Este texto foi lambido por 213 almas esse mês
Uma experiência psicodélica é uma jornada a novos reinos da consciência. A abrangência e o conteúdo da experiência são ilimitados, mas suas características são a transcendência de conceitos verbais, das dimensões de espaço-tempo, e do ego ou identidade. Tais experiências de consciência expandida podem ocorrer de diversas formas: privação sensorial, exercícios de ioga, meditação disciplinada, êxtases religiosos ou estéticos, ou espontaneamente. Mais recentemente elas se tornaram disponíveis para qualquer um mediante a ingestão de drogas psicodélicas como LSD, pscilocibina, mescalina, DMT, etc.
Obviamente, a droga não produz a experiência transcendental. Ela apenas age como uma chave química – ela abre a mente, liberta o sistema nevoso de seus padrões e estruturas ordinários. A natureza da experiência depende quase inteiramente do arranjo e do cenário. Arranjo refere-se à preparação do indivíduo, inclusive de sua estrutura de personalidade e do seu humor no momento. Cenário é o elemento físico – o clima, a atmosfera do ambiente; o social – sentimentos das pessoas presentes; e cultural – visões predominantes sobre aquilo que é real. É por esta razão que manuais ou guias são necessários. Sua proposta é fazer com que a pessoa seja capaz de entender as novas realidades da consciência expandida, servir como mapas rodoviários das novas zonas interiores que a ciência moderna tornou acessíveis.
Diferentes exploradores produzem mapas diferentes. Outros manuais estão para ser escritos segundo modelos diferentes – científicos, estéticos, terapêuticos. O modelo tibetano, no qual este manual é baseado, visa ensinar a pessoa a direcionar e controlar a consciência de modo a alcançar o nível de entendimento diversamente chamado de liberação, iluminação ou esclarecimento. Se o manual for lido várias vezes antes de uma sessão, e se uma pessoa de confiança estiver lá para lembrar e refrescar a memória do viajante durante a experiência, a consciência será libertada dos jogos que constituem a “personalidade” e das alucinações positivas-negativas que freqüentemente acompanham os estados de consciência expandida. O Livro Tibetano dos Mortos é chamado em sua língua própria de Bardo Thodol, que significa “Libertação pela Audição no Plano Pós-Morte.” O livro realça que a consciência livre precisa apenas ouvir e lembrar-se dos ensinamentos de forma a ser libertada.
O Livro Tibetano dos Mortos é aparentemente um livro descrevendo as experiências esperadas no momento da morte, durante um período intermediário de quarenta e nove (sete vezes sete) dias, e durante o renascimento numa outra estrutura corpórea[2]. Esta, entretanto, é apenas a armação esotérica que os budistas tibetanos usaram para encobrir seus ensinamentos místicos. A linguagem e o simbolismo dos rituais de morte do Bon, a religião tradicional do Tibete pré-budista, foram habilmente misturados com conceitos budistas. O significado esotérico, como foi interpretado neste manual, é que é a morte e o renascimento que são descritos, mas não do corpo. Lama Govinda indica isso claramente em sua introdução quando escreve: “É um livro para os vivos tanto quanto para os mortos.” O significado esotérico do livro é geralmente oculto sob várias camadas de simbolismo. Não é para o leitor médio. É para ser entendido apenas por aquele que tiver sido iniciado por um guru nas doutrinas budistas, na experiência pre-mortem-morte-renascimento. Essas doutrinas têm sido mantidas em segredo por muitos séculos. Na tradução como um texto esotérico, portanto, existem dois passos: um, a tradução do texto original para o inglês; e dois, a interpretação prática do texto para seus usos. Ao publicar esta interpretação prática para o uso em sessões de drogas psicodélicas, estamos em certo sentido rompendo com a tradição de segredo e assim contrariando os ensinamentos dos lamas.
Entretanto, este passo é justificado, já que o manual não será entendido por alguém que não tenha tido uma experiência de expansão da consciência e também porque há sinais de que os próprios lamas, depois de sua recente diáspora, desejam estender seus ensinamentos a um público mais amplo.
Seguindo o modelo tibetano, distinguimos três fases da experiência psicodélica. O primeiro período (Chikhai Bardo) é o da transcendência completa – além das palavras, além do espaço-tempo, além do self. Não há visões, nem sentido do self, nem pensamentos. Há apenas consciência pura e liberdade extasiante de quaisquer envolvimentos com jogos (e biológicos). [“Jogos” são seqüências comportamentais definidas por papeis, regras, rituais, objetivos, estratégias, valores, linguagem, lugares característicos no espaço-tempo e padrões característicos de movimento. Qualquer comportamento que não tenha estes nove fatores é um não-jogo: isto inclui reflexos fisiológicos, ações espontâneas, e consciência transcendente.] O segundo grande período envolve o self, ou jogo realidade exterior (Chonyid Bardo) – numa claridade aguda ou na forma de alucinações (aparições cármicas). O período final (Sidpa Bardo) envolve o retorno ao jogo realidade rotineiro e ao self. Para a maioria das pessoas o segundo estágio (estético ou alucinatório) é o mais longo. Para os iniciados, o primeiro estágio de iluminação dura mais. Para os despreparados, os heavy game players[3], aqueles que se agarram angustiadamente a seus egos, e para aqueles que tomam a droga num cenário não-apropriado, a luta para voltar à realidade começa cedo e normalmente dura até o fim da sessão.
Palavras são estáticas, enquanto que a experiência psicodélica é fluida e mutável. Normalmente a consciência do sujeito salta de um para outro desses três níveis com oscilações rápidas. Uma proposta deste manual é habilitar a pessoa a recuperar a transcendência do Primeiro Bardo e a evitar a permanência prolongada nos padrões alucinógenos ou de jogos ego-dominados.
As Confianças e Crenças Básicas. Você deve estar disposto a aceitar a possibilidade de que haja uma extensão ilimitada da consciência para a qual não temos palavras no momento; que a consciência possa se expandir para além do seu ego, seu self, sua identidade familiar, além das diferenças que normalmente separam as pessoas umas das outras e do mundo em torno delas.
Você deve lembrar-se de que, através da história humana, milhões fizeram essa viagem. Uns poucos (a quem chamamos místicos, santos ou budas) fizeram com que essa experiência durasse e comunicaram-na aos seus seguidores.
Você deve lembrar-se, também, de que a experiência é segura (na pior das hipóteses, você sairá da experiência como a mesma pessoa que entrou), e que todos os males que você teme são produtos desnecessários de sua mente. Se você experimentar o paraíso ou o inferno, lembre-se de que é sua mente que os está criando. Evite agarrar-se a um ou fugir do outro. Evite impor o jogo do ego à experiência.
Você deve tentar manter a fé e a confiança no potencial do seu próprio cérebro e no processo vital de bilhões de anos de idade. Com seu ego atrás de você, o cérebro pode se complicar.
Tente lembrar-se de um amigo de confiança ou de uma pessoa respeitada cujo nome sirva com guia e protetor.
Confie em sua divindade, confie em seu cérebro, confie em seus companheiros.
Em dúvida, desligue sua mente, relaxe, vá boiando rio abaixo[4].
Depois de ler este guia, a pessoa preparada deve ser capaz, logo no início da experiência, de se mover diretamente ao estado de êxtase de não-jogos e à revelação profunda. Mas se você não estiver preparado(a), ou se há jogos em volta de você a distraí-lo(a), você se verá caindo. Se isto acontecer, as instruções na Parte IV devem ajudá-lo(a) a recuperar e manter o estado de libertação.
“Libertação neste contexto não implica necessariamente (especialmente no caso o indivíduo médio) a Libertação do Nirvana, mas principalmente a libertação do ‘fluxo vital’ do ego, de tal modo a fornecer a maior consciência possível e conseqüentemente um bom renascimento. Mesmo para a pessoa experiente e eficiente, o [mesmo] processo esotérico de Transferência [Leitores interessados numa discussão mais detalhada do processo de “Transferência”, ver Ioga e Doutrinas Secretas Tibetanos, editado por W. Y. Evans-Wentz, Oxford University Press, 1958.] pode ser, de acordo com os lamas, assim utilizado para prevenir uma quebra do fluxo da corrente de consciência, do momento da ego-perda ao momento do renascimento consciente (oito horas depois). De acordo com a tradução feita pelo falecido Lama Kazi Dawa-Samdup, de um antigo manuscrito tibetano contendo indicações práticas para os estados de ego-perda, a habilidade para manter um êxtase de não-jogos durante toda a experiência é possuída apenas por pessoas treinadas em concentração mental, a tal grau de proficiência que sejam capazes de controlar todas as funções mentais e ignorar as distrações do mundo exterior.” (Evans-Wentz, p. 86, note 2)
Este manual é dividido em quatro partes. A primeira parte é introdutória. A segunda é uma descrição passo-a-passo de uma experiência psicodélica baseada diretamente no Livro Tibetano dos Mortos. A terceira parte contém sugestões práticas de como preparar e conduzir uma sessão psicodélica. A quarta parte contém passagens instrutivas adaptadas do Bardo Thodol, que podem ser lidas ao viajante durante a sessão, para facilitar o movimento da consciência.
No restante desta seção introdutória, veremos três comentários sobre o Livro tibetano dos Mortos, publicados na edição de Evans-Wentz. São a introdução pelo próprio Evans-Wentz, o distinto tradutor-editor de quatro tratados sobre misticismo tibetano; o comentário de Carl Jung, o psicanalista suíço; e pelo Lama Govinda, um iniciado numa das principais ordens budistas do Tibete.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.