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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Falamos o bastante, no último capítulo, sobre as concepções primitivas da alma e dos perigos a que ela está exposta. Tais concepções não se limitam a um povo ou país; encontram-se, com variações de detalhes, em todo o mundo, e sobrevivem na Europa moderna. Crenças tão arraigadas e generalizadas devem ter contri- buído, necessariamente, para dar forma ao molde no qual se forjou a realeza antiga. Pois, se todas as pessoas se davam a tanto trabalho para salvar sua alma de perigos que a ameaçavam de tantos lados, é evidente que muito mais bem guardado deveria estar aquele de cuja vida dependiam o bem-estar e mesmo a existência de todo o povo; preservá-lo era, portanto, do interesse de todos. Devemos esperar, desse modo, que a vida dos reis seja protegida por um sistema de precauções ou salvaguardas ainda mais numerosas e minuciosas do que as que eram adotadas, nas sociedades primitivas, por todos os homens, para a proteção de sua própria alma. Na verdade, a vida do reis antigos era regulada, como já vimos e iremos ver mais detalhadamente adiante, por um código de regras muito estrito. Não será legítimo, então, conjeturar que essas regras são, na verdade, as próprias salvaguardas e precauções que deveríamos esperar que fossem adotadas para a proteção da vida do rei? Um exame dessas regras confirma a suposição, pois mostra que algumas delas, observadas pelos reis, são idênticas às observadas pelas pessoas comuns para a proteção de suas almas. E mesmo entre as regras que parecem peculiares ao rei, muitas, se não todas, explicam-se mais facilmente pela hipótese de serem apenas salvaguardas ou proteções à vida do rei.
Como a finalidade dos tabus reais é isolar o rei de todas as fontes de perigo, seu efeito geral é forçá-lo a viver num estado de reclusão mais ou menos completa, dado o número e o rigor das regras que tem de observar. Ora, de todas as fontes de perigo, nenhuma é mais temida pelo selvagem do que a magia e a feitiçaria, e ele desconfia que todos os estrangeiros praticam essas artes negras. Proteger-se contra a influência prejudicial exercida voluntária ou involuntariamente pelos estranhos é, portanto, um ditame elementar da prudência do selvagem. Por isso, antes de permitir que os estranhos penetrem num distrito, ou pelo menos antes de permitir que se misturem livremente com os habitantes, certas cerimônias são realizadas com freqüência pelos nativos com o objetivo de desarmar os forasteiros de seus poderes mágicos, de neutralizar a influência perniciosa que acreditam emanar deles, ou de desinfetar, por assim dizer, a atmosfera contaminada que os cerca. Assim, quando os embaixadores enviados por Justino II, imperador do Oriente, para concluir a paz com os turcos chegaram ao seu destino, foram recebidos por xamãs, que os submeteram a uma purificação cerimonial com o objetivo de exorcizar todas as influências prejudiciais. Tendo depositado os valores levados pelos embaixa- dores num lugar aberto, esses magos circularam à volta deles com ramos e incenso em chamas, ao mesmo tempo em que sacudiam um sino e batiam um tamborim, resfolegando e caindo em estado de transe, em seus esforços para afastar as forças do mal. Depois disso, purificaram os próprios embaixadores, fazendo-os passar entre as chamas. Na ilha de Na-numea, no Pacífico sul, os estrangeiros vindos de navios ou procedentes de outras ilhas não se podiam comunicar com o povo até que todos eles, ou alguns representantes seus, tivessem sido levados a cada um dos quatro templos da ilha, e orações houvessem sido feitas para que o deus evitasse qualquer enfermidade ou traição que os estrangeiros eventualmente trouxessem consigo. Oferendas de carne eram também depositadas nos altares com acompanhamento de canções e danças em honra do deus. Enquanto se realizavam essas cerimônias, todos os habitantes, com exceção dos sacerdotes e seus assistentes, se mantinham escondidos.
O medo de visitantes estranhos é, com fre- qüência, mútuo. Ao penetrar numa terra des- conhecida, o selvagem sente que está pisando terreno encantado e toma medidas para se proteger contra os demônios que o habitam e contra as artes mágicas de seu povo. Assim, quando chegam a uma terra estranha, os maoris da Nova Zelândia realizam uma cerimônia chamada uruura-whenua: “é uma cerimônia realizada pela pessoa que pela primeira vez sobe uma montanha, atravessa um lago ou entra num distrito nunca atravessado antes. A palavra significa ‘entrar ou tornar-se da terra’. Trata-se de uma oferenda aos espíritos da terra estranha. Realiza-se geralmente junto de uma árvore ou rocha situada no caminho percorrido para chegar ao distrito. Toda pessoa, ao passar por esses lugares pela primeira vez, arranca um ramo ou um pedaço de samambaia e o joga na base da pedra ou da árvore, repetindo ao mesmo tempo uma curta invocação aos espíritos da terra. Depois de passar, não deve virar para olhar para a árvore, pois isso seria de mau agouro”.
Além disso, acredita-se que o homem que fez uma viagem pode ter contraído uma doença mágica dos estranhos com os quais esteve em contato. Por isso, ao voltar à sua localidade, antes de ser readmitido na sociedade de sua tribo e de seus amigos, ele tem de ser subme- tido a certas cerimônias purificadoras. Conta-se a história de um índio navajo que, depois de prolongadas viagens, voltou ao seu povo. Quando chegou à vista de sua casa, os amigos fizeram com que parasse e lhe disseram que não se aproximasse até que eles tivessem ido buscar um xamã. Quando este chegou, “o viajante que retornava foi submetido a várias cerimônias, lavado dos pés à cabeça, e secado com fubá — é assim que os navajos tratam os que voltam do cativeiro em outra tribo, para que todas as substâncias e influências estranhas possam ser removidas. Depois de ter sido purificado dessa forma e de ter entrado em casa, é que seus parentes o abraçaram e choraram com ele”.
Quando são tomadas precauções como estas em defesa do povo em geral e contra a influência maligna supostamente exercida pelos estranhos, não é de surpreender que medidas especiais sejam adotadas para proteger o rei contra o mesmo perigo insidioso. Na Idade Média, os enviados que visitavam um cã tártaro eram obrigados a passar entre duas fogueiras antes de serem admitidos à sua presença, fazendo-se o mesmo com os presentes que levavam. A razão desse costume era que o fogo purgava qualquer influência mágica que os estrangeiros pudessem pretender exercer sobre o cã. Quando os chefes submetidos vinham, com suas comitivas, visitar o kalamba (o mais poderoso chefe dos bachilanges, da bacia do Congo), pela primeira vez ou depois de uma rebelião, tinham de banhar-se, homens e mulheres juntos, em dois regatos, durante dois dias sucessivos, passando as noites a céu aberto na praça do mercado. Depois do segundo banho, dirigiam-se, totalmente nus, à casa do kalamba, que fazia uma longa marca branca no peito e na testa de cada um deles. Voltavam, em seguida, à praça e vestiam-se, depois do que eram submetidos ao ordálio da pimenta. Esta era atirada nos olhos de cada um deles, e, enquanto isso era feito, a vítima tinha de confessar-se dos seus pecados, responder a todas as perguntas que lhe pudessem ser formuladas e fazer certos votos. Com isso terminava a cerimônia, e os estrangeiros estavam livres para ocupar seus aposentos na cidade pelo tempo que desejassem.
Na opinião dos selvagens, os atos de comer e beber estão cercados de perigos especiais, pois, nessas ocasiões, a alma pode fugir pela boca ou ser arrancada pelas artes mágicas de um inimigo presente. Entre os povos de língua ewe, da Costa dos Escravos, na África, “parece ser crença comum que o espírito deixa o corpo e a ele volta pela boca; portanto, se tiver saído, o homem deve ter cuidado de não deixar a boca aberta, para que um espírito errante não se aproveite da oportunidade para entrar no seu corpo. Ao que parece, isso é considerado como muito possível de acontecer enquanto o homem está comendo”. Tomam-se precauções, portanto, para evitar esses perigos, particularmente se a pessoa a ser protegida é um rei.
A magia também pode fazer mal a uma pessoa por intermédio dos restos de comida que deixou ou dos pratos nos quais comeu. De acordo com os princípios da magia simpática, continua havendo uma ligação real entre o alimento que o homem tem em seu estômago e aquele que deixou no prato, e, por isso, se for feito mal a este último, o homem que acabou de comer poderá sofrer também.
Os alimentos do micado eram preparados diariamente em vasilhas novas e servidos tam- bém em pratos novos; tanto as vasilhas como os pratos eram de barro comum, para que pudessem ser quebrados ou postos de lado depois de usados uma vez. Eram geralmentequebrados, pois se acreditava que, se alguma outra pessoa comesse nesses pratos sagrados, sua boca e sua garganta inchariam e inflamariam. O mesmo efeito prejudicial seria experimentado por quem usasse as roupas do micado sem sua permissão: surgiriam caroços e dores em todo o seu corpo. Nas ilhas Fidji, há um nome especial (kana lama) para a doença causada por se ter comido no prato de um chefe ou usado suas roupas.
Nos efeitos maléficos que se supunha advi-rem do uso de vasilhas ou roupas do micado e do chefe de Fidji vemos o outro lado do caráter do homem-deus, para o qual já chamamos a atenção. A pessoa divina é, ao mesmo tempo, uma fonte de riscos e de bênçãos, e não só deve ser protegida como também dela se devem proteger seus súditos. Seu organismo sagrado, tão delicado que um simples toque pode perturbá-lo, está também, por assim dizer, carregado eletricamente de uma poderosa força espiritual que se pode descarregar com um efeito fatal para quem estiver em contato com ela. Por isso, o isolamento do deus-homem é tão necessário à segurança dos outros quanto à sua própria. Sua virtude mágica é, no sentido estrito da palavra, contagiosa: sua divindade é um fogo que, sob controles adequados, confere bênçãos infinitas, mas que, se for tocado descuidadamente ou escapar ao controle, quei- ma e destrói o que atinge. Daí os efeitos de- sastrosos que se acredita sejam provocados pela violação de um tabu: o transgressor ousa pôr a mão no fogo divino, que cresce e o consome imediatamente. Acreditava-se, em Tonga, que, se alguém se alimentasse com suas próprias mãos depois de tocar a pessoa sagrada de um chefe superior ou qualquer coisa que lhe pertencesse, incharia e morreria. A santidade do chefe, como um veneno violento, contaminava as mãos de seus inferiores e, comu-nicando-se aos alimentos através delas, era fatal.
Na Nova Zelândia, o medo da santidade dos chefes era pelo menos tão grande quanto em Tonga. Seu poder intangível, derivado de um espírito ancestral ou atua, espalhava-se por contágio em tudo o que pegavam e poderia fulminar quem os tocasse descuidada ou invo- luntariamente. Certa vez, um chefe da Nova Zelândia, de elevada posição e grande santidade, deixou de lado os restos de sua comida. Um escravo, um homem forte e faminto, chegou depois que o chefe se afastara, viu os restos da refeição e os comeu sem nada indagar. Mal havia terminado, foi informado por um espectador horrorizado de que se tratava da comida do chefe. “Eu conhecia bem o infeliz transgressor. Era notável pela coragem e se havia destacado nas guerras da tribo”, mas “tão logo ouviu a informação fatal, foi tomado das mais extraordinárias convulsões e contrações espasmódicas no estômago, que não pararam até a sua morte, ocorrida ao entardecer do mesmo dia.”
Assim, ao considerar seus chefes e reis sagrados como dotados de uma força espiritual misteriosa que, por assim dizer, explode ao contato, o selvagem naturalmente os ordena entre as classes perigosas de sociedade e lhes impõe as mesmas restrições que fixa para os assassinos, mulheres menstruadas e outras pessoas que vê com certo medo e horror. Por exemplo, os reis e sacerdotes sagrados da Polinésia não podiam tocar os alimentos com as mãos e tinham, assim, de ser alimentados por outras pessoas. Suas vasilhas, vestimentas e outros objetos não deviam ser usados por terceiros sob pena de provocar doença e morte. Ora, precisamente as mesmas observancias são exigidas, por alguns povos selvagens, das moças em primeira menstruação, das mulheres depois do parto e dos homicidas.
De uma maneira geral, podemos dizer que a proibição de usar as vasilhas, roupas, etc, de certas pessoas e os efeitos que se acredita resultarem da transgressão dessa regra são exatamente os mesmos quer os proprietários dos objetos sejam pessoas sagradas ou sejam o que poderíamos chamar de pessoas impuras e con- taminadas. Assim como as vestes usadas por um chefe sagrado fazem morrer aqueles que as manuseiam, as coisas tocadas por uma mulher menstruada também podem ser fatais. Em Uganda, as vasilhas e potes tocados por uma mulher enquanto a impureza do parto ou da menstruação está com ela devem ser destruídos; lanças e escudos contaminados pelo seu contato não são destruídos, mas apenas purificados. Nenhum esquimó do Alasca beberá espontaneamente de uma xícara ou comerá num prato, usados por uma mulher que esteja de resguardo, até que tenham sido purificados por certas fórmulas. Entre alguns índios da América do Norte, as mulheres menstruadas estão proibidas de tocar os utensílios masculinos, que, com isso, ficariam contaminados, e seu uso subseqüente provocaria certos males ou desgraças.
Os selvagens acham também que os guerreiros se movimentam numa atmosfera de risco espiritual que os obriga a respeitar várias superstições muito diferentes, em sua natureza, das precauções rituais que adotam naturalmente contra inimigos de carne e osso. O efeito geral dessas superstições é colocar o guerreiro, tanto antes como depois da vitória, no mesmo estado de isolamento ou quarentena espiritual na qual, para a sua própria segurança, o homem primitivo coloca seus deuses humanos e outras figuras perigosas. Assim, quando os maoris iam à guerra, tornavam-se sagrados ou tabus, no mais alto grau, e eles e seus amigos nas aldeias tinham de observar com rigor muitos costumes curiosos, além dos numerosos tabus da vida ordinária. Da mesma forma, quando os israelitas marchavam para a guerra, estavam obrigados a certas regras de pureza cerimonial idênticas às observadas pelos maoris e pelos aborígines australianos em guerra. As vasilhas que usavam eram sagradas, tinham de observar a castidade e a higiene pessoal. A razão original dessas regras, a julgar pelo motivo confesso de selvagens que obedecem aos mesmos costumes, era o medo de que o inimigo conseguisse alguma coisa que estivera em contato com suas pessoas para causar a sua destruição pela magia. Entre certas tribos de índios da América do Norte, um jovem guerreiro em sua primeira campanha tinha de se- guir certos costumes, dois dos quais idênticos às observâncias impostas pelos mesmos índios às moças, quando da primeira menstruação: as vasilhas em que comia e bebia não podiam ser tocadas por nenhuma outra pessoa, e estava proibido de coçar a cabeça ou qualquer parte do corpo com seus próprios dedos. Se tivesse de coçar-se, deveria fazê-lo com um graveto. Essa última regra, como a que proíbe a uma pessoa tabu alimentar-se por seus próprios dedos, parece basear-se na suposta santidade ou poluição, como quer que prefiramos chamar, das mãos que são tabu. Além disso, entre esses índios, os homens que iam à guerra tinham de dormir sempre com o rosto voltado para a direção de sua terra; por mais incômoda que fosse a posição, não podiam modificá-la. Não podiam sentar-se diretamente no chão, molhar os pés ou caminhar numa trilha batida, se o pudessem evitar; quando não tinham outra escolha senão caminhar por uma trilha, buscavam neutralizar os maus efeitos disso passando nas pernas certos remédios ou feitiços que levavam consigo para essa finalidade. As vasilhas onde esses guerreiros comiam eram habitualmente pequenas tigelas de madeira ou de casca de bétula, com marcas para distinguir os dois lados. Ao partirem da aldeia, os índios invariavelmente bebiam de um dos lados, e ao retornarem, bebiam do lado oposto. Quando, no caminho de volta, chegavam a um dia de marcha da aldeia, penduravam todas as suas tigelas nas árvores ou as lançavam fora nos prados, sem dúvida para impedir que a sua santidade ou poluição se transferisse, com efeitos desastrosos, para seus amigos, tal como as vasilhas e vestes do micado sagrado, das mulheres de resguardo ou menstruadas, dos rapazes circuncidados e das pessoas contaminadas pelo contato com os mortos são destruídas ou postas de lado por motivo semelhante.
Se o leitor ainda tem dúvidas quanto a se as regras de comportamento que examinamos aci- ma baseiam-se em medos supersticiosos ou são ditadas pela prudência racional, suas dúvidas provavelmente se dissiparão se lhe dissermos que regras do mesmo tipo são, com freqüência e com rigor ainda maior, impostas aos guerreiros após uma vitória e quando todo o medo do inimigo material vivo desapareceu. Nesses casos, um motivo para as incômodas restrições impostas aos vencedores em sua hora de triunfo é, provavelmente, o medo dos espíritos irados dos vencidos: o medo dos espíritos vingativos influi realmente sobre o comportamento dos vitoriosos, como, aliás, se afirma expressamente muitas vezes.
Entre os primitivos nativos das ilhas Andamans, se um homem matar outro numa luta entre duas aldeias ou numa briga pessoal, deixa sua aldeia e vai viver sozinho na selva, onde deve permanecer durante algumas semanas ou mesmo meses. Sua mulher e um ou dois dos seus amigos podem viver com ele ou visitá-lo e prestar-lhe assistência. Durante algumas se- manas, o homicida deve observar um tabu rigoroso. Não pode pegar em arco ou flecha. Não se pode alimentar pelas próprias mãos, nem com elas tocar em comida, tendo de ser alimentado pela sua mulher ou por um amigo. Tem de manter o pescoço e o lábio superior pintados com tinta vermelha e adornar a cintura com enfeites de Tetrathera esgarçada, tanto na frente como atrás, e também a parte de seu colar que fica atrás do seu pescoço. Se desrespeitar qualquer dessas regras, o espírito do homem que matou fará com que caia enfermo. Ao final de algumas semanas, o homicida é submetido a uma espécie de cerimônia de purificação; pri- meiro, suas mãos são esfregadas com argila e, em seguida, com tinta vermelha. Depois disso, pode lavá-las e alimentar-se sozinho, e pode tocar em arcos e flechas. Conserva os enfeites de madeira esgarçada durante um ano, aproximadamente.
Entre os natchez da América do Norte, os jovens guerreiros que já haviam conseguido seus primeiros escalpos eram obrigados a observar certas regras de abstinência durante seis meses. Não podiam dormir com suas mulheres, nem comer carne; seu único alimento era peixe e uma papa. Se essas regras fossem desrespeitadas, acreditava-se que as almas dos homens que houvessem abatido provocar-lhes-iam a morte por magia, que não conseguiriam novos êxitos contra o inimigo e que o menor ferimento lhes seria fatal. Quando um índio choctaw matava um inimigo e lhe retirava o escalpo, ficava de luto durante um mês, período em que não podia pentear o cabelo e não podia coçar a cabeça, a não ser com uma vareta que trazia atada ao pulso para tal fim. Esse luto cerimonial pelos inimigos por eles mortos não era raro entre os índios norte-americanos. Os dacotas, quando matavam um adversário, destrançavam os cabelos, pintavam-se de preto e usavam um pequeno laço de penas de cisne no alto da cabeça. “Vestem-se de luto e, não obstante, estão alegres.” Um índio do rio Thompson, na Colúmbia Britânica, que houvesse morto um inimigo, pintava de preto o rosto para que o espírito de sua vítima não o cegasse. Os osages, depois de chorar os próprios mortos, choravam também o inimigo, como se fosse um amigo. Entre os esquimós do estreito de Chesterfield, “é costume, quando matam uma pessoa, não tocar em pedras durante certo tempo e comer apenas carne e, ao comer, fazê-lo de modo a que estejam abrigados do sol. Ouang-Wak teve de observar esses costumes, o que fez enquanto eu ali me encontrava. Isso era prova de que ele havia matado os dois homens”.
Assim, os guerreiros que tiraram a vida de um inimigo em combate são temporariamente isolados do livre contato com seus companhei- ros, e particularmente do contato com suas mulheres, e devem submeter-se a certos ritos de purificação antes de ser readmitidos na so- ciedade. Ora, se o objetivo de seu isolamento e dos ritos expiatórios é, como fomos levados a crer, apenas o de afastar, atemorizar ou apa- ziguar o espírito irritado do homem que ma- taram, podemos conjeturar com segurança que a purificação semelhante dos homicidas e assassinos que sujaram suas mãos com o sangue dos seus companheiros de tribo tinha, a prin- cípio, a mesma significação, e que a idéia de uma regeneração moral ou espiritual, simboli- zada pelo banho ou ablução, pelo jejum, etc., foi simplesmente uma interpretação posterior do velho costume, por homens que haviam superado os modos primitivos de pensar nos quais esse costume teve origem.
Na sociedade selvagem, o caçador e o pescador têm, com freqüência, de observar regras de abstinência e submeter-se a certas cerimônias de purificação do mesmo tipo das que são obrigatórias para o guerreiro e para o assassino. E embora não nos seja possível perceber, em cada caso, o objetivo exato dessas regras e cerimônias, podemos supor, com certa probabilidade, que, assim como o medo do espí- rito dos inimigos é o principal motivo para o isolamento e a purificação do guerreiro que espera tirar-lhes, ou já tirou, as vidas, assim também o caçador ou o pescador que respeita costumes semelhantes é movido principalmente pelo medo do espírito dos animais, aves ou peixes que matou ou pretende matar. O selva- gem pensa que os animais são dotados de almas e inteligências semelhantes à sua e, portanto, trata-os, naturalmente, com o mesmo respeito. Assim como procura apaziguar o espírito dos homens que matou, assim também tenta pro- piciar os espíritos dos animais. Os tabus obser- vados pelo caçador e pelo pescador, antes ou durante a estação de caça ou de pesca, são análogos aos respeitados pelos guerreiros e compreendem abstinência do sono, de alimentos e de bebidas, do intercurso sexual com mulheres, bem como outras disciplinas para o corpo. Supõe-se, em geral, que o efeito perni- cioso da desobediência a esses tabus não é tanto enfraquecer o caçador ou o pescador, mas sim ofender o animal, que, por isso, não se deixa apanhar.
Se os tabus ou abstinências observados pelos caçadores e pescadores antes e durante a caça e a pesca são ditados, como parece haver razão para se acreditar, por motivos supersticiosos e principalmente pelo receio de ofender ou atemorizar os espíritos das criaturas que pretendem matar, podemos esperar que as li- mitações impostas depois de efetuada a morte dos animais tenham pelo menos o mesmo rigor, já que o matador e seus amigos experimentam agora também o medo dos espíritos irados de suas vítimas. Quanto à hipótese de que as abstinências em questão, inclusive as relacionadas com alimentos, bebidas e sono, são apenas precauções salutares para manter os homens em boa saúde e com vigor, é óbvio que a observação dessas restrições e tabus, depois de realizado o trabalho, isto é, depois que a caça foi abatida e o peixe, recolhido, é totalmente supérflua, absurda e inexplicável. Mas esses tabus muitas vezes continuam a ser impostos, ou mesmo aumentam de rigor, após a morte dos animais, ou, em outras palavras, depois que o caçador ou pescador realizou seu objetivo, pegando os animais ou o peixe. A teoria racionalista de sua justificação perde, portanto, toda a validade: a hipótese da superstição é, evidentemente, a única aberta à nossa frente.
Temos uma explicação nativa para os tabus impostos a caçadores e pescadores depois de mortos os animais. Ela nos vem dos esquimós e expressa o que poderíamos chamar de base espiritual do tabu. A deusa Sedna, mãe dos mamíferos do mar, pode ser considerada como a principal divindade dos esquimós centrais. Acredita-se que ela tenha o supremo controle dos destinos da humanidade, e quase todos os ritos observados por essas tribos têm por obje- tivo conservar-lhe a boa vontade, ou apaziguar- lhe a ira. Sua morada é no mundo inferior, onde vive numa casa construída de pedra e costelas de baleia. As almas das focas e das baleias procedem, ao que acreditam os esquimós, da sua morada. Quando um desses animais é morto, a alma fica com o corpo durante três dias, retornando em seguida à morada de Sedna, para que esta a mande de volta novamente. Se, durante os três dias em que a alma fica com o corpo, qualquer tabu ou costume é violado, a violação (pitssete) atinge a alma do animal, provocando-lhe dor. A alma luta, em vão, para libertar-se dessa influencia, mas é obrigada a levá-la para Sedna. A violação que se prendeu à alma do animal morto provoca, de uma forma que não é explicada, feridas nas mãos de Sedna, e ela castiga as pessoas que são a causa de suas dores, mandan-do-lhes doenças, mau tempo e fome. Se, por outro lado, todos os tabus forem respeitados, os animais marinhos se deixarão pegar, e irão até mesmo ao encontro do caçador. O objetivo dos numerosos tabus em vigor depois de abatido um desses animais do mar é, portanto, impedir que sua alma sofra conseqüências que também iriam magoar Sedna. Acreditamos ver nesses tabus um sistema de animismo que está em transição para a religião. As próprias regras trazem indicações claras de se terem originado em doutrina das almas e de serem determinadas pelos supostos apegos e aversões, simpatias e antipatias, que as várias classes de espíritos têm umas pelas outras. Mas, por sobre e por trás das almas dos homens e dos animais, cresceu a concepção, que as obscureceu, de uma deusa poderosa que go- verna a todos, de modo que os tabus passam, cada vez mais, a ser vistos como um meio de obter-lhe as boas graças, e não como simplesmente adaptados às preferências e gostos das próprias almas. Assim, o padrão de conduta passa de uma base natural para outra, sobrenatural: o suposto desejo da divindade ou, como se diz habitualmente, a vontade de Deus, tende a se impor, enquanto medida do bem e do mal, aos desejos, reais ou imaginários, dos seres puramente naturais. Os velhos tabus dos selvagens, baseados numa teoria de relações diretas das criaturas vivas entre si, perduram sem modificações substanciais, mas se trans- formam externamente em preceitos éticos do- tados de uma sanção religiosa ou sobrenatural.
Não parece improvável que, em nossas próprias regras de comportamento, naquilo a que chamamos de decência comum da vida, bem como nas questões mais sérias de moral, so- brevivam não poucos dos antigos tabus dos selvagens, que, apresentando-se como expres- são da vontade divina ou envolvidos nas rou- pagens de uma falsa filosofia, mantêm seu cré- dito até muito depois de as idéias simplórias que lhes deram origem terem sido afastadas pelo progresso do pensamento e do conhecimento; por outro lado, muitos preceitos éticos e leis sociais, que hoje repousam firmemente sobre sólidas bases de utilidade, podem muito bem, a princípio, ter haurido uma parcela de sua santidade no mesmo antigo sistema de su- perstições. Dificilmente podemos duvidar, por exemplo, de que, na sociedade primitiva, boa parte do horror que o assassinato despertava adviesse do medo do espírito irado do morto. Assim, a superstição pode servir como uma útil muleta para a moral até que esta seja suficientemente forte para deitá-la fora e cami- nhar sozinha. A julgar pela legislação do Pen- tateuco, os antigos semitas pareciam ter reali- zado uma evolução moral semelhante à que ainda podemos ver, em processo de realização, entre os esquimós da Terra de Baffin. Algumas das velhas leis de Israel são, evidentemente, tabus selvagens, de um tipo bastante familiar, mal disfarçados como mandamentos da divin- dade. Esse disfarce é, na verdade, muito mais perfeito na Palestina do que em Baffin, mas, em essência, é o mesmo. Entre os esquimós é a vontade de Sedna; entre os israelitas, a vontade de Jeová.
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