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PSICO Vampirismo e Licantropia

A Sombra do Retrato de Dórian Gray

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Shirlei Massapust

Em meu artigo Os Superiores Desconhecidos, previamente publicado na Rede Vamp, pretendi demonstrar que Edward Alexander Crowley poderia não estar blefando quando escreveu no décimo oitavo capítulo do opúsculo De Arte Magica (1914) que Oscar Wilde foi um “vampiro” mais competente do que todos os que um dia pertenceram ao seu círculo social. Sabemos que Florence Balcombe rompeu um noivado de três anos com Oscar Wilde, em 1878, para aceitar a proposta de casamento de Bram Stoker que deixou anotações de próprio punho explicando como a convivência com sua esposa o inspirou a escrever o romance Drácula (1897).

Tudo isso parece tremendamente interessante até constatarmos que o próprio Oscar Wilde nunca escreveu a palavra “vampirismo”. O mais próximo que um profano apegado à literalidade das palavras pode chegar da matéria é a resposta do personagem Henry Wotton à pergunta de sua tia Lady Ágata:

— Lorde Henry, desejaria que o senhor me ensinasse a rejuvenescer.

— Pode lembrar-se de algum grande erro cometido nos seus primeiros dias, duquesa?

— Temo lembrar-me de um grande número — exclamou ela.

— Pois cometa-os de novo — disse ele, gravemente. — Para se voltar à mocidade, basta repetir as suas loucuras.[1]

Nada poderia soar mais como uma ríspida negação do vampirismo. Se isto é o pronunciamento oficial de Oscar Wilde sobre rejuvenescimento e se este homem foi o melhor vampiro do século XIX, segundo Crowley, então está tudo acabado… A menos que o autor não quisesse ser levado a sério.

Notadamente a fala supracitada é de um personagem que quer se livrar do falatório inútil duma tia velha. O grande segredo não seria revelado à toa para quem sequer seria capaz de entender. Afinal, segundo o personagem, todas as mulheres pertencem a um “sexo decorativo” que representa o triunfo da matéria sobre a inteligência, exatamente como os homens representam o triunfo da inteligência sobre a razão.

Lorde Henry Wotton é um hedonista que escolhe seus amigos por sua boa aparência, seus simples conhecidos pelo bom caráter e seus inimigos por sua boa inteligência. Inteligente e cínico demais para ser verdadeiramente amado, ele possuí o encanto de ser muito perigoso. Tem o hobby de ensinar sua filosofia do prazer aos belos e bem nascidos para que abandonem todas as “renúncias” tolamente rotuladas de virtudes, assumindo e integralizando as “rebeliões naturais” que os teólogos chamam de pecado. Quando logra êxito em convencer os outros ele usa seus discípulos como bem entende e descarta-os quando as velhas companhias não mais lhe convêm.

Havia algo de terrivelmente sedutor no exercício da influência. Nenhuma outra atividade podia comparar-se a ela. Projetar a própria alma numa forma grácil, deixá-la descansar por um instante e escutar a seguir as suas idéias repetidas como pelo eco, acrescidas de toda a música da paixão e da juventude; transportar para outro o seu temperamento como um fluido sutil ou um estranho perfume; isso era um verdadeiro gozo.[2]

O próprio personagem afirma crer que toda influência é imoral do ponto de vista científico. Gostar duma teoria e se sentir fascinado por ela são duas coisas diferentes. O objetivo do exercício da influência é gerar fascinação. O homem é uma criatura complexa com uma infinidade de facetas, que leva em si heranças estranhas de pensamentos e paixões. É um ser de múltiplas vidas e múltiplas sensações. Para desconstruir e remodelar a psique de alguém basta puxar o fio certo e preencher o espaço vago conforme sua vontade.

Influenciar uma pessoa é transmitir-lhe a nossa própria alma. Ela já não pensa com seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. As suas virtudes não são reais para ela.  Os seus pecados, se é que existem pecados, são emprestados. Ela se converte em eco de uma música alheia, em ator de um papel que não foi escrito para ela.[3]

Desta forma Oscar Wilde inicia uma critica velada, porém severa, contra a psicanálise (especialmente quando aplicada por amadores, fora do ambiente clinico, para fins doutrinários ou escusos). É evidente que a intenção de influenciar torna falacioso o argumento de que ser bom é estar em harmonia consigo mesmo “e não o ser é ver-se forçado a estar em harmonia com os outros [4]”. A isca do libertino para pescar a beleza é um discurso cheio de idéias notadamente extraídas de teorias psicanalíticas. É um tipo de lavagem cerebral planejado para fazer alguém renunciar à moral e à religião; entendendo que ambas se baseiam em temor reverencial, sendo, portanto, meros instrumentos de controle social e tolhimento da personalidade.

De acordo com os psicólogos, há momentos em que o desejo do pecado, ou do que os homens chamam de pecado, domina de tal modo a nossa natureza, que cada fibra do corpo e cada célula do cérebro parecem ser movidas por impulsos terríveis. Em tais momentos, os homens e as mulheres perdem sua liberdade e seu arbítrio. Dirigem-se como autômatos para seu fatal objetivo. O direito de escolher lhes é recusado e sua consciência está morta, ou, se ainda vive, é somente para emprestar atrativos à rebelião e encanto à desobediência. Pois todos os pecados, como sempre nos recordam os teólogos, são pecados de desobediência. Quando aquele espírito altaneiro, aquela estrela matutina do mal caiu dos céus, sua queda foi a de um rebelde.[5]

Henry Wotton ensina que é preciso curar a alma por meio dos sentidos e os sentidos por meio da alma. Assim idealizar-se-ia um novo esquema de vida que apresentasse uma filosofia sensata, princípios ordenados, e encontrasse na espiritualização dos sentidos sua mais alta realização. A finalidade da vida é o desenvolvimento próprio e a busca da beleza, o verdadeiro segredo da vida.

Não se fala somente na beleza de um corpo físico sexualmente atrativo, mas de todas as belas artes, curiosidades e luxos, perfumes, medicamentos e psicotrópicos. Tudo é estudado e experimentado com afinco. O homem deve buscar a completa realização da própria natureza vivendo sua vida plena e completamente, dando forma a todo sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a todo sonho, esquecendo as enfermidades medievais.

O hedonista supunha que a espécie humana permanecia selvagem e animalizada unicamente porque o mundo tem querido mantê-la faminta pela submissão, ou matá-la péla dor, em vez de aspirar a torná-la elemento de uma nova espiritualidade, cuja característica principal seria um instinto sutil de beleza. Um novo hedonismo que refundiria a vida e a salvaria do puritanismo ao trazer compreensão à verdadeira natureza dos sentidos.

Hoje em dia, as pessoas têm medo de si mesmas. (…) A mutilação do selvagem tem a sua trágica sobrevivência na própria renúncia que corrompe as nossas vidas. Somos castigados por nossas renúncias. Cada impulso que tentamos aniquilar germina em nossa mente e nos envenena. Pecando, o corpo se liberta do seu pecado, porque a ação é um meio de purificação. Nada resta então a não ser a lembrança de um prazer ou a volúpia de um remorso. O único meio de livrar-se de uma tentação é ceder a ela. Se lhe resistirmos, as nossas almas ficarão doentes, desejando as coisas que se proibiram a si mesmas, e, além disso, sentirão desejo por aquilo que umas leis monstruosas fizeram monstruoso e ilegal.[6]

A teoria da expurgação do desejo pela realização que haveria de levar à saciedade tinha alguns problemas. Primeiro “a única coisa que se demonstrou realmente é que o nosso porvir poderia ser igual ao nosso passado, e que o pecado que cometemos uma vez, com repugnância, cometê-lo-íamos muitas vezes mais, com satisfação”.[7] Era preciso evitar formar hábitos estereotipados abandonando sensações que apresentam um caráter “novo e delicioso” com estranha indiferença logo após satisfazer a curiosidade intelectual, pois a finalidade da teoria hedonista é a experiência passional e não os seus frutos.

O hedonista acredita na esterilidade de toda especulação intelectual, quando separada da ação e da experiência. É preciso vivenciar o pecado sem deter seu desenvolvimento intelectual pela aceitação dum credo, sistema ou vício. O segundo problema da teoria hedonista é que nem todo mundo anseia por sexo recreativo ou gostaria de compartilhar uma noite de bebedeira com os amigos. Cada experimento intenso modifica nosso conceito de intensidade e, assim como as drogas mais fracas não surtem efeito em usuários de drogas mais fortes, a busca por novidades esbarra numa dificuldade progressiva.

A curiosidade do personagem Dorian Gray pela vida parecia aumentar depois que ele começou a satisfazê-la. Mesmo variando objetos de interesse ele caiu num círculo vicioso. “Quanto mais sabia, mais desejava saber. Tinha apetites furiosos, que se tornavam mais vorazes à medida que os satisfazia [8]”.

Um único pensamento se arrastava de uma célula a outra de seu cérebro; e o desejo selvagem de viver, o mais terrível de todos os apetites humanos, excitava energicamente cada nervo trêmulo, cada fibra de seu corpo. A fealdade, que tantas vezes havia ele detestado por tornar as coisas mais reais, agora lhe parecia aceitável pela mesma razão. A feiúra era a única realidade. As disputas grosseiras, os antros repugnantes, a violência crua de uma vida desordenada, a baixeza dos ladrões e dos criminosos, tudo isso possuía mais vida, em sua intensa realidade de impressão, do que todas as formas delicadas de Arte, do que as sombras sonhadoras da Poesia.[9]

Já não havia necessidade de temer a punição de deus ou dos homens. “No mundo dos fatos comuns, nem os maus eram castigados, nem os bons recompensados. Os fortes alcançavam o êxito e o fracasso era reservado aos fracos [10]”. A sombra de Dorian Gray estava sedenta de sangue. A única forma de experimentar o gozo e encontrar a plenitude do self com sua sombra seria se tornando um serial killer e, paralelamente, um anacoreta. O primeiro homicídio foi um crime com motivação passional que ele tentou esquecer fumando ópio. O segundo resultou do fácil induzimento ao suicídio mediante chantagem dum homem que sabia demais e havia abandonado a filosofia hedonista. O terceiro resultou da meticulosa estratégia de uma mente fria e calculista para eliminar um perseguidor inidôneo. Seu sucesso foi celebrado com alegria.

O personagem Dorian Gray morre em circunstâncias inverossímeis – perfeitamente desculpáveis numa obra de ficção. – Se tivesse sobrevivido teria se tornado um anacoreta devorador de cadáveres, como sugerem pequenas pistas plantadas por Oscar Wilde para florescer oportunamente em entrelinhas visíveis somente quando diante de certos cérebros pensantes… Alias, se O Retrato de Dorian Gray (1890) tivesse uma continuação ela certamente seria muito parecida com A Vida Secreta de Laszlo, Conde Drácula (1994), uma ficção magistral de Roderick Anscombe, médico psiquiatra que leciona na Universidade de Harvard e clinica em diversos hospitais de Boston.

A imortalidade da sombra

No enredo do conto O Retrato de Dorian Gray, o pintor Basílio Hallward nutre uma paixão platônica pelo jovem modelo Dorian Gray, que habitualmente posava para ele. Henry foi igualmente atraído pela beleza de Dorian, mas logo percebeu que este jovem “não pensa nunca”. Ele estava determinado a mudar isso. Seu novo amigo não podia continuar a ser “uma bela criatura sem miolos” útil apenas para substituir as flores ausentes no inverno. No dia em que Basílio pintou seu retrato mais realístico, Henry ficou todo o tempo tagarelando ao lado do rapaz imóvel, enchendo os ouvidos com sua filosofia hedonista.

Basílio aconselhou Dorian a não prestar atenção para que não sofresse a perniciosa influência de Henry. Porém ele foi rapidamente dominado pelo carisma do hedonista, teve a consciência desperta pela primeira vez e pensou haver descoberto seu verdadeiro eu. Neste momento Henry influenciava Dorian que influenciava Basílio que tinha o foco de sua paixão e atenção sobre a tela que capturou a “alma” ou “sombra” do modelo psicanalisado (impulsionada pela corrente de afinidades vibrante no inconsciente coletivo). Finalmente, o próprio Dorian contemplou o quadro e reforçou o vínculo com uma explosão de ciúme.

Havia formulado um louco desejo de permanecer sempre jovem e de que o retrato envelhecesse; de que sua própria beleza não se maculasse nunca, e de que o rosto daquela tela suportasse o peso de suas paixões e de seus pecados; de que a imagem pintada pudesse ver-se estigmatizada com as marcas da dor e dos pensamentos, e ele pudesse conservar, apesar de tudo, a delicada louçania e encanto de sua até então consciente adolescência. Teria sido atendido o seu desejo? Tais coisas eram impossíveis. Só pensar nelas parecia-lhes monstruoso. E, não obstante, o retrato ali estava, com aquele laivo de crueldade na boca. (…) Possuía o segredo da sua vida e revelava a sua história. Ensinara-o a amar a própria beleza. Iria também ensiná-lo a odiar a própria alma? (…) Cada pecado que cometesse seria mais uma nódoa que acabaria por destruir-lhe a beleza.[11]

Este retrato se tornou o emblema visível da consciência de Dorian Gray. Era também sua sombra, no sentido psicanalítico. Seu intenso poder de causar sensações de estranhamento levou personagens a crer que a alma é uma terrível realidade. “Pode ser comprada, vendida ou trocada [12]”. E, como tudo pode acontecer em matéria de ficção, Dorian formulou o desejo de trocar sua alma pela oportunidade de ficar sempre jovem, deixando com que o retrato envelhecesse em seu lugar.[13] Isto aconteceu conforme descrito. Assim ficou demonstrado que o pensamento pode exercer influencia sobre a matéria inanimada e inorgânica da mesma forma que exerce sobre organismos vivos. Coisas exteriores a nós, destituídas de pensamento ou desejo consciente, poderiam vibrar em uníssono com nossos humores e paixões porque “o átomo atrai o átomo por um amor misterioso de estranha afinidade”.[14]

Referências:

0[1] WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Trd. Oscar Mendes. São Paulo, Abril, 1981, p 54.

[2] Obra citada, p 48.

[3] Obra citada, p 27-28.

[4] Obra citada, p 97.

[5] Obra citada, p 225-226.

[6] Obra citada, p 28.

[7] Obra citada, p 74.

[8] Obra citada, p 155.

[9] Obra citada, p 221.

[10] Obra citada, p 239.

[11] Obra citada, p 111-113.

[12] Obra citada, p 257.

[13] Obra citada, p 36.

[14] Obra citada, p 129.

 


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