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Bruxaria e Paganismo

As Saturnais e festas congêneres

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

As Saturnais romanas

Vimos, na primeira parte deste livro, que muitos povos tinham o hábito de observar um período anual de liberalidade de costumes, em que as restrições habituais da lei e da moral eram postas de lado, toda a população se entregava à alegria e aos divertimentos, e as paixões mais sombrias encontravam um escoadouro que jamais lhes seria facultado no curso mais estável e sóbrio da vida ordinária. Essas explosões das forças represadas da natureza humana, que muitas vezes degeneravam em orgias desenfreadas de lubricidade e crime, ocorriam mais comumente no fim do ano, e estavam, com freqüência, associadas

— como já tivemos oportunidade de observar — a uma das estações agrícolas, especialmente à época da semeadura ou da colheita. Ora, de todos esses períodos de suspensão das restrições o mais conhecido, e que nas línguas modernas deu seu nome aos demais, é o das Saturnais. Essa famosa festa caía em dezembro, último mês do ano romano, e, ao que se acreditava, comemorava o alegre reinado de Saturno, o deus da agricultura que havia vivido na terra há muito tempo como um rei da Itália justo e bondoso, reunira os broncos e dispersos habitantes das montanhas e lhes ensinara a trabalhar a terra, dera-lhes leis e os governara em paz. O reino de Saturno corresponde à fabulosa Idade de Ouro: a terra produzia com abundância; nenhum rumor de guerra ou de discórdia perturbava o mundo harmonioso e feliz; nenhum amor pernicioso ao lucro operava como veneno no sangue dos camponeses trabalhadores e satisfeitos. A escravidão e a propriedade privada eram igualmente desconhecidas: todos os homens tinham todas as coisas em comum. O bondoso deus,  o  amável  rei,  acabou  por  desaparecer subitamente; sua memória, porém, continuou sendo venerada até épocas muito posteriores, santuários foram erguidos em sua honra, e muitos montes e locais elevados na Itália tinham seu nome. Mas a brilhante tradição de seu reinado era maculada por uma sombra negra: ao que se dizia, seus altares estavam manchados com o sangue de vítimas humanas, substituídas, numa época mais misericordiosa, por efígies humanas. Desse aspecto sombrio da religião de Saturno restam poucos, ou nenhum, traços nas descrições das Saturnais deixadas pelos autores antigos. Comer e beber lautamente, participar de alegres celebrações e buscar imoderadamente os prazeres são as características que parecem ter marcado particularmente esse carnaval da Antiguidade, que se prolongava por sete dias nas ruas, praças e casas da antiga Roma, entre 17 e 23 de dezembro. Nenhum dos aspectos das Saturnais, porém, é mais notável, e nada parece ter impressionado mais aos próprios antigos do que a liberdade concedida aos escravos nessa época. A distinção entre as classes livres e as classes escravas era temporariamente abolida. O escravo podia vituperar seu senhor, embriagar-se como seus donos, sentar-se à mesa com eles, e nenhuma palavra de reprovação lhe era dita por um comportamento que, em qualquer outra ocasião, poderia ter sido punido com açoites, prisão ou morte. E mais ainda, os senhores na realidade trocavam de lugar com seus escravos e os serviam à mesa. E, enquanto o escravo não acabasse de comer e beber, não era a mesa limpa e posta para o seu senhor.

Se lembrarmos que a liberdade permitida aos escravos nesse período festivo devia constituir uma imitação do estado da sociedade na época de Saturno e que, em geral, as Saturnais passavam por ser apenas uma revivescência ou uma restauração temporária do reinado daquele alegre monarca, somos tentados a supor que o rei simulado que presidia às orgias podia ter, originalmente, representado o próprio Saturno. A suposição é reforçada, ou talvez mesmo confirmada, por uma descrição muito curiosa e interessante da maneira pela qual as Saturnais eram celebradas pelos soldados romanos que serviam no Danúbio, no reinado de Maximiano e Diocleciano. Essa descrição está preservada numa narrativa do martírio de São Dásio. De acordo com essa narrativa e com outras, das quais a mais extensa provavelmente se baseia em documentos oficiais, os soldados romanos em Durostorum, na Mésia Inferior, comemoravam todos os anos as Saturnais da seguinte maneira. Trinta dias antes da festa, escolhiam pela sorte, entre eles mesmos, um jovem de bela aparência, que era vestido com trajes reais para que se parecesse com Saturno. Assim ataviado e acompanhado de numerosos soldados, ele andava por toda parte, tendo permissão de praticar livremente todas as suas paixões e de provar de todos os prazeres, por mais baixos e vergonhosos que fossem. Mas, se seu reinado era alegre, era também curto e terminava tragicamente, pois quando se esgotavam os trinta dias e chegava a festa de Saturno, ele tinha de cortar a própria garganta no altar do deus que personificara. No ano 303 da nossa era, a sorte designou o soldado cristão Dásio, que se recusou a desempenhar o papel do deus pagão e a conspurcar seus últimos dias com o deboche. As ameaças e os argumentos de seu comandante, Basso, não lhe abalaram a constância, e, assim sendo, ele foi decapitado, como os martirólogos cristãos registram com detalhes, em Durostorum, pelo soldado João, na sexta-feira, dia 20 de novembro, que era o vigésimo quarto dia da lua, na quarta hora.

Esse relato lança nova e sinistra luz sobre a função de rei das Saturnais, o antigo senhor do desgoverno, que presidia às orgias romanas na época de Horácio e de Tácito. Parece provar que sua função não foi sempre a de um mero arlequim ou palhaço, cuja única preocupação era fazer com que a orgia não diminuísse de intensidade e as festas fossem sempre animadas. O relato que o martirólogo faz das Saturnais harmoniza-se tão bem com as descrições de ritos semelhantes em outros lugares, os quais não podiam ser do seu conhecimento, que a exatidão substancial de sua descrição pode ser considerada como certa; e mais, já que o costume de imolar um falso rei como o representante de um deus não pode ter nascido da prática de nomeá-lo para presidir a uma orgia, ao passo que o inverso bem pode ter acontecido, temos razões para supor que, numa época anterior, mais bárbara, era prática universal na Itália antiga, onde quer que prevalecesse o culto de Saturno, escolher um homem para desempenhar o papel e desfrutar de todos os privilégios tradicionais do rei, por um curto tempo, e, em seguida, morrer, seja por suas próprias mãos ou pelas mãos de outro, seja pela faca, pelo fogo ou na forca, representando o bondoso deus que deu sua vida pelo mundo.

A semelhança entre as Saturnais da Itália antiga e o Carnaval da Itália moderna já foi observada várias vezes; mas, à luz de todos os fatos de que tivemos conhecimento, bem podemos perguntar se a semelhança não equivale à identidade. Na Itália, na Espanha e na França, isto é, nos países onde a influência de Roma foi mais profunda e duradoura, uma característica notável do Carnaval é uma figura burlesca que personifica a estação festiva e que, após uma breve carreira de glórias e de dissipação, é publicamente fuzilada, queimada ou destruída de algum outro modo, diante do sofrimento fingido ou da alegria autêntica do povo. Se a visão do Carnaval aqui sugerida for correta, essa personagem grotesca nada mais é do que o sucessor direto do velho rei das Saturnais, do mestre das orgias, do homem real que personificava Saturno e, quando as orgias acabavam, tinha morte real como a personagem assumida. O rei do feijão da Noite de Reis, e o bispo dos insensatos, o abade da desrazão ou senhor do desgoverno da Idade Média, são figuras do mesmo gênero, e talvez tenham tido uma origem semelhante. Vamos examinar essas figuras na seção seguinte.

Ritos antigos sobrevivem nos costumes modernos

A dança dos chifres em Abbots Bromley, no condado de Stafford, foi fotografada em 1906 por Sir Benjamin Stone, que julgou ser ela comemorativa da Forest Charter de Henrique III, decreto que mitigou as punições impostas aos que desrespeitavam a proibição de caçar nas florestas reais. Mas Frazer veria nessa dança a sobrevivência de um ritual muito mais antigo, talvez semelhante ao que é representado no caldeirão de Gundestrup, do primeiro milênio antes de Cristo.

Pode remontar à primeira metade do século XVI, pelo menos, e sem dúvida data de época muito mais remota. Na corte francesa, os próprios reis não desdenhavam aceitar a realeza bufa, e o próprio Luís XIV suportou com graça cortesã essa duvidosa dignidade em sua própria pessoa. Cada família, em geral, elegia seu próprio rei. Às vésperas da festa, era preparado um grande bolo com um grão de feijão dentro; esse bolo era dividido em porções: uma para cada membro da família, bem como uma para Deus, uma para a Virgem e, por vezes, também uma para os pobres. A pessoa que ficava com o pedaço em que estava o feijão era proclamada rei do feijão. Quando era eleita uma rainha do feijão juntamente com o rei, um segundo feijão era por vezes colocado no bolo, para a rainha. Imediatamente após sua eleição, o rei do feijão era entronizado, saudado por todos e levantado três vezes no ar, quando aproveitava para fazer sinais-da-cruz com giz nas vigas e nos suportes do teto. Grandes virtudes eram atribuídas a essas cruzes brancas: supunha-se que protegiam a casa durante todo o ano contra “todos os danos e males Dos malditos diabos, espíritos e insetos, e de feitiçarias e sortilégios”.

Começavam então as comidas e bebidas e as celebrações, que corriam alegremente sem poupar ninguém. Todas as vezes que o rei ou a rainha bebiam, seus acompanhantes tinham de gritar “O rei bebeu!” ou “A rainha bebeu!” Quem não o fizesse era punido: tinha o rosto escurecido com fuligem ou com uma rolha queimada, ou esfregavam-lhe borra de vinho. Em certos locais das Ardenas, havia o costume de prender grandes chifres de papel à cabeça do transgressor e colocar grandes óculos sobre seu nariz, e ele tinha de portar essas insígnias da infâmia até o fim da festa.

Até agora, à parte as cruzes traçadas nas vigas para espantar duendes, bruxas e insetos, o rei e a rainha do feijão poderiam parecer simplesmente personagens de brincadeira, nomeados numa época de festas para liderar a orgia. Mas uma significação mais séria era por vezes acrescentada ao cargo e às cerimónias da Noite de Reis em geral. Assim, na Lorena, o volume da colheita do cânhamo do ano seguinte era prognosticado em função da altura do rei e da rainha: se o primeiro fosse o mais alto dos dois, supunha-se que o cânhamo macho seria mais alto do que o cânhamo fêmea, mas que o contrário ocorreria se a rainha fosse mais alta do que o rei. Nas montanhas dos Vosges, no Franco-Condado, é hábito, na Noite de Reis, que as pessoas dancem nos tetos para que o cânhamo cresça muito. Além disso, em muitos lugares, os feijões usados no bolo eram levados à igreja e abençoados pelo padre, e faziam-se prognósticos, a partir do bolo, quanto aos males ou às bênçãos que poderiam recair sobre as pessoas durante o ano.

No Franco-Condado, especialmente na montanha do Doubs, existe ainda o costume de, na véspera da Noite de Reis (5 de janeiro), acender fogueiras, que parece guardar, no espírito popular, alguma relação com as colheitas. Toda a população participa da festa. À tarde, os jovens puxam uma carreta pelas ruas, recolhendo lenha. Algumas pessoas contribuem com feixes de varas, outras com palhas ou pés de canhamos secos. À noite, todo esse combustível assim recolhido é empilhado, a uma certa distância das casas, e acende-se o fogo, enquanto as pessoas dançam à sua volta, cantando: ‘Ano Bom, volte! Pão e vinho, voltem!” De acordo com um informante do condado inglês de Hereford, “no dia de Reis fazem- se ali doze fogueiras de palha e uma outra, grande, para queimar a velha feiticeira; cantam, bebem e dançam em torno dela; sem essa festa, eles acham que não teriam plantações”. Essa ex- plicação da grande fogueira no dia de Reis é particularmente notável e pode nos proporcionar a chave para todo o costume de acender fogueiras nos campos ou nos pomares naquele dia. Vimos que as bruxas e espíritos malignos de todos os tipos andam soltos durante os doze dias que separam o Natal da Noite de Reis e que, em certos lugares, são formalmente expulsos na Noite de Reis. É possível que as fogueiras feitas naquele dia estivessem, em todos os lugares, destinadas principalmente a queimar as bruxas e outros seres maléficos que pululavam, invisíveis, no ar carregado de malefícios, e que as vantagens supostamente advindas das fogueiras para as plantações não estavam tanto no aspecto positivo de apressar o seu crescimento pelo calor geral, mas antes no aspecto negativo de destruir as influências perniciosas que, sem elas, prejudicariam os frutos da terra e das árvores.

Nesse costume inglês observado na Noite de Reis, as doze fogueiras provavelmente se referem ou aos doze dias que vão do Natal à Epifania, ou aos doze meses do ano. Em favor dessa interpretação podemos dizer que, segundo um ponto de vista popular, registrado na Inglaterra e muito difundido na Alemanha, nas províncias germânicas da Áustria, na França e na Escócia, o tempo que fizer nesses doze dias determina o tempo dos doze meses seguintes, de modo que, pelas condições climáticas de cada um desses dias, é possível prever o tempo do mês correspondente, no ano que se segue.

Assim, para o espírito popular, os doze dias que vão do Natal até a Epifania são considerados como uma miniatura de todo o ano, respondendo o caráter de cada dia pelo caráter de um determinado mês. Essa concepção parece ser pré- cristã, pois vamos encontrá-la também entre os árias da época védica, na Índia. Também eles parecem ter dado a doze dias no meio do inverno um caráter sagrado, como uma época em que os três Ribhus, ou gênios das estações, descansavam de seus trabalhos na casa do deus sol; chamavam esses doze dias de “imagem ou cópia do ano”.

É possível que os doze dias entre o Natal e a Epifania fossem um período intervalar antigo, intercalado com a finalidade de igualar o ano lunar ao ano solar. Dessa forma podemos compreender melhor as curiosas superstições que em torno deles se construíram e os estranhos costumes anualmente observados durante o período por eles constituído.

Para a mente primitiva, bem poderia parecer que o período intervalar, não fazendo parte do sistema lunar nem do sistema solar, estava fora da ordem regular das coisas. Seria como que uma excrescência, um remoinho que interrompe o fluxo regular dos meses e anos. Pode-se deduzir, portanto, que as regras ordinárias de conduta não se aplicavam a esses períodos extraordinários, e que, assim sendo, os homens podiam fazer, durante sua vigência, o que nunca pensariam em fazer em outras épocas.

Assim, os dias de intervalo tendem a degenerar em temporadas de licenciosidade sem freio; formam um interregno durante o qual as res- trições habituais da lei e da moral são suspensas e os governantes normais abdicam de sua autoridade em favor de um regente temporário, uma espécie de rei títere que exerce uma influência mais ou menos indefinida, caprichosa e precária sobre uma comunidade entregue momentaneamente à orgia, à violência, à turbulência e à desordem. Se assim for — embora se deva confessar que a interpretação aqui sugerida é, em grande parte, conjetural — poderemos então perceber, talvez, o último representante que sobrevive desses reis títeres no rei do feijão ou em outras figuras grotescas do mesmo tipo que costumavam desfilar com uma paródia da pompa real num ou noutro dos doze dias entre o Natal e a Epifania.

As Saturnais na Ásia ocidental

Ao passarmos da Europa para a Ásia ocidental, da Roma antiga para a antiga Babilónia e as regiões atingidas pela sua influência, conti- nuamos a encontrar festas que têm grande se- melhança com a forma mais antiga das Saturnais italianas. O leitor talvez se lembre da festa chamada Sacaea, que tivemos oportunidade de mencionar numa parte anterior deste trabalho. Era realizada na Babilônia durante cinco dias do mês de lous, a partir do décimo sexto dia desse mês. Durante a sua realização, tal como nas Saturnais, amos e servos trocavam de lugar, e os segundos passavam a dar as ordens aos primeiros. E, em todas as casas, um dos criados, vestido como um rei e com o título de Zoganes, era quem mandava. Além disso, tal como nas Saturnais em sua forma original, quando um homem era vestido como Rei Saturno em roupagens reais e podia dar livre curso às suas paixões e caprichos, para, em seguida, ser executado, também na festa babilônica um preso condenado à morte, que provavelmente também usava momentaneamente o título de Zoganes, era ataviado com vestes reais e podia agir como déspota, usar as concubinas reais e entregar-se à orgia e ao desregramento sem limites, para depois ser despido de suas roupas reais, açoitado e enforcado ou crucificado.

Ora, a festa chamada Sacaea, descrita pelo sacerdote babilônio Beroso no primeiro livro de sua história da Babilônia, foi, plausivelmente, identificada com a grande festa babilônica do Ano-Novo, chamada de Zakmuk, Zagmuk, Zakmuku ou Zagmuku, e que se tornou conhe- cida em épocas mais recentes graças a inscri- ções. A festa do Ano-Novo, que ocupava pelo menos os primeiros onze dias de nisan, incluía provavelmente o equinócio da primavera. Era realizada em honra de Marduk, ou Merodach, o principal deus da Babilônia, cujo grande templo de Esagila, no centro da cidade, constituía o centro religioso da solenidade. Ali, numa câmara esplêndida do vasto edifício, acreditava-se que todos os deuses se reuniam nessa época, sob a presidência  de  Marduk,  com  o  objetivo  de determinar os destinos do novo ano, espe- cialmente o destino do rei. Nessa ocasião, o rei da Babilônia tinha de renovar, anualmente, o seu poder real, segurando as mãos da imagem de Marduk, em seu templo, como se indicasse que recebia o reino diretamente da divindade e não poderia, sem a assistência e a autoridade divinas, conservá-lo por mais de um ano.

Outro aspecto notável da festa babilônica do Ano-Novo parece ter sido o casamento ceri- monial do deus Marduk. Um hino relacionado com a solenidade diz que o deus “se apressou para seu casamento”. A festa era muito antiga, pois era conhecida de Gudéia, um velho rei da Babilônia do Sul, reino que floresceu de dois a três mil anos antes do início da nossa era, e é mencionada numa antiga descrição do Grande Dilúvio. Num período muito posterior, é repetidamente mencionada pelo Rei Nabuco- donosor e por seus sucessores.

Infelizmente, as informações sobre essa festa babilônica do Ano-Novo que nos chegaram tratam principalmente de seu aspecto mítico e pouca luz lançam sobre a maneira pela qual era celebrada. Portanto, sua identidade com a festa Sacaea deve permanecer, no momento, como uma hipótese mais ou menos provável. Em seu favor podemos alegar a declaração muito significativa de que o destino do rei era determinado pelos deuses, sob a presidência de Marduk, na festa de Zakmuk ou do Ano-Novo. Se lembrarmos que a característica central da festa Sacaea parece ter sido a de prolongar a vida do rei por mais um ano graças ao sacrifício vicário de um criminoso na cruz ou na forca, poderemos compreender que o período era crítico para o rei e que bem pode ter sido considerado como decisivo para seu destino durante os doze meses seguintes. A cerimônia anual da renovação do poder do rei pelo contato com a imagem do deus, que constituía um aspecto destacado da festa de Zakmuk, seria realizada, muito adequadamente, logo depois da imolação ou sacrifício do rei temporário, que morria em lugar do verdadeiro monarca.

Outro argumento em favor da identidade das duas festas é proporcionado pela conexão que se estabeleceu entre ambas e a festa judaica Purim. Há boas razões para se acreditar que a festa Purim era desconhecida dos judeus até depois do exílio e que aprenderam a observá-la durante seu cativeiro no Oriente. A festa Purim era, e ainda é, realizada no décimo quarto e no décimo quinto dias de adar, o último mês do ano judaico, que corresponde aproximadamente ao mês de março. Assim, a data coincide aproximadamente, embora não exatamente, com a da festa de Zakmuk babilónica, que caía uma quinzena depois, nos primeiros dias do mês seguinte de nisan. Se a isso acrescentarmos a alegre e até mesmo extravagante festividade que sempre foi característica da festa Purim, e está totalmente de acordo com a comemoração do Ano-Novo, talvez tenhamos estabelecido uma argumentação bastante razoável para sustentarmos que a festa judaica vem da festa babilônica do Ano-Novo, Zakmuk. Se o elo que liga a festa Purim com a festa de Zakmuk é razoavelmente forte, a cadeia de evidências que relaciona a festa judaica com a Sacaea é bem mais forte. Os dois dias de festa, de acordo com o autor do Livro de Ester, deveriam ser mantidos para sempre como “dias de banquetes e de alegria, e de todos mandarem presentes uns aos outros e, aos pobres, dádivas”. E esse caráter alegre da festa parece ter sido sempre conservado. Na verdade, a festa Purim já foi descrita como as bacanais judaicas, e sabemos que, nessa época, tudo é permitido, desde que contribua para a alegria e a felicidade da festa. Autores do século XVII afirmam que, durante os dois dias, e especialmente na véspera do segundo dia, os judeus não faziam outra coisa senão comer e beber até não poderem mais, tocar, dançar, cantar e divertir-se; em particular, travestiam-se: homens e mulheres trocavam de roupa e, assim fantasiados, corriam pelas ruas como loucos, desafiando abertamente a lei de Moisés, que proíbe expressamente aos homens se vestirem como mulheres e vice-versa.

Se examinarmos a narrativa que pretende explicar a instituição da festa Purim, descobri- remos nela não apenas os mais fortes vestígios da origem babilónica como também certas ana- logias singulares com as próprias características da festa Sacaea, que nos interessa, aqui, mais imediatamente. O Livro de Ester versa sobre a sorte de dois homens, o vizir Aman e o des- prezado  judeu  Mordecai,  na  corte  de  um  rei persa. Mordecai, pelo que a história nos diz, ofendera mortalmente o vizir, que, por isso, mandara levantar um alto patíbulo, no qual esperava ver seu inimigo enforcado, enquanto ele próprio acreditava que receberia a mais alta marca do favor real: a permissão de usar a coroa e as vestes reais e, assim paramentado, atravessar as ruas montado no cavalo do próprio rei, seguido por um dos mais nobres príncipes, que deveria proclamar à multidão sua exaltação e glória temporárias. Mas as intrigas do maldoso vizir fracassaram e resultaram precisamente no oposto do que ele havia esperado e desejado, pois as honras reais que ambicionava foram concedidas ao seu rival Mordecai, tendo sido ele, vizir, enforcado no patíbulo que preparara para seu inimigo. Parece haver nessa história uma reminiscência, mais ou menos confusa, do Zoganes da festa Sacaea, ou seja, do costume de investir um homem comum das insígnias da realeza por alguns dias e em seguida dar-lhe morte no patíbulo ou na cruz. É certo que, na narrativa, o papel de Zoganes é dividido entre dois atores, um dos quais espera ser investido da condição de rei, mas, em lugar disso, é enforcado, enquanto as honrarias reais recaem sobre o outro, que escapa da forca à qual estava destinado pelo seu inimigo. Mas essa divisão, por assim dizer, do Zoganes pode ter sido inventada deliberadamente pelo autor judeu do Livro de Ester com o objetivo de estabelecer a origem da festa Purim, que tinha por fim explicar, segundo uma perspectiva que deveria cobrir de glória a sua própria nação. Ou, talvez mais provavelmente, parece voltar-se retrospec- tivamente para o hábito de nomear dois falsos reis durante a festa Sacaea, um dos quais era morto ao final da festa, enquanto o outro era libertado, pelo menos momentaneamente. Sen- timo-nos mais inclinados a aceitar a última hi- pótese por observarmos que, correspondentes aos dois aspirantes rivais à realeza temporária, há, na narrativa judaica, duas rainhas rivais, Vasti e Ester, uma das quais ascende à alta condição de que a outra é apeada. Além disso, devemos notar que Mordecai, o candidato à realeza simulada que obtém êxito, e Ester, a candidata bem-sucedida à condição de rainha, são ligados por laços estreitos de interesse e sangue, pois são primos. Isso sugere que, na história original, ou no costume original, podem ter figurado dois pares de reis e rainhas, dos quais um par é representado na narrativa judaica por Mordecai e Ester, e o outro, por Aman e Vasti.

Uma certa confirmação dessa interpretação nos é oferecida pelos nomes de duas das quatro personagens. Os estudiosos da Bíblia parecem concordar que o nome Mordecai, que não tem sentido em hebraico, é apenas uma forma le- vemente modificada de Marduk ou Merodach, nome do principal deus da Babilônia, cuja grande festa era o Zakmuk; e mais, admite-se geralmente que Ester é, da mesma forma, equi- valente a Istar, a grande deusa babilónica chamada pelos gregos de Astarte e conhecida tam- bém como Ashtaroth.

Se temos razão em atribuir a origem da festa Purim à festa babilónica Sacaea e em ver a contrapartida do Zoganes em Aman e Mordecai, seria evidente então que o Zoganes, durante seus cinco dias de função, personifica não apenas um rei, mas um deus, fosse ele o babilónico Marduk ou qualquer outra divindade ainda não identificada. A união das personagens divina e real numa única pessoa é tão comum que não nos devemos surpreender de encontrá- la na antiga Babilônia. E a interpretação de que o rei simulado da festa Sacaea morria como um deus na cruz ou na forca não é nova. O arguto e erudito Movers observou, há já muito tempo, que “estaríamos esquecendo a significação religiosa das festas orientais e a ligação da festa Sacaea com o culto de Anait se tratássemos como simples brincadeira o costume de fantasiar um escravo de rei. Podemos considerar como certo que, com a dignidade real, o rei da festa Sacaea assumia também o caráter de um governante oriental representante da divindade, e que, quando buscava o prazer com as mulheres do harém do rei, desempenhava o papel do próprio Sandan ou Sardanapalo. De acordo com as antigas idéias orientais, o uso das concubinas reais constituía um título de pretensão ao trono, e sabemos, por Dio, que o rei de cinco dias tinha plenos direitos ao harém”.

Também inclinamo-nos a encarar com simpatia a conjetura suplementar de Movers de que uma escrava pudesse ser escolhida para desempenhar o papel da rainha divina, associada ao papel de rei divino que cabia ao Zoganes, e que reminiscências dessa rainha sobreviveram no mito ou na lenda de Semíramis. De acordo com a tradição, Semíramis era uma bela cortesã amada pelo rei da Assíria, que a desposou. Ela conquistou o coração do rei a tal ponto que o convenceu a ceder-lhe o reino por cinco dias e, tendo assumido o trono, empunhado o cetro e envergado as vestes reais, organizou um grande banquete no primeiro dia, mas, no segundo, fez encerrar o marido na prisão ou o mandou matar e, a partir de então, reinou sozinha. Além disso, já se mostrou que o culto da deusa persa Anait não só foi modelado pelo culto de Astarte em geral, mas que corresponde também à modalidade particular desse culto que se associava especificamente ao nome Semíramis. A identidade de Anait com a mítica Semíramis é evidentemente provada pela circunstância de que o grande santuário de Anait em Zela, no Ponto, foi, na realidade, construído sobre um túmulo de Semíramis. Provavelmente o antigo culto da deusa semita tivesse perdurado mesmo depois de ter sido o seu nome semita Semíramis ou Astarte modificado para o nome persa Anait, talvez em obediência a um decreto do rei persa Artaxerxes II, que difundiu esse culto pelo oeste da Ásia. É muito significativo não só que a festa Sacaea fosse ealizada anualmente nesse antigo local de culto de Semíramis ou Astarte, como também que toda a cidade de Zela houvesse sido primitivamente habitada pelas escravas e prostitutas sagradas, governada por um sumo pontífice que a administrava mais como um santuário do que como uma cidade. Podemos supor que, anteriormente, esse rei sacerdote tivesse, ele próprio, encontrado morte violenta durante a festa Sacaea, como o amante divino de Semíramis, enquanto o papel da deusa era desempenhado por uma das prostitutas sagradas. A probabilidade de que assim fosse fica muito fortalecida pela existência do chamado túmulo de Semíramis sob o santuário. Isso porque os túmulos de Semíramis, dis- tribuídos por toda a Ásia ocidental, teriam sido os túmulos de seus amantes, aos quais ela en- terrava vivos. Segundo a tradição, a grande e sensual Rainha Semíramis, receosa de contrair matrimônio legal para que seu marido não a privasse do poder, admitia em seu leito os mais belos soldados, mas para depois destruí-los. Ora, essa tradição é uma das indicações mais seguras da identidade da Semíramis mítica com a deusa babilónica Istar ou Astarte. O famoso poema épico babilónico que narra os feitos do herói Gilgamesh nos conta como, quando este se vestiu com os trajes reais e colocou sua coroa na cabeça, a deusa Istar tomou-se de amores por ele e o cortejou para seu consorte. Mas Gilgamesh rejeitou suas insinuações insidiosas, pois conhecia o triste destino de todos os seus amantes, e censurou a cruel deusa, dizendo:

“A Tamuz, o amante da tua juventude,

Fizeste-o chorar a cada ano.

Ao colorido pássaro allallu amaste:

Nos bosques ele está, e se lamenta:

Ó minhas asas!’ Amaste o leão de força perfeita, Sete vezes sete armadilhas lhe preparaste.

Amaste o cavalo que pelos campos se alegrava

E   com   chicote    e   esporas    e   rédeas    o   fizeste marchar.

E o obrigaste a andar por sete duplas horas, Forçando-o quando estava cansado e sedento. À tua mãe, a deusa Silili, fizeste-a chorar.

Também amaste um pastor do rebanho,

Que constantemente te enchia a taça para as libações

E todos os dias abatia carneiros para ti.

Mas tu o golpeaste e o transformaste num lobo Para que  seus           próprios         companheiros                      o perseguissem

E seus próprios cães o estraçalhassem”.

O herói também conta o fim miserável de um jardineiro a serviço do pai da deusa. O de- safortunado camponês foi honrado com o amor da deusa, mas quando ela se cansou dele, trans- formou-o em aleijado, de tal modo que ele não se podia levantar da cama. Gilgamesh receia, portanto, ter a mesma sorte de todos os antigos amantes da deusa e rejeita os favores que ela lhe oferece. Mas não é apenas o mito de Istar que se assemelha assim à lenda de Semíramis; o culto da deusa era marcado por um desregramento que encontra eco no caráter li- cencioso que a tradição atribui à rainha. Inscrições, que confirmam e complementam as evidências de Heródoto, nos dizem que Istar era servida por prostitutas de três diferentes classes, todas dedicadas ao seu culto. Na verdade, há motivos para se acreditar que essas mulheres personificavam a própria deusa, já que um dos nomes a elas dado é aplicado também a Istar.

Assim, dificilmente podemos duvidar de que a Semíramis mítica seja substancialmente uma forma de Istar ou Astarte, a grande deusa semita do amor e da fertilidade; e, se assim é, podemos supor, com uma margem pelo menos razoável de probabilidade, que o sumo pontífice de Zela, ou o seu representante, que desempenhava o papel de rei da festa Sacaea no santuário de Semíramis, perecia como um dos infelizes amantes da deusa, talvez como Tamuz, a quem ela fez “chorar a cada ano”. Encerrada a sua breve e meteórica carreira de prazer e glória, seus ossos seriam colocados no grande túmulo que cobria os restos de muitos deuses mortais, seus antecessores, aos quais a deusa havia honrado com o seu amor fatal.

Tudo indica, então, que ali, no grande santuário da deusa em Zela, seu mito se traduzisse regularmente em ação: a história de seu amor e a morte de seu divino amante eram dramatizadas ano a ano numa espécie de auto, por homens e mulheres que viviam por algum tempo, e por vezes morriam, no papel dos seres visionários aos quais personificavam. A intenção desses dramas sagrados, podemos ter certeza, não  era  divertir  nem  instruir  uma  audiência ociosa tal como também não era seu objetivo gratificar os atores, a cujas baixas paixões davam rédeas durante algum tempo. Eram ritos solenes que imitavam os atos de seres divinos, porque o homem imaginava que tal mímica lhe permitiria arrogar-se as funções divinas e exercê- las em benefício de seus semelhantes. Na sua maneira de pensar, as operações da natureza eram realizadas por personagens míticas muito semelhantes a ele mesmo, e, se lhe fosse possível assimilar-se aos deuses completamente, também seria capaz de dispor de todos os seus poderes. Foi esse, provavelmente, o motivo original da maior parte dos dramas religiosos, ou mistérios, entre os povos primitivos. Os dramas são encenados, os mistérios são representados, não para ensinar aos espectadores as doutrinas do credo, e menos ainda para diverti-los, mas com a finalidade de produzir aqueles efeitos naturais que são representados em disfarce mítico. Numa palavra, são cerimônias mágicas, e seu modo de operação é a mímica ou a simpatia. Provavelmente não erraremos ao supor que muitos mitos que hoje conhecemos apenas como mitos tiveram outrora sua contrapartida na mágica; em outras palavras, que costumavam ser representados como um meio de produzir na realidade os fatos que descreviam em linguagem figurativa. As cerimônias, com freqüência, de- saparecem, ao passo que os mitos sobrevivem, e cabe-nos deduzir a cerimônia morta a partir do mito vivo. Se os mitos são, num certo sentido, reflexos ou sombras dos homens projetados nas nuvens, podemos dizer que esses reflexos continuam visíveis no céu e nos informam dos feitos dos homens que ali os projetaram muito tempo depois que os próprios homens não só estão fora do alcance de nossa visão, como também mergulhados para além do horizonte.

As conclusões a que chegamos em relação à lenda de Semíramis e de seus amantes são provavelmente válidas para todas as histórias semelhantes que circulavam na Antiguidade por todo o Oriente. Em particular, podemos supor que se aplicam aos mitos de Afrodite e Adônis, na Síria, e de Ísis e Osíris, no Egito. Se pudéssemos estabelecer as origens dessas histó- rias, talvez comprovássemos que, em cada caso, um casal humano representava, todos os anos, os papéis da deusa que ama e do deus que morre. A liberdade concedida ao homem que desempenhava o papel do deus que morre na festa Sacaea fala vigorosamente em favor da hipótese segundo a qual, antes que a divindade encarnada encontrasse morte pública, podia ou devia gozar das carícias de uma mulher que desempenhava o papel da deusa do amor. A razão dessa união forçada do deus e da deusa humanos não é difícil de adivinhar. Se o homem primitivo acreditava que o crescimento das plantações podia ser estimulado pelas relações sexuais entre homens e mulheres comuns, que bênçãos enormes não esperaria ele do intercurso sexual de um par que sua imaginação investia de toda a dignidade e de todos os poderes das divindades da fertilidade?

Se a festa judaica Purim era, como procuramos mostrar, descendente direta da festa Sacaea ou de qualquer outra festa semita da qual a característica principal era o sacrifício de um homem no papel de um deus, devemos esperar encontrar nela vestígios do sacrifício humano sob uma ou outra dessas formas mitigadas a que já nos referimos. Tal expectativa é plenamente confirmada pelos fatos, pois, desde há muito tempo, é costume, entre os judeus, na festa Purim, queimar, ou destruir de algum outro modo, efígies de Aman. A prática era bem conhecida durante o Império Romano, pois, no ano 408 da nossa era, os imperadores Honório e Teodósio promulgaram um decreto determinando que os governadores das províncias impedissem os judeus de queimarem efígies de Aman crucificado durante uma de suas festas. Esse decreto nos mostra que o costume era considerado como ofensivo pelos cristãos, que viam nele uma paródia blasfema do mistério central de sua própria religião, sem desconfiar que se tratava apenas de uma continuação, sob forma moderada, de um rito que era provavelmente celebração no Oriente muito antes do nascimento de Cristo. Ao que tudo indica, o costume sobreviveu, de muito, à pro- mulgação do édito, pois, numa forma de abju- ração que a igreja grega impunha aos judeus conversos, e que parece datar do século X, o renegado tinha de dizer: “Amaldiçoo também os que celebram o festival do chamado Mordecai no primeiro sabbath [sábado] do jejum cristão, e que deveras pregam Aman na árvore, juntando- lhe o símbolo da cruz e queimando-o juntamente com ele, enquanto lançam toda a sorte de imprecações e maldições sobre os cristãos”.

Na festa Sacaea, portanto, o homem que per- sonificava um deus ou herói do tipo de Tamuz ou Adônis desfrutava dos favores de uma mulher, provavelmente uma prostituta sagrada, que representava a grande deusa semita Istar ou Astarte, e, depois de assim desempenhar seu papel para assegurar, por meio da magia simpática, o renascimento da vida vegetal na primavera, era levado à morte. Podemos supor que a morte desse homem divino era lamentada pelos seus adoradores, e especialmente pelas mulheres, mais ou menos do mesmo modo pelo qual as mulheres de Jerusalém choravam por Tamuz às portas do templo e as moças sírias pranteavam Adônis morto enquanto o rio se tingia de vermelho com o seu sangue. Esses ritos parecem, na verdade, ter sido comuns em toda a Ásia ocidental; o nome do deus que morria variava nos diferentes lugares, mas, em sua essência, o ritual era o mesmo. Fundamentalmente, o costume era uma cerimônia religiosa, ou antes, mágica, com o objetivo de assegurar o renascimento e a repro- dução da vida na primavera.

Ora, se essa interpretação da festa Sacaea é correta, é evidente que um aspecto importante da cerimônia está ausente nas breves informa- ções sobre a festa que chegaram até nós. A morte do homem-deus está registrada, nada se diz, porém, da sua ressurreição. Mas, se ele realmente personificava um ser do tipo de Adônis ou Átis, podemos ter certeza de que sua morte dramática era seguida, após um intervalo mais curto ou mais longo, de sua ressurreição dramática, tal como nas festas de Átis e de Adônis a ressurreição do deus morto sucedia rapidamente a sua pretensa morte. Surge aqui, porém, uma dificuldade. Na festa Sacaea o homem-deus morria realmente, e não apenas simbolicamente; e na vida normal, a ressurreição, mesmo de um homem-deus é, pelo menos, uma ocorrência excepcional. O que fazer? O homem, ou antes, o deus, estava indubitavelmente morto. Como fazê-lo voltar novamente à vida? É claro que a melhor, se não a única, maneira de fazê-lo era colocar um outro homem, vivo, como o deus renascido, e podemos imaginar que isso realmente se fazia. Podemos supor que as insígnias da realeza que haviam adornado o morto fossem transferidas para seu sucessor que, delas revestido, seria apresentado aos seus adoradores jubilosos como o deus re- nascido. E ao seu lado provavelmente estaria uma mulher, no papel de sua divina consorte, a deusa Istar ou Astarte. Em favor dessa hipótese, podemos observar que ela oferece ao mesmo tempo uma explicação clara e inteligível de um aspecto notável do Livro de Ester que até agora não foi, pelo que sabemos, esclarecido adequadamente. Referimo-nos à aparente duplicação das principais personagens, para a qual já chamamos a atenção do leitor. Se estamos certos, Aman representa o rei temporário ou deus mortal, que era morto na festa Sacaea; e seu    rival   Mordecai     representa              o outro  rei temporário que, na morte de seu antecessor, era investido das insígnias reais e exibido ao povo como o deus renascido. Da mesma forma, Vasti, a rainha deposta na narrativa, corresponde à mulher que desempenhava o papel de rainha e deusa do primeiro rei simulado, Aman, e sua bem-sucedida rival, Ester ou Istar, corresponde à mulher que figurava como a divina consorte do segundo    rei   simulado,   Mordecai   ou   Marduk. Vimos            que           o    rei  simulado  da festa  Sacaea realmente tinha o direito de usar as concubinas reais. No ritual paralelo de Adônis, o casamento da   deusa    com   seu    malfadado   amante   era comemorado publicamente no dia anterior ao de sua pretensa morte. Uma reminiscência clara da época em que a relação entre Ester e Mordecai era considerada como muito mais íntima do que um mero parentesco parece estar preservada em algumas das peças judaicas representadas na festa Purim, nas quais Mordecai aparece como amante de Ester, e essa indicação significativa é confirmada pelo ensinamento rabínico segundo o qual        o     Rei              Assuero             nunca  conheceu   Ester realmente,       mas        sim  um  fantasma  a  ela semelhante que com ele se deitava, enquanto a verdadeira Ester estava nos braços de Mordecai. Estamos, finalmente, em condições de des- mascarar as principais personagens do Livro de Ester. Procuramos mostrar que Aman e Vasti pouco mais são do que duplicações de Mordecai e Ester, que, por sua vez, ocultam, sob tênue disfarce, as características de Marduk e Istar, o grande deus e a grande deusa da Babilônia. Mas o leitor poderá perguntar por que o divino par tinha de ser duplicado dessa forma e por que estão os dois pares colocados em oposição mútua. A resposta é sugerida pelas comemorações populares européias da primavera. Se a nossa interpretação desses cos- tumes estiver certa, o contraste entre o verão e o inverno ou entre a vida e a morte, que figura em efígies ou nas pessoas dos representantes vivos nas cerimônias da primavera de nossos camponeses, é fundamentalmente um contraste entre a vegetação decadente ou morta do ano velho e a vegetação que desponta no novo ano –

— um contraste que nada perderia de seu vigor se, como ocorria na Roma antiga, na Babilônia e na Pérsia, o início da primavera fosse também o início do novo ano. Nessas cerimônias, e em todas as que examinamos, o antagonismo não se processa entre poderes de uma ordem diferente, mas entre os mesmos poderes, vistos sob diferentes aspectos, como o velho e o novo. Trata-se, em suma, apenas do eterno e patético contraste entre a juventude e a velhice. E assim como o poder ou o espírito da vegetação é representado, no ritual religioso e no costume popular, por um par humano, seja ele chamado de Istar e Tamuz, de Vênus e Adônis, ou de a rainha e o rei de maio, assim também podemos esperar encontrar o velho e decrépito espírito do ano anterior personificado por um par e o novo e fresco espírito do novo ano por outro par. E essa, se minha hipótese estiver certa, é a explicação final da luta entre Aman e Vasti de um lado, e suas reproduções, Mordecai e Ester, do outro. Em última análise, os dois parecem representar as forças da fertilidade das plantas e talvez também dos              animais.       Mas   um                    par   personificava    as energias decadentes do passado, e o outro, as vigorosas          e crescentes       energias do            ano   que chegava. Ambas as forças, na minha hipótese, eram personificadas não apenas no mito, mas também no costume, pois, ano após ano, um casal humano tinha a tarefa de intensificar a vida da natureza graças a uma união na qual, como num microcosmo, as vidas das árvores e das plantas, das ervas e das flores, dos pássaros e dos            animais     estariam    resumidas     de   alguma maneira                          mística.     Originalmente,              podemos conjeturar, esses casais exerciam suas funções por todo um ano, e, quando este terminava, o homem — o rei divino — era morto; mas, nos tempos históricos, parece que, em geral, o deus humano  —  Saturno,                Zoganes,           Tamuz,      ou qualquer que fosse seu nome — desfrutava de seus divinos privilégios e desempenhava os seus deveres divinos apenas durante uma certa parte do ano. Essa redução de seu reinado na terra foi provavelmente introduzida na época em que as antigas                divindades           hereditárias,       ou reis divinizados, conseguiram transferir a parte mais penosa de seus deveres a um substituto, fosse ele  um  de         seus filhos,  um escravo ou um malfeitor. Tendo de morrer como um rei, era necessário que o substituto também vivesse como um rei por algum tempo. Mas o monarca verdadeiro naturalmente trataria de restringir aos limites mais estreitos possíveis tanto o tempo como o poder de um reinado que, enquanto durasse, necessariamente constituía uma invasão, e mesmo uma anulação, de seu próprio reinado. O que acontecia à companheira do rei, a deusa humana que partilhava de seu leito e transmitia suas energias benéficas ao resto da natureza, não podemos dizer. Pelo que sabemos, são poucas, ou nenhuma, as evidências de que ela, como ele, era também morta quando sua função primordial estava concluída. A natureza da maternidade sugere uma razão óbvia para que lhe fosse poupada a vida por mais um pouco, até que aquela lei misteriosa que liga a vida da mulher aos aspectos cambiantes do céu noturno tivesse sido cumprida pelo nascimento de um deus menino, que, por sua vez, crescesse, talvez, à sombra de seus ternos cuidados, para viver e morrer pelo mundo.

Conclusão

Podemos, agora, resumir os resultados gerais da pesquisa que empreendemos neste capítulo. Encontramos evidências de que festas do tipo das Saturnais, caracterizadas por uma inversão das posições sociais e pelo sacrifício de um homem que personificava um deus, eram celebradas, no mundo-antigo, da Itália à Babilônia. Essas festas parecem datar de uma época bastante arcaica da história da agricultura, quando as pessoas viviam em pequenas comunidades, cada qual presidida por um rei sagrado ou divino cujo dever principal era asse- gurar a sucessão bem ordenada das estações, a fertilidade da terra e a fecundidade dos animais e das mulheres. Associada a ele estava sua mulher, ou outra consorte, com quem ele desempenhava algumas das cerimónias neces- sárias e que, portanto, partilhava de seu caráter divino. Originalmente, seu mandato parece ter se limitado a um ano, ao término do qual encontrava a morte; mas, com o tempo, ele conseguiu, pela força ou pela habilidade, ampliar seu reinado e, por vezes, encontrar um substituto que, depois de uma ocupação breve e mais ou menos formal do trono, era morto em seu lugar. A princípio, o substituto do pai divino era provavelmente o filho divino, mas posteriormente essa regra já não era seguida, e, mais tarde ainda, o desenvolvimento dos sentimentos humanos passou a exigir que a ví- tima fosse sempre um criminoso condenado. Nessa fase adiantada de degeneração, não é de surpreender que a luz da divindade sofresse um eclipse, e muitos não conseguissem ver o deus no malfeitor. Mas a carreira decrescente da divindade decaída não se detém aqui; até mes- mo o criminoso passa a ser considerado como demasiado bom para personificar um deus no patíbulo ou na fogueira; nada mais resta senão fazer uma efígie mais ou menos grotesca e enforcar, queimar ou destruir de alguma outra maneira o deus na pessoa desse seu deplorável representante.

Se há alguma verdade na análise das Saturnais e de festas semelhantes que estamos concluindo, ela parece ser a de que existia uma notável homogeneidade de civilização por todo o sul da Europa e o oeste da Ásia nos tempos pré- históricos. Até que ponto essa homogeneidade de civilização pode ser considerada como prova de homogeneidade de raça é uma questão para os etnólogos que não nos interessa aqui. Mesmo sem discutir a questão, porém, posso lembrar ao leitor que, no extremo oriental da Ásia, encontramos reis temporários cujas funções mágicas e cuja relação íntima com a agricultura se destacam com extrema clareza. Ao mesmo tempo, a Índia nos proporciona exemplos de reis que foram, regularmente, obrigados a se sacrificar ao fim de um certo número de anos. Tudo isso parece estar relacionado, e todos esses detalhes podem ser considerados talvez como resquícios esparsos de uma zona uniforme de religião e sociedade que, numa época remota, cercava o Velho Mundo, do Mediterrâneo ao Pacífico. Quer tenha sido assim ou não, podemos, pelo menos, pretender ter mostrado que é possível provar que, se o rei do bosque de Arícia vivia e morria como uma encarnação de uma divindade silvestre, as funções por ele assim desempenhadas não eram, de modo algum, singulares e que, para encontrar o seu paralelo mais próximo, não precisamos ir além dos limites da Itália, onde o divino Rei Saturno — o deus da semeadura e da semente que brota — era anualmente imolado na pessoa de um representante humano durante sua antiga festa.

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