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Marco Antonio de Carvalho
Avalon é a terra mágica onde viviam os heróis dos antigos celtas, povo que habitou algumas regiões da Inglaterra, Escócia, Irlanda, País de Gales e França, antes da invasão romana há quase dois milênios. Para Avalon iam os grandes heróis celtas, assim como para o Olimpo grego, o Valhala viking, o Paraíso cristão e a Morená de certas lendas brasileiras.
Mas a semelhança entre esses locais acaba aí: Avalon faz parte de uma religião feminina, muito anterior ao cristianismo, na qual as mulheres eram as grandes representantes da divindade, uma deusa. Assim, representam essa religião o caldeirão, a terra, o útero, a natureza – símbolos receptivos e femininos -, e não a cruz, símbolo masculino, fálico, penetrante, conquistador.
Essa distinção surge como tema principal e atravessa as mais de mil páginas distribuídas em quatro volumes que constituem “As Brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley.
O que Bradley retrata nesse livro — que está repleto de emoção, aventura, política e erotismo — é um dos períodos cruciais da história ocidental. Naquele momento, uma religião que via a natureza como Mãe de tudo — e, por isso, sequer poderia pensar em um conceito como o do pecado — foi substituída por outra, o cristianismo. A nova era trouxe uma religião masculina, intelectual, na qual a representação da divindade se faz através de um ser masculino; a mulher é considerada a fonte do pecado e propriedade do homem; e a humanidade é vista como centro do universo.
Bradley fala de Artur, dos cavaleiros da Távola Redonda, do druida Merlin, da rainha Guinevere, de Lancelote – mas tudo através da visão dos personagens femininos. E é especialmente destacada Morgana, uma sacerdotisa da antiga religião que luta toda a sua vida para evitar que o mundo à sua volta seja tomado por uma crença preconceituosa, que propaga que a mulher e a natureza são as fontes do Mal.
Através das páginas do livro, pode-se notar que os diálogos e a ação ali mostrados discutem principalmente a diferença entre a visão masculina do mundo, imposta pelos romanos e pelo cristianismo, e a visão de Morgana, para quem a humanidade faz parte do mundo, desse planeta, do Todo. Assim, ela acredita que é preciso conhecer e respeitar as Leis da Natureza.
O mais interessante no livro de Bradley não é o texto em si, mas as reflexões e conclusões às quais se pode chegar a partir da leitura. “As Brumas de Avalon” mostra o alicerce do mundo que hoje vivemos, ou seja, o momento em que o mundo antigo foi invadido pelos conceitos e preconceitos da civilização judaico-cristã, que hoje se espalham por praticamente toda a Terra.
No livro, a fada Morgana previa o que realmente ocorreu: o princípio feminino, a contemplação, o receber, o carinho, tudo isso foi perseguido e exilado e o que vale, há séculos, é a conquista, a vitória, a dominação, o poder.
Morgana sabia que, se o cristianismo se tornasse dominante, o feminino que está em cada um de nós, homens e mulheres, teria de se esconder em algum ponto do nosso corpo e comportamento e lá permanecer adormecido, quieto, silencioso.
Assim, não é absolutamente de se estranhar que, há séculos, mulheres e homens sensíveis — esses, chamados com desprezo de femininos — sejam perseguidos e massacrados diariamente, seja literal ou simbolicamente. Afinal, se para o cristão — e, mais tarde, o islamita — a mulher é culpada de tudo o que ocorre de mal no mundo, por que ter respeito ou complacência para com ela? A mulher, parecem dizer esses homens, merece tudo que se fizer contra ela.
Como fada, bruxa, vidente, sacerdotisa, mulher de ação e política, Morgana previa esse mundo massacrante no qual o princípio feminino não importa, ou, antes ainda, deve ser escondido, encoberto, se possível morto e enterrado: esta é a realidade que vivemos hoje.
O que são os pequenos e grandes assassinatos diários, as guerras, a busca do poder, a retórica dos políticos, a intelectualização sem freios, a perseguição a toda emoção e intuição, a propaganda a favor de toda e qualquer conquista (de preferência, as supérfluas), a violência contra mulheres, crianças e homens pacíficos? Nada mais do que o império do masculino. Em contrapartida, onde está o companheirismo, o carinho, o silêncio, o esforço comum, o compartilhar?
O mais curioso e trágico — porque ninguém presta atenção nisso — é que, apesar de todo o falatório dos políticos, jornais diários, televisão e especialistas no assunto, jamais se ouve dizer uma só palavra sobre a violência que nasce com a própria cultura religiosa e política na qual vivemos.
É difícil conceber algo mais violento e repressivo do que as instituições religiosas do Ocidente — o judaísmo, o cristianismo, o islamismo — ou o Estado moderno. Ainda assim, religiosos e políticos profissionais teimam em afirmar que é preciso investir mais na chamada segurança e contra os “bandidos”.
Maniqueístas, políticos e religiosos nada falam sobre a violência da produção a qualquer preço, da educação oficial que transforma crianças em consumidores, da propaganda que dopa a todos, da tentativa de transformar seres humanos apenas em cidadãos e eleitores. Claro, é mais fácil dizer que tudo que existe de mal no mundo e no Brasil em especial é causado por bandidos ou terroristas. Já foi por causa dos comunistas. Um dia será culpa dos capitalistas. Ou dos escroques.
Ou, quem sabe, por causa das flores? Na Alemanha, durante um tempo, a responsabilidade foi dos judeus.
Como bons demagogos, políticos e religiosos sabem — e quanto mais inteligentes, melhor usam a retórica e mais perigosos são — que o homem ocidental é treinado para ver em tudo o Bem e o Mal, a esperar uma solução externa e a afirmar que “não tem culpa de nada”: o responsável é sempre o outro, nunca ele mesmo.
Não que Morgana tenha previsto fatos semelhantes, mas na sua visão de bruxa e fada sabia que, a partir da quantidade de preconceitos que o povo romano — bélico, conquistador e politiqueiro — começava a espalhar pelo mundo, o resultado não poderia mesmo ser muito diferente desse que aí está hoje. “Talvez padre Columba se tivesse tornado um sacerdote do Cristo porque nenhum colégio de druidas aceitaria um homem tão estúpido” — o comentário de Morgana sobre o primeiro sacerdote católico que conheceu retrata um outro fato que, infelizmente, ainda persiste nos países católicos.
Apesar da separação entre Igreja e Estado, ainda hoje luta-se pela manutenção das rédeas sobre todos os homens deste planeta. Nos países católicos, a figura do sacerdote permanece intocável, a não ser ideologicamente, isto é, quando algum religioso ousa pensar politicamente. Fora isso, o sacerdote é tratado como um semideus, e parte-se do princípio de que deve ser ouvido sempre e tem contribuições profundas e inesperadas a dar sobre todo e qualquer tema.
Ora, acreditar que sacerdotes, seja de que religião for, são profundos e complexos analistas da vida humana e pedir sua palavra a todo momento é um grande preconceito. Seria o mesmo que solicitar a médicos que analisem a construção de uma ponte; a dentistas, que discursem sobre meteorologia; ou a advogados, que falem sobre a descoberta de um novo quasar. Não, não temos nada contra as análises de médicos, dentistas ou advogados; a questão é saber por que apenas religiosos devem ter espaço para falar — e, às vezes, proibir — sobre isso ou aquilo.
Sabemos todos que, hoje em dia, muitos profissionais mal conhecem a sua própria especialização. Da mesma forma, esperar que sacerdotes examinem com profundidade e isenção cada gesto humano — do sexo à política, das pesquisas parapsicológicas ao planejamento familiar, da arqueologia aos filmes que devem ou não ser liberados — é acreditar que esses homens são superiores ao comum dos mortais, o que em absoluto não é verdade, por mais ungidos que possam ser.
Os políticos profissionais desempenham o mesmo papel: são chamados a opinar sobre tudo (lembremos que a opinião é apenas um ponto de vista, e não busca necessariamente a verdade). Assim, a vida de todos nós está nas mãos de homens cujo sonho é a autoridade, o poder, a divisão de toda a humanidade, a conquista — e, para isso, usam sua inteligência da forma mais mesquinha.
Talvez seja este o momento de se perguntar: tudo isso não é resultado da visão masculina e racionalista do mundo? De um lado, observamos tal visão dominando o mundo, em todas as vozes e comportamentos; vemos o princípio masculino levado ao paroxismo da cegueira, inclusive de forma especial em mulheres – como, por exemplo, na vida urbana atual, na qual todos se comportam como conquistadores brutais e insensíveis. Por outro lado, descobrimos, aqui e ali, sinais que comprovam que, mansamente, o princípio feminino está retornando.
Abramos os olhos: o que são o movimento ecológico, o pacifista, a desobediência civil? O que são os festivais de rock, a recusa a servir ao Exército, a fuga ao trabalho escravizante – ainda que bem pago -, o não à competição profissional?
Há poucas décadas seria considerado inadmissível um comportamento como o de alguns homens da atualidade, que se recusam a prestar o serviço militar da maneira usual, ou seja, pegando em armas e aprendendo a matar. Em vez disso, eles propõem o serviço militar prestado em escolas, plantando nos campos ou atendendo a feridos e doentes em hospitais.
Mais ainda: há alguns anos, seria absurdo pensar que um homem não admitisse tornar-se um herói, que não quisesse matar o inimigo de plantão daquele momento – sempre criados pelos governos – como fez o pugilista Muhammad Ali em 1967.
Ali provavelmente entendeu que, com sua retórica, políticos e militares transformam um ato desumano e torpe como a guerra em motivo de orgulho para homens e mulheres. Manipulando aqueles que se submetem, o Sistema oferece medalhas em troca da vida de homens que ainda acreditam que o governo A é diferente do governo B, que o partido X é superior ao Y. Ou ainda: será que há mesmo tanta diferença entre políticos capitalistas e comunistas? Se desaparecessem todos com sua parafernália de propaganda, será que não viveríamos em paz e em irmandade? Há mesmo tanta diferença entre um militar brasileiro e um inglês? Ou entre o governo americano e o soviético?
A questão não é bizantina: somente através do intelecto e da retórica será possível demonstrar a superioridade de um partido sobre outro, de um político sobre outro, de uma religião sobre outra. Emocionalmente, através da intuição, é impossível comprovar se é preferível estar sob as ordens desse ou daquele homem. Ou seja, somente olhando para o mundo, para a vida e para os seres humanos de uma forma masculina, é possível acreditar na necessidade de um debate imbecilizante como a discussão diária sobre política.
Ao se olhar para o mundo, a vida e os seres humanos de uma forma global – holística, como propõe Fritjof Capra -, sabendo-se que somos todos parte do universo, é impossível levar a sério tais discussões. Como quer o princípio feminino, fazemos parte do Todo, mas não somos tudo. E, por sermos parte do Todo, só mesmo as grandes ilusões e seus manipuladores nos dividem.
Basta prestar atenção: vivemos um tempo em que toda uma cultura religiosa cede o seu posto. Estamos mais uma vez entre a cruz e o caldeirão. Mais que nunca, o masculino torna-se ainda mais agressivo, violento, duro, repressor. Muita e muita dor ainda está por vir, mas o tempo do homem racional chega ao seu fim. Graças às deusas.
Alimente sua alma com mais:

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Uma resposta em “Entre a Cruz e o Caldeirão: O Princípio Feminino em ‘As Brumas de Avalon'””
Inomináveis Saudações!
Excelentíssima reflexão aqui acerca do Feminino, que muitos confundem com o Feminismo e o Femismo. É realizador ler um texto assim baseado no meu livro favorito, pelo qual tenho um carinho bem especial porque foi um presente de minha saudosa mãe. Tanto o texto nele, quanto tudo que pressagia, discute, evoca e invoca tem uma atmosfera atemporal. A luta do Antigo contra o Novo, que quebrou o encontro maior do Ser Humano com o Natural, desequilibrou tudo e modelou este decadente mundo contemporâneo no qual nós nos encontramos.
O Sagrado Feminino e O Sagrado Masculino precisam agir em conjunto, mas o predomínio atual das características negativas do segundo, que nada de Sagrado possui devido aos males que causa, atrapalha ainda o alcance do Equilíbrio. Ao final do livro, Morgana Viu que o Antigo, de certa maneira, sobrevivia na opressora Religião que acabou por predominar. As Sementes do Feminino ainda estão em tudo, retornando aos poucos ao seu lugar de direito, resistindo aos que querem manter o mundo como ele está hoje. E esse Retorno, a meu ver, não pode deixar de considerar aquele Equilíbrio com o Masculino, no que este possui de evolutivo e produtivo.
Excelente este vosso texto, Marco Antonio de Carvalho, sua abordagem aqui traduziu o momento atual e a crescente tensão no ar que, em mim, causa um sufoco, como se algo a qualquer momento fosse explodir. Tuas palavras apontam um caminho e são, ao mesmo tempo, um alerta chamando a todos que puderem Ler de verdade para uma jornada dentro de si em busca do Natural e Real ao som das Vozes das Deusas fertilizando cada Ser que Delas se aproxima para Mais Ser.