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Gorgo, o Dragão do Mar Feminista Irlandês

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Texto de G. B. Marian. Traduzido por Caio Ferreira Peres.

Gorgo (1961) é um filme de kaiju (monstro gigante) britânico com vários subtextos interessantes, todos os quais parecem relevantes à deusa Taweret.

Em Gorgo (1961), dois homens chamados Sam e Joe estão viajando pelos mares britânicos em busca de ouro e outras preciosidades no fundo do oceano. Seu navio é danificado durante uma estranha erupção vulcânica que acontece no meio do mar sem motivo aparente, e eles acabam tendo que ficar em uma ilha na costa da Irlanda por alguns dias. Enquanto consertam o navio, Sam e Joe percebem que o povo da ilha parece estar escondendo algo. Bem, esse algo acaba sendo um lagarto bípede gigante com grandes nadadeiras no lugar das orelhas. Sam e Joe decidem capturar a criatura e, quando o fazem, o governo irlandês implora que eles entreguem o animal à Universidade de Dublin para pesquisa científica. Infelizmente, nossos protagonistas decidem levar o réptil para o Dorkin’s Circus, em Londres, onde ganham muito dinheiro com a pobre criatura. No entanto, a piada é para eles, pois logo descobrem que “Gorgo” (o nome que Dorkin dá à criatura, que vem das três górgonas da mitologia grega) não é o único de sua raça. Na verdade, é apenas um bebê, e sua mãe—que é significativamente maior e mais malvada—está agora a caminho de apresentar uma queixa contra toda a cidade de Londres.

Esse é praticamente todo o enredo do filme e, considerando seu ano de lançamento, estamos lidando com algo bastante previsível. Em sua maior parte, Gorgo é basicamente um remake de King Kong (1933), exceto pelo fato de seu monstro gigante ser da persuasão sauriana. No entanto, há vários aspectos que distinguem esse filme de kaiju de todos os seus contemporâneos. No nível mais óbvio, ele não é japonês, mas britânico, e oferece uma visão interessante da situação sociopolítica do Reino Unido na época. Quando Sam e Joe chegam à ilha com sua tripulação, eles procuram a ajuda dos irlandeses locais. Mas os habitantes locais só respondem a eles em gaélico, apesar de entenderem claramente o inglês. Sam e Joe também descobrem que o capitão do porto está resgatando achados arqueológicos do oceano e intimidam o cara para que ele lhes dê todo o seu saque como “pagamento” pela captura de Gorgo. Mais tarde, quando decidem vender Gorgo para o circo de Londres, eles estão efetivamente dando o dedo do meio para o governo irlandês. Isso não é uma, mas duas vezes no mesmo filme em que a Irlanda é enganada pelos anglo-saxões, que roubam dos gaélicos não apenas sua história (na forma de seus tesouros arqueológicos), mas também seu próprio dragão na vida real.

Assisti a Gorgo pela primeira vez quando tinha cinco ou seis anos de idade. Naquela época, eu já tinha assistido a muitos filmes de monstros gigantes e, na maioria deles, as pessoas “étnicas” geralmente são pessoas de cor (ou brancos e/ou japoneses com rosto negro ou marrom). Isso remonta a King Kong (1933), que infelizmente retrata os negros como selvagens que os personagens brancos poderiam facilmente explorar. Mas Gorgo foi o primeiro desses filmes que vi em que os brancos tratam outros brancos dessa forma. Ver ingleses maltratando irlandeses e animais em Gorgo foi minha introdução a temas como a hibernofobia e os problemas da Irlanda do Norte. Também adoro o filme por ter sido meu primeiro contato com a língua e a cultura gaélicas.

Mas há outro subtexto nesse filme. Há um garoto irlandês chamado Sean, e ele é o único personagem que simpatiza com os monstros no início. Ele até se esconde no navio de Sam e Joe, na esperança de libertar o Bebê Gorgo no mar. O garoto é pego, mas o que você acha que acontece depois disso? Sam e Joe decidem deixar Sean viver com eles, é isso. E sim, eu disse “com eles”. Com apenas algumas breves exceções, esses dois homens passam o filme inteiro juntos; e a linguagem corporal que usam um com o outro em casa é muito interessante. Há uma cena em que Sam e Joe estão confortando o pequeno Sean enquanto ele tenta dormir, e Joe fica na cabeceira da cama em uma pose típica de pai, enquanto Sam se senta ao lado de Sean no colchão em uma pose mais gentil e carinhosa. Depois, há outra cena em que Sam e Joe brigam por causa de um trabalhador do parque de diversões que foi morto pelo Bebê Gorgo. Sam está preocupado com a esposa e os filhos do cara, e Joe, não querendo que Sam se preocupe, promete que enviará algum dinheiro para a família. Há até uma cena em que os dois são apresentados como “Joe Ryan e seu parceiro, Sam Slade”—e, embora esse tipo de terminologia não tivesse a mesma conotação em 1961 que tem hoje, é difícil não atribuir a ela um significado contemporâneo. Também é interessante o fato de não haver uma única menina ou mulher em todo o elenco e que, quando um dos personagens adultos finalmente começa a ficar do lado de Sean para libertar o bebê Gorgo, é Sam (o pai “maternal”). Em outras palavras, é totalmente crível para mim que Sam e Joe sejam um casal, que tenham adotado Sean e que os três tenham se tornado uma família.

Sam (William Sylvester), Joe (Bill Travers), e Sean (Vincent Winter)—uma família do mesmo sexo na década de 1960?

Eu digo que Gorgo não tem mulheres no filme (além de algumas aqui ou ali entre os figurantes durante o ato final), mas há pelo menos uma mulher no filme (se não duas), que é a Mamãe Gorgo. Em nenhum momento é confirmado especificamente que ela tem um par de cromossomos sexuais XX, mas acho que podemos presumir com segurança que isso é verdade. De que outra forma podemos explicar o Bebê Gorgo? Se você está se perguntando onde pode estar o pai, há coisas como o rabo de chicote do Novo México, uma espécie de lagarto que é totalmente feminina e que se reproduz por partenogênese. Parece-me provável que o Bebê Gorgo também seja uma fêmea, já que Dorkins o nomeia em homenagem às górgonas da mitologia grega (todas elas são mulheres). Gorgo também era o nome de uma famosa rainha de Esparta que viveu e governou durante os séculos VI e V a.C. Portanto, de qualquer forma, parece que os lagartos gigantes de Gorgo são as únicas personagens femininas em todo o filme. Isso faria sentido à luz de certos mitos de combate, como o Enuma Elish, pois assim como Marduk usou sua força masculina para matar sua mãe sáuria Tiamat e criar o universo a partir de Seu cadáver, Sam e Joe também tentam criar um império multimilionário com a fêmea do dragão marinho irlandês que capturaram. Mas as coisas não vão tão bem para eles quanto para o velho Marduk, o que nos leva ao motivo pelo qual eu acho que Gorgo é algo mais do que um mero “cash-in” de King Kong.

Sempre achei o filme original King Kong, de 1933, horrível demais para assistir, porque se trata de pessoas que cometem atos de crueldade contra animais e não precisam arcar com nenhuma consequência real por isso. Embora muitos espectadores simpatizem com o macaco gigante titular, não há nenhuma indicação no próprio filme de que devemos simpatizar; Kong é apresentado como um animal grande e burro que precisa morrer para que a donzela em perigo possa viver e se casar com o herói arrojado. Nenhum dos personagens lamenta por Kong e ninguém reconhece que retirá-lo de seu ambiente natural e explorá-lo foi errado (ou, pelo menos, não até o surgimento dos remakes). Essa era a atitude geral que o público tinha em relação aos monstros gigantes até 1954, quando Ishiro Honda nos deu o Godzilla original. O monstro desse filme também tinha que morrer, mas sua morte é tratada mais como um funeral; o público é ativamente incentivado a simpatizar com ele e a considerar as consequências de toda a violência que acontece no filme. Gorgo, por outro lado, é o primeiro filme de kaiju em que os monstros não são apenas simpáticos, mas vitoriosos. Não há nada mais satisfatório do que ver a mamãe e o Bebê Gorgo nadando de volta para casa na Irlanda no final do filme, e não foi muito depois da vitória deles que Mothra, Godzilla, King Kong e a tartaruga gigante Gamera foram reimaginados como super-heróis para crianças.

Nenhum simbolismo fálico está a salvo da Mamãe Gorgo!

Portanto, o conflito nesse filme parece existir entre duas famílias diferentes do mesmo sexo: (1) uma mãe solteira e sua filha (os Gorgos) e (2) dois homens e seu filho (Sam, Joe e Sean). Nenhuma dessas duas famílias é “normal” de acordo com os padrões patriarcais “tradicionais”; no entanto, o filme nunca tenta “punir” nenhuma delas por isso. Como mencionado anteriormente, os Gorgos se reúnem e voltam para casa, vivos e felizes; mas até mesmo a família humana acaba se saindo bem no final. Eles também compartilham um arco de caráter coletivo; no início, são apenas Sam e Joe, e só querem saber de fama e dinheiro. Depois, eles adotam Sean, e Sam começa a simpatizar com os Gorgos, assim como Sean. Joe—o pai “paternal”—continua sendo um idiota durante a maior parte da história, mas depois se redime durante o ataque da Mamãe Gorgo a Londres. Ele protege Sean em meio a toda a destruição, e os dois se reúnem em segurança com Sam no final. Com base no comportamento de Joe no início do filme, seria de se esperar que esse personagem tentasse salvar a própria pele e deixasse o garoto sozinho para morrer (e depois fosse prontamente comido pelo monstro por ser um idiota). Não é o caso de Joe; ele vê a luz, escolhe o filho em vez de sua autopreservação e se esforça para ser um bom pai. Quase nunca se vê esse tipo de transição de personagem em filmes de monstros gigantes, especialmente na década de 1960, e pensar que Joe é homossexual só torna tudo mais legal.

Gorgo tem suas falhas, mas a maioria delas é do tipo que eu costumo ignorar. A escrita não é tão afiada quanto poderia ter sido; a maior parte do desenvolvimento dos personagens está restrita aos dois primeiros atos (o que tende a entediar a maioria dos espectadores), enquanto a maior parte da ação ocorre durante o último ato (momento em que o filme se esquece quase completamente de seus personagens humanos). Essas coisas realmente não me incomodam; a única crítica séria que tenho a fazer a Gorgo é o fato de que, durante os 18 minutos finais, o filme introduz subitamente um personagem repórter que narra cada detalhe do desfile da Mamãe Gorgo por Londres. Esse segmento é tão flagrantemente desnecessário que é praticamente impossível ignorá-lo. Os primeiros 60 minutos da história são fáceis de acompanhar, então por que diabos alguém achou que os últimos 18 minutos precisavam de um narrador?

Outra coisa que adoro em Gorgo é o fato de que ele me faz pensar em Taweret, a deusa hipopótamo da fertilidade. Taweret é como um monstro do caos benigno; em vez de ser morta para salvar (ou criar) o mundo, Ela mata outros monstros que ameaçam o futuro do mundo. Mamãe Gorgo é um avatar cinematográfico perfeito para Taweret, e assistir a esse filme é como ver a Grande Fêmea esmagando o patriarcado capitalista racista branco sob Seus dedos fofinhos e atarracados. Assistir a esse filme quando criança provavelmente ajudou a me colocar no comprimento de onda de Taweret, mesmo naquela época. Se você é pagão e adora animais (especialmente répteis gigantescos com orelhas de abano), aposto que vai gostar de Gorgo. Se nunca assistiu e gostaria de receber um bônus adicional, esse filme é apresentado no Episódio 9 da 9ª Temporada do Mystery Science Theater 3000.

Link para o original: https://desertofset.com/2020/07/24/gorgo/


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