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Por Cláudio Crow Quintino.
Poucos animais gozam de um papel tão importante nos mitos de um ovo quanto o Corvo entre os celtas. Presente nos nomes de deidades, animais guardiões de heróis ou espíritos do outro mundo, os corvos surgem nas lendas celtas da Irlanda, da Grã-Bretanha e do continente. Abaixo, alguns elementos interessantes sobre os corvos celtas.
Batalhas e Morte
A associação dos corvos com deidades guerreiras não é casual: grandes observadores da natureza, os celtas perceberam que essas aves sempre surgiam após as batalhas para se banquetearem nos cadáveres dos que tombaram em combate.
Na Gália, uma inscrição na moderna região de Haute Savoie traz o nome de uma deusa chamada Cathubodua: as partículas formadoras desse nome são facilmente identificadas: Cath é ‘batalha’, e bodua/Bodva é ‘corvo’, de onde seu nome significar, literalmente, Corvo de Batalha. Estas mesmas raízes são encontradas na Irlanda no nome da deusa Badbh Catha, uma figura sinistra que incita os guerreiros à batalha. Ao lado de Morríghan (também amplamente identificada com o Corvo) e Macha, Badbh forma a tríade de deusas guerreiras conhecidas.
Com o passar do tempo e após a chegada do cristianismo à Irlanda, muitos deuses celtas foram absorvidos pela nova religião ou reduzidos em estatura. Com Badbh ocorreu este último caso: a imagem da Badhbh chaointe, ou “corvo lamentador”, ecoa a outrora grandiosa deidade Badbh como anunciadora da morte. Essa fascinante personagem surge em alguns relatos irlandeses como uma mulher que, através de seu pranto, anuncia morte ou tragédia a uma família, de forma semelhante à mais conhecida bean-sídhe (banshee). A pequena vila de Lisbabe no Condado de Kerry deriva seu nome do gaélico para “fortaleza de Badbh” – uma referência às ruínas de uma fortaleza tida como morada da deusa Badbh.
Nas lendas irlandesas do Ciclo do Ulster, a deusa Morríghan (‘Grande Rainha’) surge diversas vezes na forma de corvo – a mais conhecida quando pousa no ombro do herói Cuchulainn mortalmente ferido para anunciar sua morte. Antes disso, Cuchulainn já havia tido outros contatos com corvos: num deles, ele destrói uma revoada de corvos malignos e banha suas mãos em seu sangue – vestígios de um antigo ritual?
O famoso “Elmo de Ciumesti” (Romênia) é um de muitos objetos de batalha de origem celta que retratam o Corvo. Podemos imaginar o efeito psicológico sobre os inimigos que a visão de um guerreiro celta furioso vindo em sua direção encimado por um elmo com um corvo metálico a bater as asas!
As deidades celtas costumam ser descritas como ambíguas e de caráter volátil – nada mais natural, numa cultura em que não existem os utópicos conceitos de “Bem Absoluto” ou seu contraponto negativo. Talvez isso explique o fato de que, numa batalha travada entre as legiões romanas comandadas por Valerius e guerreiros celtas um corvo ter atacado o comandante celta vazando-lhe os olhos e permitindo a vitória do general romano que, dali por diante, passou a ser conhecido como Valerius Corvus.
Já na lenda galesa “O Sonho de Rhonabwy”, os corvos surgem em batalha na forma de aves mágicas que, não importa quão gravemente feridas, voltam à vida e continuam atacando os guerreiros liderados por Arthur. Ainda na literatura galesa, no Segundo Ramo do Mabinogi a figura central é Bendigeidvran, ou “Brân o Abençoado” – o nome Brân significa literalmente ‘corvo’. O nome de sua irmã, Branwen, significa “Corvo Branco” ou “Corvo Sagrado”: com efeito, a lenda de Branwen faz dela um símbolo da Soberania que deve ser respeitada por quem a desposa – na lenda, o Rei da Irlanda – e que traz a ruína aos que a desrespeitam.
A sobrevivência do mito de Brân no inconsciente coletivo dos britânicos pode ser atestada no folclore associado à Torre de Londres: segundo a lenda, é ali que Brân instrui seus companheiros a enterrar sua cabeça, para que seu espírito continue a proteger a ilha britânica. Atualmente, é costume dizer que enquanto corvos habitarem a Torre de Londres, a Grã-Bretanha estará protegida de invasores.
Soberania e Riqueza
Assim como suas “irmãs” Badbh e Morríghan, a deusa Macha está intimamente associada à soberania da terra. Nada mais natural, numa sociedade guerreira como a celta irlandesa, que a Soberania – a personificação feminina do poder sobre o reino e os súditos – esteja diretamente associada à guerra e à vitória. Apesar de mais intimamente associada ao cavalo (representação simbólica da Soberania), Macha também assume, nalgumas lendas, a forma de Corvo.
As lendas de Macha, aliás, são indispensáveis para quem deseja compreender mais a fundo o real simbolismo do corvo nas lendas celtas.
Originalmente uma mulher sedutora que traz prosperidade a seu amante, Macha rebela-se quando ele lhe falta com o respeito, abandonando-o com seus filhos e deixando-o à míngua. É, obviamente, uma deusa associada à fartura e à soberania da terra, que deve ser desposada, amada e honrada para que traga riqueza.
A correlação entre as três Mórrígna e a Soberania é um bom lembrete para aqueles que propõem leituras superficiais dos mitos celtas: para além da evidente correlação das Mórrigna com batalhas esconde-se seu dom mais importante, que é a fartura e a prosperidade do reino. Prova inequívoca disso é a existência de outro trio divino de deusas: Banba, Fótla e Ériu são três irmãs, todas as três encarnações da Soberania das terras irlandesas. Essas três irmãs são filhas de Ernmas, uma deusa da qual sabemos pouco. Não há de ser acaso que Ernmas é mãe, de acordo com as lendas, também de Badbh, Macha e Morríghan.
Para a Alma Celta, tudo no universo pode ser explicado em termos de micro- e macrocosmos, ou seja: o que vale para um indivíduo vale também para o todo, o que explica o pequeno também explica o grande. Se o Corvo está associado ao bem estar e à prosperidade do reino através das deusas da Soberania, o mesmo vale para o bem estar e a prosperidade do lar – o “pequeno reino” individual de cada um de nós.
Na Gália, esses são os atributos da deusa Nantosuelta, cuja iconografia costuma apresentar a imagem de uma mulher (a própria deusa) dentro de uma casa e na companhia de um Corvo. A mesma associação do corvo com a fartura pode ser encontrada na estátua do deus anônimo de Moux, França, na qual essa deidade aparece acompanhada de um cão e traz em uma das mãos frutos – a riqueza da terra – e tem em cada ombro um Corvo. Autores modernos especulam que trata-se de um deus da colheita, caso em que os corvos podem se referir aos poderes ctônicos da fertilidade da terra – mensageiros do outro mundo que nos trazem a fartura.
Assim como diversas outras culturas contemporâneas, a sociedade celta da Idade do Ferro era caracterizada pela guerra. A própria estrutura social embasava-se na escolha do mais valoroso guerreiro como o líder da tribo e muitos dos combates intertribais tinham como função definir essa liderança e aumentar a riqueza da comunidade.
Nas lendas irlandesas, Lugh, o comandante dos deuses Tuatha de Danann na mítica Batalha de Moytura, assume sua posição de líder praticamente ‘usurpando’ a liderança. A ligação entre o Lugh irlandês e o Lugus gaulês é óbvia – e as habilidades de Lugh nos mitos irlandeses em usurpar a posição de comando pode explicar por que os romanos associaram o Lugus gaulês ao seu deus Mercúrio, ‘padroeiro’ do comércio e também do furto – em última análise, por mais que injusta e indesejável, apenas outra forma de comércio.
Os Corvos são conhecidos por seu fascínio por objetos brilhantes – vidro, metais, moedas – que ‘furtam’ para decorar seus ninhos. Sabendo que as moedas são a forma mais conhecida de comércio, não causa estranheza, então, que o corvo surja em moedas celtas que trazem em uma de suas faces a imagem de um enorme corvo montado a cavalo e com um pão ou bolo no bico.
Como tudo no universo celta, os simbolismos se entrelaçam e se complementam: o tamanho descomunal do corvo em relação ao cavalo indica tratar-se de um ser divino, que traz em seu bico a fartura – o pão ou bolo, fruto da terra. O cavalo e suas implicações militares e de Soberania retoma o tema de que é através da guerra que a sociedade celta se mantinha próspera. Lugh/Lugus, portanto, é um deus associado primordialmente à luz – como prova seu nome – e também à riqueza da terra, ao comando militar e ao comércio – seja este o comércio propriamente dito, pautado na troca de valores – moedas e bens – seja através da pilhagem, tão comum na sociedade celta da Antiguidade. Não por acaso, na lenda irlandesa “O Gavião de Achill”, Lugh é mencionado ao lado de corvos.
O Outro Mundo
As escavações no sítio arqueológico de Jordan Hill, na Inglaterra, revelam que aquele local abrigara um santuário em tempos celto-romanos. Em seu interior, foram encontrados diversos ossos de corvos, sepultados cada um com uma moeda e separados por lajes. É curioso que este sítio date do século V, quando aquela região da Grã-Bretanha já se havia cristianizado – mais uma prova da sobrevivência dos costumes celtas. O simbolismo da moeda remete à imagem do “Balseiro”, aquele que, nas tradições pagãs de diversas culturas, é responsável pela travessia das almas para o Outro Mundo. Nada mais adequado do que ter essa travessia assistida por Corvo.
Até mesmo nas lendas cristãs da Irlanda o Corvo está ligado ao Outro Mundo – claro, de forma não tão positiva. A negativação da imagem do Corvo pelo cristianismo pode ser atestada através da lenda de Cornú, uma grande ave negra que vive no Purgatório de São Patrício. Segundo a lenda, Cornú era originalmente um demônio que foi enviado por Patrício ao Purgatório – um aspecto do Outro Mundo – na forma de um corvo.
Essa ligação entre Corvos e o Outro Mundo é fortalecida pelo fato de que ossos dessa ave são comumente encontrados junto aos aliecerces de estruturas comunais por toda a Gália e Grã-Bretanha. Talvez sejam ali depositados como forma de honrar os espíritos da terra – nas palavras da escritora Miranda J. Green, “os corvos podem estar associados a fossos por um simbolismo ctônico: os postes ritualísticos penetram no subsolo formando uma linha de comunicação entre os vivos e os mortos, a terra e os poderes do mundo inferior. Os corvos, com sua plumagem negra e seu hábito de se alimentar de corpos mortos, eram claramente percebidos como mensageiros do Outro Mundo”, o que torna óbvio outro tema comumente associado ao Corvo nas lendas celtas:
A Profecia
Por sua íntima ligação com o Outro Mundo – domínio dos espíritos e dos mortos – era de se esperar que os Corvos tivessem associações com as artes proféticas e oraculares.
Em ao menos dois eventos, a profecia trazida pelo Corvo fala de amores – ainda que trágicos: nas lendas irlandesas, a bela Deidre dos Infortúnios tem a visão do homem por quem se apaixonará ao observar um corvo que se alimenta do sangue que corre de um bezerro morto sobre a neve.
A cena é por ela interpretada como um portento sobre seu amor ideal: “de cabelos negros como o corvo, com as faces alvas como a neve e os lábios vermelhos como o sangue”. Essa mesma tríade de cores (preto-branco-vermelho) surge também no mito galês de Peredur, que ao vê-las na imagem de um corvo a devorar um pato sobre a neve identifica as características de sua amada: cabelos negros, pele branca e bochechas avermelhadas.
Na Irlanda, o nobre guerreiro irlandês Lugh Lamfotha já mencionado acima é avisado por corvos de que seus inimigos estão se aproximando, o que lhe permite preparar-se melhor para resistir ao ataque dos temíveis Fomoire. Já na narrativa “A Destruição da Pousada de Da Derga”, Badbh aparece na forma de um corvo e também de uma anciã trajando negro que profetiza a morte do rei Conaire.
Ao relatar o ataque das legiões romanas ao centro druídico de Mona (Anglesey), na Grã-Bretanha, o escritor romano Tácito descreve druidesas trajando vestes negras e lançando maldições sobre os legionários romanos – as vestes negras podem ser uma alusão ao corvo como criatura ligada tanto à batalha quanto à magia.
A associação entre Corvo e profecia é duradoura: mesmo em tempos recentes, no século XVII, o folclore inglês mencionava um corvo profético que poderia ser visitado por seus ‘clientes’.
Noutro relato ancestral, é a deusa Morríghan – tão intimamente associada ao Corvo – que comunica ao Dagda, na véspera da grande batalha, o desfecho do conflito. E ao final da Grande Batalha, Morríghan volta a desfilar seus dons proféticos através de seus famosos versos:
“Após a vitória em batalha e depois que a matança foi limpa, a Morríghan, filha de Ernmas, passou a anunciar a batalha e a grande vitória ali ocorrida aos grandes montes reais da Irlanda e às hostes divinas, aos seus rios principais e aos estuários. E eis porque Badbh relata ainda grandes feitos. “Trazes notícias?”, todos lha perguntavam”.
“Paz até o Paraíso,
Paraíso na Terra,
Terra sob o Paraíso,
Força em cada um
Uma taça bem cheia
Cheia de mel,
Abundância de hidromel.
Verão em inverno…
Paz até o Paraíso…”
Ela também profetizou sobre o fim do mundo, antevendo cada maldade que então ocorreria, e cada pestilência e cada vingança, e entoou o seguinte poema:
“Não verei um mundo
Que me agrade:
Verão sem frutos,
Gado sem leite,
Mulheres sem modéstia,
Homens sem valor.
Conquistas sem realeza…
Bosques sem mastros,
Mar sem vida…
Julgamentos falsos de homens velhos,
Precedentes falsos de juristas,
Cada homem um traidor.
Cada filho um saqueador,
O filho irá à cama de seu pai,
O pai irá à cama de seu filho.
Cada um o cunhado de seu irmão.
Ninguém procurará esposa fora de casa…
Um tempo maligno,
Filho a enganar o pai,
Filha a enganar…”
Texto revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.
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