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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Na história religiosa da raça ariana na Europa, o culto das árvores teve um papel importante. Nada podia ser mais natural, pois, no alvorecer da história, a Europa estava coberta de imensas florestas primevas, onde as clareiras esparsas devem ter parecido pequenas ilhas num oceano verde. Germanos interrogados por César haviam viajado pela floresta Negra sem jamais ter sabido onde ela acabava.
No reinado de Henrique II, os cidadãos de Londres ainda caçavam o javali na floresta de Hamps-tead. Autores clássicos fazem muitas referências a florestas italianas hoje desaparecidas. Na Grécia, belos bosques de pinho, carvalho e outras árvores ainda perduram, em certas áreas, mas são simples fragmentos das florestas que cobriam grandes extensões na Antiguidade e que, em época mais remota, se poderiam ter estendido por toda a península grega, de costa a costa.
Entre os celtas, o culto do carvalho pelos druidas é conhecido de todos, e a palavra antiga que usavam para santuário parece ser idêntica, na sua origem, ao latim nemus (“bosque”) que ainda sobrevive no nome de Nemi. Em Uppsala, a velha capital religiosa da Suécia, havia um bosque sagrado em que todas as árvores eram consideradas divinas. Os eslavos pagãos cultuavam árvores e bosques. Os lituanos só se converteram ao cristianismo em fins do século XIV, e, até a data de sua conversão, o culto das árvores tinha lugar destacado entre eles. Alguns lituanos reverenciavam os carvalhos notáveis e outras árvores de grande copa, das quais recebiam respostas oraculares. Outros mantinham bosques sagrados próximo de suas aldeias ou de suas casas, onde até mesmo que- brar um galho teria sido um pecado. Provas da existência generalizada do culto à árvore na Grécia e na Itália antigas são numerosas. No santuário de Esculápio em Cós, por exemplo, era proibido cortar os ciprestes, sob pena de uma multa de mil dracmas. Mas talvez em nenhuma outra parte do mundo antigo essa forma milenar de religião tenha sido melhor preservada do que no próprio coração da grande metrópole. No Fórum, o agitado centro da vida romana, a figueira sagrada de Rómulo era adorada até os dias do império, e, quando seu tronco murchou, a consternação espalhou-se pela cidade.
Mas é necessário examinar em detalhe as noções em que o culto das árvores e das plantas se baseia. Para o selvagem, o mundo em geral é dotado de alma, e árvores e plantas não constituem exceção à regra. O selvagem acha que possuem uma alma como a sua, e trata-as como se assim fosse. Um vegetariano da Antiguidade, Porfírio, escreve: “Eles dizem que o homem primitivo levava uma existência infeliz, pois a sua superstição não se limitava aos animais, estendia-se às plantas.
Por que seria o abate de um boi ou de uma ovelha um crime maior do que a derrubada de um abeto ou de um carvalho, já que uma alma existe também nessas árvores?” Da mesma forma, os índios hidatsas da América do Norte acreditam que todos os objetos naturais têm seu espírito, ou, melhor dizendo, a sua sombra. Um certo respeito a essas sombras é necessário, mas não na mesma proporção para todas. Por exemplo, a sombra do choupo, a mais alta árvore do vale do Alto Missouri, era considerada como dotada de uma inteligência própria que, se abordada da maneira adequada, podia ajudar certos empreendimentos dos índios; mas as sombras dos arbustos e matos eram de pouca importância.
Se as árvores têm alma, necessariamente são sensíveis, e cortá-las é uma operação cirúrgica delicada, que deve ser feita com a maior con- sideração possível pelos sentimentos das árvores que sofrem, pois, sem esse cuidado, podem voltar-se contra o operador inábil e dilacerá-lo. Quando um carvalho é derrubado, “solta gritos ou gemidos que podem ser ouvidos a mais de um quilômetro de distância, como se fosse o gênio da árvore que se lamentasse. E. Wyld, Esq., ouviu-os várias vezes”. Observações semelhantes foram registradas em muitas outras partes do mundo.
Da idéia de que as árvores e plantas são seres animados resulta, naturalmente, serem elas tratadas como macho e fêmea, que podem ser casados de uma maneira real, e não apenas figurativa ou poética. Os antigos conheciam a diferença entre as tamareiras macho e fêmea e as fertilizavam artificialmente, espalhando o pólen da árvore macho sobre as flores da árvore fêmea. Essa fertilização era feita na primavera. Entre os pagãos de Aram, o mês durante o qual as tamareiras eram fertilizadas tinha o nome de mês da tâmara, quando então se celebrava a festa de casamento de todos os deuses e deusas. Nas Molucas, quando o craveiro-da-índia floresce, é tratado como uma mulher grávida. Não se pode fazer barulho à sua volta, passar junto dele com luz ou fogo acesos durante a noite, aproximar-se com o chapéu à cabeça — todos devem se descobrir na sua presença. Essas precauções são observadas para que a árvore não se assuste e deixe de dar frutos, ou os faça cair demasiado cedo, como o parto prematuro de uma mulher grá- vida que tenha levado um susto.
Na Coréia, as almas daqueles que morrem de peste ou à beira da estrada e das mulheres que morrem de parto instalam-se invariavelmente nas árvores. A esses espíritos fazem-se ofertas de bolos, vinho e carne de porco, sobre montes de pedras empilhadas sob a árvore. Na China é costume, desde tempos imemoriais, plantar árvores sobre sepulturas para fortalecer a alma do morto e salvar seu corpo da decomposição; e como o cipreste e o pinheiro, sempre verdes, são considerados como dotados de maior vitalidade do que outras árvores, são, de preferência, escolhidos para esse objetivo. Assim, as árvores plantadas sobre as sepulturas são por vezes identificadas com as almas dos mortos.
Na maioria desses casos, se não em todos, considera-se o espírito como incorporado à árvore, animando-a, e sofrendo e morrendo com ela. Mas, de acordo com outra opinião, provavelmente posterior, a árvore não é o corpo mas simplesmente a morada do espírito da árvore, que pode deixá-la e voltar para ela à vontade.
Não são poucas as cerimônias observadas quando do abate de uma árvore assombrada que se baseiam na crença de que os espíritos têm o poder de deixar a árvore quando quiserem ou em caso de necessidade. Um oficial francês em missão na região habitada pelos primitivos mois da Indochina testemunhou uma dessas cerimônias propiciatórias, realizadas pelos nativos antes de derrubar uma árvore. Narra ele: “Aconteceu por vezes, durante nosso levantamento geodésico, sermos obrigados a cortar uma árvore que interrompia o campo de visão de nossos instrumentos. Uma cena muito interessante precedia o ato de destruição. O ‘capataz’ de nossos carregadores mois se aproximava da árvore condenada e lhe dizia mais ou menos o seguinte: ‘Espírito que fizeste desta árvore o teu lar, nós te adoramos e viemos pedir tua misericórdia. O mandarim branco, nosso implacável senhor, cujas ordens não podemos deixar de obedecer, mandou-nos derrubar a tua habitação, tarefa que nos enche de tristeza e só realizamos a contragosto. Con-juro-te a partir imediatamente deste lugar e procurar uma nova residência, e imploro-te que esqueças o mal que te fizemos, pois não somos donos de nós mesmos'”.
Portanto, a árvore é considerada, em certos casos, como o corpo e, em outros, apenas como a casa do espírito que nela se instala; e, quando lemos sobre árvores sagradas que não podem ser cortadas por serem a morada de espíritos, nem sempre é possível dizer com certeza de que maneira a presença do espírito nas árvores é concebida.
Poderes benéficos dos espíritos das árvores
Quando uma árvore passa a ser vista não mais como o corpo do espírito que a habita, mas simplesmente como a sua morada, que pode abandonar quando quiser, registra-se um avanço importante no pensamento religioso: o animismo está se transformando em politeísmo. Em outras palavras, em lugar de considerar cada árvore como um ser vivo e consciente, o homem passa a ver nela simplesmente uma massa sem vida, inerte, ocupada durante um período mais longo ou mais curto por um ser sobrenatural que, estando em condições de passar livremente de árvore para árvore, goza de um certo direito de posse ou senhorio sobre elas e, deixando de ser a alma da árvore, passa a ser um deus da floresta. Tão logo o espírito da árvore se desliga, assim, de cada árvore em particular, começa a modificar a sua forma e a assumir o corpo de um homem, em virtude de uma tendência geral do pensamento primitivo de dar a todos os seres espirituais abstratos uma imagem humana. Desse modo, na arte clássica, as divindades da floresta são re- tratadas sob forma humana, sendo o seu caráter silvestre indicado por um ramo ou algum outro símbolo igualmente óbvio. Mas essa modificação não afeta o caráter essencial do espírito da árvore. Os poderes que exercia como alma incorporada à árvore continua a tê-los como deus das árvores.
Acredita-se que as árvores, ou os seus espíritos, proporcionem a chuva e o sol. Quando o missionário Jerônimo de Praga procurou convencer os pagãos lituanos a derrubar seus bosques sagrados, numerosas mulheres cercaram o príncipe da Lituânia para impedir que o fizesse, dizendo que, com as matas, ele estava destruindo a casa do deus do qual costumavam obter chuva e sol. Os mundaris, de Assa, acham que, se uma árvore do bosque sagrado é derrubada, os deuses silvestres demonstram seu descontentamento sustando a chuva.
Da mesma forma, os espíritos das árvores fazem com que as plantações cresçam. Entre os mundaris, toda aldeia tem o seu bosque sagrado, e “as divindades do bosque são responsáveis pelas colheitas, recebem honrarias especiais em todas as grandes festas agrícolas”. Os negros da Costa do Ouro têm o hábito de sacrificar ao pé de certas árvores altas e acham que, se uma delas for derrubada, todos os frutos da terra perecerão. No norte da Índia, a Emblica officinalis é uma árvore sagrada. No dia 11 do mês de falgun (fevereiro) são feitas oferendas ao pé dessas árvores: uma fita vermelha ou amarela é atada à volta de seus troncos e orações lhes são dirigidas pela fertilidade das mulheres, dos animais e da terra. Na cidade de Qua, perto da velha Calabar, havia uma palmeira que assegurava a concepção a qualquer mulher estéril que comesse um de seus frutos. Na Europa, a árvore de maio, ou mastro enfeitado de flores e fitas da festa da primavera a 1.° de maio, tem ao que se supõe, poderes semelhantes em relação às mulheres e animais. Mas na Europa parece que a influência da árvore, do galho ou do ramo, é antes protetora do que geradora — serve menos para encher os úberes das vacas do que para impedir que sejam esgotados pelas bruxas que voam montadas em vassouras ou forcados, na véspera do 1.° de maio (a famosa Noite de Walpurgis ou de Santa Valburga ou Valpúrgia) e roubam o leite das vacas.
Resquícios do culto das árvores na Europa moderna
Pelo exame que acabamos de fazer das quali- dades benéficas comumente atribuídas aos espí- ritos das árvores, é fácil compreender por que costumes como o da árvore de maio ou o do mastro de 1.° de maio se generalizaram tanto e têm papel tão destacado nas festas populares dos camponeses europeus. Em muitas partes da Europa, na primavera ou no princípio do verão, ou mesmo no dia do solsticio de verão, era e ainda é costume ir passear nos bosques.
cortar uma árvore e levá-la de volta para a aldeia, onde é erguida em meio à alegria geral. Ou então cortam-se ramos na floresta que são pregados em todas as casas. A intenção desses costumes é levar para a aldeia, e para cada casa, as bênçãos que o espírito das árvores tem o poder de conceder. Daí o costume que existe em certos lugares de plantar uma árvore de maio à frente de cada porta, ou de carregar a árvore de maio da aldeia de porta em porta para que todos os lares possam receber seu quinhão de bênçãos. Ao que parece, um arco enguirlandado de ramos de sorveira e malme-queres-do-brejo e que tem suspensas dentro dele duas bolas ainda é carregado em procissão, a 1.° de maio, pelos habitantes das aldeias de partes da Irlanda. As bolas, por vezes cobertas de papel dourado e prateado, teriam representado originalmente o sol e a lua. Em Corfu, no dia 1.° de maio, as crianças saem pelas ruas e campos cantando canções da primavera. Os meninos levam pequenos ciprestes enfeitados de fitas, flores e dos frutos da estação. Recebem um copo de vinho em cada casa. As meninas levam ramalhetes; uma delas veste-se como um anjo, com asas douradas, e espalha flores. Até hoje, mastros de maio, adornados de flores e fitas, são levantados no primeiro dia do mês em todas as aldeias da alegre Provença. Sob eles, os jovens se divertem e os velhos descansam.
O objetivo desse costume, muito generalizado na Europa, era atrair o frutificante espírito da vegetação, recém-desperto pela primavera. Entre os eslavos da Caríntia, no dia de São Jorge (23 de abril), os jovens enfeitam com grinaldas e guirlandas uma árvore derrubada na véspera, que é levada em procissão, acompanhada de música e de alegres aclamações. A principal figura da procissão é o Jorge Verde, um rapaz vestido da cabeça aos pés com ramos verdes de bétula. Ao término das cerimônias, o Jorge Verde, ou uma imagem dele. é jogado na água. O objetivo do rapaz que representa o Jorge Verde é sair de dentro de sua fantasia de folhas e colocar em seu lugar um boneco com tanta habilidade que ninguém perceba a troca. Em muitos lugares, porém, o próprio rapaz que desempenha esse papel é atirado num rio ou lago, com a intenção expressa de assegurar, com isso, que a chuva torne os campos verdes no verão. Em alguns lugares o gado é coroado e retirado dos currais ao som de uma canção:
“O Jorge Verde trazemos, Acompanhamos o Jorge Verde; Que ele alimente bem nosso rebanho, Senão, nós o jogamos na água”.
Vemos que os mesmos poderes de fazer chover e de tornar o gado prolífico atribuídos ao espírito da árvore quando este nela está incorporado são-Ihe também atribuídos mesmo que o espírito da árvore esteja representado por um homem vivo.
Nas procissões da primavera, esse tipo de espírito da vegetação é, com freqüência, representado ao mesmo tempo pela árvore de maio e por um homem vestido de folhas verdes ou de flores ou por uma moça adornada do mesmo modo. Esse mascarado não era considerado como uma imagem, mas sim como um representante real do espírito da vegetação.
Muitas vezes a pessoa vestida de folhas que representa o espírito da vegetação é conhecida como o rei ou a rainha; assim, por exemplo, ele ou ela é chamado ou chamada de rei de maio, rei de Pentecostes, rainha de maio, e assim por diante. Esses títulos significam que o espírito incorporado na vegetação é um governante, cujo poder criador é amplo e profundo. O espírito da vegetação é ainda representado, em alguns casos, por um noivo e uma noiva. Também aqui manifesta-se o paralelismo entre a representação antropomórfica e a representação vegetal do espírito da árvore, pois já vimos que as árvores são, por vezes, casadas entre si. Nas proximidades de Briançon (no Delfinado), no dia
1.° de maio, os rapazes envolvem em folhas verdes um de seus companheiros abandonado pela namorada. Ele se deita e finge dormir. Em seguida, uma moça que gosta dele, e quer desposá-lo, vem despertá-lo e, erguendo-o, oferece-lhe seu braço e uma bandeira. Vão então para a taberna, onde o par dá início ao baile. Mas devem casar-se dentro de um ano, ou passam a ser tratados como velhos solteirões, privados da companhia dos outros jovens. O rapaz é chamado de noivo do mês de maio (le dancé du moís de mai). Na taberna, ele retira sua roupa de folhas, com as quais, de mistura com flores, sua companheira faz um ramo, usando-o no peito no dia seguinte, quando voltam à taberna.
Muitas vezes, o casamento do espírito da vegetação na primavera, embora não representado diretamente, fica implícito pelo fato de ser dado à representante humana do espírito o nome de “noiva”, e de ser ela vestida com roupas e véu de noiva. Assim, em certas aldeias de Altmark, na festa de Pentecostes, enquanto os rapazes saem pelas ruas carregando uma árvore de maio ou levando um jovem vestido de folhas e flores, as moças levam uma noiva de maio, vestida como noiva e com um grande ramalhete no cabelo. Vão de casa em casa, e a noiva canta uma canção na qual pede um presente e diz aos moradores de cada casa que, se lhe derem alguma coisa, também eles terão o que comer durante todo o ano, mas, se nada lhe derem, nada terão.
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