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Realismo Fantástico

A Dupla Hélice

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A obra do Padre James D. Watson, A Dupla Hélice, encontra-se, atualmente, em todas as livrarias. Foi traduzida para o francês nas edições Robert Laffont. Existem, igualmente, edições inglesas encadernadas e uma edição em livro de bolso.

Por que escolher essa obra para terminar esse trabalho sobre os livros malditos? Porque ela desapareceu de circulação por duas vezes: primeiro porque ninguém queria editar, e depois porque ninguém queria assumir os riscos.

E ainda porque a aventura dessa obra nos esclarece sobre a natureza da censura, os motivos das interdições e mesmo a natureza da própria ciência.

Comecemos pelo personagem. O Padre James D. Watson nasceu em Chicago, no ano de 1928; em 1950 doutorou-se em ciências pela Universidade de Indiana e trabalhou, em seguida, em Copenhagem e em Cambridge, onde fez extraordinárias descobertas no domínio da hereditariedade. Em 1962, ele recebeu o Prêmio Nobel, juntamente com Francis Crick e Maurice Wilkins, pela descoberta da estrutura molecular do ácido “hereditário” ADN. A molécula deste ácido forma uma dupla hélice (notamos, e aqui a nota é pessoal e não deve ser atribuída a Watson, que essa hélice se assemelha estranhamente ao caduceu, antigo símbolo da medicina).

Tal descoberta é considerada, de maneira geral, como uma das mais importantes do século. Ela conduziu à decifração do código genético e abriu a porta a um controle pela inteligência humana da hereditariedade e das mutações.

A propósito desse tipo de investigação, denominada biologia molecular, Fred Hoyle escreveu: “Dentro de vinte anos os físicos, que não fazem mais que inofensivas bombas de hidrogênio, vão trabalhar em liberdade. Mas os biologistas moleculares trabalharão atrás de barreiras eletrificadas.”

Uma descrição dessa grande descoberta, feita por um de seus autores, teria tido, segundo qualquer previsão, um grande sucesso. Mas quando fragmentos do livro apareceram na “Atlantic Monthly”, a confusão se fez. E quando o manuscrito circulou, a confusão se transformou em furor.

Pois o padre Watson metia os pés pelas mãos e fazia-o prazerosamente. Em seu livro, o meio científico, longe de aparecer como uma reunião de almas nobres à procura da verdade, parecia uma guilhotina onde cada um colocava seus vizinhos em situações as mais detestáveis. Poder-se-ia dizer que a máfia seria uma comparação imaginável para o meio científico.

Teses desse gênero não eram novas, George Duhamel e Jules Romains já haviam feito descrições desse tipo. Mas era a primeira vez que um autêntico e genial sábio, Prêmio Nobel, acendia o estopim. Ainda por cima, o livro não concluía sobre uma nobre prosopopéia da verdade em marcha, mas sobre a imagem do Padre Watson buscando uma âncora em Saint-Germain-des-Près.

Tentaram-se todas as pressões possíveis sobre os editores. Sem sucesso. Então, os sábios conluiaram-se para não fazer caso. Um cientista eminente declarou à grande revista inglesa, “Nature”: “Poderão encontrar, mais facilmente, um clérigo prestando contas sobre um livro pornográfico do que um sábio falando da Dupla Hélice.”

O livro, entretanto, prosperou. Teve uma edição americana, uma edição encadernada inglesa de Weindenfeld e Nicholson em 1968, uma edição Penguin Books em 1970, uma tradução francesa, traduções no mundo inteiro.

É preciso ler A Dupla Hélice.

Assim, não farei longas citações sobre esse livro.

Notemos simplesmente, que o Padre James D. Watson ressaltou muito justamente:

“Contrariamente à idéia popular que sustentam os jornais e as mãos dos sábios, um número considerável de sábios não somente são estreitos de espírito e não são nada tolos, mas completamente idiotas.” Isto me lembra a nota de um eminente amigo que tendo participado de uma reunião da fundação Nobel, onde 18 Prêmios Nobel estavam presentes, me disse quando voltou: “A porcentagem de cretinos entre os Prêmios Nobel é a mesma de todos os lugares.”

Em A Dupla Hélice, não se vê apenas cretinos. Vê-se aí, também, pessoas sem escrúpulos que lutam pelo poder, que atiram cascas de banana aos pés daqueles que têm idéias novas, e que dão mais importância aos ódios pessoais que aos interesses da ciência. A única coisa que conta para eles são os créditos e recompensas.

Quanto ao jovem Padre Watson – tinha vinte e cinco anos quando de sua descoberta – não esconde que o essencial de sua atividade é consagrado à freqüência de arrebatadoras jovens vindas à Inglaterra.

Conheço muitos cientistas que torceriam o pescoço de Watson se pudessem, mas infelizmente já é tarde. As tentativas de impedir o livro não deram certo e Watson pôde exprimir o que pensava, francamente. No prefácio, Sir Lawrence Bragg, eminente especialista em raios X e filho do sábio que descobriu a difração dos raios X, tenta salvar a situação: “Os que figuram neste livro, diz ele, devem lê-lo com um espírito cheio de perdão. A situação era em geral mais complexa e os motivos das pessoas com quem ele fizera negócio menos tortuosos do que Watson o compreende.”

É possível. Nada modifica o fato de este livro ser de uma franqueza desarmante. De seu colega Francis Crick, Watson escreveu: “Nunca o vi num momento de modéstia.” E mais além, sempre de Crick: “Ele fala depressa e com voz forte, não se importando com ninguém, e basta ouvi-lo falar para notá-lo em toda Cambridge.”

Um certo número de retratos desse gênero fazem, evidentemente, o deleite de todos, mas, para empregar uma palavra de linguagem publicitária, é sobretudo a imagem de marca da ciência e dos sábios que recebeu um golpe do qual dificilmente se recuperará, se é que o conseguirá.

Numa outra época, ou em outras circunstâncias políticas, sob outros regimes, o livro não teria podido aparecer, e Watson seria recolhido a um campo de concentração como foi feito na URSS com o geneticista Vavilov.

Watson destruiu de passagem um certo número de clichês. Por exemplo, o mito do trabalho em equipe: dois a três sábios com pouco material e poucos diplomas (Francis Crick não era sequer doutor quando descobriu, com Watson, a estrutura do ADN) fizeram uma das maiores descobertas de todos os tempos.

O mito das matemáticas aplicadas também cai: Crick e Watson utilizaram cálculos que não passaram de regra de três, muito bom senso, e modelos mecânicos que pediram a um mecânico para fazer. Bem entendido, não se serviram de nenhum ordenador.

O Padre Watson ensina, agora, biologia molecular e bioquímica na Universidade de Harvard (EUA), onde continua, provavelmente, a fazer das suas. Descobriu a ferramenta mais poderosa que a humanidade dispõe hoje. Pois espera-se poder modificar a estrutura do ADN e introduzi-lo, assim modificado, no organismo humano, para produzir seja seres humanos melhores, seja o escalão superior, o homem depois do homem, o mutante sobre-humano.

O que é simpático em Watson é que não manifesta nenhuma falsa modéstia. Escreve com toda simplicidade: “Descobrimos o segredo da vida.” E ele tem razão, é o grande segredo que permitirá à espécie humana controlar sua própria hereditariedade.

Certos sábios pensam não somente o livro de vulgarização de Watson, mas também o seu trabalho propriamente dito, deveriam ser destruídos. Um famoso biologista, Sir McFarlane Burnet, escreveu: “Há coisas que não deveriam ser conhecidas, pois são muito perigosas para o ser.” Outros geneticistas, ao contrário, acham que deve abrir-se o campo. O Prêmio Nobel Marshall W. Nirenberg escreveu: “Penso que daqui a vinte anos programar-se-ão células humanas com material sintético, e células bactericidas daqui somente cinco anos.”

Escreveu isto em 1969 e tudo deriva de trabalhos feitos por dois jovens com pouquíssimos meios! Mas tinham coragem e idéias. E por isto a Dupla Hélice trouxe um golpe duro à ciência respeitável e ao grande negócio científico que se chama megaciência.

Esse livro mostra que o que conta não são os créditos – Watson ganhava cem dólares apenas – mas a inteligência. E não se pode deixar de perguntar por que as enormes organizações megacientíficas, que gastam milhões de dólares, não conseguem nenhum resultado, enquanto que alguns jovens, num laboratório venerável que traz o nome ilustre e misterioso de Cavendish, transformam o mundo.

Crick ironiza a propósito desses encontros onde se reúnem 2.000 bioquímicos que falam, falam sem parar, enquanto todo mundo vai saindo. E entre os raros acadêmicos que não são soníferos, assinala o francês Jacques Monod que, depois, obteve o Prêmio Nobel e escreveu uma obra notável: “O acaso e a necessidade”, que já tive ocasião de citar.

Notemos que Watson descobriu algo novo, os sexos de bactérias, do qual se ignorava a existência. Todos seus livros, todas suas publicações estão cheias de idéias novas.

E é aí que se põe o verdadeiro problema que ultrapassa a própria Dupla Hélice: o problema do abafamento e da censura das descobertas, o problema dos Homens de Preto. Bertrand Russel escreveu muito bem: “Os homens temem o pensamento original mais do que qualquer coisa sobre a Terra, mais do que a ruína, mais que a própria morte.” Ora, esse pensamento original se manifesta na Dupla Hélice, com mais energia que em qualquer outro livro decente, e foi isto, parece-me, mais que a descrição de ódios e de lutas do mundo científico que inquietou, e inquieta ainda.

As conseqüências da descoberta de Watson e de seus colegas foram estudadas por grupos de especialistas e uma tábua foi feita, que aparece no livro de g. Rattray Taylor, “A Revolução Biológica” (edição francesa Robert Laffont). Uma tábua análoga à estabelecida pelos peritos da Rank Corporation.

Primeira fase daqui ao ano 1975:
σ Transplante sistemático de membros e órgãos.
σ Fertilização de óvulos humanos em tubos de ensaio.
σ Implantação de óvulos fertilizados em uma mulher.
σ Conservação indefinida de óvulos e espermatozóides.
σ Determinação, à vontade, do sexo.
σ Retardamento indefinido da morte clínica.
σ Modificação do espírito por drogas e regulamentação dos desejos.
σ Possibilidade de apagar-se a memória.
σ Placenta artificial
σ Vírus sintéticos.

Segunda fase daqui ao ano 2000:
σ Modificação do espírito e reconstrução da personalidade.
σ Ordenamento da memória e reescrita da memória.
σ Crianças “produzidas” artificialmente.
σ Organismos completamente reconstruídos.
σ Hibernação.
σ Prolongamento da juventude.
σ Animais reproduzidos por enxerto.
σ Organismos monocelulares fabricados por síntese.
σ Regeneração de órgãos.
σ Hibridez homem-animal do tipo quimera.

Terceira fase depois do ano 2000:
σ Supressão da velhice.
σ Síntese de organismos vivos completos.
σ Cérebros destacados do corpo.
σ Associação entre o cérebro e o ordenador.
σ Levantamentos e inserção de gens.
σ Seres humanos reproduzidos por enxerto.
σ Ligações entre cérebros.
σ Hibridez homem-máquina.
σ Imortalidade.

A primeira coisa que vem ao espírito ao ler tais previsões é:eles não ousarão. Mas, justamente a leitura da Dupla Hélice mostra que homens como Watson são capazes de tudo. O espírito prometeuano e faustiano que se encontra em certos personagens de que falei neste livro, e que foi abafado com maior ou menor sucesso, agora é posto à luz. E, sob o signo da dupla hélice, parte para a conquista do mundo.

J. B. S. Haldane escreveu: “O que não foi será e ninguém estará a salvo.”

Os historiadores futuros julgarão, talvez, que mais que qualquer livro maldito dos que citamos aqui, a Dupla Hélice teria que ser censurada, teria que desaparecer, para evitar que o homem consiga poderes muito grandes para si. Talvez julgarão, ao contrário, que os Homens de Preto não tiveram a última palavra, que se pode retardar o progresso mas não impedi-lo, e que o homem acabará por obter poderes superiores à condição humana, quaisquer que sejam as forças que se oponham.

A Dupla Hélice é um livro isento de considerações filosóficas ou morais. O autor é mais inteligente que os sábios vetustos que ridiculariza, mas não mostra nenhum senso de responsabilidade a respeito da humanidade. Enquanto a maior parte dos outros sábios estão, no fundo, de acordo para não se divulgar suas descobertas senão discretamente e num círculo restrito, Watson pensa apenas em torná-las públicas. Daí, a indignação que caiu sobre ele. Não esconde que procura, na ordem, o dinheiro, a glória, o poder. Mas, nessa procura, ele abre a todos os homens portas estonteantes.

Resta, evidentemente, saber se a humanidade poderia sobreviver às descobertas relacionadas e que decorrem todas, mais ou menos, da Dupla Hélice.

Pessoalmente, penso que ela poderá sobreviver a não importa o que, e que foi um erro fazer desaparecer os livros malditos já citados. Mas é uma opinião pessoal, por isso, discutível. Será interessante ver a evolução psicológica de Watson, e se o senso de sua responsabilidade com relação aos homens lhe chegaria com a idade. Hoje, é um jovem lobo de dentes longos, inspirado pelo espírito dos alquimistas e do Dr. Faustus.

O futuro igualmente nos dirá se Watson e seus colegas serão os últimos biologistas moleculares a trabalhar livremente, se seus sucessores não serão forçados ao maior segredo, e se as limitações severas não serão impostas à publicação de seus trabalhos.

O que quer que seja, o fim de nosso século não será desprovido de interesse.


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