frente ou para os lados, para cima e para baixo.
Um copista árabe adicionou notas de pé de página afirmando que o trono do Rei Salomão era na verdade um desses aparelhos disfarçado de cadeira: “Quem conhecia o funcionamento do trono podia sentar e permanecer sentado, mas quem não estava familiarizado com aquilo sentava e caia no chão. Isso era muito engraçado”.[1]
O profeta Mohamed parecia gostar das estórias sobre a sala maluca do Rei Salomão, assim como todos os árabes, já que narrou um conto folclórico sobre o momento em que a Rainha de Sabá entrou no recinto:
A ela foi dito, “Entrai no palácio”. E quando ela o viu, julgou que era uma massa de água, e descobriu as suas pernas. Salomão disse: “É um palácio com um suave pavimento de chapas de vidro”. Ela disse: “Meu Senhor, eu tenho na verdade lesado a minha alma”. (Corão 27:45).[2]
A sala maluca não era a verdadeira sala do trono. Na fábula o rei manda construir uma réplica do recinto com chão todo pavimentado de espelhos só para induzir a rainha a cometer uma gafe se comportando como uma mulher indecente. O problema é que, segundo alguns, a rainha estava sem calcinha e tinha pernas cabeludas! “Isso indicava que ela mesma era uma feiticeira, e chegou a ser identificada com Lilith”.[3]
Ela tinha marcado uma reunião de negócios, mas desejou ter um filho com ele assim que viu o ninho de amor planejado para expor suas partes íntimas. Não teve mandrágora que curasse a dormência do idoso fogoso diante do horripilante matagal. Então ele usou sua sabedoria divina para inventar uma solução depilatória e melhorar o aspecto da mulher. O livro de comédia Alphabetum Siracidis (séc. 8) narra o episódio:
Quando ela veio trazer presentes ao Salomão para confirmar sua reputação de sábio, ele achou-a muito atraente e desejou dormir com ela. Mas Salomão descobriu que ela tinha muito cabelo. Ele apanhou limo e arsênico, misturou com água e produziu uma solução depilatória de limo. Então ele besuntou-a com a solução, banhou-a e o cabelo caiu. Ele coabitou com ela logo a seguir. Então ela disse a Salomão: “Eu não acreditava nestas coisas até vê-las com meus próprios olhos”. (Alfabeto de Ben Sira I).[4]
Após consultar fragmentos dos textos intitulados Grandes e Pequenos Palácios, o Alfabeto do Rabino Akiva e quatro versões do Midrash dos Dez Mandamentos, o folclorista Gershom Schoelem descobriu que Deus também tem salas malucas! O Talmude (Haguigá 14b) e a Tossefta citam um fragmento dos Pequenos Palácios:
Quatro entraram no “Paraíso”: ben-Azai, ben-Zoma, Aher e Rabi G Akiva. Rabi Akiva lhes disse: “Quando chegardes ao lugar das placas de mármore brilhantes, não digais: Água, água! Pois está escrito: Aquele que fala mentiras não permanecerá na minha presença”.[5]
Segundo Gershom Schoelem, os místicos da mercabá demonstraram uma compreensão perfeitamente correta do significado desta passagem, e sua interpretação fornece uma prova decisiva de que a tradição continuava viva entre eles. No manuscrito de Munique dos textos das Hehalot (ms. Munique 22, f. 162b) lemos com respeito aos perigos da ascensão:
Quando alguém era indigno de contemplar o Rei em sua beleza, os anjos nos portais perturbavam seus sentidos e o confundiam. E quando eles lhe diziam: “Entra”, ele entrava, e instantaneamente eles o agarravam e o atiravam na corrente chamejante de lava. E no portão do sexto palácio era como se centenas de milhares e milhões de ondas de água se levantassem contra ele, e não havia uma única gota de água, só o brilho etéreo das placas de mármore com que o palácio era revestido. Mas, se ele estava em pé em frente aos anjos e perguntava: “Qual é o significado destas águas”, começavam a apedrejá-lo e diziam: “Infeliz, não vês com teus próprios olhos? És talvez da semente dos que beijaram o Bezerro de Ouro e indigno de contemplar o Rei em sua beleza?”… E ele não pode sair até que eles lhe golpeiem a cabeça com barras de ferro e o firam. E isto será um sinal para todos os tempos de que ninguém poderá errar às portas do sexto palácio e ver o brilho etéreo das placas e perguntar por elas e tomá-las por água, para que não se ponha em perigo.[6]
Novamente o ato de confundir espelhos ou ladrilhos azuis com água se revelou um erro fatal. A jornada de ascensão aos palácios e mundos paralelos oferecia grande perigo àqueles que atuavam sem a devida preparação. Noutro fragmento citado pelo manuscrito de Oxford n. 1531, f. 41a, um místico encontra o arconte guardião das portas do primeiro céu e sofre combustão espontânea: “Enquanto eu o contemplava, queimaram-se minhas mãos e fiquei parado sem mãos e sem pés”.
A sublimação podia matar ou transformar o humano em anjo, assim como Enoch foi transformado em Metatron! Em ambos os casos o humano é consumido por um fogo que brota de seu próprio corpo (Hehalot Rabati 3:4). A permanência na posição vertical sem os pés é igualmente mencionada noutras fontes como uma vivência característica do misticismo da mercabá.
Um bloco de vidro colossal
O corpo do rabino Yehudah haNasi (135-217), redator e editor chefe da Mishna (primeira camada do Talmude), foi enterrado e ainda jaz no cemitério Beit She’arim, na Galiléia. Os judeus não levam flores para homenagear os mortos. Eles levam pedras, pois as rochas duram para sempre. Por volta do fim do séc. IV alguém decidiu deixar algo no mínimo interessante naquele lugar. Em 1956 arqueólogos desenterraram um bloco de vidro medindo cerca de 3,35m por 1,98m de espessura e 5,49m de comprimento, encontrado dentro de uma cisterna desativada em Beth She’arim.
Esta é a prova de que era humanamente possível criar blocos de vidros tão grandes que poderiam cobrir uma sala pequena quando judeus inventaram estórias de palácios com chão ou paredes de líquido sólido diferente de H2O. Mas isto era ao mesmo tempo possível e inacreditável. Veja a reação de um perito do século XX, especialista em artefatos de vidros antigos:
Em 1963, membros de uma expedição conjunta do Corning Museum of Glass e da University of Missouri estavam interrogando na região por possíveis peças remanescentes de antigas fábricas de vidro. Alguém sugeriu que a laje de Beth She’arim poderia ser feita de vidro. A sugestão foi recepcionada com ceticismo; na verdade, um membro da equipe de voluntários falou que comeria a laje se ela fosse feita de vidro. Contudo uma análise química confirmou que aquilo é, de fato, feito de vidro.[7]
Isto é vidro artificial, perfeitamente normal e comum, porém de existência inverossímil ainda que verdadeira por causa da imensidão do bloco (terceira maior peça de vidro conhecida). Arqueólogos acreditam que o bloco de vidro de Beit She’arim foi feito de areia poluída acidentalmente por cinzas vegetais e descartado como lixo industrial. Guias de turismo e outros visionários preferem sugerir que o bloco de vidro foi disfarçado de pedra pela adição de pigmentos para se confundir com o cenário e não ser roubado. Nesta hipótese os judeus do séc. IV teriam acreditado na importância de demonstrar a viabilidade de um método que os vidraceiros de tempos bíblicos poderiam ter usado para produzir grandes janelas de vidro ( חלוני שקפים אטמים )[8] em Israel.
Notas:
[1] BELLMER, Hans. The Doll. Trad. Malcolm Green. London, Atlas Press, 2005, p 62.
[2] O SAGRADO AL-CORÃO. Grã Bretanha, Islam International Publications, 1988, p 372.
[3] UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. Trad. Paulo Geiger. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p 223-224.
[4] STERN, David & MIRSKY, Mark J. (org). Rabbinic Fantasies: Imaginative Narratives from Classical Hebrew Literature. London, Yale University, 1990, p 180.
[5] SCHOELEM, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica. Trad. J. Guinsburg e outros. São Paulo, Perspectiva, 1995, 57.
[6] SCHOELEM, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica. Trad. J. Guinsburg e outros. São Paulo, Perspectiva, 1995, 58.
[7] THE MYSTERY SLAB OF BETH SHE’ARIM. Em: Corning Museum of Glass. Published in December 8, 2011. URL: <http://www.cmog.org/article/mystery-slab-beth-shearim>
[8] Os termos škufim (שקפים) e atumim (אטמים), usados em I Reis 6:4, dizem respeito a objetos “transparentes” e “inteiriços” que preenchem janelas num edifício bayith (בית).
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