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Acerte-se com o Godzilla!

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Texto de G. B. Marian. Traduzido por Caio Ferreira Peres.

Um olhar setiano em Gojira (1954) de Ishiro Honda e como o Grande G faz paralelo com Set na mitologia egípcia.

Antes da década de 1950, os filmes de criaturas eram dominados por personagens góticos, como vampiros, lobisomens e o monstro de Frankenstein. Tudo isso mudou após os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki. No auge da Guerra Fria, o Conde Drácula e o Homem Lobo não pareciam mais tão assustadores. Agora as pessoas estavam preocupadas com os efeitos da radiação atômica. Será que ela causaria mutações terríveis que assolariam a Terra (como em O Mundo em Perigo, de 1954)? Será que ela despertaria monstros pré-históricos e os levaria a buscar vingança (como em O Monstro do Mar, de 1953)? Atrairia a atenção de alienígenas que poderiam facilmente nos conquistar ou até mesmo nos destruir (como em O Monstro do Ártico, de 1951)? Essa foi a era dos “horrores atômicos”, quando as pessoas lutavam contra o lado sombrio da ciência. Em muitos desses filmes, os eventos horríveis resultam de cientistas antiéticos que ultrapassam os limites entre os mortais e os deuses. Ao perturbar o equilíbrio cósmico dessa forma, esses anti-heróis permitem que a Serpente do Caos cause estragos na Terra de várias formas. Eles são, na verdade, a descendência direta do Dr. Victor Frankenstein, que teve muito mais facilidade para se adaptar à era atômica do que qualquer um de seus colegas mais sobrenaturais.

Os tropos do subgênero “ciência maluca” ficaram muito mais claros após a Segunda Guerra Mundial. Foi absolutamente horrível que os Estados Unidos tenham lançado não uma, mas duas bombas atômicas no Japão durante a guerra. Mas, para que não nos esqueçamos, os japoneses também cometeram algumas atrocidades verdadeiramente macabras. Os voos suicidas Kamikaze; os ataques a Pearl Harbor, Malásia, Cingapura e Hong Kong; o extermínio sistemático de 30 milhões de filipinos, malaios, vietnamitas, cambojanos, indonésios e birmaneses; os massacres de civis em Nanquim, Manila e Kalagong; o uso de armas químicas, guerra biológica e experimentos humanos em civis e prisioneiros de guerra; a lista é infinita. As atrocidades do Japão Imperial rivalizam com as da Alemanha nazista e, para o bem ou para o mal, a bomba atômica foi a única coisa que as impediu. E, embora o Japão e os Estados Unidos tenham sido aliados pacíficos desde então, o Japão continua a ser assombrado pela experiência de ser bombardeado com armas nucleares.

Quando os EUA começaram a testar bombas de hidrogênio nas Ilhas Marshall durante a década de 1950, um barco de pesca japonês chamado Daigo Fukuryū Maru [N. T.: Dragão da Sorte 5] foi acidentalmente exposto à precipitação radioativa de uma das bombas explodidas. Toda a tripulação foi contaminada e sofreu náuseas, dores de cabeça e sangramento nas gengivas. O operador de rádio chefe, Aikichi Kuboyama, morreu em terrível agonia e dor, rezando para que fosse a última vítima de um armamento tão terrível. Em seguida, todo o Japão entrou em pânico, e foi então que a equipe do Toho Studios decidiu fazer um filme sobre o caos nuclear como um ser vivo. Reunindo a equipe criativa do diretor Ishiro Honda e o mago dos efeitos especiais Eiji Tsuburaya, não demorou muito para que as telas de cinema japonesas exibissem o híbrido de iguanadon/estegossauro/tiranossauro favorito de todos, o primeiro e único Godzilla (ou, como é conhecido no Japão, Gojira).

O Godzilla original, lançado em 1954, começa com uma recriação do incidente do Daigo Fukuryū Maru, em que a tripulação de um barco de pesca japonês percebe que o oceano está brilhando ao seu redor. Algo ruge sob a superfície da água, e o barco se incendeia e afunda. Alguns dos homens sobrevivem, mas quando a guarda costeira japonesa os resgata, todos os sobreviventes estão sofrendo com a doença da radiação. Pouco tempo depois, uma vila de pescadores na Ilha Odo é destruída durante uma tempestade. Um cientista chamado Kyohei Yamane (interpretado por Takashi Shimura) lidera uma investigação detalhada da ilha, apenas para descobrir que ela está sofrendo de precipitação nuclear. Todos os poços estão envenenados e o local está repleto de pegadas radioativas gigantes. Então, Godzilla aparece e todos dão uma boa olhada nele. Para a sorte deles, o Grande G está apenas passeando, sem querer causar nenhum problema, e logo volta para o mar. O Dr. Yamane e sua equipe retornam ao Japão e relatam o que descobriram ao governo, que prontamente se divide entre aqueles que acham que a história deve ser mantida em segredo (e que são, em sua maioria, homens) e aqueles que acham que devem alertar todos no país sobre o que realmente está acontecendo (e que são, em sua maioria, mulheres).

Agora, o Dr. Yamane tem uma filha adorável chamada Emiko (interpretada por Momoko Kochi), que está envolvida em um trágico triângulo amoroso. Ela está noiva de um cientista chamado Dr. Daisuke Serizawa (Akihiko Hirata), que é veterano da Segunda Guerra Mundial. Ele foi ferido na guerra, agora usa um tapa-olho e parece estar alienado de todos ao seu redor. Infelizmente para o Dr. Serizawa, Emiko se apaixonou por outro cara chamado Hideto Ogata (Akira Takarada), um capitão de navio de resgate que está envolvido na investigação do Godzilla. Mas antes que Emiko possa romper o noivado, Serizawa mostra a ela por que ele se tornou tão distante de todos. Ele a leva para o porão de sua casa e lhe mostra uma nova invenção na qual está trabalhando. Ainda não é possível ver o que o dispositivo faz, mas seja o que for, ele faz Emiko gritar e desmaiar. E quando ela sai da casa de Serizawa, é como se tivesse sido lobotomizada.

Enquanto isso, o governo implora ao Dr. Yamane que encontre uma maneira de matar o Godzilla; mas, como o próprio Yamane aponta, a criatura absorveu toda a precipitação dos testes da bomba de hidrogênio nas Ilhas Marshall. Em outras palavras, o Godzilla literalmente come, mija e caga energia atômica pura; então, como é que alguém pode matar o grandalhão? Além disso, o Dr. Yamane não quer que o Godzilla morra, mas acha que a criatura deve ser contida e estudada. Ele acha que provavelmente há todo tipo de coisa que os cientistas podem aprender com um animal que é forte o suficiente para sobreviver a uma explosão atômica. Mas o governo não dá ouvidos, apenas tenta neutralizar Godzilla antes que ele se torne um incômodo. Isso só irrita o monstro, é claro, e o Grande G acaba chegando à cidade de Tóquio para uma noite na cidade.

Quando Godzilla ataca Tóquio pela primeira vez, não há absolutamente nada de humor ou de “brega” nisso. Vemos homens sendo incendiados e gritando pela misericórdia da morte. Vemos uma mãe segurando seus filhos e gritando: “Nós estaremos com seu papai no céu muito em breve, agora!” Vemos âncoras de noticiários oferecendo suas vidas para continuar informando sobre o Godzilla para todos os ouvintes que ainda estão tentando escapar da cidade. Vemos os médicos do hospital acenando com contadores Geiger sobre crianças recém-órfãs (enquanto as crianças gritam por seus pais mortos) e vemos crianças em idade escolar cantando orações por todas as pessoas que morreram. Essas cenas se tornam ainda mais perturbadoras pelo fato de não terem sido apenas “sonhadas” por um artista de storyboard. Elas são baseadas em eventos reais que Ishiro Hondo testemunhou pessoalmente durante as consequências de Hiroshima e Nagasaki. Portanto, de certa forma, o Godzilla de 1954 não é apenas um filme de ficção científica/horror; é praticamente um documentário.

Alguns argumentaram que Godzilla é um trabalho de propaganda antiamericana; certamente, o fato de o lagarto gigante vomitar merda radioativa por toda Tóquio é realmente culpa dos Estados Unidos, certo? Mas me parece que o Grande G é, na verdade, um símbolo autocrítico da ultraviolência japonesa voltada contra si mesma. A forma como Ishiro Honda enquadra a narrativa é quase como se ele achasse que o Japão merecia ser varrido da face do planeta por um dinossauro atômico que cospe fogo. Godzilla é como um julgamento dos deuses, enviado para humilhar o Japão por todos os horríveis crimes de guerra que ele cometeu como uma potência do Eixo. E, como o filme acaba revelando, a única maneira de derrotar o monstro é criando algo ainda pior do que o que o despertou. É quando Emiko finalmente revela o que o Dr. Serizawa tem escondido em seu porão durante todo esse tempo.

Akihiko Hirata como Dr. Daisuke Serizawa.

Serizawa lutou no lado errado de uma guerra imoral. Ele vivenciou diretamente o verdadeiro mal mais do que qualquer outro personagem em todo o filme. Talvez até tenha cometido algumas atrocidades durante a guerra. Horrorizado com o que provavelmente viu (e fez) durante a guerra, ele agora é um pacifista devoto; no entanto, inventou algo chamado “O Destruidor de Oxigênio”, completamente por acidente. Esse dispositivo, de alguma forma, remove todo o oxigênio do corpo, esqueletizando instantaneamente suas vítimas. Depois de testemunharem o holocausto em Tóquio, Emiko e Ogata tentam convencer Serizawa a usar essa nova arma contra a fera. Mas Serizawa se recusa; ele teme que, se seu Destruidor de Oxigênio for descoberto, forças políticas corruptas de todo o mundo conspirarão para usá-lo como uma nova arma de guerra. E se eles, de alguma forma, o coagirem ou o enganarem para que crie mais desses dispositivos infernais? E se as armas nucleares nos deram o Godzilla, que coisa terrível o Destruidor de Oxigênio trará em seu rastro? É nesse momento que Ogata diz a frase mais assustadora de todo o filme. Ele admite que o medo de Serizawa pode se tornar realidade; em seguida, ele ressalta que o Godzilla é realidade.

Serizawa concorda em usar o Destruidor de Oxigênio, mas primeiro destrói toda a sua pesquisa para evitar que alguém construa outro. Em seguida, ele se junta a Emiko, Ogata, Yamane e toda a marinha japonesa no mar. Eles encontram o local onde o Godzilla está atualmente, e Ogata e Serizawa descem juntos até o fundo do oceano. Lá eles encontram o Godzilla descansando, em paz consigo mesmo e com o que o cerca. Para mim, essa é a parte mais perturbadora do filme, pois nos lembra que Godzilla é apenas um animal, outra vítima inocente da Segunda Guerra Mundial. Depois que Ogata retorna à superfície, Serizawa ativa o Destruidor de Oxigênio; em seguida, ele decide ficar com o Godzilla. Ele dá sua vida para levar o segredo de sua invenção para o túmulo, e sinto que ele também acha que seria injusto que Godzilla morresse sozinho. Quando Godzilla e Serizawa são esqueletizados juntos, isso nunca deixa de me fazer chorar profusamente. Godzilla é como Set em Seu papel de matador de Osíris; ele é essa força destrutiva assustadora que foi levada longe demais e que finalmente enlouqueceu. Mas Serizawa é como Set como o Campeão de Rá; ele é capaz de causar grande destruição, mas é um cara legal que quer proteger a civilização do caos. Ao morrerem juntos (durante seu primeiro e único encontro), essas duas versões de Set se unem como uma só. Normalmente, nesse tipo de filme, é uma coisa “boa” quando alguém descobre uma maneira de derrotar o monstro; mas aqui, a morte da criatura é tratada como uma tragédia e um possível ponto de partida para ainda mais violência e horror.

“Awwww! Quem é um bom dinossauro atômico?”

O Godzilla de Ishiro Honda foi um sucesso tão grande no Japão que uma empresa cinematográfica americana chamada Jewell Enterprises comprou os direitos internacionais do filme em 1956. Em seguida, adaptaram o filme para um público de língua inglesa, e isso foi muito além de apenas dublar o filme com dubladores americanos. Devido à grande diferença entre os estilos americano e japonês de contar histórias, a Jewell reestruturou totalmente o Godzilla para torná-lo mais acessível ao espectador americano médio. Foram filmadas cenas totalmente novas com Raymond Burr, que interpretou um novo personagem chamado Steve Martin (que não deve ser confundido com o comediante). Esse personagem foi então editado no filme (juntamente com alguns dublês de atores nipo-americanos), e ele foi transformado em repórter de notícias para ter uma excelente desculpa para fazer tantas perguntas aos personagens japoneses. Isso daria ao público americano um personagem com o qual eles poderiam se identificar e para o qual elementos importantes da trama poderiam ser explicados.

Para falar a verdade, a maioria dos americanos nunca teria visto Godzilla se a Jewell Enterprises não tivesse adaptado o filme para seus próprios fins dessa maneira. Em 1956, a Segunda Guerra Mundial ainda estava fresca na mente de todos, e os americanos ainda eram muito racistas contra os japoneses. Embora o filme original da Toho não seja “antiamericano” de forma alguma, o pessoal da Jewell temia que alguns espectadores pudessem interpretá-lo dessa forma. Eles queriam que o público se identificasse o máximo possível com os personagens japoneses, e não reagisse a eles com hostilidade. Além disso, a adição de Raymond Burr à mistura não ajuda em absolutamente nada a iluminar ou baratear a sequência em que Godzilla destrói Tóquio; o segmento inteiro continua tão sombrio e deprimente quanto na versão japonesa. Se não fosse pela reembalagem do filme feita pela Jewell, ninguém fora do Japão saberia da existência do Godzilla hoje. Definitivamente, não está acima das críticas e certamente é inferior à versão original japonesa, mas Godzilla: King of the Monsters ([N. T.: Godzilla: Rei dos Monstros] título americano) de Jewell ainda merece algum respeito pelo que nos proporcionou. (Além disso, você estará perdendo a experiência completa do Godzilla se assistir apenas a uma ou outra versão do filme).

No final de Godzilla, o Dr. Yamane prevê que, se as pessoas não acabarem com a corrida armamentista nuclear, outro Godzilla poderá aparecer para castigar o mundo novamente. Ele provou que estava certo menos de um ano depois, quando o muito menos impressionante Godzilla Contra Ataca foi lançado em 1955. Desde então, Godzilla apareceu em mais de 30 filmes diferentes. Um dos meus favoritos é Ghidorah: O Monstro Tricéfalo (1964), que é quando Godzilla se torna um defensor da Terra em vez de seu potencial destruidor. Um dragão espacial de três cabeças chamado King Ghidorah aparece e começa a queimar tudo com seu sopro de relâmpago amarelo. Em seguida, Mothra, uma deusa lagarta gigante, aparece e tenta fazer com que Godzilla e Rodan (um pterossauro gigante) a ajudem a dar cabo de Ghidorah. Isso leva a uma das cenas mais cativantes de todos os filmes de Godzilla, em que os três animais realmente falam entre si (enquanto são traduzidos para o público humano pelas fadas gêmeas de Mothra). Godzilla e Rodan dizem que não se importam com o que acontece com a humanidade; eles só querem ser deixados em paz. Então, Mothra vai enfrentar Ghidorah, mas acaba levando uma surra; e quando Godzilla e Rodan veem isso, ficam furiosos e começam a bater em Ghidorah como se ele lhes devesse dinheiro. É um dos maiores confrontos entre monstros já feitos!

Essa sequência é tão importante e inspiradora para mim que vou colocar uma análise de vídeo que outra pessoa fez sobre ela, só para que você possa ver alguns clipes.

A evolução de Godzilla, de monstro apocalíptico a super-herói amigável para crianças, é uma discussão fascinante por si só. Lembre-se de que no filme original de 1954, o Grande G é muito parecido com Set como o matador de Osíris. A história conta que, depois que Sua rivalidade com Osíris foi resolvida, Set foi “dominado” pelo resto dos deuses para salvá-los de Apep, a Serpente do Caos. Da mesma forma, no primeiro filme, Godzilla começa como uma aberração inocente da natureza que enlouquece e quase destrói o planeta inteiro; depois, em Ghidorah, o mundo percebe que precisa de Godzilla para nos defender de monstros ainda piores que só querem comer nosso planeta. Ghidorah é, na verdade, apenas Apep com asas, pés e duas cabeças extras, por isso, sempre que vejo Godzilla dar uma surra nele, sinto que estou assistindo a algum tipo de “peça milagrosa” setiana (com Godzilla e Rodan como Set e Hórus combativos, respectivamente, e com Mothra como Thoth, o mediador).

Desde a ascensão de Godzilla à fama, Hollywood tentou adaptá-lo para o público americano várias vezes. Em 1998, Dean Devlin e Roland Emmerich produziram esse terrível remake estrelado por Matthew Broderick. É estranho que eles tenham escolhido o nome Godzilla para o filme, considerando que ele é, na verdade, um remake (ou talvez uma paródia) de O Monstro do Mar (1953). Qualquer fã ferrenho de Godzilla lhe dirá que o filme de 1998 é uma porcaria e deve ser ignorado a todo custo; mas em 2014, o diretor Gareth Edwards tentou adaptar o Grande G para o Ocidente mais uma vez. E, embora as reações do público tenham sido muito variadas, eu mesmo fiquei bastante satisfeito com o resultado. Surpreendentemente, não se trata de um remake do original de 1954, mas sim de uma homenagem a todas as continuações que fazem de Godzilla o herói. A continuação de 2019 de Michael Dougherty, Godzilla II: Rei dos Monstros (nomeado em homenagem à reedição de Raymond Burr de 1956), foi ainda melhor em minha opinião, já que é mais ou menos um remake de Ghidorah: O Monstro Tricéfalo (com Mothra e Rodan formando uma equipe com Godzilla). Há até uma cena que homenageia a sequência do Destruidor de Oxigênio de 1954, e isso me faz chorar como um bebê sempre que a vejo. Esses novos filmes do Godzilla podem não ser do agrado de todos, mas eu os aprovo de todo o coração e mal posso esperar para ver mais deles.

Link para o original: https://desertofset.com/2020/06/17/godzilla/

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