Leia em 21 minutos.
Este texto foi lambido por 55 almas esse mês
excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Em toda a Europa os camponeses têm, desde tempos imemoriais, o costume de acender fo- gueiras em certos dias do ano e dançar e saltar à volta delas. Costumes desse tipo podem re- montar, segundo as evidências históricas, à Ida- de Média, e sua analogia com costumes seme- lhantes observados na Antiguidade contribui, com forte coerência interna, para provar que sua origem deve ser procurada num período muito anterior à difusão do cristianismo. Na verdade, a mais antiga prova de sua ocorrência no norte da Europa nos é proporcionada pelas tentativas feitas pelos sínodos cristãos, no século VIII, para acabar com esses costumes, sob a alegação de que eram ritos pagãos.
Não é raro que sejam queimadas efígies nessas fogueiras, ou que se finja nelas queimar uma pessoa viva; há razões para acreditarmos que, antigamente, seres humanos eram realmente queimados nessas ocasiões. Uma pesquisa geral dos costumes em questão ressaltará os vestígios do sacrifício humano e servirá, ao mesmo tempo, para lançar luz sobre seu significado.
As épocas do ano nas quais essas fogueiras são mais comumente acesas são a primavera e o solsticio de verão, mas, em certos lugares, são também acesas no fim do outono ou durante o inverno, particularmente na Festa de Halloween (a Noite das Bruxas, 31 de outubro), no Natal e na Noite de Reis. Vamos examiná-las na ordem em que ocorrem no calendário.
A primeira delas é a festa de inverno da Véspera de Reis (5 de janeiro), mas, como já foi descrita numa das partes anteriores deste livro, vamos deixá-la de lado e começar com as Festas dos Fogos da Primavera, que ocorrem habitualmente no primeiro domingo da Quaresma (Quadragésima, ou Invocavit), na noite da Páscoa e no 1.° de Maio. O costume de acender fogueiras no primeiro domingo da Quaresma é muito comum na Bélgica, no norte da França e em muitas partes da Alemanha.
Seria difícil separar essas fogueiras que são acesas no primeiro domingo da Quaresma das fogueiras nas quais, aproximadamente na mesma época, uma efígie chamada Morte é queimada como parte da cerimônia de “levar embora a Morte”. Vimos que, em Spachendorf, na Silésia austríaca, na manhã do dia de Rupert (Terça-Feira Gorda?), um boneco de palha, vestido com um capote de peles e um gorro também ée peles, é colocado num buraco fora da aldeia e ali queimado. Enquanto ele queima, todos procuram arrancar-lhe um pedaço para amarrar na árvore mais alta de seu pomar ou enterrar em suas plantações, acreditando que isso fará com que elas cresçam mais e melhor. A cerimônia é conhecida como “o enterro da Morte”. Mesmo quando o boneco de palha não é designado como a Morte, o significado do costume é provavelmente o mesmo, pois o nome Morte, como procuramos mostrar, não expressa a intenção original da cerimônia. Em Cobern, nos montes Eifel, os jovens fazem um boneco de palha na Terça-Feira Gorda. A efígie é normalmente julgada e acusada de ter perpetrado todos os roubos cometidos nas vizinhanças durante o ano. Condenado à morte, o boneco de palha é levado em passeata pela aldeia, fuzilado e incinerado numa pira. O povo dança em volta da fogueira e a mais recente noiva deve saltar sobre ela.
Outra ocasião em que essas festas dos fogos são realizadas é a noite da Páscoa, a noite do sábado que antecede o domingo da Páscoa. É hábito apagarem-se naquele dia, nos países católicos, todas as luzes das igrejas para depois reacendê- las, fazendo um novo fogo, seja com pederneira e aço, seja com um vidro ustório. Em certas partes da Alemanha, é acesa uma fogueira com esse novo fogo, guardando-se alguns dos gravetos para proteger as casas contra os raios e os campos contra as pragas e a geada. Por vezes uma efígie chamada Judas é queimada na fogueira.
Hábitos desse tipo não se limitam à igreja romana, sendo comuns também na igreja grega. Em Atenas, um novo fogo é aceso na catedral, à meia-noite do Sábado de Aleluia. Uma grande multidão com velas apagadas nas mãos enche a praça fronteira à catedral; o rei, o arcebispo e os altos dignitários da Igreja, vestidos com roupas resplandecentes, ocupam uma plataforma, e, no momento exato da ressurreição, soam os sinos, e toda a praça transforma-se num mar de luzes como que por milagre. Teoricamente, todas as velas são acesas com o novo fogo sagrado da catedral, mas, na prática, podemos desconfiar que os fósforos que têm o nome de Lúcifer desempenham seu papel na súbita iluminação. Efígies de Judas costumavam ser queimadas em Atenas no Sábado da Páscoa, mas o costume foi proibido pelo governo. Mas disparos continuam sendo feitos de maneira constante por toda a cidade, tanto no sábado da Páscoa como no domingo, e os cartuchos usados na ocasião nem sempre estão vazios. Os tiros visam o Judas, mas, por vezes, erram e acertam outras pessoas. Fora de Atenas, o costume de queimar a efígie de Judas ainda sobrevive em certos lugares. Por exemplo, em Cós, um boneco de palha representando o traidor é feito no dia da Páscoa e, depois de ser enforcado e fuzilado, é queimado. Costume semelhante parece existir em Tebas, onde era observado pelos campo- neses macedônios, sendo conservado ainda em Terapia, um elegante local de veraneio de Constantinopla.
Apesar do tênue manto de cristianismo lançado sobre esses costumes pela representação do fogo novo como um emblema do Cristo e da figura nele queimada em efígie como a do Judas, dificilmente poderia haver dúvida de que ambas as práticas são de origem pagã. Nenhuma delas tem a apoiá-la a autoridade do Cristo ou de seus discípulos; em compensação, ambas apresentam abundantes analogias com costumes e superstições populares.
Nas Highlands da Escócia, no País de Gales e na Irlanda, as fogueiras, conhecidas como fogos de Beltane, eram acesas antigamente com grande solenidade a 1.° de maio, e os vestígios de sacrifícios humanos eram, nesse caso. particularmente claros e inequívocos. O costume de acender fogueiras perdurou em vários lugares até o século XVIII, e as descrições da cerimônia, por autores da época, apresentam um quadro curioso e interessante do antigo paganismo que sobreviveu na Inglaterra, razão pela qual reproduziremos um desses relatos, nas palavras de seu autor, John Ramsay, proprietário de Ochtertyre, perto de Crieff, protetor do poeta Burns e amigo de Sir Walter Scott. Diz Ramsay: “Mas a maior das festas druídicas é a de Beltane, ou 1.° de Maio, que era recentemente realizada em certas partes das Highlands com cerimônias extraordinárias. Nos últimos anos, a ela comparecem principalmente os jovens, pois as pessoas de idade mais avançada consideram-na incompatível com sua gravidade. Não obstante, várias circunstâncias relativas a essa festa podem ser recolhidas da tradição ou da conversação com pessoas bastante idosas que testemunharam essa festa em sua juventude, quando os ritos antigos eram melhor respeitados. “A festa é chamada em gaélico Beal-tene, isto é, o fogo de Bel ( . . . ) Como outros cultos públicos dos druidas, a festa de Beltane parece ter sido realizada em montes ou lugares elevados. Parecia-lhes degradante para aquele cujo templo é o universo supor que habitasse em qualquer casa feita por mãos humanas. Os sacrifícios que se lhe faziam eram, portanto, oferecidos ao ar livre, freqüentemente no alto das colinas, onde eram presenteados com as mais deslumbrantes vistas da natureza e onde estavam mais próximos da sede do calor e da ordem. E, de acordo com a tradição, era essa a maneira de celebrar a festa de Beltane nas Highlands nos últimos cem anos. Mas, desde o declínio da superstição, ela vem sendo promovida pelos moradores de cada aldeia em algum morro ou elevação em torno da qual seu gado pasta. Para lá os jovens partiam pela manhã e abriam uma vala, à beira da qual um assento de relva era preparado para os espectadores. No meio era colocada uma pilha de lenha ou outro combustível, que antigamente acendiam com o tein-eigin — isto é, o fogo-forçado, ou o fogo obtido pelo atrito de madeira seca (need-fire) e ao qual se atribuíam propriedades mágicas. Embora nos últimos anos se tenham contentado com o fogo comum, ainda assim vamos descrever agora o processo, porque mais adiante se verá que ainda se recorre ao tein-eigin em emergências extraordinárias.
“Na noite anterior, todos os fogos da região eram cuidadosamente apagados, e, na manhã seguinte, o material para acender esse fogo sa- grado era preparado. O método mais primitivo parece ser o usado nas ilhas Skye, Mull e Tiree. Buscava-se um pedaço bem velho de carvalho, no meio do qual era aberto um buraco, ao qual se aplicava então uma espécie de verruma da mesma madeira. Em certas regiões, porém, o mecanismo era diferente. Usavam uma trama de madeira verde, de forma quadrada, no centro da qual havia um eixo. Em alguns lugares, era preciso que três vezes três pessoas, e, em outros, três vezes nove, se sucedessem, em turnos, para rodar o eixo ou verruma. Se alguma dessas pessoas era culpada de assassinato, adultério, roubo ou outro crime, imaginava-se que o fogo não se acenderia, ou que não estaria revestido de suas virtudes habituais. Assim que surgiam fagulhas devido ao atrito violento, aplicavam-lhes uma espécie de agárico que cresce nas bétulas velhas e é muito inflamável. O fogo assim obtido tinha a aparência de vir diretamente do céu, e muitas eram as virtudes a ele atribuídas. Acreditavam que ele era uma proteção contra feitiçaria e um excelente remédio para doenças malignas, tanto no homem como nos animais; também se supunha que ele fosse capaz de modificar a natureza dos mais fortes venenos.
“Depois de acesa a fogueira com o tein-eigin, preparavam-se as comidas. E, tão logo termi- navam a refeição, os presentes se divertiam al- gum tempo cantando e dançando em torno do fogo. Ao final do entretenimento, a pessoa que oficiava como mestre-de-cerimônias apresentava um grande bolo feito de ovos e recortado nas bordas, chamado am bonnach beal-tine, ou seja, o bolo de Beltane. Era dividido em vários pedaços e distribuído aos presentes so- lenemente. A pessoa a quem cabia um deter- minado pedaço era chamada de cailleach beal- tine, isto é, o carline de Beltane, termo muito pejorativo. Quando se descobria a quem coubera tal pedaço, o resto dos presentes agarrava essa pessoa e fingia que ia atirá-la na fogueira, mas outros se opunham, e ela era salva. Em alguns lugares essa pessoa era deitada no chão, como se fossem esquartejá-la. Depois, atiravam-lhe cascas de ovos e continuavam a chamá-la pelo odioso epíteto durante todo o ano. E, enquanto a recordação da festa ainda perdurava na memória das pessoas, fingiam falar do cailleach beal-tine como se estivesse morto.”
Mas a época em que geralmente essas festas dos fogos eram realizadas em toda a Europa é o solsticio de verão, isto é, a véspera do solsticio (23 de junho) ou o próprio dia do solstício (24 de junho). Um leve colorido cristão lhe foi dado atribuindo-se-lhe o nome de festa de São João Batista, mas não pode haver dúvidas de que a celebração data de uma época muito anterior ao início da nossa era. O solstício de verão é ogrande momento na carreira do sol, quando, depois de ir subindo dia a dia, cada vez mais alto no céu, ele pára e, a partir de então, faz de volta o caminho celeste que havia trilhado. Esse momento não podia ser visto senão com preocupação pelo homem primitivo. As fogueiras do solsticio de verão existiram em toda essa região do globo, desde a Irlanda, no oeste, até a Rússia, no leste, e da Noruega e da Suécia, no norte, até a Espanha e a Grécia, no sul. Segundo um autor medieval, as três grandes características da comemoração do Solsticio de Verão eram as fogueiras, a procissão com tochas pelos campos e o costume de fazer girar uma roda. Ele nos conta que os rapazes queimavam ossos e lixo de vários tipos para produzir fumaça malcheirosa, capaz de afugentar certos dragões perniciosos que, nessa época, excitados pelo calor do verão, copulavam no ar e envenenavam os poços e os rios, neles lançando a sua semente. Explica-nos também o costume de fazer rodar um arco para significar que o sol, tendo atingido o ponto mais alto da eclíptica, começava então a descer. Embora se possa considerar como certa a origem pagã do costume, a Igreja Católica lançou sobre ele um véu cristão, declarando ousadamente que as fogueiras eram acesas em sinal do regozijo geral pelo nascimento do Batista, que oportunamente veio ao mundo no solsticio de verão, exatamente como fez seu grande sucessor, no solsticio de inverno, de modo que se podia afirmar que todo o ano girava em torno desses dois eixos doura- dos dos dois grandes aniversários.
O costume de acender fogueiras na noite do solsticio de verão, ou no próprio dia, é gene- ralizado entre os muçulmanos do norte da África, em particular no Marrocos e na Argélia. É comum tanto aos berberes como a muitas das tribos árabes, ou de língua árabe. Nesses países, o dia do Solsticio de Verão (24 de junho, no calendário antigo) é chamado 1’án-sara. As fogueiras são preparadas nos pátios, nas encruzilhadas, nos campos, e, por vezes, no terreno da eira. As plantas que, ao queimarem, soltam uma fumaça espessa e um odor agradável são muito procuradas nessas ocasiões, e entre elas estão o funcho gigante, o tomilho, a arruda, o cerefólio, a camomila, o gerânio e o poejo. As pessoas se expõem, e especialmente expõem seus filhos, à fumaça e procuram dirigi-la para seus pomares e suas plantações. Saltam também sobre as fogueiras; em certos lugares, todos devem repetir sete vezes esse salto. Além disso, retiram gravetos em chamas da fogueira e os levam pelas casas para fumigá-las. Passam coisas pelo fogo e colocam os doentes em contato com ele enquanto fazem orações pela sua recuperação. As cinzas das fogueiras também são consideradas como dotadas de propriedades benéficas, e por isso, em certos lugares, as pessoas as esfregam nos cabelos ou pelo corpo.
A comemoração da festa do Solstício de Verão pelos povos maometanos é em especial notável porque o seu calendário, exclusivamente lunar e não corrigido pela intercalação, não tem necessariamente festas em pontos fixos do ano solar. Todas as festas rigorosamente muçulmanas, dependendo da lua, variam, acompanhando o satélite, por todo o período da revolução da Terra em torno do Sol. Esse fato mostra, por si só, que, entre os povos muçulmanos do norte da África, como entre os cristãos da Europa, a festa do Solsticio de Verão é totalmente independente da religião pro- fessada publicamente, constituindo um resquício de um paganismo muito mais antigo.
Entre os antepassados pagãos dos povos europeus, a festa dos fogos mais generalizada e popular do ano era a grande comemoração da véspera do Solsticio de Verão, ou do dia do Solsticio, à qual correspondia a festa dos fogos do Solsticio de Inverno. Entre os povos celtas de Land’s End, na Cornualha, por outro lado, as principais festas dos fogos eram as do 1.° de Maio ou de Beltane, e do Halloween. Essas duas datas marcam a época em que os pastores levam o gado para pastar e em que, com a aproximação do inverno, levam-no novamente de volta para os currais.
A divisão celta do ano em duas metades marcadas pelo início de maio e pelo início de novembro data assim de urna época na qual os celtas eram principalmente um povo pastoril que, para sua subsistência, dependia de seus rebanhos, e na qual, por essa razão, as grandes épocas do ano eram os dias nos quais o gado partia de suas fazendas no princípio do verão e aqueles em que para elas voltava novamente no princípio do inverno. Mesmo na Europa central, distante da região hoje ocupada pelos celtas, uma divisão semelhante do ano pode ser claramente reconhecida pela grande popularidade tanto do 1.° de Maio e de sua véspera (a Noite de Walpurgis) como da festa de Todos os Santos, em princípios de novembro, que, sob um tênue disfarce cristão, oculta umaantiga festa pagã dos mortos. Podemos, portanto, conjeturar que, por toda parte na Europa, a divisão celeste do ano de acordo com os solstícios era precedida do que podemos chamar de uma divisão terrestre do ano de acordo com o início do verão e o início do inverno.
Seja como for, as duas grandes festas celtas comemoradas em 1.° de maio e 1.° de novembro ou, para sermos mais precisos, as vésperas desses dois dias assemelham-se muito no modo de celebração e nas superstições a elas associa- das; pelo caráter arcaico de que ambas se re- vestem, traem uma origem remota e exclusiva- mente pagã. A festa do 1.° de Maio ou de Bel- tane, como os celtas a chamam, que servia para marcar o início do verão, já foi descrita. Resta- nos fazer uma descrição da festa correspondente do Hallowe’en, que anunciava a chegada do inverno.
Das duas festas, o Halloween talvez fosse a mais importante, já que os celtas parecem ter datado o início do ano a partir dela, e não a partir da festa de Beltane. Na ilha de Man, um dos redutos em que a língua e o folclore celtas mais resistiram ao sítio dos invasores saxões, o 1.° de novembro (calendário antigo) era considerado como o dia do Ano-Novo, até épocas recentes. Assim, os mascarados de Man costumavam sair às ruas na festa de Hallowe’en (calendário antigo) cantando, na linguagem de Man, uma espécie de canção de Hogmanay (Ano-Novo) que começava assim:
“Hoje é a noite do Ano-Novo, Hogunnaa!” Um dos informantes de Sir John Rhys, um velho de setenta e sete anos da ilha de Man, “havia sido empregado de fazenda desde os dezesseis anos até os vinte e seis, com o mesmo patrão, perto de Regaby, na paróquia de Andreas, e lembra-se de que seu patrão e um vizinho próximo discutiram a expressão dia do Ano-Novo aplicada ao 1º de novembro e explicaram aos jovens que sempre fora assim antigamente. De fato, parecia-lhe bastante natural que assim fosse, já que todos os contratos de ocupação de terra terminam naquela época e todos os empregados começam o seu serviço também nessa época”.
Não só entre os celtas, mas também por toda a Europa, o Hallowe’en, a noite que marca a transição do outono para o inverno, parece ter sido, antigamente, a época do ano em que as almas dos mortos revisitavam seus velhos lares para se aquecerem junto ao fogo e se re- confortarem com as homenagens que lhes eram prestadas, na cozinha e na sala, pelos seus afe- tuosos parentes. Talvez fosse natural ocorrer- lhes que a aproximação do inverno trazia as pobres almas famintas e trêmulas dos campos nus e das florestas sem folhas para o abrigo das casas e o calor de suas lareiras familiares.
Mas não eram apenas as almas dos mortos que deviam pairar, invisíveis, no dia “em que o outono ao inverno entrega o pálido ano”. As bruxas então esmeravam-se em seus atos malignos, algumas cruzando os ares em suas vassouras, outras galopando pelas estradas mon- tadas em gatos que, naquela noite, se transfor- mavam em cavalos negros como o carvão. Também as fadas andavam à solta, e duendes de todos os tipos vagavam livremente.
Nas regiões celtas, o Hallowe’en parece ter sido a grande época do ano para se prever o futuro.
Todos os tipos de adivinhações eram postos em prática naquela noite. Lemos que Dathi, rei da Irlanda no século V, estando no monte dos Druidas (Cnoc-nan-druad), no condado de Sligo, durante a festa de Halloween, mandou que seu druida lhe previsse o futuro, entre aquele dia e o próximo dia de Halloween. O druida passou a noite no alto de uma colina e, na manhã seguinte, fez uma previsão ao rei que se tornou realidade.
Na cristandade moderna, a antiga festa dos fogos do inverno parece sobreviver, ou ter so- brevivido até anos recentes, no velho costume da acha do Natal (Yule log), como era chamada na Inglaterra. O costume era conhecido na Europa, mas parece ter florescido especialmente na Inglaterra, na França e entre os eslavos do sul
— pelo menos, as descrições mais completas nos vêm daí. A acha de Natal era a contrapartida, de inverno, da fogueira do Solsticio de Verão, acesa dentro de casa e não ao ar livre, devido ao frio e ao tempo inclemente da estação.
Entre os alemães, o costume da acha de Natal era observado, ao que se sabe, no século XI, pois, no ano de 1184, o pároco de Ahlen, em Münsterland, falava em “trazer uma árvore para acender o fogo festivo da Natividade do Senhor”. Até cerca de meados do século XIX, o velho rito foi conservado em certas partes da Alemanha central, como ficamos sabendo por um relato feito por um autor contemporâneo. Depois de mencionar o costume de alimentar o gado e sacudir as árvores frutíferas na noite de Natal, para fazer com que dessem frutos, ele continua: “Outros costumes que lembram os tempos distantes do paganismo ainda podem ser encontrados entre os camponeses atrasados das regiões montanhosas. Um deles, comum nos vales do Sieg e do Lahn, é a prática de colocar um tronco novo de madeira como base da lareira. Um bloco pesado de carvalho, ge- ralmente um tronco arrancado do solo, é colo- cado no chão da lareira, ou encaixado em um nicho feito com esse objetivo na parede, sob o gancho onde é pendurada a chaleira. Quando o fogo arde na lareira, esse bloco de madeira também reluz, mas está colocado de tal modo que dificilmente se reduz a cinzas antes de um ano. Quando um novo tronco é ali colocado, os remanescentes da velha acha são cuidadosamente retirados, transformados em pó e espalhados pelos campos durante as Doze Noites. O povo acredita que isso promove a fertilidade das plantações daquele ano”.
“Em quase todas as famílias das Ardenas”, segundo nos contam, “não se deixa, hoje em dia, de colocar a acha do Natal na lareira, mas antigamente ela era objeto de um culto supersticioso que está atualmente obsoleto. Era crença comum que os restos carbonizados da acha, colocados sob o travesseiro ou sob a casa, preservavam-na contra a tempestade, e que, antes que ela fosse queimada, a Virgem costumava vir sentar-se sobre ela, invisível, acalentando o Menino Jesus. Em Nouzon, há vinte anos, a tradicional acha era levada para a cozinha na véspera do Natal, e a avó, com um raminho de buxo, aspergia sobre ela água benta no momento em que o relógio dava a primeira badalada da meia-noite. E, ao mesmo tempo, cantava:
Quando chega o Natal Todos se devem alegrar,
Pois é uma nova promessa divina.
Acompanhando a avó e participando do canto, as crianças e o resto da família davam três voltas em torno da acha, que era sempre a melhor que se podia conseguir.”
É notável como parece ter sido comum a crença de que os restos da acha de Natal, se guardados durante o ano, tinham o poder de proteger a casa contra incêndios e especialmente contra raios. Como a acha do Natal era freqüentemente de carvalho, parece possível que tal crença seja um resquício do antigo mito ariano que associava o carvalho ao deus do trovão.
As festas dos fogos até aqui descritas são todas celebradas periodicamente em certas épocas fixas do ano. Mas, além dessas comemorações que se repetem regularmente, os camponeses de muitas partes da Europa se inclinam, desde tempos imemoriais, a recorrer a um ritual do fogo a intervalos regulares em épocas de desgraças e calamidades, sobretudo quando o gado é atacado de epidemias. Nenhuma descrição das festas dos fogos européias populares seria completa sem um comentário sobre esses ritos notáveis, que merecem toda a nossa atenção porque talvez possam ser consi- derados como a fonte e a origem de todas as outras festas dos fogos; certamente devem datar de uma antiguidade muito remota. O nome geral pelo qual são conhecidos entre os povos teutônicos é o de “fogos de atrito” (need-fires).
A história do fogo de atrito pode remontar ao princípio da Idade Média, pois no reinado de Pepino, rei dos francos, a prática de acender “fogos de atrito” foi denunciada como uma superstição pagã por um sínodo de prelados e nobres, realizado sob a presidência de Bonifácio, arcebispo de Mainz. Na Alemanha, os fogos de atrito parecem ter sido muito populares até a segunda metade do século XIX. Assim, no ano de 1598, quando uma peste fatal devastava o gado em Neustadt, perto de Marburg, um homem tido como sábio, de nome Joh. Kohler, convenceu as autoridades da cidade a adotar o seguinte remédio. Uma roda de carroça nova foi posta a girar em torno de um eixo, que nunca havia sido usado antes, até provocar o fogo. Com esse fogo uma fogueira foi, em seguida, acesa entre as portas da cidade, e todo o gado foi passado por perto do fogo e da fumaça. Além disso, todas as casas tinham de reacender o fogo de suas larei- ras com um graveto retirado dessa fogueira. Embora pareça estranho, essa medida salutar não teve nenhum efeito contra a peste do gado, e, sete anos depois, o sábio Joh. Kohler era queimado como bruxo. Os camponeses cujos porcos e vacas nenhum benefício colheram do fogo de atrito talvez tenham assistido como espectadores à execução e, sacudindo a cabeça, tenham dito uns para os outros que Joh. Kohler bem havia merecido aquela sorte. De acordo com um autor que publicou seu livro cerca de nove anos depois, alguns alemães, especial- mente os que habitavam as montanhas de Wassgaw, acreditavam firmemente que a peste do gado podia ser debelada passando os animais através de um fogo de atrito que tivesse sido aceso pelo atrito violento de uma vara sobre uma certa quantidade de lenha de carvalho seca. Uma condição necessária para o sucesso, porém, era a de que todos os fogos da aldeia tivessem sido previamente apagados com água, e todo chefe de família que não o fizesse recebia uma pesada multa. Os povos eslavos têm o fogo de atrito em elevada conta. Chamam-no de “fogo vivo” e a ele atribuem uma virtude curativa. A atribuição de um poder medicinal ao fogo provocado por atrito de madeira seria especialmente característica dos eslavos que habitam os montes Cárpatos e a península balcânica. Na Inglaterra, a notícia mais antiga que se tem de fogos de atrito parece estar na Crônica de Lanercost para o ano de 1268. O cronista nos conta, com pio horror, como, durante uma epidemia ocorrida naquele ano entre o gado, “certos homens bestiais, monges no hábito mas não na mente, ensinaram aos idiotas do lugar a fazer fogo pelo atrito da madeira e a erguer uma imagem de Pría-po, com que pensavam trazer socorro aos animais”. Na Escócia, os fogos de atrito eram considerados como um dos remédios mais eficientes contra a bruxaria.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.