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O Jardim que Adão Viu Quando Abriu os Olhos – As Portas da Percepção parte 3 de 4

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Quando acabou sua execução, sugeriu-me o pesquisador que passeássemos pelo jardim.  Gostei  da  idéia  e,  embora  meu  corpo  parecesse  ter-se  separado  quase  por completo de minha mente (ou, para ser mais preciso, embora minha perceptibilidade do transfigurado  mundo  exterior  já  não  mais  se  fizesse  acompanhar  da  de  meu  próprio organismo),  do  ponto  de  vista  fisiológico  verifiquei  ser  capaz  de  levantar-me,  abrir  a porta e sair para o jardim com um mínimo de hesitação. Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço,  essa  cabeça  mesma.  Era  estranho;  mas  em  breve  acostumamo-nos  a  isso.  E, seja  como  for,  o  corpo  parecia  perfeitamente  apto  a  tomar  conta  de  si  próprio.  Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo o que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais — por exemplo, quando se  esforça  em  demasia,  quando  se  aborrece  ou  se  torna  apreensivo  sobre  o  futuro  —, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. Em meu estado, no momento, a perceptibilidade não era encaminhada a um ego; estava, por assim dizer, entregue a si mesma. Isso significava que a inteligência fisiológica que controla  o  organismo  também  estava  entregue  a  si  mesma.  Nessa  ocasião,  aquele importuno  neurótico  que,  nas  horas  de  vigília,  se  esforça  por  “dirigir  o  espetáculo” estava, felizmente, fora de ação. Transpondo a porta, saí para uma espécie de pérgula, em parte coberta por uma roseira, em parte por ripas de uns dois centímetros de largo, a intervalos  de  um  centímetro  umas  das  outras.  O  sol  brilhava,  e  a  sombra  das  ripas formava um zebrado claro-escuro no chão da varanda, no assento e no encosto de uma cadeira  de  jardim  que  se  achava  próxima  à  casa.  Aquela  cadeira!  Poderei  algum  dia esquecê-la?  As  alternâncias  de  sombra  e  luz  formavam,  sobre  a  lona  de  seu  estofo, listras de um anil intenso, porém luzente, sucedidas por outras de uma incandescência tão  intensamente  brilhante  que era  difícil acreditar  não fossem produzidas por  chamas azuis. Por um tempo, que me pareceu intensamente longo, fitei-a sem saber, sem mesmo desejar  saber  que  é  que  tinha  diante  de  mim.  Em  outra  ocasião  qualquer  teria  visto apenas  uma  cadeira  com  barras  alternadas  de  luz  e  sombra.  Mas,  no  momento,  a percepção  sensorial  dominara  a  idéia.  Eu  estava  tão  absorto  na  contemplação,  tão estupefato pelo que via, que não pude ter consciência de nada mais. Mobiliário, ripas, luz do sol, sombra — tudo isso não passava de nomes e noções; de meras verbalizações para  o  aproveitamento  científico  ou  utilitário  dos  resultados.  O  resultado  era  essa sucessão  de  portas  de  fornalha  azul-celeste,  separadas  por  insondáveis  abismos  de genciana.  Aquilo  era  indizivelmente  maravilhoso;  de  uma  sublimidade  que  tocava  as raias  do  terrífico.  E  então,  repentinamente,  tive  uma  vaga  noção  do  que  seja  sentir-se louco.  A  esquizofrenia  tem  seus  paraísos,  de  par  com  seus  infernos  e  purgatórios. Lembro-me do que um velho amigo, de há muito falecido, contou-me sobre a doença da esposa.  Um  dia,  nos  primeiros  estágios  da  enfermidade,  quando  ela  ainda  desfrutava intervalos de lucidez, tinha ido visitá-la no hospital e dar-lhe notícias dos filhos. Ela o ouviu  por  algum  tempo  e  então,  de  súbito,  interrompeu-o:  como  poderia  ele  perder tempo   com   um   casal   de   crianças   ausentes   quando   tudo   o   que   verdadeiramente importava, ali e naquele instante, era a indizível beleza dos desenhos que ele criava, em seu  casaco  marrom  de  xadrez,  a  cada  movimento  de  braços?  Infeliz!  Esse  paraíso  de percepção ilimitada, de contemplação pura, parcial, não iria durar. Os intervalos felizes tornaram-se  mais  raros,  mais  breves,  até  que,  finalmente,  desapareceram  de  vez;  só restou o horror…

Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensações celestiais da esquizofrenia. A droga só leva o purgatório ou o inferno àqueles que tenham tido um acesso recente de icterícia ou que sofram de depressões periódicas ou ansiedade crônica. Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina fosse  reconhecidamente  tóxica,  sua  ingestão  seria  suficiente  para  provocar  ansiedade. Mas  o  indivíduo  razoavelmente  saudável  sabe  antecipadamente  que,  para  si,  esse alcalóide será completamente inócuo e que seus efeitos terão cessado após oito ou dez horas,  sem  deixar  sensações  desagradáveis  nem,  conseqüentemente,  ânsias  por  novas doses. Fortalecido por essa convicção, ele pode entregar-se à experiência sem temores —  em  outras  palavras,  sem  qualquer  predisposição  para  converter  um  ensaio  de  uma singularidade  sem  precedentes,  inumano,  em  algo  de  aterrador,  de  verdadeiramente diabólico.

Diante de uma cadeira que parecia um Juízo Final — ou, para ser mais preciso, ante um Juízo Final que, depois de longo tempo e com considerável dificuldade, pude reconhecer como sendo uma cadeira —, eu me senti, de uma hora para outra, no limiar do  pânico.  Aquilo,  percebi  repentinamente,  estava  indo  muito  longe.  Longe  demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo.   O   temor,   analisando-o   retrospectivamente,   foi   o   de   me   ver   esmagado, desintegrado   sob   uma   pressão   de   realidade   muito   superior   à   que   uma   mente, acostumada  a  viver  a  maior  parte  do  tempo  em  um  confortável  mundo  de  símbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina; entre  a  mesquinhez  auto-agravada  do  homem  e  o  Deus  infinito.  Segundo  Boheme  e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, só pode ser percebida  pelas  almas  pecadoras  sob  a  forma  de  chamas  do  purgatório.  Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega  foge  atormentada  da  Serena  Luz  do  Vazio,  e  até  mesmo  das  Luzes  menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente, na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma  ou  indo  ter  ao  inferno.  Há  de  preferir  qualquer  coisa  ao  ígneo  refulgir  da implacável Realidade — qualquer coisa!

O esquizofrênico é uma alma, não só impura, como também desesperadamente desgostosa  com  sua  situação.  Seu  tormento  consiste  na  incapacidade  de  proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano  das noções úteis,  dos simbolos compartilhados pelos demais, das convenções  socialmente  aceitáveis.  O  esquizofrênico  é  qual  homem  sob  a  influência contínua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele não  pode  suportar  por  lhe  faltar  pureza;  que  não  pode  interpretar  por  ser  ela  o  mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente  intensidade  de  valores,  como  a  manifestação  da  maldade  humana  ou  até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada   a   descida   pela   rampa   infernal,   ninguém   poderá   mais   deter-se.   Isso,   no momento, era por demais evidente para mim.

—   Quem enveredar pelo caminho errado — disse eu em resposta às perguntas de  meu  inquiridor  —  encontrará,  em tudo o que acontecer, uma prova da conspiração que  se  articula  contra  si.  Tudo  servirá  de  confirmação.  A  própria  respiração  estará fazendo parte do sinistro plano.

— Com que então você acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha resposta foi um convicto e profundo “Sim”.

— E não poderia controlá-la?

— Não; não poderia fazê-lo. Quem começa com medo e ódio, como principais premissas, terá de ir até o fim.

—   Você  seria  capaz  —  perguntou-me  minha  esposa  —  de  fixar  sua  atenção naquilo que o Livro tibetano dos mortos chama de Serena Luz?

Fiquei em dúvida.

—  Seria  ela  capaz  de  manter  o  mal  afastado,  caso  você  pudesse  encará-la?  — insistiu ela. — Ou será que você não poderia fitá-la?

Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse:

—  Talvez;  talvez  o  conseguisse.  Mas  só  se  houvesse  lá  alguém  que  pudesse esclarecer-me a respeito da Serena Luz. Não é possível fazer-se isso a sós. Daí a razão, creio  eu,  para  o  ritual  tibetano  —  assentar-se  alguém  ao  nosso  lado,  durante  todo  o tempo, para dizer o que vai ocorrendo.

Depois de escutar a gravação dessa parte da experiência, apanhei meu exemplar da tradução do Livro tibetano dos mortos por Evans-Wentz e o abri ao acaso: “Ó tu, que nasceste  nobre!  Não  permitas  que  tua  mente  seja  distraída”.  Esse  era  o  problema: permanecer sem distrair-se. Sem se distrair ante a recordação de pecados passados; ante a evocação de prazeres, a amarga lembrança de antigos erros e humilhações; ante todos os temores, ódios e ansiedades que, de ordinário, eclipsam a Luz. O que esses monges budistas  faziam com os  mortos  e  os  agonizantes  não poderia  ser  feito  com os insanos pelo  psiquiatra  moderno?  Que  haja  uma  voz  para  lhes  assegurar,  durante  as  horas  de vigília — e até mesmo enquanto dormem —, que, a despeito de todo o terror, de toda a perplexidade e confusão, a Realidade fundamental permanece imutável e é idêntica, em sua substância, à luz interior, mesmo à da alma mais cruelmente atormentada. Por meio de  artifícios  tais  como  gravadores,  relógios  de  controle  de  circuitos,  sistemas  de  alto-falantes,  inclusive  distribuídos  pelos  travesseiros,  seria  facílimo  fazer  com  que  os internados,  mesmo  em  casas  de  saúde  pobres  em  pessoal,  fossem  constantemente doutrinados  sobre  esse  fato  primordial.  Talvez  algumas  dessas  almas  desgarradas pudessem ser assim auxiliadas na obtenção de um certo controle sobre o universo onde foram condenados a viver e que, a um só tempo maravilhoso e aterrador, é, no entanto, permanentemente inumano, sempre totalmente incompreensível.

Algum tempo depois fui afastado do inquietante esplendor de minha cadeira de jardim. Caindo em parábolas verdes do alto de uma sebe, a folhagem da hera luzia com um   brilho   vítreo   que   lembrava   o   jade.   Logo   após,   um   arbusto   em   flor   surgiu repentinamente   em  meu   campo   visual.   Suas  flores  rubras   tinham  tanta   vida   que pareciam a ponto de falar, voltadas para cima, para o azul do céu. Tal como a cadeira sob  o  caramanchão,  elas  chamavam  demais  minha  atenção.  Desviei  o  olhar  para  as folhas e descobri um caprichoso intricado das mais delicadas luzes e sombras no verde, a pulsar misteriosamente.

Roses:
The flowers are easy to paint,
The leaves difficult. *

*[Rosas:/ É fácil pintar-lhes as flores,/ Difíceis são as folhas.]

O  haiku  de  Shiki  (que  cito  na  tradução  de  F.  H.  Blyth)  exprime,  de  modo indireto, exatamente o que então senti — a excessiva, a por demais evidente beleza das flores, contrastando com o milagre mais sutil de sua folhagem.

Saímos para a rua. Um grande automóvel azul-claro estava estacionado junto à calçada.  Ao  vê-lo,  fui  repentinamente  tomado  de  enorme  alegria.  Que  prazer,  que absurda  satisfação  comigo  mesmo  provinha  daquelas  superfícies  abauladas  do  mais luzente  esmalte!  O  homem  o  criara  à  sua  própria  imagem  (ou  melhor,  segundo  a imagem de seu personagem favorito no mundo de ficção). Ri até as lágrimas rolarem-me pelas faces.

por Aldous Huxley


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