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Bruxaria e Paganismo

A transferência do mal

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

Ela nasce de uma confusão óbvia entre o físico e o mental, entre o material e o imaterial. Assim como é possível passar uma carga de madeira, de pedras ou de qualquer outra coisa, de nossas costas para as costas de outra pessoa, assim também o selvagem imagina ser igualmente possível transferir o peso de suas dores e penas para outra pessoa, que arcará com o sofrimento em seu lugar. O selvagem age de acordo com essa idéia, e o resultado é um número interminável de recursos pouco amistosos para lançar sobre os ombros de alguma outra pessoa o peso que não se está disposto a carregar. Em suma, o princípio do sofrimento indireto é compreendido e praticado habitualmente por raças que se situam em um nível pouco elevado de cultura social e intelectual. Nas páginas que se seguem, ilustraremos a teoria e a prática tal como encontradas entre os selvagens em toda a sua simplicidade nua, não disfarçada pelos refinamentos da metafísica e pelas sutilezas da teologia.

Os recursos de que se utiliza o selvagem esperto e egoísta para melhorar sua situação às expensas do seu vizinho são múltiplos, e só poderemos citar alguns. Devemos observar, de início, que o mal de que o homem quer se livrar não precisa ser transferido para uma pessoa: pode ser igualmente transferido para um animal ou uma coisa, embora no último caso esta seja apenas um veículo para transmitir o sofrimento para a primeira pessoa que a tocar.

No distrito ocidental da ilha de Timor, quando os homens ou as mulheres estão realizando viagens prolongadas e cansativas, abanam-se com ramos cheios de folhas, que depois lançam fora em determinados lugares, onde seus antepassados fizeram a mesma coisa, antes deles. Com isso acham que a fadiga que sentem se transmitirá às folhas e ficará para trás.

Outros usam pedras no lugar de folhas. Mas não é apenas da fadiga corporal que o selvagem acredita poder livrar-se pelo simples expediente de lançar fora um galho ou uma pedra. Evidentemente incapaz de distinguir o imaterial do material, o abstrato do concreto, ele é assaltado por terrores vagos, sente-se exposto a um perigo indefinido no local em que ocorreu qualquer grande crime ou grande desgraça. O local lhe parece assombrado. As intensas lembranças que se amontoam na sua mente, que, inclusive, são muitas vezes confundidas por ele com duendes e fantasmas, oprimem-lhe a imaginação com plúmbeo peso. Seu impulso é fugir do lugar aterrorizador, lançar fora o peso que parece agarrar-se a ele como um pesadelo. Isso, em sua maneira simples e sensória de reagir, parece-lhe ser possível lançando alguma coisa no horrível lugar e fugindo. Não será assim o contágio da des- graça, o horror que lhe apertava o coração, separado dele e transferido para a coisa? Não recolherá ela em si as influências maléficas que o ameaçavam e, com isso, não o deixará em paz para continuar sua viagem em segurança e tranqüilidade? Pensamentos como esses, se é que os tateamentos e as incertezas de um espírito nas trevas merecem o nome de pensamento, parecem explicar o costume, observado por viajantes em muitas terras, de lançar gravetos e pedras em lugares onde alguma coisa de horrível aconteceu ou atos maus foram praticados. Quando Sir Francis Young-husband atravessava o grande deserto  de  Gobi.  sua  caravana  chegou,  num entardecer de junho, a uma longa depressão entre elevações, conhecida como abrigo de bandidos.

Seu guia, com o rosto marcado pelo terror, contou- lhe como, pouco tempo antes, nove homens de uma caravana ali haviam sido mortos e os demais deixados em estado lastimável para continuar a viagem a pé através do terrível deserto. E um cavaleiro acabava de ser visto dirigindo-se aos morros. “Por isso, tivemos de manter uma vigilância rigorosa e, quando chegamos ao pé das colinas, paramos e, descarregando os camelos, enrolamo-nos em nossas peles de carneiro e mantivemo-nos vigilantes durante as longas horas da noite.

O dia clareou finalmente, e então avançamos em silêncio e atingimos as colinas. Eram estranhas e fantásticas em sua linha caprichosa, e, aqui e ali, um montículo de pedras marcava o ponto em que uma caravana havia sido atacada; ao passarmos por elas, os homens lhes lançavam mais uma pedra.”

Pode-se acreditar que as pedras afastem um espírito irado e perigoso, que poderia assombrar o lugar. Mas, se essa teoria parece explicar bem certos casos do costume de que nos ocupamos, deixa de explicar outros. Assim, na Síria é comum entre os muçulmanos religiosos quando vêem pela primeira vez um lugar muito sagrado, como Hebron ou o túmulo de Moisés, fazer um montículo de pedras ou acrescentar mais uma pedra a um já existente. Por isso, o viajante cruza, aqui e ali, com toda uma série desses montículos ao lado do caminho. No norte da África, há o mesmo costume. Esses montículos de pedras são comumente erguidos nos locais de onde o peregrino devoto primeiro  percebe  a  silhueta  distante  do  local sagrado; por isso, são mais freqüentes nos pontos elevados. Por exemplo, no Marrocos, na altura da estrada de Casablanca a Azemur de onde primeiro se vê a cidade branca do santo brilhando à distância, há um enorme monte de pedras na forma de pirâmide de vários metros de altura, e, além dele, de ambos os lados da estrada, há inúmeras pedras, isoladas ou dispostas como pequenas pirâmides. Todo muçulmano religioso cujos olhos se alegram com a visão abençoada da cidade sagrada junta a sua pedra aos montículos já existentes, ou faz um novo montículo. Esses costumes poderiam ser interpretados como uma forma de purificação cerimonial, que, entre os povos primitivos, é comumente concebida mais como uma forma de purgação física do que moral, uma maneira de varrer ou limpar a matéria mórbida com a qual a pessoa poluída estaria infectada.

Esses costumes parecem indicar a transformação gradual de uma velha cerimônia mágica num rito religioso, com seus aspectos característicos de oração e sacrifício. Não obstante, por trás desses acréscimos recentes, como poderíamos considerá- los, parece possível em muitos casos, embora não em todos, discernir o núcleo em torno do qual se formaram, a idéia original que tendiam a disfarçar e, com o tempo, a transmudar. Essa idéia é a transferência do mal do homem para uma substância material que pode ser lançada dele como uma roupa velha.

Os animais são empregados, com freqüência, como  veículo  para  a  transferência  ou  o desaparecimento do mal. Assim, entre os majhwars, raça dravídica do sul de Mirzapur, se alguém morre de doença contagiosa, como a cólera, o sacerdote da aldeia vai à frente do enterro levando nas mãos uma galinha, que solta na direção de alguma outra aldeia, como um boue expiatório, para carregar para lá a infecção. Ninguém, a não ser outro sacerdote muito experiente, ousaria tocar ou comer essa galinha.

Homens por vezes desempenham o papel de bodes expiatórios, atraindo sobre si os males que ameaçam outros. Um antigo ritual hindu descreve como as angústias da sede podem ser transferidas de um homem doente para outro são. O operador coloca os dois sentados de costas um para o outro, o enfermo com o rosto voltado para o leste e o homem são com o rosto para o oeste. Em seguida, mexe um caldo numa vasilha colocada sobre a cabeça do paciente e dá o caldo ao outro homem para que o beba. Dessa forma, ele transfere o sofrimento da sede da alma sedenta para a outra, que recebe esse sofrimento em lugar da outra. Em 1590, uma feiticeira escocesa chamada Agnes Sampson foi condenada por ter curado um certo Robert Kers de uma enfermidade “sobre ele lançada por um feiticeiro do oeste, quando estava em Dumfries, enfermidade que ela tomou sobre si, suportando-a com grandes grunhidos e sofrimentos até a manhã, quando então se ouviu um grande barulho dentro de casa”. O barulho foi feito pela bruxa, em suas tentativas de transferir a doença, por meio de roupas, dela para um gato ou um cachorro. Infelizmente, a tentativa fracassou em parte. A bruxa errou o animal e atingiu Alexander Douglas de Dalkeith, que morreu em conseqüência disso, enquanto o doente original, Robert Kers, ficava curado.

Em Travancore, quando um rajá se aproxima de seu fim, procura um santo brâmane, que consente em assumir os pecados do moribundo pela soma de dez mil rupias. Assim preparado para imolar-se no altar do dever em um vicário sacrifício, pelo pecado alheio, o santo é levado ao quarto do rajá e abraça o moribundo, dizendo-lhe: “Ó rei, aceito carregar todos os seus pecados e enfermidades. Possa Vossa Alteza viver por muito tempo e reinar com felicidade”. Tendo assim, com nobre devoção, arcado com os pecados do sofredor, e também com as suas rupias, ele é mandado para fora do país e nunca mais terá permissão para voltar. Muito semelhante a esse costume é o velho costume galês conhecido como “comer o pecado”. De acordo com Aubrey, “no condado de Hereford havia um velho costume de, nos funerais, contratar pessoas pobres que arcavam com todos os pecados do morto. Lembro-me de que um dos que se prestavam a isso vivia numa cabana na estrada de Rosse. (Era um pobre-diabo, comprido, magro, feio, lamentável.) Quando o corpo do morto era levado para fora da casa e colocado no catafalco, um pedaço de pão era entregue ao comedor de pecados, por cima do cadáver, e também uma tigela de bordo (taça dos mexericos) cheia de cerveja, que ele devia beber, e seis pence em dinheiro, em troca dos quais ele assumia (ipso facto) todos os pecados do defunto, libertando-o (ou libertando-a) de ter de caminhar depois de morto. . . Esse costume (embora raramente observado em nossos dias) era ainda assim respeitado por certas pessoas, até mesmo na época do mais rigoroso governo presbiteriano; em Dynder, volens nolens, o pároco daquela paróquia, parente de uma mulher ali falecida, mandou realizar fielmente essa cerimônia, de acordo com o testamento dela”.

Na Europa, o receptáculo mais comum para a enfermidade e para todos os tipos de problemas é a árvore. Com freqüência o que sofre do mal prega-lhe uma cunha, uma cavilha ou um prego, acreditando que, com isso, prega na madeira a doença ou a dor. Assim, na Boêmia um tratamento para a febre é pregar uma cunha numa árvore ao mesmo tempo em que são pronunciadas as palavras “Prendo-te aqui para que nunca mais possas sair atrás de mim”.

Do ato de prender a desgraça numa árvore ou em qualquer pedaço de madeira ao de pregá-la numa pedra, num portal ou numa parede, vai apenas um passo. Na entrada de Glen Mor, perto de Port Charlotte, em Islay, vê-se uma grande rocha, e afirma-se que quem ali pregar um prego estará para sempre salvo de dores de dentes. A grande peste que devastou o mundo antigo no reinado de Marco Antonino ter-se-ia originado da curiosidade e da ambição de alguns soldados romanos que, ao saquearem a cidade de Selêucia, encontraram um buraco estreito num templo e, levianamente, ampliaram a abertura, na esperança de encontrar um  tesouro.  O  que  saiu  dali,  porém,  não  foi nenhum tesouro, mas a peste. Havia sido aprisionada num compartimento secreto pela arte mágica dos caldeus, e então, libertada de sua prisão pelo ato irrefletido de saqueadores, estendeu-se pelo exterior e espalhou a morte e a destruição do Eufrates ao Nilo e ao Atlântico.

A cerimônia simples na qual a superstição dos camponeses europeus vê até hoje um grande remédio para a peste e a febre, bem como para a dor de dente, nos vem da Antiguidade remota, pois era realizada solenemente, de tempos em tempos, pelo mais alto magistrado de Roma, para conter a devastação da peste ou evitar um desastre que ameaçava as bases da vida nacional. No século IV a.C, a cidade de Roma foi assolada por uma grande peste que durou três anos, matando alguns dos mais altos dignitários e grande número de plebeus. O historiador que registra essa calamidade nos informa que, depois que se ofereceu em vão um banquete aos deuses e quando nem os conselhos humanos nem a ajuda divina se mostraram capazes de mitigar a violência da epidemia, decidiu-se, pela primeira vez na história romana, instituir espetáculos dramáticos como meio adequado de apaziguar a ira das potências celestes. Assim, mandou-se buscar atores na Etrúria, que dançaram números simples e moderados ao som de uma flauta. Mas nem mesmo esse espetáculo novo divertiu, comoveu ou emocionou os deuses mal-humorados. A peste continuava a matar, e, no momento mesmo em que os atores procuravam dar o máximo de si no circo à margem do Tibre, o rio amarelo elevou-se numa enchente irada e arrastou atores e espectadores, que esperneavam em meio às águas cada vez mais profundas, para longe do espetáculo. Era evidente que os deuses des- prezavam tanto as peças quanto as orações e banquetes e, em meio à consternação geral, chegou-se à conclusão de que era necessária uma medida mais drástica para pôr fim ao flagelo. Os velhos se recordaram de que uma peste havia sido contida, no passado, enfiando-se um prego numa parede; assim, o Senado resolveu que, como medida extrema, depois de terem fracassado todos os outros recursos, um magistrado supremo seria nomeado, com a única finalidade de realizar essa cerimônia solene. A nomeação foi feita, o prego foi cravado e a peste acabou se extinguindo, mais cedo ou mais tarde. Que melhor prova da virtude salvadora de um prego?

Falamos do princípio primitivo da transferência de males para outra pessoa, animal ou coisa. O exame dos meios utilizados, de acordo com esse princípio, para livrar as pessoas de seus problemas e sofrimentos, levou-nos a constatar que, em Roma, meios semelhantes haviam sido adotados para libertar toda a comunidade, graças a um único golpe de martelo, dos males diversos que a afligiam. Pretendemos, agora, mostrar que essas tentativas de acabar de uma só vez com os sofrimentos acumulados do povo não são raras ou excepcionais, mas que, pelo contrário, foram feitas em muitas terras, e que, de ocasionais, tendem a passar a ser periódicas e anuais. Os esforços dos povos primitivos para se livrarem de todos os seus problemas de uma só vez tomam, geralmente, a forma de uma grande caçada e expulsão dos demônios ou espíritos que, segundo acreditam, são as causas de todas as aflições. Eles acham que, se puderem deitar fora esses seus malditos atormentadores, poderão recomeçar a vida, felizes e inocentes. As histórias do Éden e a velha Idade do Ouro da poesia voltariam então a ser verdade. As tentativas públicas de expulsar os males acumulados de toda uma comunidade podem ser divididas em duas classes, dependendo de serem os males expulsos imateriais e invisíveis ou de estarem eles encerrados num veículo material ou bode expiatório. A primeira pode ser chamada de expulsão direta ou imediata dos males; a segunda, de expulsão indireta ou mediata, ou ainda, expulsão por bode expiatório.

Vamos examinar primeiro a expulsão imediata dos males de toda uma comunidade. Tais expulsões podem ocorrer em ocasiões de enfermidades ou desgraças generalizadas, embora tendam a passar de ocasionais a periódicas. Passa-se a considerar desejável um expurgo geral de espíritos malignos em épocas fixas, habitualmente uma vez por ano, de modo que as pessoas possam recomeçar suas vidas. Na Europa cristã, o velho costume pagão de afastar os poderes do mal em certos períodos do ano sobreviveu até a época moderna. Feiticeiros e magos eram considerados como particularmente malignos nos doze dias que iam do Natal à Noite de Reis, na véspera do Dia de São Jorge, na véspera do 1.° de Maio (Noite de Walpurgis) e na véspera do Solstício de Verão. Medidas especiais de precaução tinham de ser tomadas nessas ocasiões.

Assim, na longa e espaçosa Piazza Navona, em Roma, na véspera da Epifania, reúne-se grande multidão, que faz um barulho ensurdecedor. Pouco depois do jantar, grupos de jovens desfilam pelas ruas, tendo à frente bonecos de massa e títeres, e procuram fazer o maior alarido possível. Dirigem- se, partindo de diferentes bairros, para a Piazza Navona, onde se unem para provocar um ruído terrível. Os instrumentos musicais prediletos nesse concerto de loucos são as cornetas de brinquedo, das quais, juntamente com tamborins, sinetas e outros instrumentos semelhantes, as lojas têm o cuidado de se abastecer bem, preparando-se para o pandemônio daquela noite. A cerimônia é realizada em honra a uma certa feiticeira antiga, mítica, de nome Befana, cuja efígie, feita de trapos, é colocada pelas mulheres e crianças nas janelas, na Noite de Reis. Seu nome, Befana, é evidentemente uma corruptela popular de Epifania, o nome eclesiástico da festa; vista, porém, em conexão com as festas populares que examinamos, podemos acreditar que tenha origem mais pagã do que cristã. De fato, podemos imaginar que ela anteriormente era uma bruxa e que o barulhento ritual da Piazza Navona é apenas um resquício da expulsão anual das feiticeiras feita nessa época do ano.

Nas ilhas Shetland, o Yule, ou feriados de Natal, começava sete dias antes do Natal propriamente dito e durava até Antinmas, isto é, o vigésimo quarto dia depois dessa data. Na linguagem de

Shetland, esses feriados são conhecidos como “os Yules”. Na primeira noite, chamada de Tul-ya’s e’en, sete dias antes do Natal, certos duendes malignos, aos quais os habitantes dão o nome de trows, “receberam permissão de deixar suas moradas no coração da terra e viver, se isso lhes agradar, entre as moradas dos homens”. Assim, no último dia dos feriados, ou seja, o vigésimo quarto dia depois do Natal, que, naquelas ilhas, recebe o nome de Ph-helly-a’, Uphellia ou Uphaliday, “as portas eram todas abertas, e realizavam-se pan- tomimas de perseguição a criaturas invisíveis. Muitas jaculatórias eram pronunciadas, e exibiam- se objetos de ferro, ‘pois os trows não suportam a vista do ferro’. Lia-se e citava-se a Bíblia. As pessoas movimentavam-se em grupos ou casais, nunca sozinhas, e as crianças eram cuidadosamente protegidas ou bentas por ‘velhas comadres’, vigilantes e experientes. Pobres trows, seu período de liberdade e de divertimento terminou e, na vigésima quarta noite, eles se retiram para a sua sombria morada debaixo do solo, raramente tendo oportunidade de reaparecer, e sem gozar da mesma liberdade, até que os Yules voltem”.

Chegamos agora à segunda classe de expulsões, na qual as más influências estão materializadas numa forma visível ou, pelo menos, se supõe que se tenham descarregado sobre um meio material que age como veículo para afastá-las das pessoas, da aldeia ou da cidade. Em Munzerabad, no distrito de Mysore, no sul da Índia, quando há ocorrência de cólera ou varíola, os habitantes se reúnem para conjurar o demônio da doença, fazendo com que penetre em uma imagem de madeira, que levam, em geral à meia-noite, para a aldeia vizinha. Os habitantes desta passam, da mesma forma, a imagem para outros vizinhos, e assim o demônio é expulso de aldeia após aldeia até chegar às margens de um rio, onde é final- mente lançado. Os aldeões russos procuram proteger-se contra epidemias que atingem os homens ou os animais traçando com um arado um sulco em torno da aldeia. O arado é arrastado por quatro viúvas e a cerimônia é realizada à noite; todos os fogos e luzes devem ser apagados enquanto se realiza a cerimônia. Acredita-se que nenhum espírito impuro possa passar através do sulco assim traçado.

O veículo do afastamento dos demônios pode ser de vários tipos. Um dos mais comuns é um pequeno navio ou barco. Assim, no distrito sul da ilha de Ceram, quando alguma doença se abate sobre toda uma aldeia, faz-se um pequeno navio que é enchido de arroz, fumo, ovos, etc, doados por todo o povo e no qual se coloca uma pequena vela. Quando tudo está pronto, um homem grita: “Ó doenças, ó varíolas, febres, caxumbas, etc, que nos visitaram por tanto tempo e tanto nos castigaram, mas que agora deixam de nos atormentar, fizemos esse navio para vocês e colocamos nele provisões suficientes para a viagem. Não faltará a vocês comida nem folhas de bétel, nem nozes de areca nem tabaco. Partam; naveguem para longe de nós e nunca mais voltem; procurem uma terra que seja longe daqui. Que todas as marés e todos os ventos levem vocês rapidamente para lá, para tão longe que possamos viver bem e com saúde para o futuro, que jamais voltemos a ver o sol se levantar para vocês”. Em seguida, dez ou doze homens levam o barco para a praia e deixam que se afaste ao sopro da brisa, convictos de que estão livres para sempre das enfermidades, ou, pelo menos, até que elas voltem. Se a doença volta a atacá-los, terão a certeza de que não se trata da mesma enfermidade, mas de outra, diferente, que, no devido tempo, eles afastarão pelo mesmo processo. Quando perdem de vista o barco cheio de demônios, os carregadores voltam à aldeia, e um homem grita: “As doenças foram embora, desapareceram, foram expulsas, e partiram no barco”. Com isso, todos deixam suas casas correndo, repetindo uns para os outros as mesmas palavras, alegremente, fazendo soar os gongos, os sinos e chocalhos.

Com freqüência o veículo que afasta os males ou os demônios colecionados por toda uma comunidade é um animal ou bode expiatório, e pode acontecer que o bode expiatório seja um homem. Por exemplo, de tempos em tempos os deuses costumavam advertir o rei de Uganda de que seus inimigos, os banyoros, estavam fazendo feitiços contra ele e seu povo com o objetivo de matá-los por meio de doenças. Para evitar essa catástrofe, o rei mandava um bode expiatório até a fronteira com Bunyoro, a terra dos inimigos. O bode expiatório consistia em um homem e um rapaz ou em uma mulher e seu filho, escolhidos devido a alguma marca ou defeito físico que os deuses haviam notado e pelos quais as vítimas seriam reconhecidas. Com as vítimas humanas eram mandados também uma vaca, um bode, uma ave e um cão. Uma forte guarda escoltava-os até a terra que o deus havia indicado. Ali os mem- bros das vítimas eram quebrados, e elas eram deixadas para morrer lentamente em terra inimiga, uma vez que não poderiam sequer arrastar-se de volta para Uganda, tal o seu estado. Achava-se que, com isso, a enfermidade ou a peste haviam sido transferidas para as vítimas, e também devolvidas, em suas pessoas, à terra de onde vinham. Da mesma forma, depois de uma guerra, os deuses por vezes aconselhavam o rei a mandar de volta um bode expiatório a fim de libertar os guerreiros de algum mal que se tivesse associado ao exército. Uma das escravas, bem como uma vaca, um bode, uma ave e um cão eram escolhidos entre os cativos e mandados para a fronteira do país de onde procediam. Ali, eram mutilados e abandonados à morte. Depois disso, o exército era declarado expurgado e pronto a voltar à capital. Em ambos os casos, certas ervas eram esfregadas nas pessoas e nos animais, em seguida atadas às vítimas, que levavam o mal de volta consigo.

Expulsões públicas mediatas do mal ocorrem a intervalos regulares. Anualmente, no início da estação das secas, os ilhéus de Nicobar atravessam suas aldeias carregando o modelo de um navio. Os demônios são expulsos das cabanas e dirigidos para bordo do pequeno barco, que é então lançado no mar, aguardando-se que o vento o leve para longe. A cerimônia foi descrita por um catequista, que a presenciou em Car Nicobar em julho de 1897. Durante três dias, prepararam-se duas embarcações bastante grandes, com o formato de canoas, dotadas de velas e carregadas de certas folhas que tinham a valiosa propriedade de expulsar os demônios. Enquanto os jovens se dedicavam a esse trabalho, os exorcistas e as pessoas mais velhas sentavam-se numa casa, entoando canções, em turnos; muitas vezes, porém, saíam, dirigiam-se à praia e, armados com paus, proibiam que o demônio se aproximasse da aldeia. O quarto dia da solenidade tinha o nome de into-nga-siya, o que significa “expulsão dos demônios pelas velas dos barcos”. À noite, todos os aldeões se reuniam; as mulheres traziam cestos de cinzas e ramos de “folhas que expulsam os demônios”. Essas folhas eram então distribuídas a todos, velhos e moços. Quando tudo estava pronto, um grupo de homens fortes, assistido por uma guarda de exorcistas, levava uma das embarcações até o mar, do lado direito do cemitério da aldeia, e a colocava flutuando na água. Tão logo retornavam, outro grupo de homens levava a outra embarcação para a praia e também a colocava flutuando no mar, desta vez à esquerda do cemitério. Uma vez lançados ao mar os barcos carregados de demônios, as mulheres jogavam cinzas, da praia, e toda a multidão gritava: “Navegue para longe, demônio, navegue para longe, não volte nunca mais!” Se o vento e a maré eram favoráveis, as canoas se afastavam rapidamente, e, naquela noite, todos festejavam com grande alegria, porque o demônio havia partido na direção de Chowra. Uma semelhante expulsão dos demônios é feita uma vez por ano em outras aldeias de Nicobar, mas a cerimônia é realizada, nos diferentes lugares, em diferentes ocasiões.

No Dia da Expiação, que era o décimo dia do sétimo mês, o sumo sacerdote judaico colocava as duas mãos na cabeça de um bode vivo, confessava todas as iniquidades dos filhos de Israel e, tendo com isso transferido os pecados do povo para o animal, mandava-o embora para o deserto.

O bode expiatório sobre o qual os pecados são periodicamente descarregados também pode ser humano. No Sião, era costume escolher, num determinado dia do ano, uma mulher desgastada pela vida devassa e levá-la numa liteira pelas ruas ao som de tambores e oboés.

A multidão insultava-a e atirava-lhe lixo; depois de levada por toda a cidade, ela era jogada num monturo ou numa moita de espinhos fora da cidade e proibida de voltar a esta. Acreditava-se que a mulher atraía sobre si, dessa forma, todas as influências malignas do ar e os maus espíritos.

Os bodes expiatórios humanos, como iremos ver adiante, eram bem conhecidos da Antiguidade clássica, e até mesmo na Europa medieval o costume parece sobreviver ainda. Na cidade de Halberstadt, na Turíngia, havia uma igreja da qual se dizia ter sido fundada por Carlos Magno. Ali, todos   os   anos,   escolhiam   um   homem, supostamente manchado pelos mais ignominiosos pecados. No primeiro dia da Quaresma, ele era levado à igreja vestido de luto e com a cabeça coberta. Ao término do serviço, era expulso da igreja. Durante os quarenta dias da Quaresma perambulava pela cidade, descalço, sem entrar nas igrejas ou falar com ninguém. Os padres se revezavam para alimentá-lo. Depois da meia-noite, ele podia dormir na rua. Na véspera da Sexta-Feira Santa, depois da consagração dos santos óleos, ele era readmitido na igreja e absolvido de seus pecados. Davam-lhe, então, dinheiro. Era chamado nessa ocasião de Adão, e acreditava-se que estava agora em estado de graça.

Por vezes o bode expiatório é um animal divino. Os habitantes de Malabar adotam a mesma reverência que os hindus têm pela vaca, e matá-la e comê-la é por “eles considerado como um crime tão hediondo quanto o homicídio ou o assassínio premeditado”. Não obstante, “os brâmanes transferem os pecados do povo para uma ou mais vacas; são então levados para longe tanto as vacas como os pecados de que estão carregadas, para o lugar determinado pelos brâmanes”.

Finalmente, o bode expiatório pode ser um homem divino. Assim, em novembro, os gon-des da índia cultuam Ghansyam Deo, o protetor das plantações, e afirma-se que, na sua festa, o próprio deus baixa no corpo de um de seus adoradores, que é subitamente tomado de um ataque e, depois de vagar sem rumo, corre para a selva, onde se acredita que, se permanecer entregue a si mesmo, morrerá louco. Vão buscá-lo e trazem-no de volta, mas ele não recupera o juízo por mais um ou dois dias. Acredita-se, assim, que um homem é escolhido como bode expiatório para pagar pelos pecados de toda a aldeia. No Templo da Lua, os albaneses do Cáucaso oriental mantinham alguns escravos sagrados, dentre os quais muitos eram inspirados e faziam profecias. Quando um deles evidenciava sintomas excep- cionais de inspiração ou insanidade, e vagava solitário pelos bosques, como o gonde na selva, o sumo sacerdote mandava prendê-lo com uma corrente sagrada e o sustentava com todo o luxo e conforto durante um ano, ao final do qual ungia-o com unguentos e o levava ao sacrifício.

Um homem cuja função era sacrificar essas vítimas humanas e a quem a prática havia conferido a destreza necessária a isso avançava da multidão e atirava uma lança sagrada sobre a vítima, atravessando-lhe o coração. Da maneira pela qual o homem imolado tombava, deduziam-se presságios quanto ao bem-estar da comunidade. Em seguida, o corpo era levado a um certo lugar, onde todos o pisavam como cerimônia purificadora. Essa última circunstância indica claramente que os pecados eram transferidos para a vítima, tal como o sacerdote judeu transferia os pecados do povo para o bode expiatório colocando as mãos sobre a cabeça do animal. E como se acreditava que o homem estava possuído pelo espírito divino, temos, no caso, um exemplo indubitável de um homem-deus morto para eximir o povo dos pecados e das desgraças.

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