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Colin Wilson
*Extraido do livro O Oculto de Colin Wilson — Francisco Alves Editora (1971)
A “moda européia das bruxas” (como a chama o professor Trevor-Roper) é um fenômeno desconcertante jamais explicado satisfatoriamente. Na Idade Média não se acreditava em bruxas: a doutrina oficial da Igreja, expressa no “cânone episcopal”, preceituava que todo aquele que acreditasse em bruxas “é, sem dúvida, infiel e pagão”.
A mudança de atitude iniciou-se no século XI, com o surgimento de uma poderosa seita denominada Cátaros. Em termos doutrinários, os cátaros descendiam dos gnósticos e dos maniqueus, de que já tratamos em outro texto. Acreditavam que o Deus do Antigo Testamento era um demônio e que o mundo foi criado pelo Diabo, o Monstro do Caos. Acreditavam na salvação através de Jesus, mas afirmavam que Jesus, na realidade, não fora crucificado. Sua forma terrena seria a de um espírito, pois como poderia a essência da bondade se incorporar na matéria, má por natureza? Como os maniqueus e os adeptos de uma seita russa chamada Skoptzi, que surgiu mais tarde, os cátaros defendiam a abstenção sexual, alegando ser mau tudo aquilo que prolongue a existência física.
É surpreendente como os cátaros obtiveram aceitação tão grande e generalizada. Originários dos Bálcãs, no século X, os cátaros foram aos poucos se espalhando por toda a Europa. Uma de suas seitas, nas proximidades da cidade de Albi, no sul da França, tornou-se conhecida como albigenses. Assumindo formas diversas, esse novo gnosticismo difundiu-se por toda a parte, desde Constantinopla (onde se denominavam Bogomils), no Oriente, até o norte da França, onde existiu o primeiro bispo cátaro, em 1149. Em fins do século XII havia onze desses bispos, seis deles na própria Itália.
É inegável que a miséria e as moléstias do fim da Idade Média muito contribuíram para tal êxito. Os países prósperos costumam satisfazer-se com religiões mais brandas, mas onde reinam a pobreza e o sofrimento algo mais rígido e obscuro se faz necessário. E por isso que mais tarde o presbiterianismo viria a exercer tão forte apelo na Escócia, e o metodismo floresceria entre os úmidos os e desolados vilarejos da Cornuália. Na doutrina dos maniqueus também existe algo que fala ao profundo romantismo da natureza humana — o sentimento de que o inferno é aqui na terra, e de que a felicidade se encontra em “outra esfera”.
Quando o Conde Raymond VI de Toulouse aderiu aos cátaros, o papa achou que estava na hora de fazer alguma coisa, e convocou uma cruzada. Para muitos cavaleiros e barões franceses, era como um convite de caça aos javalis. Seria uma ação de apenas quarenta dias (prazo específico padronizado para uma cruzada), com muitos saques e violações. Um grande exército varreu o sul da França, destruindo cidades inteiras e vitimando hereges e fiéis igualmente. Simon de Montfort (pai do De Montfort que constituiu o primeiro parlamento inglês) foi o mais brutal desses saqueadores, tendo permanecido em Toulouse após provocar uma guerra sangrenta. A abjeta Inquisição nasceu em Toulouse, em 1229, e seus mais dedicados agentes eram dominicanos, que viajavam por toda a parte e denunciavam hereges onde quer que os encontrassem.
A história completa dos horrores daqueles anos jamais foi contada, e talvez seja melhor assim. A Igreja estava decidida a eliminar a heresia a qualquer custo. Com ironia, um crítico poderia supor que os cardeais, ceando javali assado com bons vinhos italianos, se sentissem ameaçados pela doutrina asceta dos isolados cátaros. De qualquer maneira, cátaros e albigenses foram impiedosamente eliminados. Os poucos sobreviventes fugiram para aldeias nas montanhas, como o fariam os valdenses ao sofrerem perseguição semelhante mais de dois séculos depois. Domingos (posteriormente São Domingos), fundador dos Monges Pregadores, com sede estabelecida em Toulouse em 1215, prometeu dedicar-se à destruição da seita dos cátaros através da “persuasão dirigida à mente e ao coração”, mas sua polícia secreta — pois, na realidade, isso é o que representavam os dominicanos — logo passou a agir por conta própria e a ver adoradores do Diabo por toda a parte. Foram esses “pregadores” dominicanos que descobriram que o Diabo mudara de tática: perdido seu exército de cátaros, o Diabo partiu para a criação de um exército secreto de velhas más, todas a seu serviço e dedicadas à destruição secreta da Igreja. É possível que não estivessem totalmente enganados. A extrema crueldade e a impiedosa perseguição costumam provocar o aparecimento de movimentos “subterrâneos” dedicados à destruição dos opressores através de meios secretos. Assim, há que se imaginar as primeiras “bruxas” como participantes de um Movimento de Resistência cátaro, uma espécie de I.R.A. herege. O que não é tão absurdo quanto parece. Ë bem verdade que sempre houve bruxas — em pequenos números. Mas eram, por assim dizer, bruxas de ação individual. Os cátaros acreditavam que o Deus criador deste mundo é um demônio que, de alguma forma, conseguiu o poder que tem usurpando-o da Divindade Última, que se situa bem acima de banalidades como a criação. Ë uma doutrina que não satisfaz. A quem dirigir as preces nos momentos de extremo sofrimento? Não ao Ser Supremo; por que ele teria de se preocupar com as ações de um de seus eões decaídos? Com isto, resta apenas o ente decaído, o Monstro do Caos, o Satanás. Talvez algumas mulheres da seita dos cátaros, que tinham visto o assassinato de maridos e filhos, realmente tenham dirigido suas preces ao Monstro do Caos por Vingança. Dois séculos depois os cátaros já não existiam, mas os dominicanos da Inquisição prosseguiam em sua ação fulminante contra as bruxas, a quem denominavam valdenses , que se reuniam nos sabás ou “valdesias”. (Os valdenses também recebiam o nome de vaudois, tirado da aldeia piemontesa dos Alpes onde se estabeleceram.) Nos Pirineus, as bruxas eram chamadas gazarii (palavra obviamente derivada de cátaros).
Os dominicanos continuaram insistindo que a Igreja lhes concedesse per-missão oficial para a organização de mais cruzadas contra as bruxas, mas a Igreja, lembrando-se de que o “cânone episcopal” negava a existência de bruxas, recusou-se a dar sua sanção por mais um século. Foi então que, infelizmente, João XXII, paranóico supersticioso, tornou-se papa. Tinha a firme convicção de que os inimigos tramavam sua morte pela magia, cedendo pois, finalmente, à solicitação dos dominicanos, para quem a “feitiçaria” em si constituiria crime, independentemente da questão da heresia. Isto se deu em 1326, em Super illius specula. Significativo é o fato de esse mesmo papa ter declarado herege a doutrina franciscana da pobreza de Cristo — qualquer coisa relacionada com pobreza era suspeita.
Mesmo assim, a perseguição às bruxas começou aos poucos. Principiou nos Pireneus e nos Alpes, território de albigenses e valdenses, e logo adquiriu características próprias. No primeiro julgamento secular da bruxaria realizado em Paris, em 1390, uma mulher chamada Jehane de Brigue era acusada de praticar a feitiçaria por um homem que estivera à morte e fora curado por ela Jehane defendeu-se afirmando não ser bruxa e dizendo que apenas se utilizara de palavras mágicas que lhe haviam sido ensinadas por outra mulher, e que incluíam: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Por onde se vê que as “palavras mágicas” permaneceram basicamente imutáveis durante seiscentos anos. Torturada e confinada em masmorra imunda e fria durante os meses do inverno de 1390-1391, Jehane finalmente “confessou” ter um demônio familiar de nome Haussibut. Ruilly, o homem que ela havia curado, disse no julgamento que Jehane atribuía sua doença aos feitiços da amante dele, com quem tivera dois filhos. Novamente torturada, Jehane confessou que realmente fora ela que enfeitiçara Ruilly, mas a pedido da esposa de Ruilly, Macette , que pretendia ter um caso amoroso com o cura local. Macette também foi presa e torturada no ecúleo, fazendo também sua confissão . Só não se explica por que Jehane teria enfeitiçado Rully para depois salvar-lhe a vida . Jehane e Macette foram executadas . Certamente houve muitos casos de bruxaria branca — aplicação natural de “poderes ocultos” — que levaram à tortura e à execução.
Em 1618 , um vagabundo chamado John Stewart teve uma visão de um navio naufragando perto de Padstow , na Cornuália . Na época da visão ele se encontrava em Irvine , na Escócia . Quando chegaram as noticias do naufragio real de um navio em Padstow , ele foi preso e acusado de possuir o dom da premonição. Uma mulher que havia rogado pragas para alqguem que se encontrava a bordo do navio também foi presa , como bruxa , e depois de torturada implicou mais duas mulheres ea filha de oito anos de uma delas. A criança confessou ter visto um cão demoniaco emitindo luz no momento em que sua mãe e Margareth Narclay , a acusada principal , moldavam figuras de cera. Margareth Barclay foi estrangulada e queimada na fogueira . embora houvessem retirado a confissão que lhe fora extraida sob tortura Uma das mulheres que ela acusou morreu ao cair do telhado da igreja, quando tentava fugir pelo campánario . Outra “confessou” , mas retirou a confissão e no fim recusou-se a perdoar seu algoz. John Stewart conseguiu estrangular-se com fita de seu próprio chapéu quando esperava a hora de ser executado.
Após a publicação de Malleus Maleficarum em 1486, a recente invenção da imprensa desempenhou importante papel na expansão da caça as bruxas. Qualquer escritor de imaginação rica conseguia alcançar a fama com uma descrição dos demônios evocados por bruxas. O Professor Trevor-Roper assinala que a maioria desses “demonologistas”, responsáveis por incalculáveis sofrimentos, eram inofensivas figuras académicas. Remy, por exemplo, era poeta e historiador, mas ao morrer, em 1616, havia mandado cerca de três mil vitimas para a fogueira. Boguet e De L’Ancre eram pacificos eruditos latinistas.
A caça as bruxas foi tão horripilante e generalizada que supera a imaginação. Se já não é fácil compreender como pode Hitler assassinar seis milhões de judeus em menos de dez anos, torna-se impossivel irnaginar uma campanha de tortura e assassinato que durou quatro séculos. E certo que as execuções levadas a cabo pela Inquisição se davam em escala menor do que as atrocidades cometidas pelo nazismo, rnas não se deve esquecer que as bruxas eram torturadas individualmente. Rossell Hope Robbins verbera indignado: “O registro do periodo da caça às bruxas a brutal e horripilante. A degradação asfixiava a dignidade, e as mais abjetas paixões eram acobertadas pelo manto da religião. O intelecto era distorcido para que o homem fechasse os olhos à bestialidades que até mesmo os Yahoos de Swift se recusariam a cometer. Nunca tantos agiram de modo tão errado durante tanto tempo (. . . .)” Mas depois de umas dez páginas de sua Encyclopedia of Witchcraft, o leitor sente que essas palavras são ate suaves demais.
Para tais atrocidades não pode haver um motivo ünico. Em parte as razões eram politicas: alguns paises viviam sob dorninação protestante e depois católica, e quando a Igreja pretendia punir uma população protestante mandava logo seus inquisidores dominicanos. A reconquista católica provocou a eliminação de muita gente na Renânia, em Flandres, na Polônia e na Hungria. Era como a Igreja se vingava dos protestantes. A Inquisição também podia ser usada por príncipes ou barões, como método de se vingar de indivíduos revoltosos — um método seguro, pois não provocava novas rebeliões.
Mas as motivações psicológicas são igualmente importantes. O início da caça às bruxas coincidiu com a Peste Negra e com a Guerra de Cem Anos. Quando existe miséria e opressão, a violência se transforma em necessidade psicológica. E a violência está sempre associada a sexo, particularmente em sociedades puritanas e repressivas. As bruxas são forçadas a confessar relação sexual com demônios, e são minuciosamente examinadas por inquisidores ávidos por encontrar a marca das bruxas (uma pinta insensível à dor). Franz Buirmann, nomeado caçador de bruxas pelo Príncipe-arcebispo de Colônia na década de 1630, usava notoriamente o cargo para seduzir mulheres que por outros meios lhe seriam inacessíveis. Uma certa Frau Peller, que repeliu sua aproximação, era esposa de um consultor da corte. Buirmann agiu depressa: ela foi presa de manhã e à tarde já era torturada. Rasparam-lhe o cabelo e todos os pêlos do corpo, sendo permitido ao ajudante do torturador possuí-la enquanto a raspava. Buirmann, presente à tortura, enfiou-lhe um trapo sujo na boca para abafar os gritos. Frau Peller foi queimada viva numa palhoça cheia de palha seca, tudo em questão de horas. Buirmann fora colocado numa posição em que tinha condições de pôr para fora suas sádicas fantasias sexuais. O fato parece extraído das páginas de um romance de Sade.
Com tudo o que se falava de demônios, assembléias de bruxas e torturas, mais o cheiro da carne humana a queimar nas fogueiras, a bruxaria se tornou uma obsessão de sombrios atrativos. O equivalente de hoje seria o crime sexual com extrema violência, quase sempre seguido de crimes semelhantes e confissões de pessoas excêntricas. O assassinato de Elizabeth Short, a Dália Negra, praticado em Hollywood em 1949, foi seguido de seis crimes semelhantes na área de Los Angeles e de 29 confissões do mesmo crime. A natureza particularmente horrenda do assassinado — ela fora pendurada de cabeça para baixo, torturada e depois cortada ao meio — garantira notícia de primeira página durante semanas seguidas. Homens solitários, matutando com os jornais à mão em suas pensões asfixiantes, por fim começaram a considerar a hipótese de arriscar. Da mesma maneira, mulheres solitárias e entediadas como Isobel Gowdie, levando uma vida acanhada e desamparada, achavam fantásticos e muito fascinantes os lúgubres folhetos que falavam de sexo com demônios. E como acreditavam na existência de muitíssimos demônios invisíveis no ar, não demorava muito para se convencerem de que seus desejos logo seriam do conhecimento do Diabo. Um sonho erótico bastava para confirmar tudo.
Mas por que isso aconteceu depois da Reforma?
A Idade Média pode ter representado o periodo da fé, mas também uma época de guerras , pobrezas , pestes e crenças em demonios. Havia todas as condições . Exceto uma : a característica exclusivamente humana da liberdade de imaginação. Na Idade Média esse aspecto ainda não estava desenvolvido. O homem labutava nas tarefas do dia-dia, mas nada conseguia enxergar além delas. O que ocorreu após 1450 foi uma transformação não apenas social, mas evolucionista — uma dessas agitações periódicas que parecem atingir a raça humana como um vento que agita o milharal. Gilles de Rais, figura desconcertante, dá indicações da chegada desse período já na primeira metade do século. Seu espírito quer fazer explodir o que o aprisiona, cometer crimes que ninguém jamais ousou cometer, manter contato com o próprio Diabo, tomar-se o mais rico e poderoso príncipe da Cristandade. Os camponeses cujos filhos ele raptou eram pacientes e perseverantes, eram criaturas passivas que por fim perdoaram o torturador. Mas no século seguinte, a agitação que conduziu Gilles ao demonismo chegou até o campesinato e foi amplificado pelo tédio do campo.
Margaret Murray pergunta: Por que seriam tão semelhantes os relatos a respeito de assembléia de bruxas, fossem eles provenientes da França do século XIV, da Austria do século XV, da Espanha do século XVI ou da Holanda do século XVII? Por que descrevem sempre o Diabo como um homem enorme, meio bode (ou, menos freqüentemente, como um grande sapo), de voz rouca “como alguém que fala através de um orifício no bojo de um tonel” , que faz as bruxas beijarem seu repugnante ânus e cujos abraços são gelados? Deve haver algo que não seja apenas fruto da imaginaçao, ou então algumas histórias seriam diferentes, apresentando um Diabo quente, .de odor ou voz agradável Montague Summers entende a coincidência como prova da existência do Diabo. Margaret Murray não vai tão longe — apenas afirma que os sabás eram realidade, e que o Diabo provavelmente era personificado por um homem grande usando máscara, capote e um pénis artificial que esguichava leite frio. Ela, por certo, não duvida que tenham ocorrido assembléias de bruxos como essa, e quanto a isso está do lado dos mais céticos historiadores. Ocorreu, pois, provavelmente, que a caça às bruxas acabou produzindo uma histeria coletiva responsável precisamente por aquilo que procurava exterminar. Trata-se de uma característica da imaginação humana que só agora começa a ser reconhecida pela psicologia: quando se nega à imaginação a possibilidade de uma manifestação ativa e criativa, ela sai à cata de qualquer estímulo poderoso, terrível ou negativo que seja. A mente humana precisa de movimento, qualquer movimento.
Num de seus primeiros livros, Sartre fala de uma garota educada num convento que depois se casa com um profissional liberal. Sozinha o dia inteiro dentro do apartamento, começou a sentir uma absurda compulso de in até a janela e convidar os homens a entrarem, como uma prostituta. Goethe é autor de uma história clássica, intitulada The Honest Attorney, em que uma jovem e virtuosa dona-de-casa, sozinha o dia inteiro, finalmente se toma obcecada pela idéia de cometer adultério — precisamente porque em condições normais a idéia lhe repugnaria. Nestes casos, está em ação o mesmo princípio do hipnotismo. O tédio ou o vazio permite que a mente se preencha com energia não utilizada, produzindo uma sensação dolorida, como uma bexiga cheia.
Cria-se então uma autoconsciência em grau excessivo. Isso produz o efeito usual de impedir que os instintos desempenhem seu papel calma e moderadamente — congelam-se os sentimentos. O desejo de experimentar sensações fortes — a mais básica das necessidades psicológicas — se transforma numa espécie de pânico. A culpa e o sofrimento são preferíveis ao tédio. O que a mente realmente deseja é o sentido de vastidão e amplitude, de outros tempos e outros lugares, de significado enfim. O que os inquisidores faziam era criar um corpo de mitos e símbolos supercarregados de significado e que, conseqüentemente, exerciam uma irresistível atração sobre as mulheres dotadas de maior tédio e imaginação. O Diabo literalmente arranja serviço para mãos desocupadas e mentes ociosas.
Eu ( Colin Wilson) diria que esse é o aspecto mais importante da caça às bruxas. Mais importante do que a política eclesiástica ou até mesmo do que a perseguição a inofensivos “médiuns naturais” e videntes. Sendo assim, deve-se reconhecer também que os inquisidores e os juízes não têm tanta culpa quanto acreditamos hoje. Eles sabiam muito pouco ou nada mesmo a respeito de histeria sexual. E os sintomas de possessão demoníaca em geral eram realmente muito convincentes, como vimos no caso das freiras de Loudun. Que um racionalista liberal de hoje tente se colocar no lugar de um pároco qualquer do século XVII, numa cidadezinha pequena, a ler um folheto que descreva a possessão de uma jovem chamada Elizabeth Allier. Quando a freira, aos 27 anos, apresenta ataques facilmente identificáveis pela psicologia atual como histeria sexual e fala com voz rouca e masculinizada, o frade dominicano, François Farconnet, repete exorcismos e interroga os demônios. Estes dizem chamar-se Orgeuil e Bonifácio, e explicam que entraram no corpo daquela muffler no meio de uma casca de pão quando ela tinha sete anos, e que pretendem lá permanecer até que ela morra. Os ataques prosseguem pelo sábado e pelo domingo e, por fim, quando o frade expõe o sacramento e ordena “Saiam, criaturas miseráveis!”, a mulher se contorce em convulsões extremas, a língua estende-se comprida para fora e os demônios dizem com voz rouca: “Saio, Jesus”. A partir daí (acreditamos nós), a mulher está curada. Ninguém se fere, não há torturas nem fogueiras. Trata-se apenas de um santo frade a libertar uma pobre moça de dois espíritos do mal. Como se poderia esperar que um pároco de aldeia, mesmo o mais cético, duvidasse da existência dos demônios? Como crer que esse religioso não recomendasse solenemente a seus fiéis que é importante rezar antes das refeições e fazer o sinal da cruz sobre tudo o que se comer entre uma refeição e outra? Ademais, embora seja inegável que muitas das confissões eram obtidas pela tortura, outras tantas eram voluntárias, feitas por mulheres que sabiam que a única possibilidade de salvarem a alma do castigo eterno era permitir que seus corpos fossem queimados nas chamas da fogueira.
Verdade é que havia os descrentes, como Johann Weyer (discípulo de Cornélio Agrippa), Reginald Scot e Friedrich von Spee, este último um juiz da Inquisição que mudou de idéia a respeito de bruxas. Mas como levar a sério essas pessoas ? Eles garantem que as bruxas não existem e que os depoimentos a respeito de feitiços e premonição são pura invencionice , mas todo mundo na aldeia sabe que a mulher do quitandeiro sonhou com a morte do pai na noite exata em que ele morreu , e que os cavalos empacam assustados no lugar onde duas bruxas foram sepultadas em terreno profano . Este tipo de ceticismo demonstra na realidade , uma incapacidade para o sentimento religioso. Os que o professam seriam capazes de dizer que é superstição a crença na virgindade da mãe de Jesus.
E , naturalmente , é um raciocinio fundamentalmente correto. Mas as provas da existencia de demonios e de sabás eram irrefutáveis , e não havia mente dotada de raciocinio lógico e imparcial que as pudesse recusar. Alguma bruxas realmente arruinavam as safras com suas pragas . Havia milhares de velhas capazes de prever o futuro e curar verrugas com suas rezas. O que os inquisidores — aqueles que eram sinceros e religiosos — não conseguiam ver é que isso não era motivo para tanta tortura e fogueira . Não compreendiam que o fogo e os flagelos acabavam aumentando ainda mais o poder do Diabo sobre a imaginação humana.
Deve-se ainda levar em conta o estímulo da tortura e do fogo sobre a imaginaçáo. Faz pouco tempo que o homem écivilizado —alguns milhares de anos apenas. O cristianismo, por seu lado, não exerce muito apelo junto aos fortes e aos dotados de espírito empreendedor. Os comerciantes prósperos e os lavradores simples desejam paz e tranqüilidade para sua rotina, mas o que nasceu para a guerra sonha com a glória vitoriosa na batalha, assim como o que nasceu para o crime sonha com as cidades incendiadas e mulheres violentadas. É significativo o fato de as manifestações realmente violentas da caça às bruxas datarem do fim da Guerra de Cem Anos (1453), como se viesse substituir o período de belicismo. E chegam ao fim nos últimos anos do século XVIII, pouco antes da nova época de guerras e revoluções que de novo tingiriam a Europa de sangue.
A caça às bruxas varreu a Europa numa série de ondas, cada uma segui-da de um período de tranqüilidade. Períodos havia em que as perseguições se tornavam táo cruéis que provocavam revoltas espontâneas contra elas. No começo do século XVI a caça atingia um clímax, especialmente na Alemanha, onde pareciam ocorrer suas mais sádicas manifestações. Quando os inquisidores oficiais se mostravam muito tolerantes, eles mesmos corriam o risco de se-rem queimados como bruxos. Foi o que aconteceu com Dietrich Flade, vice-governador de Treves e reitor da universidade. Exercia sua influência no sentido de reduzir a ação dos caçadores de bruxas, fazendo o possível para conseguir que as bruxas condenadas fossem banidas ao invés de queimadas. Por causa de sua indulgência, passaram a suspeitar que estivesse fazendo o jogo do Diabo, e um caçador de bruxas, chamado Zandt, literalmente “enquadzou-o”, subornando algumas condenadas para que gritassem o nome de Flade como sendo bruxo. (Em troca do favor, as bruxas denunciantes puderam ser estranguladas antes de serem levadas à fogueira.) Apesar da posição que ocupava, Flade foi preso e depois estrangulado e queimado.
Em Bamberg, em 1628, o vice-reitor George Haan foi também acusado de excessiva indulgência com as bruxas, e foi levado à fogueira junto com a muffler e a filha, apesar de uma ordem do próprio imperador, que exigia sua libertação. No caso de Haan, o fato poderia ser interpretado como justo castigo, pois ele fora um dos acusa-dores do burgomestre Johannes Junius, cuja última carta à filha, antes de ser executado, constitui um dos documentos mais comoventes de toda a história da caça às bruxas:
E depois também veio — que do Alto lhe venha o perdão — o algoz, colocando-me os parafusos nos polegares e me amarrando as duas mãos juntas, de modo que o sangue começou a jorrar pelas unhas e por toda parte. Durante quatro semanas náo consegui usar as aos, como você pode notar por minha caligrafia.
Em seguida me despiram, muraram-me as mãos para trás e por elas me ergueram bem alto. Foi quando pensei que para mim estava tu-do acabado. Oito vezes me suspenderam e me deixaram cair, sendo terrível minha agonia. Falei com o Dr. Braun:
— Deus o perdoe por abusar de um inocente.
— Você é um patife! — foi a resposta.
Agora, filha querida, você sabe de todos os meus atos e confissões, pelas quais acabarei morrendo. E é tudo mentira, é tudo invenção. Valha-me Deus, pois (. . .). Se Deus nao permitir que a verdade venha à luz, toda a nossa família será queimada (. . .).
Outros cidadãos iminentes foram julgados e executados, e suas propriedades, avaliadas em 220.000 florins, foram para o Bispo-príncipe Gottfried Johann von Dornheim. (Seu primo, bispo de Würzburg, queimou novecentas bruxas entre 1623 e 1631.) As torturas incluíam o esmagamento com algum objeto pesado, a escada (uma forma de estrapada, que deslocava os braços na altura dos ombros), imersão em água fervente (que matou seis pessoas em 1630), ingestão forçada de arenques cozidos com muito sal (seguida da proibiçáo de beber água), agulhas enfiadas inteiras por baixo das unhas e — talvez a tortura mais eficiente para arrancar confissões — a proibiçáo do sono durante dias ou semanas. Na parte das punições, cortavam-se mãos e arrancavam-se os seios das mulheres com alicates incandescentes. Por fim, o própria Imperador Ferdinando se viu forçado a intervir, ordenando que os julgamentos fossem públicos e impedindo o confisco de propriedades. O bispo morreu em 1632; seu primo morrera no ano anterior. Muitas dessas ondas de sadismo só acabavam quando o principal instigador chegava à morte natural.
Os príncipes-bispos de Würzburg e de Bamberg eram sádicos cruéis. Outros famosos caçadores de bruxas eram canalhas insensíveis. Na Inglaterra, a figura mais abjeta era Mathew Hopkins, “general da caça às bruxas”. Dizia possuir a “lista do Diabo, com os nomes de todas as bruxas da Inglaterra do século XVII” , quando na realidade apenas havia lido dois livros sobre demonologia .
Da mesma forma que o Senador Joe McCarthy, também constituiu suas comissões de investigação e, a seguir, pôs se a viajar por todo o pais para examinar as bruxas, cobrando caro por seus serviços. Era um advogado fracassado que obteve muito sucesso como promotor público durante catorze meses. Dizia que o sinal de uma bruxa é o fato de ela possuir um “familiar” — demônio que toma a forma de animal — e o depoimento que prestou contra sua primeira vítima, Elizabeth Clarke, de Manningtree, Essex, incluía seu testemunho jurado de que vira quatro diabretes — um cão, uma doninha, um galgo e um demônio preto — pertencentes à mulher. (Seus auxiliares também juraram ter visto a mesma coisa.) Seus métodos de arrancar confissões eram menos terríveis do que os dos caçadores de bruxas alemães, porém igualmente eficientes: lançava ao lago mulheres totalmente amarradas para ver se conseguiam flutuar, forçava as vítimas a permanecerem sentadas num tamborete baixo, de pernas cruzadas, até se cansarem e confessarem. Também fazia as pessoas caminharem até que os pés formassem bolhas. Esta última exigia que seus auxiliares se revezassem na vigilância dos que tinham de ficar andando. Um clérigo de setenta anos, John Lowes, de Bury St. Edmunds, teve de ficar acordado durante várias noites, correndo o mais que podia para a frente e para trás dentro de uma sala, até confessar-se culpado de todas as acusações que havia contra ele. Posteriormente, veio a negar sua confissão, mas de nada adiantou: foi enforcado do mesmo jeito.
A Guerra Civil ainda prosseguia, e a tensão encontrava vazão nos julga-mentos de bruxas. Quando umas dez pessoas eram condenadas e enforcadas, todos ficavam com a sensação ilusória de que a partir .de então tudo melhora-ria. Havia julgamentos em massa, e em 1645 dezenove pessoas foram julgadas e enforcadas em Chelmsford. Quatro dos 32 acusados já haviam morrido na prisão, e vários outros lá permaneceram ainda por muito tempo. Em Bury St. Edmonds, dezoito foram enforcados. Hopkings foi responsável por 68 execuções apenas em Suffolk durante o ano de 1645. Mas no ano seguinte a moderação começou a se fazer sentir. Um clérigo de Huntingdon, John Gaule, começou a pregar contra Hopkins ao saber que este pretendia dar inicio a uma caça às bruxas em sua região. Hopkins esbravejou e ameaçou, a sua autoridade se desmoronava tão rapidamente quanto se havia estabelecido. Recolheu-se à sua casa em Manningtree e morreu de tuberculose naquele mesmo ano. Fora responsável por centenas de mortes em catorze meses. A revogação da lei das bruxas em 1736 — para que o castigo não fosse mais a morte —pôs fim à caça às bruxas na Inglaterra, embora ainda viessem a sofrer perseguições por mais uns cinqüenta anos.
Ler de uma só vez numerosos relatos de julgamento de bruxas, como fiz antes de escrever este capitulo, é começar a se sentir um pouco louco. As descrições das torturas fazem indagar se o ser humano tem salvação. Para cada santo, a raça humana produziu cem assassinos capazes das mais vis perversidades. E os verdadeiros absurdos confessados por tantos acusados acrescentam à tragédia uma nota de farsa discordante. Contudo, por estranho que pareça, a impressão final é de compaixão — uma compaixáo que abrange acusados e acusadores. A mente humana não foi feita para a estreiteza, e quando ela se vê aprisionada toma-se superficial e perversa. A verdadeira tragédia de Suffolk, em 1645, não foi o enforcamento de uns cem inocentes por Matthew Hopkins, mas o fato de as pessoas estarem tão sem vida e desmoralizadas que chegavam a aceitar passivamente as execuções. As comunidades de aldeia se haviam transformado em poços de água estagnada onde medrava a pestilência.
Em nossa época de grandes metrópoles e comunicação de massa, é difícil compreender tudo isso. Não dá para imaginar esse tipo de estagnação, em que a mente não encontra saída a não ser através da maledicência a respeito dos vizinhos. Com a aproximação do século XIX tudo começou a mudar. O divisor de águas entre o mundo antigo e o nosso mundo atual foi um evento ocorrido em 1740: a publicação do romance Pamela. A afirmação parece absurda, mas procuremos analisá-la melhor. Antes de Richardson escrever Pamela, a principal forma de publicação “escapista” era o folheto, geralmente intitulado A Verdadeira Narrativa do Horrível Crime Cometido em York por Fulano de Tal Os livros de Defoe, publicados um quarto de século antes de Richardson começar a escrever, são folhetos ampliados contendo “narrativas verdadeiras”. Pamela é um romance em forma de cartas, a história de uma moça virtuosa e sua resistência a um pretenso sedutor. É uma história longa, de modo que o leitor podia entrar na vida de outra pessoa e lá permanecer por dias e dias.
Se imaginarmos Jane Austen ou as irmãs Bronte sendo criadas numa aldeia do interior em 1700, poderemos imediatamente compreender a significação do ocorrido. É inegável que ainda assim Jane Austen teria lido Homero, Dante e Shakespeare, tomando-se a inteligente escritora que foi, mas não teria sido a mesma coisa — os clássicos tendem a ser muito vagos. Mas Pamela e Clarissa, de Richardson, Julie (ou The New Héloise), de Rousseau, e Werther, de Goethe, eram inteiramente diferentes, por constituúem substancioso alimento para emoções e inteligências. A mente da época era como um pássaro numa gaiola esquecida aberta. Romances e mais romances eram publicados. Corsair, de Byron, e Lady of the Lake, de Scott, eram novelas românticas em versos. As peças de Shakespeare, Dryden e Sheridan só eram vistas nas grandes cidades, mas aqueles livrinhos de bolso penetravam profundamente nas mais remotas regiões. Naturalmente, é certo que a maioria náo sabia ler, mas isso não era tão importante. Todos os interessados podiam aprender — por exemplo, os filhos dos lavradores e os párocos das igrejas.
A criação de “outros mundos” se tomou importante indústria do século XIX. Romancistas como Balzac, Hugo, Dickens e Trollope se dedicaram a criar um mundo variado e complexo como o mundo real. Sempre contamos com a possibilidade de optar por “mundos alternativos”, que vão de Tolstói e Flaubert à mais recente novela na televisão. E sabemos que houve grandes obras literárias antes de Richardson: Chaucer, Malory, Montaigne, Cervantes, Rabelais e Boccaccio. Mas nos esquecemos de que eram tão poucos e que só os eruditos os conheciam. A vida no século XV era monótona para todos desde o senhor feudal e do padre do lugar até o camponês e o pastor de ovelhas. E provável que houvesse tanta gente sensível e cheia de imaginação quanto hoje ao menos proporcionalmente à população —, mas essas pessoas não tinham a opção. de não crescerem em meio ao tédio de seu ambiente. O único momento bizarro ou incomum em suas vidas ocorria quando o mascate lhes oferecia folhetos de confissão de bruxas, ou quando o pároco mandava que não se aproximassem de alguma velha feia capaz de se transformar em lebre.
Durante cinco séculos ou mais, o espírito humano viu-se privado de uma vitamina especial, uma vitamina que a Igreja da Idade Média fora capaz de prover, embora em doses menores. O homem não apenas possui uma capacidade para a “diversidade”, para se afastar de sua própria estreiteza em direçãoao mundo maior que o rodeia, como tem apetite voraz por essa diversidade. Entendo a caça às bruxas como conseqüência direta da carência dessa vitamina. Quando a grande onda de cultura romântica começou a satisfazer o apetite, a bruxaria de repente se tornou assunto de um passado remoto.
Tal conclusão é reforçada por um dos romances mais extraordinários já escritos sobre o tema da magia e da bruxaria: Fiery Angel, de Valery Briussov, que Prokoviev converteu em sua ópera de maior peso. Nos primeiros anos deste século, Briussov pertencia ao simbolismo russo; e embora apoiasse a Revolução, suas primeiras obras não eram vistas com bons olhos. A ópera de Prokoviev, The Fiery Angel. até hoie é desconhecida na União Soviética.
Tal conclusão é reforçada por um dos romances mais extraordinários já escritos sobre o tema da magia e da bruxaria: Fiery Angel, de Valery Briussov, que Prokoviev converteu em sua ópera de maior peso. Nos primeiros anos deste século, Briussov pertencia ao simbolismo russo; e embora apoiasse a Revolução, suas primeiras obras não eram vistas com bons olhos. A ópera de Prokoviev, The Fiery Angel, até hoje é desconhecida na União Soviética.
O romance conta a história de Rupprecht, soldado que volta da América do Sul na década de 1530, quando Agrippa e Paracelso eram famosos na Alemanha inteira. Numa pequena estalagem onde passa a noite, ouve o choro e os lamentos de uma mulher. No quarto ao lado do seu encontra uma moça chamada Renata, que lhe chama pelo nome e em seguida cai ao chão em convulsões, gritando que está possuída pelos demônios. Rupprecht consegue acalmá-la e faz com que se deite. É nesse ponto que ela insiste em contar-lhe sua história: aos oito anos, um anjo de cabelos dourados, flamejantes como o sol, entrou em seu quarto e brincou com ela. O nome dele era Madiel. Durante anos brincaram juntos, e ele lhe disse que ela estava predestinada a ser santa, encorajando-a a se entregar a rigorosas práticas ascetas. Renata desejava ardentemente tornar-se santa, mas ao mesmo tempo queria muito ser noiva de Madiel. E uma noite, após esforçar-se decididamente por seduzi-lo, ele a deixou. Algum tempo depois ele apareceu de novo, em sonho , e disse que ela esperas-se vê-lo de novo, em forma humana, dois meses depois. E decorridos exata-mente dois meses, um jovem nobre, Conde Heinrich, visitou sua família. Ela o seduziu e fugiram os dois para o castelo de Heinrich às margens do Danúbio. Mas após dois anos de felicidade, ele a abandonou sem explicações, e jamais voltara. Desde então Renata o procurava, atormentada pelos demônios.
Rupprecht passa a noite deitado ao lado de Renata na cama, na mais completa castidade, e na manhã seguinte leva-a consigo. A essa altura, evidentemente, está apaixonado pela moça. Mas quando procura levá-la para a cama, ela tem ataques histéricos e lhe diz que precisa preservar-se para o Conde Heinrich. E Rupprecht está agora tão escravizado que concorda em ajudar nas buscas. A história se transforma em vigoroso quadro clínico da relação masoquista de Rupprecht com Renata.
Ela o convence a se massagear com um ungüento de bruxas e visitar um sabá. A descrição que Briussov faz da reunião das bruxas é autêntica, devendo ser lida por .todos aqueles que desejem saber o que fazem elas nessas ocasiões. O ungüento o deixa meio zonzo e ele se deita. É quando se surpreende voando pelo espaço montado num bode. Meia hora depois, aterrissam num vale entre duas colinas. Imediatamente ele é cercado por mulheres nuas frenéticas, que o conduzem até os pés de um trono de madeira onde está sentado o Diabo:
Sua estatura era enorme, humano até a cintura e bode da cintura aos pés. As pernas terminavam em cascos, mas as mãos eram como as de um homem, bem como o rosto corado, queimado de sol como o de um índio apache, grandes olhos redondos e barba de tamanho médio. Tinha aspecto de não mais de quarenta anos, e em seu semblante havia algo de triste que despertava compaixão. Mas essa sensação desaparecia quando se via no alto de sua testa larga, saindo visivelmente por entre os negros cabelos encaracolados, três chifres; os dois menores atrás e o maior na frente. E ao redor dos chifres havia uma coroa de prata que emitia brilho suave como o luar.
As bruxas nuas me colocaram diante do trono e exclamaram: — Mestre Leonardo, ele é novo!
Então soou uma voz, rouca e sem inflexão alguma, como se aquele que falava não estava habituado a pronunciar palavras, porém forte e dominadora, que assim se dirigiu a mim:
— Seja bem-vindo, meu filho.. .
Rupprecht tem de condenar Deus, Jesus e a Virgem, e depois beijar a mão e o ânus do Diabo. Nota que os dedos da mão são todos do mesmo comprimento, inclusive o polegar, e que são curvados como as garras do abutre. Em seguida há uma dança de sapos, cobras e lobos enormes, e depois uma refeição em que a comida é ordinária e o vinho de baixa qualidade, ao fim da qual Rupprecht é levado para a floresta por uma bruxa jovem que o seduz. Ele desperta e se encontra no chão de seu quarto com sensação de ressaca, sem no entanto ter descoberto o paradeiro do Conde Heinrich
É curioso o pormenor da má qualidade da comida e do vinho. Por que o Diabo ofereceria aos servos uma tal refeição, ele que afinal é “o príncipe deste mundo”? Ocorre que se os sabás realmente possuíam essas características, as próprias bruxas tinham de providenciar o alimento, que seria de má qualidade. O Diabo permanece sentado e parece bem humano apesar da estatura. Não poderia ele ser um homem usando calça feita de pele de bode, e cascos revestindo-lhe os pés? Trechos do romance de Briussov são retirados dos autos do julgamento da Irmã Maria Renata von Mossau, que foi torturada, degolada e queimada em 1749 perto de Wünburg. Suas confissões contêm os detalhes sexuais lúgubres de sempre — até mais do que média —, de modo que Briussov tinha motivos para ressaltar tanto os aspectos sexuais do caso.
O belo Capítulo VII do romance fala da visita de Rupprecht a Bonn, para ver Comélio Agrippa. Nesse caso, não se duvida da autenticidade do material, e é interessante observar que Agrippa considera a magia um absurdo pueril, insistindo que a filosofia e a contemplação mística não mais importantes. Quando publicou seu Occult Philosophy, considerava-o uma obra imatura. De volta a Colônia, Renata finalmente se deixa possuir por Rupprecht, mas é uma noite muito desagradável. Ela se apresenta febril e insaciável, obvia-mente pensando em outra pessoa o tempo todo. Briussov chafurda no masoquismo do herói.
Depois disso, Renata convence Rupprecht a desafiar o Conde Heinrich para um duelo — ele finalmente aparecera em Colônia. Rupprecht concorda, embora não queira, e começa a compreender que Renata não é a moça inocente que imagina. Ela seduzira o Conde Heinrich, que era rosacruz e casto, levando-o depois à prática da magia negra. Agora ele a odeia. Assim que Rupprecht força Heinrich a concordar com o duelo, Renata muda de idéia e faz Rupprecht prometer que não o ferirá. A conseqüência inevitável é que Rupprecht sai gravemente ferido do embate e Renata tem de cuidar dele até que fique bom novamente. A seguir ela aparece curada de sua obsessão por Heinrich e se entrega a Rupprecht, resolvendo então que tem de tornar-se santa. Deixa-o, pois, outra vez, partindo para um convento.
Vários capítulos do livro são dedicados a um encontro entre Rupprecht e Dr. Fausto (com Mefistófeles, naturalmente). Por fim, Rupprecht encontra o convento onde se refugiara Renata. Os demônios mais uma vez se haviam apossado de seu corpo, e todas as freiras têm convulsões. Ela é presa pelo arcebispo de Trier e submetida à tortura. Finalmente morre nos braços de Rupprecht, antes de ser conduzida à fogueira. Prokoviev transformou o trecho das freiras possuidas na cena mais eletrizante de toda a ópera.
O que torna o romance to formidável é o fato de Briussov ter procura-do compreender o que realmente ocorreu durante a “caça às bruxas”. Renata é histérica e movida por um impulso sexual, mas além disso sabia o nome de Rupprecht assim que o viu pela primeira vez. Ela possui determinados poderes ocultos. Mas o Conde Heinrich certamente não é Madiel, o anjo de fogo, e toda a busca é inútil. O livro trata de pessoas sugadas pelo turbilhão de suas próprias fantasias, e cujas fantasias têm um quê de estranha realidade por causa das forças subconscientes que se desencadeiam. Para um escritor da era pré-freudiana (o livro foi publicado em 1907) chega a ser um tour de force notavelmente convincente, a respeito da psicologia do anormal. Sendo poeta, Briussov possuía alguma idéia da estranha verdade das bruxas: a verdade de que os poderes da mente são bem maiores do que imaginamos, e de que pode-mos ser liberados através de simbolos. Seria coincidência que. “Mestre Leonardo” usasse uma coroa que emite brilho lunar — da mesma lua-Deusa Branca que é símbolo dos poderes existentes por trás da personalidade cotidiana?
Há uma história contada pelo escritor japonês Akutagawa que trata com clareza do argumento apresentado ao longo de todo este livro. Chama-se O Dragão. Um padre quer vingar-se de um certo mosteiro porque os monges es-tão sempre a rir de seu nariz vermelho. Assim, num lago próximo ao mosteiro, coloca uma tabuleta onde se lê: “No dia 3 de março um dragão emergirá das águas deste lago”. Com isso, consegue o efeito esperado. A notícia se espalha, e no dia 3 de março verdadeiras multidões dirigem-se para as margens do lago. Os monges ficam profundamente constrangidos, pois sabem que, não aparecendo dragão algum, de certa forma serão considerados culpados. Com o passar das horas, a multidão já ocupa quilômetros do espaço ao redor do lago e o padre começa a se arrepender da brincadeira. Gradualmente ele se deixa afetar pela atmosfera de intensa expectativa e, quando vê, também está fitando ansioso a calma superfície das águas. Nesse ponto, subitamente aparecem nuvens no céu e desaba uma terrível tempestade. Em meio a raios e trovões, a forma enegrecida de um dragão sai voando de dentro d’água e sobe em direção ao céu. Todo mundo vê.
Mais tarde, quando o padre confessa ter sido o autor do aviso, ninguém acredita.
O trecho mais importante da história é o que fala da expectativa tensa e ansiosa da multidão, que afeta até mesmo o padre autor do aviso na tabuleta. Ele sabe que não existem dragões. No entanto, a pressão telepática exercida por milhares de crentes finalmente compele seus próprios instintos a entra-rem na mesma sintonia. O padre não teve de se dividir para que isso ocorresse. A pressão espiritual é como as rítmicas batidas de pés que racharam os muros de Jericó A princípio, formam-se nuvens a partir de um céu azul. Depois vem a tempestade, símbolo visível da liberação de tensões —algo está prestes a acontecer. Seria absolutamente falso supor que o dragão é fruto de uma alucinação em massa. Trata-se de uma projeção em massa, uma espontãnea manifestação das forças do inconsciente. Como toda magia. O poder de “fazer as coisas acontecerem” por forçada telepatia de massa é conhecido da maioria dos povos primitivos. O falecido Negley Farson contou-me em várias ocasiões que vira um feiticeiro liberiano fazer chover quando o céu estava límpido.
Meu vizinho Martin Delany, cujos curiosos poderes de adivinhação tive oportunidade de descrever no apêndice a Rasputin, de minha autoria, fala de um acontecimento igualmente estranho. O feiticeiro de uma aldeia nigeriana garantiu certa vez que a chuva torrencial, que já durava algumas semanas, seria interrompida durante duas horas para a festa que um regimento havia preparado em homenagem ao estado-maior. A chuva parou imediatamente antes do horário previsto para o inicio da festa , recomeçando logo após o término , duas horas depois.
No mesmo apêndice, transcrevo ainda pormenorizadamente a curiosa história da serra de fita pertencente ao mesmo regimento. Um dia, uma galinha morreu ao voar até a serra e os operários negros disseram que o fato ocorrera porque o deus do ferro tinha de receber oferendas. Martin Delany não permitiu a cerimônia porque nela seria necessário degolar um cachorrinho. Dois dias depois outra galinha voou até a serra. Passado algum tempo, a ma-quina exigiu reparos porque embora a eletricidade estivesse desligada, a serra começou a girar e provocou um corte profundo na mão do manobreiro. Os mecânicos passaram horas inspecionando a serra e os fios, afirmando que era absolutamente impossível que a máquina tivesse “ligado sozinha”. Finalmente, um dia a serra de fita “desgarrou” quando cortavam um tronco, e uma bola de metal retorcido atingiu o operador, matando-o na hora. Martin Delany acabou concordando com o sacrifício do cachorrinho, e os acidentes não mais se repetiram.
Esquecendo a hipótese da coincidência, duas explicações parecem possíveis. Ou o próprio feiticeiro provocava os acidentes através de alguma forma de psicocinese, ou “mau olhado”, ou o medo exercido pela massa de trabalha-dores os provocava. Martin Delany logo excluiu o feiticeiro, visivelmente um velho bondoso. A segunda hipótese certamente se ajusta melhor à idéia que defendemos. A maioria das pessoas já sentiu algo desse tipo em escala menor: uma sensação tensa e nervosa de que alguma coisa não vai dar certo, seguida de um acidente qualquer.
Provavelmente, a melhor maneira de se compreender as bruxas da Europa seja analisar os relatos de pessoas que testemunharam a bruxaria praticada atualmente na Africa. O livro Witness to Witchcraft, de Harry B. Wright, apresenta casos interessantes. Fala da “dança do trovão” e, Abomey, na Africa Ocidental, como exemplo da “estranha harmonia que parecia existir entre as práticas primitivas desses povos e as forças da própria natureza”. Um nativo alto dançava com intricadas contorções, brandindo no ar uma comprida vara de dança. “Era um dia ensolarado até o início da dança, quando de repente olhei para acima e vi o céu carregado de nuvens.” Contudo, o soberano do lugar disse a Wright: “Não vai chover porque só chove com a dança da chuva.” E não choveu. Também nesse caso, observe-se que Wright sentiu-se participante do êxtase provocado pela dança. Terminada a cerimônia, o céu limpou novamente.
Wright também descreve a “dança do leopardo”, talvez menos difícil de explicar. Uma garota alta e bonita dançava à luz das fogueiras, e um companheiro africano de Wright garantia que estava vendo leopardos. Wright só via sombras à volta da moça. Aparentemente, os nativos acompanhavam os leopardos invisíveis com os olhos. E então, no auge da cerimónia, três grandes leopardos surgiram do meio do mato, atravessaram correndo a clareira e sumiram na floresta pelo outro lado. Um deles tinha uma galinha na boca. “Se eu me encontrava em transe provocado por algum processo de hipnotismo em massa, tratava-se de algo excelente, porque me sentia desperto e em condições normais.” Mas não há por que pensar em termos de hipnotismo. Os animais são telepáticos e, naquelas circunstancias, nada mais provável do que uma família de leopardos verdadeiros conferirem se os “leopardos mentais” não estariam realmente invadindo seu território, ou se mais uma vez se tratava apenas de brincadeira dos nativos. (O chefe explicou a Wright que eles invocavam o trovão “apenas para se divertirem”.)
Isso tudo oferece ao menos uma explicação parcial para dois mitos que vêm de tempos remotos: o vampiro e o lobisomem. Montague Summers trouxe à luz tantos deles que conseguiu dedicar dois grandes volumes apenas aos vampiros.
O período pós-freudiarfo reconheceu a base sexual do vampirismo e da licantropia. O desejo sexual masculino geralmente é bem mais forte do que o feminino. A ninfomania é rara entre as mulheres, mas quase todo homem saudável é um sátiro — ao menos em imaginação. A mini-saia é um reconheci-mento tácito desse fato: sobrevém no homem um desejo bastante impessoal quando ele entrevê as regiões sexuais da mulher. Seria difícil imaginar uma sociedade em que os homens usassem túnicas curtas para que as mulheres vis-sem seus membros. Poucas seriam as que gostariam de ver e que se sentiriam estimuladas. Com a maioria ocorreria exatamente o contrário. Já a mulher sabe que pode conquistar um homem com mais facilidade se levantar um pouco o vestido, do que por uma demonstração mais sutil de seus encantos. O desejo sexual violento e impessoal do homem toma-se perigoso quando frustrado, podendo originar a crueldade.
O retrato do criminoso sexual Moosbrugger em The Man Without Qualities, de Robert Musil, ressalta exata-mente a frustração do oficial de carpintaria que tem “sono agitado” e vagueia de cidadezinha em cidadezinha, jamais tendo oportunidade de satisfazer seu desejo. “Aquilo que uma pessoa deseja — de modo natural, como se deseja pão ou água — está ali apenas para se olhar. Depois de algum tempo, o desejo deixa de ser natural. O objeto do desejo passa pela rua, a saia roçando as per-nas, sobe uma escada, enxerga-se até os joelhos…” Em Casebook of Murder (1969), de minha autoria, falo da freqüência com que desocupados como Moosbrugger acabam cometendo crimes sexuais. A fúria do desejo pode se transformar em ódio contra as mulheres. O assassino de Birmingham, membro da Associação Cristã de Moços, Patrick Byrne, disse que matava para “se desforrar das mulheres, que provocam tanta tensão pelo sexo”. O criminoso alemão Pommerenke cometeu seu primeiro assassinato sexual num parque, após ver um filme chamado Os Dez Mandamentos e se convencer de que todas as mulheres são más. (Neste caso, por que estuprar além de matar?) Na época em que escrevo este livro ( 1970), John Collins está sendo julgado em Ann Arbor , acusado do assassinato de Karen Beineman . Ela não só foi estuprada e estrangulada , mas sofreu torturas com ácidos e um objeto pontiagudo.
Na época em que escrevo este livro (1970), John Collins está sendo julgado em Ann Arbor, acusado do assassinato de Karen Beineman. Ela não só foi estuprada e estrangulada, mas sofreu torturas com ácidos e um objeto pontiagudo.
Dizem os psicólogos que todos têm uma “personalidade social”, uma obrigação de se comportarem de maneira amiga e equilibrada, e que isso pode acobertar uma frustração criminosa. O que se aplica em especial aos jovens. (A maioria dos crimes sexuais são praticados por homens de menos de 25 anos, e muitas vezes menos de 20.) Caminhando por uma rua cheia de garotas que se dirigem ao trabalho no escritório, eles se sentem como famintos cerca-dos de comida que não lhes pertence. Em mulheres como Isobel Gowdie, esse tipo de “personalidade dividida” conduz à bruxaria. Em homens, pode levar à licantropia em que a parte “animal” da personalidade assume o controle e comete a violência. Tal é o argumento do psicólogo jungiano Roberto Eisler, em seu clássico estudo intitulado Man into Wolf (1949). Ele defende a interessante idéia de que o homem já foi um macaco tranqüilo e herbívoro, que vivia de frutos e raízes. Mas o ser humano também é capaz de imitar, e em sua luta de vida ou de morte contra animais selvagens, começou a adquirir deliberadamente a ferocidade e o gosto pelo sangue que são próprios do bicho. Um exemplo atual dessa característica humana é a admiração dissimulada e meio receosa que muitas pessoas têm pelos criminosos, particularmente os violentos. Muita gente é de opinião que os homens violentos “merecem consideração”, e que a melhor maneira de manifestar esse sentimento é uma certa solidariedade.
Essa idéia por certo explicaria a dança do leopardo testemunhada por Harry Wright, bem como os cultos de leopardos e outros animais selvagens da África. William Seabrock conta a história de um vendedor tranqüilo, nativo de baixa estatura que se vestiu com pele de pantera, colocou garras de ferro e matou uma garota. O homem estava inteiramente convencido de que às vezes transformava-se em pantera, chegando a dizer a Seabrook que preferia a vida da pantera à sua própria.
Os africanos naturalmente temem a pantera e o leopardo — mais do que o leão e o tigre, que raramente atacam pessoas —, e desde os tempos mais remotos a reação a esse medo, da parte dos espíritos mais arrojados, era sempre uma tentativa de estabelecer uma espécie de empa-tia com esses bichos. A reação do homem primitivo frente ao urso das cavernas, sem dúvida, é um exemplo do mesmo tipo.
Na Europa medieval, o lobo era o mais comum e o mais perigoso entre os animais carniceiros, e as obsessões sexuais que moviam Isobel Gowdie faziam com que camponeses insatisfeitos sexualmente se identificassem com lobos. No entanto, a questão mais interessante é até que ponto essa obsessão provocava mudanças físicas reais no indivíduo. William Seabrook oferece extraordinária descrição de uma emigrada russa que meditou sobre o hexagrama 49 do I ching, cujo significado é associado à pele do animal e à muda de pele. Ela se imaginou um lobo na neve, e começou a babar e emitir ruídos semelhantes a uivos. Quando uma das testemunhas do caso procurou despertá-la, ela deu um salto e tentou morder-lhe a garganta.
No caso de Gilles Gamier, executado como lobisomem em 1574, parece que tanto ele assumia a forma de lobo quanto a de homem, em seus ataques a crianças. A acusação, formulada em Dôle, alegava que ele havia raptado uma garota de doze anos, matando-a numa vinha com as mãos e os dentes. Em seguida, ele a teria arrastado pelo chão, com os dentes, até a floresta em La Serre, onde a comeu quase inteira. De tal forma se deliciou com a carne que até levou um pouco para a esposa, que estava em casa. (Isso não significa que a mulher também fosse uma loup-garou. Trezentos anos depois, na mesma região, um camponês chamado Martin Dumollard contraiu o hábito de assassinar garotas depois de atraí-las para lugares ermos, levando a roupa das meninas para a esposa. Dizia ele: “Matei mais uma menina”. E saía com a pá para cavar. Aparentemente, a mulher considerava essas atividades apenas como sinal de suave excentricidade. Ele matou um garoto de doze anos na floresta e estava prestes a comer-lhe a carne (“embora fosse sexta-feira”) quando foi interrompido pela chegada de alguns homens. Estes viram que sua forma era humana, e Gamier concordou. Mas insistiu que tinha forma de lobo quando estrangulou um menino de dez anos e lhe arrancou uma perna com as presas. Mas não explica como um lobo conseguiria estrangular alguém. Além disso, atacou outra menina de dez anos — novamente em sua forma de lobo —, mas fugiu quando apareceu gente. A menina morreu em conseqüência dos ferimentos. Nessa ocasião, os camponeses que apareceram de repente viram Gamier como lobo, não obstante lhe pudessem reconhecer o rosto. Gamier foi queimado vivo na fogueira.
Não é de forma alguma incomum esse tipo de criminoso comer parte do corpo da vítima. Albert Fish cozinhou e comeu partes de uma garota de dez anos, Grace Budd, em Greenburgh, New York, em 1928. Ed Gein, o assassino de Wisconsin, comia partes das mulheres que matava e ainda fazia coletes com suas peles. (Isso também lembra os rituais de fertilidade dos astecas, descritos por Ornella Volta em seu livro sobre vampirismo, em que o sacerdote primeiro sacrificava uma virgem, depois tirava-lhe a pele para com ela vestir-se na hora da dança da cerimônia.) De modo que o estranho desejo de Gamier, de comer came humana, não precisa ser tomado como prova de que realmente se transformava em lobo. Mas é impossível duvidar de que ele entrava num estado de transe em que se sentia lobo, da mesma maneira que a emigrada russa de Seabrook. E não seria concebível que ocorresse alguma transformação física, como expressão física das forças instintivas que emergiam de seu inconsciente? No filme The Wolf Man, Lon Chaney transforma-se numa espécie de animal ereto, mais próximo do macaco que. do lobo. As descrições dos camponeses, no caso de Gamier, dão a entender que esse seria seu caso.
O julgamento mais famoso de um lobisomem europeu ocorreu perto de Colônia, quinze anos após a execução de Gamier, e foi todo ele mais relacionado com os casos ortodoxos de bruxaria. Peter Stube, ou Stunpof, confessou que mantivera relações sexuais com um súcubo — demônio que assume forma feminina — durante 28 anos, e que o demônio lhe dera um cinto mágico com o qual podia transformar-se em lobo enorme e poderoso. Durante os 28 anos, Stube cometeu numerosos crimes — os pormenores lembram muito os do caso Gamier —, alem de atentar contra a vida de duas de suas noras (extraordinário caso de inveja sexual). A pena imposta a Stube foi particularmente cruel: sua carne foi arrancada com tenazes incandescentes, e os ossos quebra-dos a golpes de machadinha, antes que o decapitassem. O fato de Stube ter sido torturado para confessar levanta a possibilidade de a coisa toda ter sido invenção. O “cinto mágico”, que alegou ter escondido num vale, jamais foi encontrado. O caso abalou a Europa toda.
A sua maneira crédula, Montague Summers conta inúmeras histórias de lobisomens, mas poucas delas acrescentam qualquer coisa ao que já afirma-mos. Pelo contrário, fica claro que a maioria de seus casos deve ser considera-da pura invencionice. Há um elemento comum a todas as histórias: a pessoa atacada pelo lobisomem consegue cortar-lhe a pata (ou furar-lhe o olho, ou machucar-lhe a garganta); mais tarde, um homem ou uma mulher apresenta-se sem a mão e confessa ser o lobisomem. Olaus Magnus, cronista da Idade Média, conta a história de um escravo que pretendia convencer a ama da existência de lobisomens, e um dia saiu correndo de dentro de um porão com a for-ma de lobo. Atacado pelos cães da mulher, perdeu um olho.
No dia seguinte, descobriram que o escravo havia perdido um olho. Montague Summers, e também Sir James Frazer (em The Golden Bough), contam a história de um caçador de Auvergne que decepou a pata de um lobo que o atacou e que, ao con-tar o caso para um amigo, descobriu que a pata se transformara em mão feminina, com um anel no dedo. O amigo reconheceu a mão como sendo da própria esposa e esta, que na época cuidava de um pulso cuja mão fora amputada, confessou-se lobisomem e foi executada. Frazer ainda relata casos de tigres-homens, gatos-homens, e até mesmo crocodilos-homens existentes na China, esclarecendo que cada parte do mundo tem suas próprias variações em tomo do mesmo tema. Na maioria dessas histórias é comum a idéia de que a transformação se dá na lua cheia (novamente a Deusa Branca), e de que se as mãos ou os pés da criatura forem amputados, ela perde seu poder para sem-pre. Em alguns relatos, há uma certa confusão, não se estabelecendo ao certo se a criatura (lobo, gato, lebre) é um demônio ou apenas uma bruxa.
Os lobisomens não conseguiram sobreviver à época das buxas, e seria interessante procurar entender por quê. A resposta poderia ser que a civilização urbana não permite esse tipo de anormalidade. As vítimas dos lobisomens geralmente eram crianças, e homens como Gamier e Stube podem até mesmo ter sentido a necessidade de fugir aos tormentos da consciência, convencendo-se de que eram vítimas de uma terrível fatalidade. 0 raptor de crianças de hoje em dia geralmente é tão desmoralizado e fraco de espírito que essa necessidade não lhe ocorre. Isso também pode explicar porque as histórias de vampiros continuam presentes na imaginação do homem. Trata-se da racionalização de uma emoção mais geral e poderosa. Atualmente em qualquer grande cidade a polícia sabe das atividades do pervertido sexual que usa instrumento pontiagudo qualquer para estocar mulheres no meio da multidão. A mulher sente uma dor súbita e aguda na coxa ou nádega, e quando olha em torno o homem já desapareceu.
Na maioria dos casos o ferimento é dolorido, mas não perigoso. Ocasionalmente, porém, quando o pervertido tem alguma obsessão por seios, a arma pode atingir o coração e provocar a morte. Falar de “agressão sádica”, como o fazem os livros de medicina, é deixar o fenômeno sem explicação. Nesses casos, ocorre que um senhor ou mesmo um jovem dotado de forte fixação romântica em mulheres não possui, por outro lado, a necessária coragem ou indiferença para abordá-las. E chega um ponto em que o desejo se transforma em tormenta. Seus devaneios de amar as mulheres carecem de convicção, porque ele sente que seria rejeitado. Mas as fantasias de ataques sádicos podem ser inteiramente mais gratificantes porque ele consegue imaginar-se violentando uma mulher. Quando enfia sua arma nas nádegas de uma garota bonita no meio da multidão, ele sente que se vinga dela por rejeitá-lo.
Isso explica com clareza a psicologia do vampirismo. Trata-se de uma sexualidade frustrada transformada em agressão. Acrescente-se a essa visão o medo dos mortos e das entidades sobrenaturais, e a história toda assume uma força que fascina a imaginação humana. Mas isso não significa que o vampirismo seja apenas fruto da ilusão ou da superstição. Os exemplos são tão autênticos que seria absurdo manter-se numa posição estritamente racionalista. Encontramo-nos novamente na região fronteiriça da mente, onde forças estranhas podem emergir do subconsciente e assumir forma material. Montague Summers cita um caso constante nas Atas do Laboratório Nacional de Pesquisas Psíquicas de 1927, em que uma jovem camponesa da Rumânia, Eleonore Zugun, apresentava “mordidas do diabo” nas mãos e nos braços. O investigador do caso afirma que uma vez ela estava prestes a levar à boca uma chávena de chá quando gritou. Imediatamente surgiram marcas de dentes no dorso da mão que se transformaram logo em equimoses. Minutos depois foi mordida no antebraço, por baixo da manga da roupa, e de novo eram profundas as marcas dos dentes. Seria um “fantasma”, ou o próprio inconsciente de Eleonore, de alguma forma descontrolado? E inútil perguntar, pois não se tem idéia das forças que poderiam existir. Ninguém jamais penetrou fundo no inconsciente para investigar todos os seus meandros. Por que deveríamos afirmar que foi o inconsciente de Eleonore Zugun? Se Jung tem razão e existe um inconsciente coletivo, então poderia ter sido a mente de outra pessoa. Quem já leu Three Faces of Eve, de Thigpen e Cleckey, não teria dificuldades para compreender o problema. O livro fala de uma mulher casada, pacata e bem comportada, que é completamente tomada por “outro ego” — uma mulher sexy, espalhafatosa e fútil que adora divertir-se. O que pode parecer menos surpreendente do que é na realidade, pois todos conhecemos pessoas que ficam bem diferentes quando bêbadas. Mas à medida que se vai lendo a obra, torna-se cada vez mais evidente que “as duas faces de Eva” são realmente duas pessoas bastante diferentes.
Trata-se literalmente de um caso de possessão que, no século XV, seria tratado com exorcismo e talvez tortura.
Como Eva finalmente consegue uma personalidade integrada, que une suas “duas faces”, podemos simplesmente aceitar que a “Eva Branca” e a “Eva Negra” sejam apenas dois aspectos de sua personalidade. Mas a mente não consegue captar isso perfeitamente — só o que podemos fazer é aceitar o fato em termos intelectuais. Repentinamente, tem-se a nítida certeza das limitações do consciente, ou então fica-se menos tentado a dar explicações para o caso de Eleonore Zugun.
Menos famosa do que o caso de Eva embora em muitos aspectos ainda mais espantosa, é a história de “Sally Beauchamp”, que agitou a psicologia norte-americana no fim da década de 1890. Em 1898, uma garota chamada Christine L. Beauchamp procurou o Dr. Morton Prince, da Escola de Medicina de Tufts, por estar com esgotamento nervoso. Quando não deu certo o trata-mento normal, o Dr. Prince tentou o hipnotismo. E um dia, de imprevisto, surgiu uma nova personalidade durante o tratamento — uma garota alegre, ruidosa e estouvada que disse chamar-se Sally Beauchamp. Sally insistia não ser Christine, mas reconhecia que ambas possuíam o mesmo corpo. Como no caso de Eva, esta segunda personalidade sabia tudo sobre a primeira, mas Christine desconhecia a existência de Sally. Sally tinha saúde de ferro, e não se conformava com o fato de Christine ser tão doentia. Certa feita, Christine ia passar férias na Europa, mas se encontrava tão esgotada que precisou antes hospitalizar-se para recobrar as forças. Na visita que lhe fez o Dr. Prince, este foi informado de que ela estava de posse de todas as suas energias. Quando a viu, constatou que Sally havia assumido o corpo. Sally não desejava perder as férias européias, e estava decidida a ocupar o corpo de Christine até que embarcassem! O Dr. Prince conseguiu convencê-la da imoralidade de sua atitude, e por fim Christine recuperou saúde suficiente para a viagem.
No começo, Sally sempre mantinha os olhos fechados (porque Christine estava hipnotizada). Finalmente ela conseguiu mantê-los abertos, e a partir de então a vida de Christine se tornou de todo mais complicada. Sally tomava o corpo durante horas, e Christine despertava perguntando o que fizera durante o período de sua “amnésia”.
Foi nesse ponto que apareceu uma terceira personalidade — tão diferente das outras duas quanto estas entre si — rígida e um tanto professoral. (Sally dizia que ela era cretina.) Essa nova personalidade, sem nome, conhecia Sally e ambas nutriam forte aversão recíproca. Sally chegou a aprender a ler os pensamentos da terceira, e todas as três pugnavam pela posse do corpo. Talvez não seja de todo exato dizer que Christine lutava — ela apenas era levada pelas outras. Seu desassossego deve ter sido enorme. Certa vez arranjou um emprego em Nova York, mas Sally lhe ocupou o corpo e desceu do trem em New Haven, antes de Nova York. Sally foi trabalhar como garçonete num restaurante, mas Christine achava cansativo demais o serviço. Já a terceira odiava o emprego por ser servil. Um dia, a de personalidade rígida pediu as con-tas, penhorou o relógio de Christine e foi para Boston. Foi então que Sally retomou o corpo e alugou um quarto ao invés de voltar para o apartamento de Christine. Quando esta despertou, qual não foi sua surpresa ao se ver num quarto estranho de Boston, e não mais num restaurante de hotel em New Haven.
O Dr. Prince descobriu que Sally e a terceira personalidade pareciam ter memória de diferentes partes da vida de Christine, e que a terceira aparecera pela primeira vez como resultado de um choque sofrido quando um homem entrou pela janela do quarto e tentou beijar Christine. Era muita confusão. Por fim, hipnotizando a terceira personalidade, o Dr. Prince conseguiu fazê-la integrar-se com Christine. Mas Sally tinha de ser intimidada e convencida a deixar o corpo. Ela gritava: “Não! Não quero morrer! Também tenho o direi-to de viver, como Christine!” Mas acabou desistindo. O psicólogo William McDougal concluiu que Sally não era parte do ego oculto de Christine, mas um espírito à parte ou uma entidade psíquica totalmente independente. E quase forçoso concordar com ele.
Por estranho que pareça, a melhor explicação fenomenológica racional que conheço para esse caso se encontra numa história de ficção científica intitulada Forbidden Planet, de W. J. Stuart, em que uma expedição científica procura descobrir o motivo da destruição de todas as expedições anteriores a um planeta distante. O único homem capaz de viver em segurança no Planeta Proibido é um velho cientista chamado Morbius. Ele informa que as outras expedições foram destruídas por uma espécie de monstro invisível e indestrutível.
Morbius dedica-se ao estudo dos resquícios de uma antiga civilização do planeta — seres que haviam possuído o poder de amplificar seus pensamentos, o poder de “intencionalidade”, de modo que as imagens mentais fossem projetadas como realidade exterior. No final da história, Morbius descobre o que destruiu as expedições anteriores. Sem que nem de longe suspeitasse, ele também estava amplificando as forças intencionais de seu subconsciente — seu desejo de ficar sozinho no planeta. E este é o “monstro invisível” que destruiu as expedições.
Trata-se de livro a ser lido por todos os que se dedicam à psicologia fenomenológica. Por intenção do autor, pode ser que seja ficção científica, mas provavelmente chega mais perto da verdade a respeito da mente humana do que Freud ou Jung.
Ora, sendo correta essa hipótese, ela explica não só o mistério dos vampiros, dos lobisomens e dos poltergeists — que comentaremos no próximo capítulo —, como todos os chamados “fenómenos ocultos”. O inconsciente não constitui apenas uma espécie de depósito profundo de memórias antigas e desejos atávicos, mas de forças que, sob certas circunstancias, podem manifestar-se no mundo material com um vigor que supera tudo o que o consciente possa realizar. Todos temos conhecimento daqueles momentos em que a personalidade consciente parece tomar-se mais real, firme e decidida, provocando-nos uma sensação peculiar de poder. Se imaginarmos esse mesmo tipo de força sob o comando do poder bem maior do inconsciente, começaremos a esboçar uma vaga teoria do ocultismo que evita os extremos do ceticismo e da credulidade.
É a falta de uma teoria geral como essa que toma tão insatisfatória a maioria dos livros sobre vampirismo. Summers mistura histórias as mais improváveis com relatos dotados de um quê de autenticidade. Ornella Volta, uma das mais recentes historiadoras a se dedicar ao estudo do vampirismo, apresenta uma abordagem médica e antropológica, mas não chega a estabelecer vínculo entre criminosos sexuais, como Jack, o Estripador, e os mitos do Sargento Bertrand e de Drácula (Seus dados geralmente são os mais inexatos. Por exemplo, afirma que Jack, o Estripador, cometeu nove assassinatos entre 1887 e 1889. Em verdade, foram cinco, e em 1888, quando ele parou. Diz ainda que John George Haigh, “o assassino do banho de ácido”, bebia o sangue de suas vítimas com um canudo. Haigh disse que havia bebido sangue numa xícara, mas isso foi apenas uma tentativa de fazer com que o declarassem louco). Defende a idéia de que as estranhas epidemias de vampirismo, como a ocorrida na Europa Central entre 1730 e 1735, são explosões de crimes sexuais e necrofilia, quando na realidade essa explicação não se aplica a 99 por cento dos casos mencionados por Summers, em que os vampiros são corpos mortos animados por demônios ou pelos espíritos de seus antigos ocupantes.
Reproduzo abaixo uma típica história de vampiro, mencionada por Augustian Clamet em History of Apparitions (1746) e repetida em todos os livros sobre o assunto a partir de então.
Na década de 1720 o império austríaco gozava um período de paz de-pois de anos de confrontos bélicos esporádicos contra os turcos, e o país se empenhava na formação de tropas para o prosseguimento das operações no sudoeste. Um jovem soldado (cujo nome é dado como Joachim Hubner por um estudioso do assunto) estava acantonado na aldeia de Haidan, na fronteira austro-húngara.
Certa noite, durante o jantar, quando estava à mesa bebendo vinho com seu anfitrião e o menino de quinze anos filho deste, a porta se abriu e entrou um velho. O homem tomou lugar à mesa e todos olharam apavorados. O velho inclinou-se para a frente, tocou o ombro do dono da casa, um lavrador, e retirou-se. Na manhã seguinte o lavrador foi encontrado morto na cama. O garoto disse a Hubner que o velho era seu avô, que havia morrido dez anos antes.
Hubner naturalmente contou a história para outros soldados do regimen-to, e o caso chegou enfim aos ouvidos do coronel, que decidiu por uma investigação, já que seus homens estavam alarmados. O Conde de Cadreras, comandante da Infantaria de Alexandetti, recebeu instruções para tomar depoimentos na cidadezinha. Cadreras instalou-se na igreja, e em sua presença depuseram todas as pessoas da casa do camponês morto. As provas eram tão convincentes que Cadreras mandou cavar o túmulo do velho. O corpo se encontrava como se tivesse sido enterrado naquele instante. Por ordem de Cadreras, a cabeça foi separada do tronco.
A comissão de inquérito fora informada de outros casos semelhantes. Por exemplo, de um homem que voltara três vezes durante os últimos trinta anos, e que tentara sugar o sangue de membros da própria família. Exumaram então os corpos desses outros “vampiros”, e como no primeiro caso nenhum deles apresentava o menor sinal de decomposição. Os habitantes do vilarejo garantiam que um certo vampiro era tão perigoso, que não descansaram enquanto o conde não mandou queimar o corpo.
Ao tomar ciência de tais acontecimentos, o Imperador Carlos VI mandou uma segunda comissão para investigar. Esta conferiu em primeiro lugar a história da comissão do conde. Em 1730 Cadreras depôs perante uma autoridade da Universidade de Friburgo, e Augustian Calmet deve ter lido esse depoimento durante os cinco anos seguintes, pois afirma que os eventos ocorreram “cerca de quinze anos atrás”. Montague Summers afirma que o manuscrito ainda existe.
A história é bastante pormenorizada, embora isso não garanta sua veracidade, evidentemente. Não encontrei aldeia alguma de nome Haidam em mapas ou enciclopédias, o que também não prova nada, pois os lugares mudam de nome com o deslocamento das fronteiras. Verdadeira ou não — e Summers a considera uma das histórias de vampiro bem documentadas que existem —, contém todas as características típicas de um caso de vampiro: o morto que anda e que só é destruído pelo fogo ou pela decapitação (ou às vezes por uma estaca que lhe atravesse o coração), os ataques a pessoas vivas que segundo a crença também se tornariam vampiros após a morte do vampiro atacante.
Ornella Volta afirma que o corpo de Santa Teresa de Avila não se de-compôs no túmulo durante muito tempo após a morte. Diz ainda que se passaram 178 anos, mas J. M. Cohen, na introdução à autobiografia de Ornella Volta, limita-se a comentar: “Essas misteriosas levitações [ela pairava no ar durante suas orações] encontraram paralelo após a morte, com a misteriosa não decomposição de seu corpo”. Cohen afirma que o fenômeno da não de-composição do corpo, aparentemente comum após a morte de tantos santos, “só se pode atribuí-lo a alguma transformação efetiva na estrutura física, que ocorre junto com a transformação espiritual”. Talvez o mesmo se poderia dizer dos vampiros.
A epidemia de vampiros no período 1730-1735 parece ter principiado num lugarejo chamado Medeugna, perto de Belgrado, com um jovem soldado de nome Arnold Paole, que voltou do serviço militar na Grécia em 1727. A uma jovem a quem estava prometido, contou que uma noite fora atacado por um vampiro (outro país famoso por lendas desse tipo), mas que localizara seu túmulo e o destruíra — o que decerto eliminara a maldição. Acontece que o rapaz morreu e passou a ser visto por perto da aldeia à noite. Decorridas dez semanas, quando várias pessoas diziam já tê-lo visto, ou sonhado com ele e despertado estranhamente fracas na manhã seguinte, seu cadáver foi exumado por dois médicos militares e o coveiro e seus auxiliares. O corpo ainda tinha sangue na boca. Estava coberto de alho, o que supostamente representa proteção contra vampiros, e tinha uma estaca atravessada no coração.
Diz Summers que seis anos depois o vampirismo tornou conta de Meduegna, e dessa vez alguns médicos respeitáveis participaram da investigação. O relatório médico foi assinado em 7 de janeiro de 1732, por Johannes Flickinger, Isaac Seidel, Johann Baumgartner, o tenente-coronel e um subtenente de Belgrado. No testemunho, afirmam ter examinado catorze cadáveres, cada um com a descrição de seu estado, incluindo-se o de uma garota de dez anos. Apenas dois dos catorze — mãe e seu bebê — encontravam-se em estado normal de decomposição, apresentando-se todos os outros em “inequívoca condição de vampiro”. Não há relato sobre o que fizeram a seguir, mas supõe-se que os cadáveres tenham sido queimados ou trespassados por estacas.
Henry Moore, em Antidote Against Atheism (século XVII), conta a história de Johannes Cuntius, de Pentach, na Silésia, cujo corpo foi arranhado por um gato preto quando jazia no leito de morte. A seguir, ele começou a reaparecer e a sugar. Exumado o corpo, viram que apresentava “condição de vampiro” e que oferecia furiosa resistência ao lhe tentarem decepar a cabeça.
Augustus Hare, o diarista, narra uma história de vampiro em The Story of My Life. Quem lhe contou foi um certo Capitão Fisher, e o caso é uma típica história vampiresca do século XIX. A casa chamada Croglin Grange, em Cumberland, foi alugada a três irmãos — dois homens e uma mulher. A construção erguia-se solitária numa en-costa, e tinha apenas um pavimento. Talvez pelo tamanho a família Fisher a tenha alugado, para buscar um lugar maior.
O inverno passou tranqüilo para os inquilinos, cujo nome aparece como Cranswell num dos relatos existentes. Numa noite de junho, como a lua brilhasse intensa, a irmã resolveu deixar abertas as venezianas da janela, mantendo a parte de vidro fechada. Sentada na cama a olhar para o jardim, ficou intrigada ao ver duas luzes amarelas movendo-se por entre as árvores. Logo percebeu que pertenciam a um homem, e que este agora atravessava o jardim e se dirigia à sua janela. Ela correu para a porta, que ficava perto da janela, e viu “uma face hedionda com olhos flamejantes” a fitá-la. No mesmo instante, notou que a criatura começava a abrir a janela. Por demais atemorizada, não se moveu quando ele alcançou o trinco e ganhou o peitoril da janela. A criatura segurou-a pelos cabelos e mordeu-lhe a garganta. Nesse momento, ela recobrou a voz e gritou, tendo os irmãos corrido para seu quarto. Depois de arrombarem a porta, um deles ainda pôde ver o intruso a fugir pelo jardim e desaparecer para os lados do cemitério da igreja.
Levaram a moça para a Suíça, e por fim todos os três retornaram a Croglin Grange, convencidos de que a criatura seria um maluco qualquer. O inverno seguinte passaram-no em paz e sem nenhum alarme. Depois, em março do ano seguinte, uma noite a moça foi de novo despertada pelo ruído de alguém que mexia na janela — mais uma vez divisou aquele rosto escuro olhando para dentro do quarto. Dessa vez gritou logo. Os irmãos, ao invés de correrem para o quarto, saíram pela porta da frente e dispararam alguns tiros na direção do vulto que fugia pelo jardim. Ele cambaleou, mas conseguiu correr. Os irmãos perseguiram-no até o cemitério e viram quando ele entrou num túmulo. No dia seguinte foram até lá, acompanhados pelos criados de Croglin Grange. Na sepultura, os esquifes estavam todos espalhados de qualquer maneira, com ossos por toda parte. O único caixão em seu devido lugar era o que continha o vampiro, que trazia o ferimento de um tiro na perna. Trataram logo de lhe queimar o corpo.
A história parece das mais improváveis; nem mesmo Hare chega a dizer que acredita nela. Mas pode muito bem basear-se num fato. Caixões espalha-dos também aparecem numa história bem mais autêntica — o caso da “inquieta sepultura” da família Elliot, em Barbados. A cripta funerária, que se ergue sobre a Baía de Oistin no cemitério de Christ Church, é escavada em parte di-retamente na rocha. Lá se encontram os corpos de uma certa Sra. Thomasina Goddard, sepultada em 1807, de uma criança, Mary Chase, em 1808, e de mais dois membros da família Chase, enterrados em 1812. Foi por ocasião do quarto funeral que notaram que a uma da menina estava em posição vertical, ao passo que a da Sra. Thomasina Goddard fora lançada para outro lugar dentro da sepultura e se encontrava atravessada e não mais ao longo como deve-ria. O terceiro esquife, de Dorcas Chase, estava na posição correta. Em 1816, quando mais uma vez abriram a sepultura, era o caixão da Sra. Goddard que estava no lugar certo — os outros estavam todos espalhados. Ocorrida a mesma coisa pela terceira vez, o Lorde Combermere, governador da ilha, realizou uma investigação e encontrou os esquifes espalhados, fato que se deu em 17 de julho de 1819. O piso da sepultura estava coberto de areia fula, e a laje de mármore que servia de porta encontrava-se cimentada na posição correta.
Em 18 de abril do ano seguinte, o governador, acompanhado por seu secretário para assuntos militares, o Major J. Finch, pelo religioso do lugar, Reverendo Thomas Orderson, por Nathan Lucas e mais dois brancos, abriu a sepultura com o auxilio de um grupo de negros nativos. Foi grande a dificuldade que tiveram para remover a laje. Dessa vez não restavam dúvidas de que o responsável pelo caos no interior da sepultura não seria um intruso humano. Só o caixão da Sra. Goddard, já meio desintegrado, estava no lugar. Três testemunhas — Combermere, Orderson e Lucas — relataram a descoberta, e seus escritos são citados em diversos livros: em History of Barbados, de Schomburgh; nas memórias de Combermere, em Transatlantic Sketches, de Sir J. E. Alexander, e meia dúzia de outros. E em 1907, o Folk Lore Journal publicou um relato de Andrew Lang a respeito. O mistério ainda permanece insolúvel, e coisas também não ficam mais claras com a informação de que três dos seus esquifes na sepultura eram ocupados por pessoas que tiveram morte violenta — dois eram suicidas e um terceiro foi assassinado pelos próprios escravos.
O inquieto espírito que desorganizava a sepultura não era um vampiro, mas suas atividades originavam lendas de vampiros. Portanto, é possível que uma história despropositada como a do vampiro de Croglin Grange se baseie em fatos.
Summers lembra que há notícia de fantasmas que se apresentaram materialmente. A antiga estação de Darlington e Stockton era famosa pela aparição de fantasmas em sua época. O mesmo ocorreria também mais tarde com a paróquia de Borley. Uma noite, o vigia, James Durham, foi atacado por um homem que havia entrado pelo depósito de bagagem; quando revidou, sua mão atravessou o estranho. Mas o cão que acompanhava o intruso pareceu bastante real quando enfiou os dentes na barriga da perna do vigia. O estranho chamou o cachorro com um estalo produzido com a língua, e ambos desapareceram no depósito de carvão, de onde não havia saída. Naturalmente, não stavam mais lá quando Durham foi procurá-los em seguida. Tudo indica que esse fantasma seria o de um suicida morto algum tempo antes da região. W. T. Stead publicou o relato de Durham, em forma de depoimento, em seu Real Ghost Stories.
Deve-se reconhecer que Summers não oferece quaisquer provas convincentes — do tipo que satisfaria a Sociedade de Pesquisas Psíquicas — ao longo de seus dois grandes volumes. E isto se deve inegavelmente à sua curiosidade por essas coisas ser bastante aguçada, porém artificial. Ele não enxergava o que havia por trás dos fenômenos.
O mesmo não acontece com Dion Fortune, uma das maiores ocultistas modernas, cujo Psychic Self Defense (1930) é um clássico do assunto. Ela relaciona o vampirismo diretamente com as forças espirituais negativas, com o “mau olhado”. A esse respeito, já mencionei seu relato sobre uma diretora de escola que lançou um “ataque espiritual” em sua direção. Da maneira como conta no primeiro capítulo de seu livro, o ataque dificilmente poderia ser considerado “espiritual”. Dion Fortune dirigiu-se à sala da diretora para comunicar que estava deixando a escola — não dando importância à advertência de um colega, que lhe avisara que, no caso de um confronto com a diretora, ela jamais conseguiria sair. O método de ataque da mulher consistia em afirmar que Miss Firth (nome verdadeiro de Dion Fortune) era incompetente e não possuía autoconfiança. Usou esse mesmo argumento durante quatro horas. “Entrei (na sala] forte e saudável. Saí destruída física e mentalmente, e fiquei doente durante três anos”. Por muito tempo sua vitalidade permaneceu exaurida. Sinto-me inclinado a duvidar de que a diretora tenha realmente emprega-do métodos “espirituais”, (Embora esse tipo de sugestão envolva o mesmo princípio básico do hipnotismo: tirar vantagem da autodivisão da maioria das pessoas, fazendo com que uma metade se volte contra a outra. No Apêndice A de Beyond the Outsider, trato do caso da romancista Margaret Lane, afundada numa depressão que durou dois anos depois de ler o relato de John Hersey a respeito do bombardeio de Hiroshima. Na época, ela se recuperava de um parto difícil. A mente é capaz de desenvolver um reflexo negativo, como um cão nervoso que se retrai toda vez que alguém faz um movimento ) mas em qualquer caso seu ataque teve como fruto interessar Miss Firth pela psicologia, e depois pelo ocultismo.
O pequeno capítulo de Dion Fortune sobre vampirismo talvez represente o que há de mais sensato sobre o assunto. De início, ela comenta os casos que conheceu como psiquiatra, quando um cônjuge parecia extrair energia do outro, ou quando um pai ou mãe aparentemente concedia energia ao filho. (Para ela, a maioria dos complexos de Édipo é dessa natureza.) “Com o nosso conhecimento atual da telepatia e da aura magnética, não me parece absurdo supor que, de alguma forma que ainda não compreendemos perfeitamente, o parceiro negativo de uma tal relação provoca um “curto-circuito” no parceiro positivo. Ocorre um vazamento de vitalidade, e o parceiro dominante, de for-ma mais ou menos consciente, sorve toda essa energia.” Em seguida, Dion Fortune fala do Comandante Baring-Gould, autor de Oddities, que diz que alguns nativos das Filipinas praticam o vampirismo ao libertarem o “corpo astral” do corpo material, e o praticam sugando vitalidade, e não sangue, como se fossem fantasmas, por assim dizer. A seguir ela descreve um caso de que tinha conhecimento direto. As janelas envidraçadas de uma determinada casa abriam-se em algum instante durante a noite, e não adiantava tentar mantê-las fechadas porque se abriam de novo.
Um jovem homossexual que vivia na casa estava em tratamento psiquiátrico, mas se apresentava constantemente destituído de vitalidade. Uma noite, presente na casa um estudioso do ocultismo, os cães começaram a ladrar e as janelas se abriram. Ele avisou as pessoas que alguma coisa havia entrado na casa. “Quando apagaram as luzes, viram um brilho opaco num canto da sala; (. . .) ao tocarem aquele brilho com as mãos, tiveram uma sensação de formigamento, como o que se sente ao se tocar em água eletricamente carregada.” O ocultista fez sumir o espírito ao “absorvê-lo” com uma simpatia — a respeito da qual falaremos mais adiante. O jovem homossexual confessou mais tarde que talvez conhecesse a origem do problema. Seria um primo, também homossexual, que fora apanhado nos campos de batalha da França a praticar a necrofilia com soldados mortos, e enviado de volta à Inglaterra para tratamento psiquiátrico. Muitas vezes o rapaz visitara o primo, tendo havido relação sexual entre eles. (Numa ocasião o rapaz mordeu o primo no pescoço, sugando-lhe um pouco de sangue.) Foi depois da separação dos dois que começaram a ocorrer os fenômenos, e o moço que habitava a casa passou a ter pesadelos em que um fantasma o atacava e lhe sorvia a energia.
O ocultista era de opinião que o primo necrófilo não seria o primeiro vampiro da história. A teoria de Dion Fortune é a de que alguns soldados da frente ocidental vinham da Europa Oriental — especialmente da Hungria —, e de que alguns destes conheciam certos “truques” tradicionais do ocultismo — o mais importante sendo a maneira de evitar a “segunda morte”, a desintegração do corpo astral após a morte do corpo físico. “Mantinham-se com os dois corpos por sugarem o sangue dos feridos. Ocorre que o vampirismo é contagioso. Destituída de sua vitalidade, a pessoa atacada por um vampiro constitui uni vácuo espiritual, absorvendo energia de quem puder, para recuperar suas fontes de vitalidade. Pela experiência, essa pessoa em pouco tempo aprende a atuar como vampiro sem perceber o significado de seus atos. E antes que note aonde chegou, já é um vampiro completo”.
Não obstante, o ocultista não acreditava que o vampiro fosse o primo necrófilo. Achava que o corpo astral de algum soldado magiar se havia prendi-do ao necrófilo, transferindo-se depois ao jovem primo após o episódio da mordida no pescoço. Para os céticos, o caso soa totalmente absurdo. Mas tem lá sua própria lógica e certamente explica o vampirismo de uma forma que Summers não consegue fazer.
A explicação de Dion Fortune para os lobisomens também inclui o corpo astral além do corpo físico. Afirma que as mentes poderosas criam formas — pensamentos com vida própria e se transformam em “elementais”. E diz que uma vez ela fez a mesma coisa, ela própria, involuntariamente. Estava deitada na cama a pensar de forma bastante desagradável e negativa num amigo que a magoara. Em estado de semi-sonolência, “veio-me à mente a idéia de esquecer todas as barreiras e me encher de fúria cega. Surgiram perante mim os antigos mitos nórdicos, e pensei em Fenris, o horrível Lobo do Norte. Senti ao mesmo tempo a curiosa sensação de exaurimento de meu plexo, e se materializou a meu lado, sobre a cama, um enorme lobo (. . .). Eu sentia nitidamente seu dorso encostando-se em mim (. . .). Eu nada sabia da arte de produzir elementais na época, mas por acaso dei com o método correto — a reflexão muito carregada de emoções, a invocação da força natural apropriada, e o estado entre sono e vigília em que o corpo astral prontamente assume o controle”
Embora rija de medo, conseguiu não entrar em pânico e expulsou a criatura da cama. O bicho pareceu transformar-se em cachorro, e desapareceu peIo canto do quarto. Naquela noite, outra pessoa da casa sonhou com lobos e com os olhos de um animal selvagem a brilhar na escuridão. Ela resolveu se aconselhar com seu mestre — provavelmente Crowley —, e este disse que ela tinha de “absorver” a criatura que produzira. Mas como a aparição fora criada a partir do desejo de ajustar contas com uma determinada pessoa, Dion Fortune tinha de começar por esquecer sua vontade de vingança. E, como que por coincidência, a oportunidade ideal para se vingar apareceu naquele exato instante. “Tive juízo o bastante para ver que me encontrava numa encruzilhada. Não tomasse cuidado e daria o primeiro passo na trilha Esquerda.” Decidiu perdoar quem a havia magoado, bem como reabsorver o lobo, o que descreve da seguinte forma:
Ele entrou novamente pelo canto norte do quarto (depois eu soube que o norte era o lado do mal para os antigos), e se postou no tapete da lareira com aspecto bastante suave e domesticado. Obtive excelente materialização à meia-luz, e juraria que estava ali um enorme cão pastor alsaciano a olhar para mim. Era muito real, até pelo cheiro próprio dos cães.
Dele até mim estendia-se uma sombria linha de ectoplasma; uma extremidade presa a meu plexo, a outra desaparecendo por entre os pélos felpudos de sua barriga (. . .). Por um esforço de vontade e imaginação, comecei a lhe extrair a vida por esse cordão, como quem suga um refrigerante pelo canudo. A forma de lobo começou a desaparecer à medida que o cordão se tornava mais espesso e substancial. Fui tomada de violenta convulsão emocional, e senti os mais furiosos impulsos de enlouquecer e rasgar e dilacerar a tudo e a todos que me caíssem nas mãos, investindo às cegas contra tudo (. . .). A forma de lobo desaparecia, transformando-se em disforme névoa cinzenta. E isto também foi absorvido através do cordão prateado. A tensão cedeu e me vi banhada em suor.
É curioso observar que, durante as breves vinte e quatro horas de vida daquela coisa, existiu uma oportunidade de vingança efetiva.
Ao contrário do mestre Crowley, Dion Fortune não parece exibicionista, ávida por criar situações de efeito. O extraordinário material de seus livros, bem como a seriedade com que o apresenta, fazem dela um caso praticamente único entre os autores do ocultismo. Mesmo um cético tem de reconhecer que ela escreve como alguém que sabe do que está falando, e sem fazer uso da linguagem inflada e romântica da maioria dos ocultistas. E o que afirma nesse ex-certo a respeito da tentação da “trilha Esquerda” diz muito da vida dos magos. Na Kabalah, o mundo da magia — Yesod, a lua — situa-se em nível mais baixo do que o mundo de Hod, do intelecto e da imaginação, ou de Netshah, o vital, das forças criativas da natureza. Há pessoas dotadas de faculdades “mágicas” naturais, mas a menos que se submetam ao intelecto e à imaginação, serão utilizadas para servir às emoções negativas — malícia, inveja, etc. O resultado é a degeneração do caráter. A maioria das pessoas possui faculdades mágicas naturais. Felizmente, a maioria não sabe disso.
Interessante é observar que o morcego chamado vampiro parece ter recebido esse nome por causa do vampiro das histórias, e não o contrário. Até pouco tempo atrás pouco se sabia desse bicho. Quando por fim os zoólogos o estudaram, descobriu-se que, na realidade, ele não suga o sangue, mas o lam-be, como o gato faz com o leite. Ao contrário de Drácula e seus pares, o morcego vampiro não deixa dois furinhos. Faz pequeno orifício na pele da vítima com os incisivos, e em seguida põe-se a introduzir a língua repetida-mente com muita rapidez, ingerindo assim o sangue. O corte geralmente continua a sangrar depois que ele pára de sorver. O único atributà do morcego vampiro que, de certa forma, parece sobrenatural é sua capacidade de fazer a incisão sem provocar dor ou despertar a vítima.
Pessoas atacadas por esses morcegos — em países tropicais — só se dão conta do fato quando acordam e veem as manchas de sangue no lençol. E já se comprovou por observação que ontros animais permanecem parados, imperturbáveis com o ataque, enquanto o morcego faz o corte. Jamais se procurou explicar o motivo.
É curioso observar as eventuais transformações sofridas pelas histórias de vampiros, a partir do conhecimento do morcego vampiro.Uma notícia publicada no Daily Express em junho de 1970 mostra que ainda está vivo o mito do vampiro.
Armado de estaca de madeira e crufixo, Allan Farrow rondava furtivo por entre os túmulos de um cemitério. Buscava o ‘vampiro’ do Cemitério de Highgate. Farrow, 24 anos, afincoou ontem no tribunal:
— Queria achar o ser sobrenatural e destruí-lo. Ia trespassar o coração dele com a estaca.
Allan Farrow confessou-se culpado perante o tribunal de Clerkenwell, Londres, por entrar no cemitério com fins ilícitos (…). Determinou-se o seu reencarceramento, sob custódia, até que se ultimem os pareceres.
Ontem à noite o Sr. Sean Manchester, líder da Sociedade Ocultista Britânica, afirmou:
— Não duvido da existência de um vampiro no Cemitério de Highgate. Moradores do local e transeuntes já disseram ter observado um vulto com aspecto de fantasma de grandes proporções nas proximidades do portão da face norte.
Até 1953, acreditava-se que já tivera fim na Inglaterra a atividade mágica, com a dissolução da Ordem da Aurora Dourada em meados da década de 1930. (Um discípulo de Crowley, chamado Frances Israel Regardie, publicou um relato completo dos ritos da Aurora Dourada em quatro alentados volumes, entre 1937 e 1940, e os poucos membros remanescentes da sociedade concluíram que dificilmente valeria a pena continuar.) Mas em 1953, um livro intitulado Witchcraft Today, de Gerald Gardner, provocou agitação imediata. Gardner começa por defender a conhecida teoria de Margaret Murray, para quem a bruxaria é resquício de cultos pagãos, e em seguida revela que bruxaria é tão comum hoje na Inglaterra quanto o foi no século XV. Os bruxos modernos, segundo Gardner, adoram a um Deus de Chifres e à Deusa Lua. Quem leu Witchcraft Today sentiu uma certa preferência do autor pelos relatos de tortura e açoitamentos, concluindo talvez que a bruxaria de Gardner ressaltava exageradamente o aspecto sexual da questão. Francis King, em Ritual Magic in England, diz abertamente que “Gardner era sadomasoquista, com gosto especial pela flagelação e marcante tendência ao voyeurismo”.
Falecido em 1964 aos 80 anos de idade, Gardner, na tradição de Crowley, era um tanto exibicionista. Filho de um comerciante de madeiras bastante excêntrico (que costumava tirar a roupa e sentar-se sobre ela quando chovia), Gardner desenvolveu o gosto pelo voyeurismo e por apanhar já durante a infância, em suas viagens pelo Oriente Médio com uma gorda babá irlandesa. Viveu no Oriente até 1936, quando voltou à Inglaterra e se tornou estudioso e praticante da magia. Segundo seu próprio relato, participou de uma assembléia de bruxos em 1946. Em conseqüência da publicação de seu livro, Witchcraft Today, surgiram “assembléias à Gardner” por toda a parte na Inglaterra. Dizia Gardner que o objetivo dessas reuniões era a prática da magia branca — a cura dos doentes, as cerimônias para garantir boas safras, etc. —, mas era forte a ênfase sobre o aspecto sexual. Em Man, Myth and Magic, um jornalista e fotógrafo chamado Serge Kordeiv fala de seu próprio envolvimento com uma dessas assembléias de bruxos, e sua história soa nitidamente à Gardner. Chegando a uma mansão vitoriana, ele e a esposa viram-se num vestiário cujos cabides traziam mudas de roupa completas, inclusive roupa de baixo. A cerimônia, realizada defronte um altar encimado por seis velas negras, apresentava fortes toques melodramáticos, com juramentos assinados com sangue e o sacrifício de um galo preto. O “Mestre”, nu e todo coberto por óleo de cor vermelha, pôs as mãos sobre os órgãos genitais dos dois. Em outra ocasião, uma jovem foi estuprada sobre o altar, pelo Mestre, como punição por divulgar confidências. Kordeiv diz que sua sorte mudou repentinamente para melhor quando se juntou ao grupo, e que bem depressa piorou quando rompeu com a assembléia de bruxos. (The Golden Dawn, Its Inner Teachings, de R. G. Torrens (Neville Spearman, 1969).
Os rituais de Gerald Gardner também incluíam o açoitamento e o ato sexual entre o Sumo-Sacerdote e a Sacerdotisa. Para ele, a bruxaria era um culto saudável, a ser considerado como religião. Não se sabe ao certo se ele tinha ou não razão. O fato é que para alguns estudiosos há uma certa dose de invenção em seus dois livros, e Francis King diz que ele forjou um “estatuto da bruxaria” intitulado Book of the Shadows. No testamento, Gardner deixou um museu de bruxaria em Castletown, na Ilha de Man, para a Sra. Monique Wilson, famosa bruxa sua contemporânea, conhecida nos círculos de suas atividades como Lady Olwen. Atualmente ela cuida do museu juntamente com o marido, e uma vez por semana realiza-se uma assembléia de bruxos na antiga casa de campo de Gardner. Lady Olwen assegura que hoje em dia o ritual do sexo conhecido como “casamento sagrado” só se realiza uma vez cada cinco anos, e insiste que a bruxaria inglesa é basicamente a adoração da Deusa Mãe, a Terra.
Francis King informa que ultimamente tem havido um renascer do interesse pela Ordem da Aurora Dourada e seus rituais. É quase impossível encontrar hoje a obra de Regardie em quatro volumes; quando se consegue, é provável que acabe custando até 80 libras na Inglaterra. Mas acaba de sair um livro sobre os “ensinamentos interiores” da Aurora Dourada.(Man, Myth and Magic, es 30 e 31.)
Segundo King, os novos adeptos são diplomados por universidades, e os líderes dos dois principais grupos se dizem reencarnação de Aleister Crowley. Uma ordem que se desenvolveu em Wolverhampton e nas Midlands chama-se Pedra Cúbica, e parece estar mais próxima de Crowley do que da Ordem da Aurora Dourada.
Uma longa citação do The Monolith (a publicação da ordem), mencionada por King, indica que suas invocações mágicas têm sido surpreendentemente bem sucedidas. Em dias variados, a sala foi permeada por um brilho azul, de-pois rosa e em seguida dourado; ouviram-se vozes, sentiu-se a presença de estranhos e lufadas de ar frio atravessaram o recinto do “templo”. Na opinião de King, os membros da Ordem da Pedra Cúbica devem ser considerados co-mo sérios e esforçados estudiosos do ocultismo que buscam o método “enoquiano”.
Provavelmente existem mais bruxos na Inglaterra e Estados Unidos hoje do que em qualquer outra época desde a Reforma. Entre os ingleses, os praticantes mais conhecidos são Patricia Crowther (que organiza reuniões em Sheffield e Manchester), Eleanor Bone (em Tooting e Cumberland), Monique Wilson e Alex Sanders. Este último, nascido em 1926, proclama-se Rei dos Bruxos e reintroduziu a ostentação própria de Crowley e Gardner. Aos sete anos foi iniciado pela avó, e aos dez apresentaram-no a Crowley. Explicou a Frank Smith, autor de Modern Witchcraft, que usara deliberadamente a magia negra para conseguir dinheiro e êxito sexual. “Funcionou bem” — disse ele. Mas depois percebeu que tudo tinha seu preço: vários membros de sua família morreram de cancer, e a namorada suicidou-se — após o quê ele passou a dedicar-se à autopurificação através de cerimônias mágicas. Desde 1967 realiza reuniões num apartamento de Notting Hill, em Londres, e vem alcançando enorme popularidade com o auxilio dos jornais e da televisão. Assim como Monique Wilson, garante que os ritos sexuais representam um mínimo de suas atividades. No entanto, como ocorre com a maioria das assembléias atuais, a maioria de seus ritos é realizada com as pessoas nuas.
Madeleine Montalban, que também conheceu Crowley, define-se como maga e não bruxa. Mantém um curso por correspondência sobre magia, em Londres, ensina levitação (“até mesmo meus discípulos mais jovens conseguem, mas trata-se de um exercício totalmente inútil”) e engarrafa demônios, que de vez em quando fazem explodir o frasco. Para ela, a magia é algo estritamente prático e alegre. “A magia pode facilitar a vida. Magia é apenas isso”, foi o que disse a um repórter de Man, Myth and Magic.
Em resumo: a moderna bruxaria é bem mais variada do que a antiga. É inegável que algumas reuniões sejam meros pretextos para orgias sexuais e constituam oportunidade de exibicionismo. Outras são das mais puritanas, e têm a bruxaria na conta de uma religião panteísta. Há ainda as que se realizam com espírito de pesquisa, com o fito de descobrir quantos e quais dos ritos tradicionais realmente produzem resultado, seja objetiva ou subjetivamente. Talvez estas últimas devam ser consideradas com a maior seriedade. Por motivos que desconhecemos, determinados ritos efetivamente produzem resulta-do, ao menos quando realizados pela pessoa certa. O que deve indicar a existência de certas leis que regem os fenômenos. Séculos atrás não havia curiosidade acerca dessas leis, porque o Diabo e seus asseclas estariam por trás delas.
Com o advento da era da análise científica, a bruxaria desapareceu. E agora, corrofda a fé na ciência, vemos o renascer da magia. Ao menos a sincronização é excelente.
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