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Bodes expiatórios humanos na Antiguidade clássica

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

O bode expiatório humano na Roma antiga

Estamos agora preparados para observar o cos- tume do bode expiatório humano na Antiguidade clássica. Todos os anos, no dia 14 de março, um homem vestido de peles era levado em procissão pelas ruas de Roma, espancado com longas varas brancas e expulso da cidade. Era chamado de Mamúrio Vetúrio, isto é, “o velho Marte”, e, como a cerimônia era realizada no dia anterior à primeira lua cheia do antigo ano romano (que começava a 1.° de março), o homem vestido de peles deve ter representado o Marte do ano passado, que era expulso ao início de um novo ano. Ora, Marte era originalmente não um deus da guerra, mas da vegetação. Era a Marte que o camponês romano orava pedindo prosperidade para sua plantação e suas  vinhas,        suas     árvores        frutíferas        e  seus bosques; era a Marte que o colégio sacerdotal dos irmãos Arvais. cuja função era sacrificar em favor do crescimento das plantações, dirigia quase que exclusivamente as suas preces, e era a Marte que um       cavalo    era acrificado        em       outubro   para assegurar uma colheita abundante. Além disso, era    a    Marte,  sob       o  seu título de  “Marte  das florestas”   (Mars   silvanus),    que    os  agricultores ofereciam  sacrifícios        pelo     bem-estar  de      seus rebanhos. Na cerimônia romana de expulsão, o representante do deus parece ter sido tratado não só como  uma  divindade  da  vegetação,  mas também como um bode expiatório. Sua expulsão implica isso, pois não há razão pela qual o deus da vegetação deveria ser, nessa qualidade, expulso da cidade. Mas seria outra a situação se ele fosse também um bode expiatório — seria então necessário expulsá-lo para além dos limites da cidade para que ele pudesse levar para outras terras a sua carga de sofrimentos. E, de fato, Mamúrio Vetúrio, ao que parece, era expulso para a terra dos oscos, inimigos de Roma.

Os golpes com os quais o “velho Marte” era expulso da cidade eram, ao que tudo indica, administrados pelos sacerdotes dançarinos de Marte, os sálios. Assim, a 14 de março de cada ano Roma testemunhava o curioso espetáculo da encarnação humana de um deus expulsa, pelos próprios sacerdotes desse deus, a pauladas, da cidade. O rito torna-se pelo menos inteligível se aceitarmos a teoria de que o homem espancado e expulso representava a desgastada divindade da vegetação que tinha de ser substituída por uma divindade jovem e fresca, ao início de um novo ano. Os sacerdotes dançarinos do deus ganharam o nome de sálios pelos saltos ou danças que lhes cabia executar como uma cerimônia religiosa solene, todos os anos, no Comitium, o centro da vida política romana. Duas vezes por ano, em março, mês da primavera, e em outubro, mês do outono, eles cumpriam esse dever sagrado; e, ao fazê-lo, invocavam Saturno, o deus romano da semeadura. Como os romanos semeavam o cereal tanto na primavera como no outono, e, até hoje, na Europa, os camponeses supersticiosos costu- mam dançar e saltar na primavera com o objetivo de fazer com que as plantações cresçam bastante, podemos conjeturar que os saltos e danças realizados pelos sálios, os sacerdotes do antigo deus italiano da vegetação, destinavam-se igualmente a intensificar o crescimento do cereal graças à magia homeopática ou imitativa. Da mesma forma, “os nativos de Aracan dançam para tornar propícios os espíritos que, na sua crença, presidem à semeadura e à colheita. Há épocas definidas para isso, e podemos dizer que, aos seus olhos, isso é, como era, um ato religioso”. Outro povo que dançava para conseguir boas colheitas eram os índios tarahumaras do México. As duas principais danças desses índios, a rutuburi e a yumari, lhes teriam sido ensinadas pelo peru e pelo veado, respectivamente. São dançadas por vários homens e mulheres (os dois sexos ficam separados um do outro durante a dança), enquanto o xamã canta e sacode sua maraca. Mas “não é necessário um grupo muito grande para orar aos deuses através da dança. Por vezes a família dança sozinha, o pai ensinando aos filhos. Quando realizam o trabalho agrícola, os índios muitas vezes escolhem um homem para dançar a yumari perto da casa, enquanto outros fazem os trabalhos nos campos. É curioso ver um homem sozinho realizando o seu exercício de devoção ao som de sua maraca, diante de uma casa aparentemente deserta. O solitário fiel está cumprindo sua parte do trabalho geral, atraindo a chuva fertiliza-dora e afastando as desgraças, enquanto o resto da família e seus amigos plantam, capinam, limpam ou colhem. À noitinha, quando retornam dos campos, podem juntar-se ao dançarino solitário por algum tempo, mas quase sempre ele continua sozinho, dançando toda a noite e cantando até ficar rouco. Os índios disseram-me que esse é o trabalho mais can- sativo, e mesmo exaustivo, para eles. O culto solitário também é observado pelos que vão caçar veados ou esquilos para uma festa comunal: cada caçador dança a yumari sozinho em frente de sua casa durante duas horas para garantir o sucesso da caçada. Ao separar o cereal para brotar, para que se possa preparar o tesvino, o dono da casa dança durante algum tempo para que o cereal possa brotar bem”. Outra dança faz com que cresçam o capim e o cogumelo e multiplica veados e coelhos; de outra, ainda, espera-se que tenha o efeito de juntar as nuvens do norte e do sul para que se choquem e desçam como chuva.

Vimos que, em muitas partes da Alemanha, da Áustria e da França, os camponeses ainda estão, ou estavam até recentemente, habituados a dançar e dar saltos para fazer crescer as plantações. Esses saltos e danças são por vezes executados pelos dançarinos imediatamente antes ou depois da semeadura; muitas vezes, porém, são executados num determinado dia do ano, que, em certos lugares, é o Dia de Reis (6 de janeiro) ou a Festa da Candelária (2 de fevereiro) ou a Noite de Walpurgis, ou seja, a véspera do 1.° de Maio, o Dia da Primavera. Mas, ao que tudo indica, a época preferida para essas cerimônias é o último dia do Carnaval, ou seja, a Terça-Feira Gorda. Nesses casos, os saltos e danças são realizados por todos em sua própria intenção, isto é, todos pulam e dançam alegremente para que suas plantações de cereais ou de linho venham a crescer bastante. Por vezes, porém, na Europa moderna, tal como na Roma antiga (se estamos certos), o dever de dançar para que as colheitas progredissem era atribuído a grupos de homens que desempenhavam tais funções em benefício de toda a comunidade.

Quanto a essas mascaradas e desfiles, tais como eram, ou ainda são, celebrados na Europa moderna, podemos dizer em geral que, originalmente, sua finalidade parece ter sido a de estimular o crescimento da vegetação na primavera e afugentar as influências demoníacas, ou outras, que, de acordo com a crença, se poderiam ter acumulado no inverno ou no ano precedente. Esses dois motivos de estímulo e de expulsão, fundidos e talvez mesmo confundidos, parecem explicar os estranhos costumes dos mascarados: o grande alarido que fazem e os golpes desfechados contra inimigos invisíveis ou contra as pessoas visíveis e concretas de seus semelhantes. Nesse último caso, os golpes poderiam servir como meio de libertar, pela força, os que estão sendo golpeados por demônios ou forças malignas que a eles se apegam invisíveis.

Aplicando essas conclusões ao costume romano de expulsar o Mamúrio Vetúrio, ou o velho Marte, todos os anos, por ocasião da primavera, podemos dizer que elas reforçam a teoria que vê nesse velho Marte a divindade desgastada da vegetação expulsa seja para dar lugar a uma personificação mais jovem e mais vigorosa da vida primaveril, seja, talvez, para favorecer o retorno da mesma divindade, revigorada e renovada pelo tratamento a que foi submetida. Na medida em que se supunha que o velho Marte levava consigo as debilidades acumuladas e outros males do ano anterior, assim também serviria ele como um bode expiatório público, como a efígie no costume eslavônio de “levar embora a Morte”, que parece não só representar o espirito da vegetação do ano anterior, mas também servir como o bode expiatório que leva consigo uma pesada carga de sofrimento, de infelicidade e de morte.

O bode expiatório humano na Grécia antiga

Na Grécia antiga, também há registros do uso de bodes expiatórios humanos. Na cidade em que nasceu Plutarco, Queronéia, uma cerimónia desse tipo era realizada pelo principal magistrado, na sede do governo e por todo chefe de família, em sua casa: era a chamada “expulsão da fome”. Um escravo era açoitado com varas de agnus castus e posto na rua com as palavras: “Fora com a fome, e que entrem a riqueza e a saúde”. Quando Plutarco ocupou o cargo de principal magistrado de sua cidade,               realizou    essa    cerimónia     na    sede    do governo e registrou a discussão a que o costume deu origem posteriormente.

Entre os poderes que devem ser respeitados estão os espíritos dos mortos, porque eles ainda podem afetar os vivos, para o bem ou para o mal. Porpa, funcionário real, e sua mulher são mostrados aqui, depois da morte, recebendo presentes de seus filhos vivos. Caixa de madeira egípcia, c. 2580 a.C. Gulbenkian Museum of Oriental Art, Durham.

Mas na Grécia civilizada o costume do bode expiatório assumiu formas mais sombrias do que o inocente rito presidido pelo amável e pio Plutarco. Sempre que Marselha, uma das mais movimentadas e brilhantes das colônias gregas, era assolada por uma peste, um homem das classes mais pobres costumava oferecer-se como bode expiatório. Durante todo um ano ele era mantido às expensas públicas, sendo alimentado da melhor maneira possível. Ao término desse prazo, era vestido de roupas sacramentais, adornado com ramos sagrados e levado por toda a cidade, enquanto eram ditas orações para que todos os males do povo pudessem cair sobre sua cabeça. Era então lançado para fora da cidade ou apedrejado até a morte, pelo povo, fora das muralhas. Os atenienses mantinham regularmente um certo número de pessoas degradadas e inúteis às expensas públicas e, quando ocorria uma ca- lamidade como a peste, a seca ou a fome, sacrificavam dois desses párias como bodes expiatórios. Uma das vítimas era sacrificada para os homens, e a outra, para as mulheres. Eram levadas em procissão pela cidade e, em seguida, mortas. Ao que tudo indica, eram lapidadas fora da cidade.

Mas esses sacrifícios não se limitavam a ocasiões extraordinárias de calamidade pública: todos os anos, durante a Targélia, festa celebrada em maio, duas vítimas, uma para os homens e outra para as mulheres, eram levadas para fora da cidade e lapidadas até a morte. A cidade de Abdera, na Trácia, era publicamente purificada uma vez por ano, e um dos seus habitantes, especialmente designado, era apedrejado até a morte como bode expiatório ou como sacrifício peia vida de todos os outros; seis dias antes de sua execução, era excomungado, “para que somente ele arcasse com os pecados de todos”.

Tal como praticado pelos gregos da Ásia Menor no século VI a.C., o costume do bode expiatório era o seguinte: quando uma cidade sofria de peste, fome ou qualquer outra calamidade pública, uma pessoa feia ou deformada era escolhida para assumir os males que afligiam a comunidade. Era levada a um lugar adequado, onde figos secos, um pão de cevada e queijo lhe eram dados. Comia-os. Em seguida, era espancada várias vezes nos órgãos genitais com cebola albarrã e ramos de figueira silvestre e outras plantas, enquanto as flautas executavam determinada música. Posteriormente, era queimada numa fogueira de madeira de árvores da floresta e suas cinzas eram lançadas ao mar. Costume semelhante parece ter sido celebrado anualmente pelos gregos asiáticos durante a Targélia.

No ritual que acabamos de descrever, o espancamento da vítima com cebola albarrã e ramos de figueira silvestre não podia ter o objetivo de agravar-lhe os sofrimentos, pois, se assim fosse, qualquer outro gênero de vara poderia ser usado. Os antigos atribuíam às al-barrãs o poder mágico de evitar influências maléficas e, dessa forma, penduravam-nas às portas de suas casas e as utilizavam em ritos de purificação.

Assim, o objetivo de açoitar o bode expiatório nos órgãos genitais com cebolas albarrãs, etc, deve ter sido o de liberar as suas energias reprodutivas de qualquer restrição ou encantamento que sobre elas tivesse sido lançado por um agente demoníaco ou maligno, e, como a Targélia, durante a qual ele era anualmente sacrificado, estava entre as primeiras festas da colheita, realizada em maio, devemos nele reconhecer um representante do criador e fecundante deus da vegetação. O representante do deus era imolado anualmente com o objetivo, que já indicamos, de manter o perene vigor da vida divina sem permitir que fosse prejudicado pela fraqueza da idade. Ora, antes de consumar o sacrifício, não seria absurdo estimular sua capacidade reprodutiva para que ela se pudesse transmitir, em pleno vigor, ao seu sucessor, o novo deus ou nova personificação do velho deus, que, segundo se acreditava, substituía imediatamente o deus imolado. Um raciocínio semelhante levaria a um tratamento semelhante do bode expiatório em ocasiões especiais, como uma seca ou fome.

Portanto, o espancamento das vítimas humanas na Targélia grega é explicado, muito naturalmente, como um sortilégio para aumentar as energias reprodutivas  de  homens  ou  mulheres,  seja comunicando-lhes a produtividade das plantas e dos ramos, seja deles eliminando as influências maléficas. Essa interpretação é confirmada pela observação de que havia duas vítimas que representavam os dois sexos, substituindo uma delas os homens em geral, e a outra, as mulheres. A época do ano em que a cerimônia era realizada, ou seja, a da colheita do cereal, harmoniza-se com a teoria de que o rito tinha uma significação agrícola.

Se tais considerações forem justas, devemos concluir que, ao que tudo indica, embora as vítimas humanas da Targélia certamente pareçam, na época clássica posterior, ter figurado, sobretudo, como bodes expiatórios públicos, que levavam consigo os pecados, infelicidades e sofrimentos de todo o povo, numa época anterior podem ter sido consideradas como personificações da vegetação, talvez do cereal, mas particularmente das figueiras, e que o es- pancamento que recebiam e a morte que tinham visavam, primordialmente, a estimular e refrescar os poderes da vegetação, que então começavam a declinar sob o calor tórrido do verão grego.

A interpretação aqui dada ao bode expiatório grego, se correta, elimina a objeção que poderia, sem ela, ter sido levantada contra o principal argumento deste livro. À teoria de que o sacerdote de Arícia era morto como representante do espírito do bosque, poder-se-ia ter contraposto o argumento de que esse costume não encontra analogia na Antiguidade clássica. Mas apresentamos  agora  razões  para  sustentar  a suposição de que o ser humano que era, periódica e ocasionalmente, morto pelos gregos asiáticos era tratado em geral como uma personificação de uma divindade da vegetação. Provavelmente, as pessoas que os atenienses separavam para serem sacrificadas eram tratadas da mesma maneira, como divinas. Não importa o fato de terem sido párias sociais. Na visão primitiva, um homem não era escolhido para ser porta-voz ou personificação de um deus por suas elevadas qualidades morais ou por sua posição social. A chama divina desce igualmente sobre os bons e os maus, os grandes e os pequenos. Se, portanto, os gregos civilizados da Ásia e de Atenas sacrificavam habitualmente homens aos quais consideravam como deuses encarnados, não pode haver nenhuma improbabilidade inerente à suposição de que, no alvorecer da história, um costume semelhante fosse observado pelos latinos semibárbaros do bosque de Arícia.


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