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CS. Lewis
1. A LEI DA NATUREZA HUMANA
Todo o mundo já viu pessoas discutindo. Às vezes, a discussão soa engraçada; em outras, apenas desagradável. Como quer que soe, acredito que podemos aprender algo muito importante ouvindo os tipos de coisas que elas dizem. Dizem, por exemplo: “Você gostaria que fizessem o mesmo com você?”; “Desculpe, esse banco é meu, eu sentei aqui primeiro”; “Deixe-o em paz, que ele não lhe está fazendo nada de mal”; “Por que você teve de entrar na frente?”; “Dê-me um pedaço da sua laranja, pois eu lhe dei um pedaço da minha”; e “Poxa, você prometeu!” Essas coisas são ditas todos os dias por pessoas cultas e incultas, por adultos e crianças.
O que me interessa em todos estes comentários é que o homem que os faz não está apenas expressando o quanto lhe desagrada o comportamento de seu interlocutor; está também fazendo apelo a um padrão de comportamento que o outro deveria conhecer. E esse outro raramente responde: “Ao inferno com o padrão!” Quase sempre tenta provar que sua atitude não infringiu este padrão, ou que, se infringiu, ele tinha uma desculpa muito especial para agir assim. Alega uma razão especial, em seu caso particular, para não ceder o lugar à pessoa que ocupou o banco primeiro, ou alega que a situação era muito diferente quando ele ganhou aquele gomo de laranja, ou, ainda, que um fato novo o desobriga de cumprir o prometido. Está claro que os envolvidos na discussão conhecem uma lei ou regra de conduta leal, de comportamento digno ou moral, ou como quer que o queiramos chamar, com a qual efetivamente concordam. E eles conhecem essa lei. Se não conhecessem, talvez lutassem como animais ferozes, mas não poderiam “discutir” no sentido humano desta palavra. A intenção da discussão é mostrar que o outro está errado. Não haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem algum tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado, da mesma forma que não haveria sentido em marcar a falta de um jogador de futebol sem que houvesse uma concordância prévia sobre as regras do jogo. Ora, essa lei ou regra do certo e do errado era chamada de Lei Natural. Hoje em dia, quando falamos das “leis naturais”, quase sempre nos referimos a coisas como a gravitação, a hereditariedade ou as leis da química. Porém, quando os pensadores do passado chamavam a lei do certo e do errado de “Lei Natural”, estava implícito que se tratava da Lei da Natureza Humana. A ideia era a seguinte: assim como os corpos são regidos pela lei da gravitação, e os organismos, pelas leis da biologia, assim também a criatura chamada “homem” possui uma lei própria – com a grande diferença de que os corpos não são livres para escolher se vão obedecer à lei da gravitação ou não, ao passo que o homem pode escolher entre obedecer ou desobedecer à Lei da Natureza Humana.
Examinemos a questão sob outro prisma. Todo homem está continuamente sujeito a diversos conjuntos de leis, mas a apenas um ele é livre para desobedecer. Enquanto corpo, ele é regido pela gravitação e não pode desobedecê-la; se ficar suspenso no ar, sem apoio, fatalmente cairá como cairia uma pedra. Enquanto organismo, está sujeito a diversas leis biológicas, às quais, como os animais, não pode desobedecer. Em outras palavras, o homem não pode desobedecer às leis que tem em comum com os outros seres; mas a lei própria da natureza humana, a lei que não é compartilhada nem pelos animais, nem pelos vegetais, nem pelos seres inorgânicos, a esta lei o ser humano pode desobedecer, se assim quiser. Essa lei era chamada de Lei Natural porque as pessoas pensavam que todos a conheciam naturalmente e não precisavam que outros a ensinassem. Isso, evidentemente, não significava que não se pudesse encontrar, aqui e ali, um indivíduo que a ignorasse, assim como existem indivíduos daltônicos ou desafinados. Considerando a raça humana em geral, no entanto, as pessoas pensavam que a ideia humana de comportamento digno ou decente era óbvia para todos. E acredito que essas pessoas tinham razão. Se assim não fosse, as coisas que dizemos a respeito da guerra não teriam sentido nenhum. Se o Certo não for uma entidade real, que os nazistas, lá no fundo, conhecem tão bem quanto nós e têm o dever de praticar, qual o sentido de dizer que o inimigo está errado? Se eles não têm nenhuma noção daquilo que chamamos de Certo, talvez tivéssemos de combatê-los do mesmo jeito, mas não poderíamos culpá-los pelas suas ações, da mesma forma que não podemos culpar um homem por ter nascido com os cabelos louros ou castanhos.
Sei que certas pessoas afirmam que a ideia de uma Lei Natural ou lei de dignidade de comportamento, conhecida de todos os homens, não tem fundamento, porque as diversas civilizações e os povos das diversas épocas tiveram doutrinas morais muito diferentes.
Mas isso não é verdade. E certo que existem diferenças entre as doutrinas morais dos diversos povos, mas elas nunca chegaram a constituir algo que se assemelhasse a uma diferença total. Se alguém se der ao trabalho de comparar os ensinamentos morais dos antigos egípcios, dos babilónios, dos hindus, dos chineses, dos gregos e dos romanos, ficará surpreso, isto sim, com o imenso grau de semelhança que eles têm entre si e também com nossos próprios ensinamentos morais. Reuni alguns desses dados concordantes no apêndice que escrevi para um outro livro, chamado A abolição do homem. Porém, para os fins que agora temos em vista, basta perguntar ao leitor como seria uma moralidade totalmente diferente da que conhecemos. Imagine um país que admirasse aquele que foge do campo de batalha, ou em que um homem se orgulhasse de trair as pessoas que mais lhe fizeram bem. O leitor poderia igualmente imaginar um país em que dois e dois são cinco. Os povos discordaram a respeito de quem são as pessoas com quem você deve ser altruísta – sua família, seus compatriotas ou todo o género humano; mas sempre concordaram em que você não deve colocar a si mesmo em primeiro lugar. O egoísmo nunca foi admirado. Os homens divergiram quanto ao número de esposas que podiam ter, se uma ou quatro; mas sempre concordaram em que você não pode simplesmente ter qualquer mulher que lhe apetecer.
O mais extraordinário, porém, é que, sempre que encontramos um homem a afirmar que não acredita na existência do certo e do errado, vemos logo em seguida este mesmo homem mudar de opinião. Ele pode não cumprir a palavra que lhe deu, mas, se você fizer a mesma coisa, ele lhe dirá “Não é justo!” antes que você possa dizer “Cristóvão Colombo”. Um país pode dizer que os tratados de nada valem; porém, no momento seguinte, porá sua causa a perder afirmando que o tratado específico que pretende romper não é um tratado justo. Se os tratados de nada valem, se não existe um certo e um errado — em outras palavras, se não existe uma Lei Natural -, qual a diferença entre um tratado justo e um injusto? Será que, agindo assim, eles não deixam o rabo à mostra e demonstram que, digam o que disserem, conhecem a Lei Natural tanto quanto qualquer outra pessoa? Parece, portanto, que só nos resta aceitar a existência de um certo e um errado. As pessoas podem volta e meia se enganar a respeito deles, da mesma forma que às vezes erram numa soma; mas a existência de ambos não depende de gostos pessoais ou de opiniões, da mesma forma que um cálculo errado não invalida a tabuada. Se concordamos com estas premissas, posso passar à seguinte: nenhum de nós realmente segue à risca a Lei Natural. Se existir uma exceção entre os leitores, me desculpo. Será mais proveitoso que essa pessoa leia outro livro, pois nada do que vou falar lhe diz respeito. Feita a ressalva, volto aos leitores comuns.
Espero que vocês não se irritem com o que vou dizer. Não estou fazendo uma pregação, e Deus sabe que não pretendo ser melhor do que ninguém. Só estou tentando chamar a atenção para um fato: o de que, neste ano, neste mês ou, com maior probabilidade, hoje mesmo, todos nós deixamos de praticar a conduta que gostaríamos que os outros tivessem em relação a nós. Podemos apresentar mil e uma desculpas por termos agido assim. Você se impacientou com as crianças porque estava cansado; não foi muito correto naquela questão de dinheiro – questão que já quase fugiu da memória -porque estava com problemas financeiros; e aquilo que prometeu para fulano ou sicrano, ah!, nunca teria prometido se soubesse como estaria ocupado nos últimos dias. Quanto a seu modo de tratar a esposa (ou o marido), a irmã (ou o irmão) — se eu soubesse o quanto eles são irritantes, não me surpreenderia; e, afinal de contas, quem sou eu para me intrometer? Não sou diferente. Ou seja, nem sempre consigo cumprir a Lei Natural, e, quando alguém me adverte de que a descumpri, me vem à cabeça um rosário de desculpas que dá várias voltas ao redor do pescoço. A pergunta que devemos fazer não é se essas desculpas são boas ou más. O que importa é que elas dão prova da nossa profunda crença na Lei Natural, quer tenhamos consciência de acreditar nela, quer não. Se não acreditássemos na boa conduta, por que a ânsia de encontrar justificativas para qualquer deslize? A verdade é que acreditamos a tal ponto na decência e na dignidade, e sentimos com tanta força a pressão da Soberania da Lei, que não temos coragem de encarar o fato de que a transgredimos. Logo, tentamos transferir para os outros a responsabilidade pela transgressão. Perceba que é só para o mau comportamento que nos damos ao trabalho de encontrar tantas explicações. São somente as fraquezas que procuramos justificar pelo cansaço, pela preocupação ou pela fome. Nossas boas qualidades, atribuímo-las a nós mesmos.
São essas, pois, as duas ideias centrais que pretendia expor. Primeiro, a de que os seres humanos, em todas as regiões da Terra, possuem a singular noção de que devem comportar-se de uma certa maneira, e, por mais que tentem, não conseguem se livrar dessa noção. Segundo, que na prática não se comportam dessa maneira. Os homens conhecem a Lei Natural e transgridem-na. Esses dois fatos são o fundamento de todo pensamento claro a respeito de nós mesmos e do universo em que vivemos.
2. ALGUMAS OBJEÇÕES
Se essas duas ideias são nosso fundamento, é melhor que eu deixe esse fundamento bem firme antes de seguir em frente. Algumas das cartas que recebi mostram que um grande número de pessoas tem dificuldade para compreender o que significa essa Lei da Natureza Humana, ou Lei Moral, ou Regra de Bom Comportamento.
Certas pessoas, por exemplo, me escreveram perguntando: “Isso que você chama de Lei Moral não é simplesmente o nosso instinto gregário? Será que ele não se desenvolveu como todos os nossos outros instintos?” Não vou negar que possuímos esse instinto, mas não é a ele que me refiro quando falo em Lei Moral. Todos nós sabemos o que é ser movido pelo instinto — pelo amor materno, o instinto sexual ou o instinto da alimentação: sentimos o forte desejo ou impulso de agir de determinada maneira. E é claro que, às vezes, sentimos o desejo intenso de ajudar outra pessoa. Isso se deve, sem dúvida, ao instinto gregário. No entanto, sentir o desejo intenso de ajudar é bem diferente de sentir a obrigação imperiosa de ajudar, quer o queiramos, quer não. Suponhamos que você ouça o grito de socorro de um homem em perigo. Provavelmente sentirá dois desejos: o de prestar socorro (que se deve ao instinto gregário) e o de fugir do perigo (que se deve ao instinto de auto-preservação). Mas você encontrará dentro de si, além desses dois impulsos, um terceiro elemento, que lhe mandará seguir o impulso da ajuda e suprimir o impulso da fuga. Esse elemento, que põe na balança os dois instintos e decide qual deles deve ser seguido, não pode ser nenhum dos dois. Você poderia pensar também que a partitura musical, que lhe manda, num determinado momento, tocar tal nota no piano e não outra, é equivalente a uma das notas no teclado. A Lei Moral nos informa da melodia a ser tocada; nossos instintos são meras teclas.
Há outra maneira de perceber que a Lei Moral não é simplesmente um de nossos instintos. Se existe um conflito entre dois instintos e, na mente dessa criatura, não há mais nada além desses instintos, é óbvio que o instinto mais forte tem de prevalecer. Porém, nos momentos em que enxergamos a Lei Moral com maior clareza, ela geralmente nos aconselha a escolher o impulso mais fraco. Provavelmente, seu desejo de ficar a salvo é maior do que o desejo de ajudar o homem que se afoga, mas a Lei Moral lhe manda ajudá-lo, apesar dos pesares. E, em geral, ela nos manda tomar o impulso correto e tentar torná-lo mais forte do que originalmente era – não é mesmo? Ou seja, sentimos que temos o dever de estimular nosso instinto gregário, por exemplo, despertando a imaginação e estimulando a piedade, entre outras coisas, para termos força para agir corretamente na hora certa. E evidente, porém, que, no momento em que decidimos tornar mais forte um instinto, nossa ação não é instintiva. Aquilo que lhe diz: “Seu instinto está adormecido, desperte-o!”, não pode ser o próprio instinto. O que lhe manda tocar tal nota no piano não pode ser a própria nota.
Há ainda uma terceira maneira de ver a Lei Moral. Se ela fosse um de nossos instintos, seríamos capazes de identificar dentro de nós um impulso que sempre pudéssemos chamar de “bom” segundo a regra da boa conduta. Mas isso não acontece. Não existe nenhum impulso que às vezes a Lei Moral não nos aconselhe a inibir, nem outro que ela não nos encoraje a praticar de vez em quando. E um erro achar que alguns de nossos impulsos, como o amor materno e o patriotismo, são bons, e outros, como o instinto sexual e a agressividade, são maus. Tudo o que queremos dizer é que existem mais situações em que o instinto de luta e o desejo sexual devem ser contidos do que situações em que devemos conter o amor materno e o patriotismo. No entanto, em certas ocasiões, é dever do homem casado encorajar seu impulso sexual, e do soldado fomentar sua agressividade. Existem também oportunidades em que a mãe deve refrear o amor pelo filho, ou um homem deve conter o amor por seu país, para que não cometam injustiça contra outras crianças ou outros países. A rigor, não existem impulsos bons e impulsos maus. Voltemos ao piano. Não há nele dois tipos de notas, as “certas” e as “erradas”. Cada uma das notas é certa para uma determinada ocasião e errada para outra. A Lei Moral não é um instinto particular ou um conjunto de instintos; é como um maestro que, regendo os instintos, define a melodia que chamamos de bondade ou boa conduta.
Este tema, aliás, tem grandes consequências práticas. A coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como critério a ser seguido custe o que custar. Não existe um único impulso que, erigido em padrão absoluto, não tenha o poder de nos transformar em demónios. Talvez você pense que o amor pela humanidade em geral é livre de perigos, mas isso não é verdade. Se deixarmos de lado o senso de justiça, logo estaremos violando acordos e falsificando provas judiciais em prol do “bem da humanidade”. Teremos então nos tornado homens cruéis e desleais.
Outras pessoas me escreveram perguntando: “Isso que você chama de Lei Moral não é somente uma convenção social, algo que nos foi incutido pela nossa educação?” Acredito que essas pessoas incorrem num mal-entendido. Elas tomam por pressuposto que, se aprendemos alguma regra de nossos pais e professores, essa regra é uma simples invenção humana. Mas é evidente que isso não é verdade. Todos aprendemos a tabuada na escola. Uma criança que crescesse sozinha numa ilha deserta não a aprenderia. Mas salta à vista que a tabuada não é apenas uma convenção humana, algo que os seres humanos fizeram para si e que poderiam ter feito diferente se assim quisessem. Concordo plenamente que aprendemos a Regra de Boa Conduta dos pais e professores, dos amigos e dos livros, assim como aprendemos todas as outras coisas. Porém, certas coisas que aprendemos são meras convenções que poderiam ser diferentes – aprendemos a manter-nos à direita na estrada, mas a regra poderia ser manter-se à esquerda -, e outras coisas, como a matemática, são verdades. A pergunta a ser feita é a qual das duas classes pertence a Lei da Natureza Humana.
Há duas razões para afirmar que ela pertence à mesma classe que a da matemática. A primeira, expressa no primeiro capítulo, é que, apesar de haver diferenças entre as ideias morais de certa época ou país e as de outros tempos ou lugares, essas diferenças, na realidade, não são muito grandes – nem de longe são tão importantes quanto a maioria das pessoas imagina -, e, assim, podemos reconhecer a mesma lei dentro de todas elas; ao passo que as meras convenções, como o sentido do trânsito ou os tipos de vestimenta, diferem largamente. A segunda razão é a seguinte: quando você considera as diferenças morais entre um povo e outro, não pensa que a moral de um dos dois é sempre melhor ou pior que a do outro? Será que as mudanças que se constatam entre elas não foram mudanças para melhor? Caso a resposta seja negativa, então está claro que nunca houve um progresso moral. O progresso não significa apenas uma mudança, mas uma mudança para melhor. Se um conjunto de ideias morais não fosse melhor do que outro, não haveria sentido em preferir a moral civilizada à moral bárbara, ou a moral cristã à moral nazista. E ponto pacífico que a moralidade de alguns povos é melhor que a de outros. Acreditamos também que certas pessoas que tentaram mudar os conceitos morais de sua época foram o que chamaríamos de Reformadores ou Pioneiros – pessoas que entenderam melhor a moral do que seus contemporâneos. Pois muito bem. No momento em que você diz que um conjunto de ideias morais é superior a outro, está, na verdade, medindo-os ambos segundo um padrão e afirmando que um deles é mais conforme a esse padrão que o outro. O padrão que os mede, no entanto, difere de ambos. Você está, na realidade, comparando as duas coisas com uma Moral Verdadeira e admitindo que existe algo que se pode chamar de O Certo, independentemente do que as pessoas pensam; e está admitindo que as ideias de alguns povos se aproximaram mais desse Certo que as ideias de outros povos. Ou, em outras palavras: se as suas noções morais são mais verdadeiras que as dos nazistas, deve existir algo – uma Moral Verdadeira — que seja o objeto a que essa verdade se refere. A razão pela qual sua concepção de Nova York pode ser mais verdadeira ou mais falsa que a minha é que Nova York é um lugar real, cuja existência independe do que eu ou você pensamos a seu respeito. Se, quando mencionássemos Nova York, tudo o que pensássemos fosse “a cidade que existe na minha cabeça”, como é que um de nós poderia estar mais próximo da verdade do que o outro? Não haveria medida de verdade ou de falsidade. Do mesmo modo, se a Regra da Boa Conduta significasse simplesmente “tudo que cada povo aprova”, não haveria sentido em dizer que uma nação está mais correta do que a outra, nem que o mundo se torna moralmente melhor ou pior.
Concluo, portanto, que, apesar de as diferenças de ideias a respeito da Boa Conduta nos levarem a suspeitar de que não existe uma verdadeira Lei de Conduta natural, as coisas que estamos naturalmente propensos a pensar provam justamente o contrário. Algumas palavras antes de terminar: conheci pessoas que exageraram essas diferenças, por terem confundido as diferenças morais com as meras diferenças de crença a respeito dos fatos. Por exemplo, um horíiem me perguntou certa vez: ‘Trezentos anos atrás, as bruxas na Inglaterra eram queimadas na fogueira. E isso que você chama de Regra da Natureza Humana ou de Boa Conduta?” Mas é claro que a razão pela qual não se executam mais bruxas hoje em dia é que não acreditamos que elas existam. Se acreditássemos – se realmente pensássemos que existem pessoas entre nós que venderam a alma para o diabo, receberam em troca poderes sobrenaturais e usaram esses poderes para matar ou enlouquecer os vizinhos, ou para provocar calamidades naturais —, certamente concordaríamos que, se alguém merecesse a pena de morte, seriam essas sórdidas traidoras. Não há aqui uma diferença de princípios morais, apenas de enfoque dos fatos. Pode ser que o fato de não acreditarmos em bruxas seja um grande avanço do conhecimento, mas não existe avanço moral algum em deixar de executá-las quando pensamos que elas não existem. Não consideraríamos misericordioso um homem que não armasse ratoeiras por não acreditar que houvesse ratos na casa.
3. A REALIDADE DA LEI
Volto agora ao que disse no final do primeiro capítulo: que a raça humana tem duas características curiosas. Em primeiro lugar, que os homens são assombrados pela ideia de um padrão de comportamento que se sentem obrigados a pôr em prática, o qual se poderia chamar de conduta leal, decência, moralidade ou Lei Natural. Em segundo lugar, que eles não o põem em prática. Alguns de vocês podem se perguntar por que razão chamei de “curioso” isso que pode lhes parecer a coisa mais natural do mundo. Em especial, talvez vocês me tenham achado muito duro com a humanidade; afinal de contas, aquilo que chamei de transgressão da Lei do Certo e do Errado, ou da Lei Natural, significa somente que ninguém é perfeito. E por que, ó céus, esperaria eu o contrário? Essa seria uma boa resposta se tudo o que eu pretendesse fosse medir numa balança a culpa exata que cabe a cada um de nós por não nos termos portado como queremos que os outros se portem. Não é essa, porém, a tarefa que me propus. Nesta investigação, não estou preocupado com a culpa; estou tentando descobrir a Verdade. Desse ponto de vista, a própria ideia de imperfeição, de algo que não é o que deveria ser, tem suas consequências.
Se considerarmos um ente como uma pedra ou uma árvore, ele é o que é e não há sentido em dizer que deveria ser de outro jeito. E claro que podemos dizer que a pedra tem “a forma errada” se pretendemos usá-la para uma construção, ou que uma árvore não é boa porque não faz sombra suficiente. Porém, isso significa tão-so-mente que a pedra ou a árvore não se prestam ao uso que queremos fazer delas; não as culpamos de terem tais ou quais características, a não ser como piada. Temos consciência de que, dado um determinado clima e tipo de solo, a árvore não poderia ser em nada diferente do que é. A árvore que, de nosso ponto de vista, chamamos de “má” obedece às leis de sua natureza tanto quanto a que chamamos de “boa”.
Vocês vêem aonde quero chegar? E que o que nós costumamos chamar de leis naturais — o modo pelo qual o clima age sobre a planta, por exemplo — não são leis no sentido estrito da palavra. Essa é só uma maneira de dizer. Quando afirmamos que uma pedra obedece à lei da gravidade, isso não é, por acaso, o mesmo que dizer que essa lei significa apenas “o que a pedra sempre faz”? Não pensamos realmente que a pedra, quando é solta, subitamente se lembra de que tem o dever de cair. Tudo o que queremos dizer é que ela, de fato, cai. Em outras palavras, não podemos ter certeza de que exista algo superior aos fatos mesmos, uma lei que determine o que deve acontecer e que seja diferente do que efetivamen-te acontece. As leis da natureza, quando aplicadas às árvores ou pedras, podem significar apenas “o que a Natureza efetivamente faz”. Mas, se nos voltarmos para a Lei da Natureza Humana, ou Lei da Boa Conduta, a história é outra. E ponto pacífico que ela não significa “o que os seres humanos efetivamente fazem”, já que, como eu disse antes, muitos deles não obedecem em absoluto a essa lei, e nenhum deles a observa integralmente. A lei da gravidade nos diz o que a pedra faz quando cai; já a Lei da Natureza Humana nos diz o que os seres humanos deveriam fazer e não fazem. Ou seja, quando tratamos de seres humanos, existe algo além e acima dos fatos. Existem os fatos (como os homens se comportam) e também uma outra coisa (como deveriam se comportar). No resto do universo, não há necessidade de outra coisa que não os fatos. Elétrons e moléculas comportam-se de determinada maneira e disso decorrem certos resultados, e talvez o assunto pare aí. Os homens, no entanto, comportam-se de determinada maneira e o assunto não pára aí, já que estamos sempre conscientes de que o comportamento deles deveria ser diferente.
Isso é tão singular que ficamos tentados a nos enganar com falsas explicações. Podemos, por exemplo, afirmar que, quando você diz que um homem não deveria fazer o que fez, quer dizer a mesma coisa quando assevera que a pedra tem a forma errada: ou seja, que a atitude dele é inconveniente para você. Mas isso é simplesmente falso. Um homem que chega primeiro no trem e ocupa um bom assento é tão inconveniente quanto um homem que tira minha mala do assento e o ocupa sorrateiramente enquanto estou de costas. Porém, não culpo o primeiro homem, mas culpo o segundo. Não fico bravo – exceto talvez por um breve momento, até recuperar a razão – com uma pessoa que por acidente me faz tropeçar, mas ficot bravo com alguém que tenta me fazer tropeçar de propósito, mesmo que não consiga. Porém, foi a primeira pessoa que efetivamente me machucou, e não a segunda. Às vezes, o comportamento que julgo mau não é inconveniente para mim de modo algum, muito pelo contrário. Na guerra, cada um dos lados beligerantes achará muito útil um traidor do lado oposto; porém, apesar de usá-lo e de recompensá-lo pelos serviços prestados, o considerará um verme em forma humana. Assim, não podemos dizer que o que chamamos de boa conduta alheia é simplesmente a conduta que nos é útil. E, quanto à nossa boa conduta, parece-me óbvio que não se trata da que nos traz vantagens. Trata-se, isto sim, de ficar contente com 30 xelins quando poderíamos ter ganho três libras; de fazer o dever de casa honestamente quando poderíamos copiar o do vizinho; de respeitar uma moça quando gostaríamos de ir para a cama com ela; de não nos afastar de um posto perigoso quando poderíamos escapar para um lugar mais seguro; de manter a palavra quando preferiríamos faltar com ela; de falar a verdade mesmo que assim pareçamos idiotas perante os outros.
Certas pessoas dizem que, apesar de a boa conduta não ser o que traz vantagens para cada pessoa individualmente, pode significar o que traz vantagens para a humanidade como um todo; e, portanto, a coisa não seria tão misteriosa. Os seres humanos, no fim das contas, possuem algum bom senso; percebem que a segurança e a felicidade só são possíveis numa sociedade em que cada qual age com lealdade, e é por perceber isso que tentam conduzir-se com decência. Ora, é perfeitamente verdadeira a ideia de que a segurança e a felicidade só podem vir quando os indivíduos, as classes sociais e os países são honestos, justos e bons uns com os outros. E uma das verdades mais importantes do mundo. Ela só não consegue explicar por que temos tais e tais sentimentos diante do Certo e do Errado. Se eu perguntar: “Por que devo ser altruísta?”, e você responder: “Porque isso é bom para a sociedade”, poderei retrucar: “Por que devo me importar com o que é bom para a sociedade se isso não me traz vantagens pessoais?”, ao que você terá de responder: “Porque você deve ser altruísta” – o que nos leva de volta ao ponto de partida. O que você diz é verdade, mas não nos faz avançar. Se um homem pergunta o motivo de se jogar futebol, de nada adianta responder que é “fazer gois”, pois tentar fazer gois é o próprio jogo, e não o motivo pelo qual o jogamos. No final, estamos dizendo somente que “futebol é futebol” – o que é verdade, mas não precisa ser dito. Da mesma forma, se uma pessoa pergunta o motivo de se agir com decência, não vale a pena responder “para o bem da sociedade”, pois tentar beneficiar a sociedade, ou, em outras palavras, ser altruísta (pois “sociedade”, no fim das contas, significa apenas “as outras pessoas”), é um dos elementos da decência. Tudo o que se estará dizendo é que uma conduta decente é uma conduta decente. Teríamos dito a mesma coisa se tivéssemos parado na declaração de que “As pessoas devem ser altruístas”. E é nesse ponto que eu paro. Os homens devem ser altruístas, devem ser justos. Não que os homens sejam altruístas ou gostem de sê-lo, mas que devem sê-lo. A Lei Moral, ou Lei da Natureza Humana, não é simplesmente um fato a respeito do comportamento humano, como a Lei da Gravidade é ou pode ser simplesmente um fato a respeito do comportamento dos ob-jetos pesados. Por outro lado, não é mera fantasia, pois não conseguimos nos desvencilhar dessa ideia; se conseguíssemos, a maior parte das coisas que dizemos sobre os homens seria absurda. Ela também não é uma simples declaração de como gostaríamos que os homens se comportassem para a nossa conveniência, pois o comportamento que taxamos de mau ou injusto nem sempre é inconveniente, e, muitas vezes, é exatamente o contrário. Consequentemente, essa Regra do Certo e do Errado, ou Lei da Natureza Humana, ou como quer que você queira chamá-la, deve ser uma Verdade – uma coisa que existe realmente, e não uma invenção humana. E, no entanto, não é um fato no mesmo sentido em que o comportamento efetivo das pessoas é um fato. Começa a ficar claro que teremos de admitir a existência de mais de um plano de realidade; e que, neste caso em particular, existe algo que está além e acima dos fatos comuns do comportamento humano, algo que no entanto é perfeitamente real – uma lei verdadeira, que nenhum de nós elaborou, mas que nos sentimos obrigados a cumprir.
4. O QUE EXISTE POR TRÁS DA LEI
Vamos fazer um resumo de tudo o que vimos até aqui. No caso das pedras, das árvores e de coisas dessa natureza, o que chamamos de Lei Natural pode não ser nada além de uma força de expressão. Quando você diz que a natureza é governada por certas leis, quer dizer apenas que a natureza, de fato, se comporta de certa forma. As chamadas “leis” talvez não tenham realidade própria, talvez não estejam além e acima dos fatos que podemos observar. No caso do homem, porém, percebemos que as coisas não são bem assim. A Lei da Natureza Humana, ou Lei do Certo e do Errado, é algo que transcende os fatos do comportamento humano. Neste caso, além dos fatos em si, existe outra coisa – uma verdadeira lei que não inventamos e à qual sabemos que devemos obedecer.
Quero considerar agora o que isso nos diz sobre o universo em que vivemos. Desde que o homem se tornou capaz de pensar, ele se pergunta no que consiste o universo e como ele veio a existir. Grosso modo, dois pontos de vista foram sustentados. O primeiro deles é o que chamamos de materialista. Quem o adota afirma que a matéria e o espaço simplesmente existem e sempre existiram, ninguém sabe por quê. A matéria, que se comporta de formas fixas, veio, por algum acidente, a produzir criaturas como nós, criaturas capazes de pensar. Numa chance em mil, um corpo se chocou contra o sol e gerou os planetas. Por outra chance infinitesimal, as substâncias químicas necessárias à vida e a temperatura correta se fizeram presentes num desses planetas, e, assim, uma parte da matéria desse planeta ganhou vida. Depois, por uma longuíssima série de coincidências, as criaturas viventes se desenvolveram até se tornarem seres como nós. O outro ponto de vista é o religioso. Segundo ele, o que existe por trás do universo se assemelha mais a uma mente que a qualquer outra coisa conhecida. Ou seja, é algo consciente e dotado de objetivos e preferências. De acordo com essa visão, esse ser criou o universo. Alguns dos seus desígnios são ocultos, enquanto outros são bastante claros: produzir criaturas semelhantes a si mesmo — quero dizer, semelhantes na medida em possuem mentes. Por favor, não pensem que um destes pontos de vista era sustentado há muito tempo e aos poucos foi cedendo lugar ao outro. Onde quer que tenha havido homens pensantes, os dois pontos de vista sempre apareceram de uma forma ou de outra. Notem também que, para saber qual deles é o correto, não podemos apelar à ciência no sentido comum dessa palavra. A ciência funciona a partir da experiência e observa como as coisas se comportam. Todo enunciado científico, por mais complicado que pareça à primeira vista, na verdade significa algo como “apontei o telescópio para tal parte do céu às 2h20min do dia 15 de janeiro e vi tal e tal fenómeno”, ou “coloquei um pouco deste material num recipiente, aqueci-o a uma temperatura X e tal coisa aconteceu”. Não pensem que eu esteja desmerecendo a ciência; estou apenas mostrando para que ela serve. Quanto mais sério for o homem de ciência, mais (no meu entender) ele concordará comigo quanto ao papel dela – papel, aliás, extremamente útil e necessário. Agora, perguntas como “Por que algo veio a existir?” e “Será que existe algo – algo de outra espécie — por trás das coisas que a ciência observa?” não são perguntas científicas. Se existe “algo por trás”, ou ele há de manter-se totalmente desconhecido para o homem ou far-se-á revelar por outros meios. A ciência não pode dizer nem que esse ser existe nem que não existe, e os verdadeiros cientistas geralmente não fazem essas declarações. São quase sempre jornalistas e romancistas de sucesso que as produzem a partir de informações coletadas em manuais de ciência popular e assimiladas de maneira imperfeita. Afinal de contas, tudo não passa de uma questão de bom senso. Suponha que a ciência algum dia se tornasse completa, tendo o conhecimento total de cada mínimo detalhe do universo. Não é óbvio que perguntas como “Por que existe um universo?”, “Por que ele continua existindo?” e “Qual o significado de sua existência?” continuariam intactas?
Deveríamos perder as esperanças, não fosse por um detalhe. No universo inteiro, existe uma coisa, e somente uma, que nós conhecemos melhor do que conheceríamos se contássemos somente com a observação externa. Essa coisa é o Ser Humano. Nós não nos limitamos a observar o ser humano, nós somos seres humanos. Nesse caso, podemos dizer que as informações que possuímos vêm “de dentro”. Estamos a par do assunto. Por causa disto, sabemos que os seres humanos estão sujeitos a uma lei moral que não foi criada por eles, que não conseguem tirar do seu horizonte mesmo quando tentam e à qual sabem que devem obedecer. Alguém que estudasse o homem “de fora”, da maneira como estudamos a eletricidade ou os repolhos, sem conhecer a nossa língua e, portanto, impossibilitado de obter conhecimento do nosso interior, não teria a mais vaga ideia da existência desta lei moral a partir da observação de nossos atos. Como poderia ter? Suas observações se resumiriam ao que fazemos, ao passo que essa lei diz respeito ao que deveríamos fazer. Do mesmo modo, se existe algo acima ou por trás dos fatos observados sobre as pedras ou sobre o clima, nós, estudando-os de fora, não temos a menor esperança de descobrir o que ele é.
A natureza da questão é a seguinte: queremos saber se o universo simplesmente é o que é, sem nenhuma razão especial, ou se existe por trás dele um poder que o produziu tal como o conhecemos. Uma vez que esse poder, se ele existe, não seria um dos fatos observados, mas a realidade que os produziu, a mera observação dos fenómenos não pode encontrá-lo. Existe apenas um caso no qual podemos saber se esse “algo mais” existe; a saber, o nosso caso. E, nesse caso, constatamos que existe. Ou examinemos a questão de outro ângulo. Se existisse um poder exterior que controlasse o universo, ele não poderia se revelar para nós como um dos fatos do próprio universo – da mesma forma que o arquiteto de uma casa não pode ser uma de suas escadas, paredes ou lareira. A única maneira pela qual podemos esperar que esta força se manifeste é dentro de nós mesmos, como uma influência ou voz de comando que tente nos levar a ado-tar uma determinada conduta. E justamente isso que descobrimos dentro de nós. Já não deveríamos ficar com a pulga atrás da orelha? No único caso em que podemos encontrar uma resposta, ela é positiva; nos outros, em que não há respostas, entendemos por que não podemos encontrá-las. Suponha que alguém me perguntasse, acerca de um homem de uniforme azul que passa de casa em casa depositando envelopes de papel em cada uma delas, por que, afinal, eu concluo que dentro dos envelopes existem cartas. Eu responderia: “Porque sempre que ele deixa envelopes parecidos na minha casa, dentro deles há uma carta para mim.” Se o interlocutor objetasse: “Mas você nunca viu as cartas que supõe que as outras pessoas recebam”, eu diria: “E claro que não, e nem quero vê-las, porque não foram endereçadas a mim. Eu imagino o conteúdo dos envelopes que não posso abrir pelo dos envelopes que posso.” O mesmo se dá aqui. O único envelope que posso abrir é o Ser Humano. Quando o faço, e especialmente quando abro o Ser Humano chamado “Eu”, descubro que não existo por mim mesmo, mas que vivo sob uma lei, que algo ou alguém quer que eu me comporte de determinada forma. E claro que não acho que, se pudesse entrar na existência de uma pedra ou de uma árvore, encontraria exatamente a mesma coisa, assim como não acho que as pessoas da minha rua recebam exatamente as mesmas cartas que eu. Devo concluir que a pedra, por exemplo, tem de obedecer à lei da gravidade – que, enquanto o missivista se limita a aconselhar-me a obedecer à lei da minha natureza, ele obriga a pedra a obedecer às leis de sua natureza pétrea. O que não consigo negar é que, em ambos os casos, existe, por assim dizer, esse missivista, um Poder por trás dos fatos, um Diretor, um Guia.
Não pense que estou indo mais rápido do que estou na realidade. Ainda não estou nem perto do Deus da teologia cristã. Tudo o que obtive até aqui é a evidência de Algo que dirige o universo e que se manifesta em mim como uma lei que me incita a praticar o certo e me faz sentir incomodado e responsável pelos meus erros. Segundo me parece, temos de supor que esse Algo é mais parecido com uma mente do que com qualquer outra coisa conhecida — porque, afinal de contas, a única outra coisa que conhecemos é a matéria, e ninguém jamais viu um pedaço de matéria dar instruções a alguém. E claro, porém, que não precisa ser muito parecido com uma mente, muito menos com uma pessoa. No próximo capítulo, vamos tentar descobrir mais a seu respeito. Apenas uma advertência. Houve muita conversa fajuta a respeito de Deus nos últimos cem anos, e não é isso que tenho a oferecer. Esqueça tudo o que ouviu.
NOTA: Para manter esta seção curta o suficiente para ir ao ar, só mencionei os pontos de vista materialista e religioso. Para completar o quadro, tenho de mencionar o ponto de vista intermediário entre os dois, a chamada filosofia da Força Vital, ou Evolução Criativa, ou Evolução Emergente, cuja exposição mais brilhante e arguta encontra-se nas obras de Bernard Shaw, ao passo que a mais profunda, nas de Bergson. Seus defensores dizem que as pequenas variações pelas quais a vida neste planeta “evoluiu” das formas mais simples à forma humana não ocorreram em virtude do acaso, mas sim pelo “esforço” e pela “intenção” de uma Força Vital. Quando fazem tais afirmações, devemos perguntar se, por Força Vital, essas pessoas entendem algo semelhante a uma mente ou não. Se for semelhante, “uma mente que traz a vida à existência e a conduz à perfeição” não é outra coisa senão Deus, e seu ponto de vista é idêntico ao religioso. Se não for semelhante, qual o sentido, então, de dizer que algo sem mente faça um “esforço” e tenha uma “intenção”? Este argumento me parece fatal para esse ponto de vista. Uma das razões pelas quais as pessoas julgam a Evolução Criativa tão atraente é que ela dá o consolo emocional da crença em Deus sem impor as consequências desagradáveis desta. Quando nos sentimos ótimos e o sol brilha lá fora, e não queremos acreditar que o universo inteiro se reduz a uma dança mecânica de átomos, é reconfortante pensar nessa gigantesca e misteriosa Força evoluindo pelos séculos e nos carregando em sua crista. Se, por outro lado, queremos fazer algo escuso, a Força Vital, que não passa de uma força cega, sem moral e sem discernimento, nunca vai nos atrapalhar como fazia o aborrecido Deus que nos foi ensinado quando éramos crianças. A Força Vital é como um deus domesticado. Você pode tirá-lo de dentro da caixa sempre que quiser, mas ele não vai incomodá-lo em ocasião alguma — todas as coisas boas da religião sem custo nenhum. Não será a Força Vital a maior invenção da fantasia humana que o mundo jamais viu?
5. TEMOS MOTIVOS PARA NOS SENTIR INQUIETOS
Encerrei o último capítulo com a noção de que, na Lei Moral, entramos em contato com algo, ou alguém, acima do universo material. Acho que alguns leitores sentiram um certo desconforto quando cheguei a esse ponto, e pensaram, inclusive, que eu lhes preguei uma peça, embalando cuidadosamente no papel de embrulho da filosofia algo que não passa de mais uma “conversa fiada sobre religião”. Talvez você estivesse disposto a me ouvir se eu tivesse novidades para contar; se, porém, tudo se resume à religião, bem, o mundo já experimentou esse caminho e não podemos voltar no tempo. Tenho três coisas a dizer para quem estiver se sentindo assim.
A primeira delas é a respeito de “voltar no tempo”. Você pensaria que estou brincando se dissesse que podemos atrasar o relógio e que, se o relógio está errado, é essa a coisa sensata a fazer? Prefiro, entretanto, deixar de lado essa comparação com relógios. Todos nós queremos o progresso. Progredir, porém, é aproximarmo-nos do lugar aonde queremos chegar. Se você tomou o caminho errado, não vai chegar mais perto do objetivo se seguir em frente. Para quem está na estrada errada, progredir é dar meia-volta e retornar à direção correta; nesse caso, a pessoa que der meia-volta mais cedo será a mais avançada. Todos já tivemos essa experiência com as contas de aritmética. Quando erramos uma soma desde o início, sabemos que, quanto antes admitirmos o engano e voltarmos ao começo, tanto antes chegaremos à resposta correta. Não há nada de progressista em ser um cabeça-dura que se recusa a admitir o erro. Penso que, se examinarmos o estado atual do mundo, é bastante óbvio que a humanidade cometeu algum grande erro. Tomamos o caminho errado. Se assim for, devemos dar meia-volta. Voltar é o caminho mais rápido.
A segunda coisa a dizer é que estas palestras ainda não tomaram o rumo de uma “conversa fiada sobre religião”. Não chegamos ainda no Deus de nenhuma religião verdadeira, muito menos no Deus dessa religião específica chamada cristianismo. Tudo o que temos até aqui é Alguém ou Algo que está por trás da Lei Moral. Não lançamos mão da Bíblia nem das igrejas: estamos tentando ver o que podemos descobrir por esforço próprio a respeito deste Alguém. Quero, inclusive, deixar bem claro que essa descoberta é chocante. Temos dois indícios que dão prova desse Alguém. Um deles é o universo por ele criado. Se fosse essa a nossa única pista, teríamos de concluir que ele é um grande artista (já que o universo é um lugar muito bonito), mas que também é impiedoso e cruel para com o homem (uma vez que o universo é um lugar muito perigoso e terrível). O outro indício é a Lei Moral que ele pôs em nossa mente. E uma prova melhor do que a primeira, pois conhecemo-la em primeira mão. Descobrimos mais coisas a respeito de Deus a partir da Lei Moral do que a partir do universo em geral, da mesma forma que sabemos mais a respeito de um homem quando conversamos com ele do que quando examinamos a casa que ele construiu. Partindo desse segundo vestígio, concluímos que o Ser por trás do universo está muitíssimo interessado na conduta correta – na lealdade, no altruísmo, na coragem, na boa fé, na honestidade e na veracidade. Nesse sentido, devemos concordar com a visão do cristianismo e de outras religiões de que Deus é “bom”. Mas não vamos apressar o andar da carruagem. A Lei Moral não embasa a ideia de que Deus é “bom” no sentido de indulgente, suave ou condescendente. Não há nada de indulgente na Lei Moral. Ela é dura como um osso. Exorta-nos a fazer a coisa certa e parece não se importar com o quanto essa ação pode ser dolorosa, perigosa ou difícil. Se Deus é como a Lei Moral, ele não tem nada de suave. De nada adianta, a esta altura, dizer que um Deus “bom” é um Deus que perdoa. Estaríamos indo depressa demais. Só uma pessoa pode perdoar, e não chegamos ainda a um Deus pessoal — só a um poder que está por trás da Lei Moral e se parece mais com uma mente do que com qualquer outra coisa. Mas ainda seria improvável dizer que se trata de uma pessoa. Caso se trate de uma pura mente impessoal, não há sentido algum em pedir que ela nos dê uma certa folga e nos desculpe, da mesma forma que não há sentido em pedir que a tabuada seja tolerante com nossos erros de multiplicação. Nesse caminho, encontraremos a resposta errada. Tampouco adianta dizer que, se existe um Deus assim – uma bondade impessoal e absoluta -, você não precisa gostar dele nem se preocupar com ele. Afinal, a questão é que uma parte de nós está ao lado dele e realmente concorda com ele quando desaprova a ganância, as bai-xezas e os abusos humanos. Talvez você queira que ele abra uma exceção no seu caso e o perdoe desta vez; mas no fundo sabe que, a menos que esse poder por trás do mundo realmente deteste inabakvelmente esse tipo de comportamento, ele não pode ser bom. Por outro lado, sabemos que, se existe um Bem absoluto, ele deve detestar quase tudo o que fazemos. Este é o terrível dilema em que nos encontramos. Se o universo não é governado por um Bem absoluto, todos os nossos esforços estão fadados ao insucesso a longo prazo. Se, no entanto, ele é governado por esse Bem, fazemo-nos inimigos da bondade a cada dia e o panorama não parece dar sinais de melhora no futuro. Logo, nosso caso é, de novo, irremediável – inviável com ou sem ele. Deus é o nosso único alento, mas também o nosso terror supremo; é a coisa de que mais precisamos, mas também da qual mais queremos nos esconder. E nosso único aliado possível, e tornamo-nos seus inimigos. Certas pessoas parecem pensar que o encontro face a face com o Bem absoluto seria divertido. Elas devem pensar melhor no que dizem. Estão apenas brincando com a religião. O Bem pode ser o maior refúgio ou o maior perigo, dependendo de como reagimos a ele. E temos reagido mal.
Enfim, a terceira coisa que tinha a dizer. Quando decidi dar todas estas voltas para chegar a meu verdadeiro assunto, nunca tive a intenção de lhes pregar uma peça. Meu motivo foi outro: foi que o cristianismo só tem sentido para quem teve de encarar de frente os temas tratados até aqui. O cristianismo exorta as pessoas a se arrepender e promete-lhes o perdão. Consequentemente (que me conste), ele não tem nada a dizer às pessoas que não têm a consciência de ter feito algo de que devem se arrepender e que não sentem a urgência de ser perdoadas. E quando nos damos conta da existência de uma Lei Moral e de um Poder por trás dessa Lei, e percebemos que nós violamos a Lei e ficamos em dívida para com esse Poder — é só então, e nunca antes disso, que o cristianismo começa a falar a nossa língua. Quando você sabe que está doente, dá ouvidos ao médico. Quando perceber que nossa situação é crítica, começará a entender a respeito do que os cristãos estão falando. Eles nos oferecem uma explicação de por que nos encontramos em nosso estado atual, de odiar o bem e também de amá-lo; de por que Deus pode ser essa mente impessoal oculta por trás da Lei Moral e, ao mesmo tempo, uma Pessoa. Explicam que as exigências dessa lei, que nem eu nem você conseguimos cumprir, foram cumpridas por Alguém, para o nosso bem; que Deus mesmo se fez homem para salvar os homens de sua própria ira. E uma velha história, e se você quiser esmiuçá-la poderá consultar pessoas que, sem dúvida nenhuma, têm mais autoridade do que eu para falar dela. Tudo o que faço é pedir a todos que encarem os fatos — que compreendam as perguntas para as quais o cristianismo pretende oferecer respostas. Os fatos amedrontam. Gostaria de poder falar de coisas mais amenas, mas devo declarar o que penso ser a verdade. Evidentemente, penso que, a longo prazo, a religião cristã traz um consolo indescritível; mas ela não começa assim. Ela começa com o desalento e a consternação que descrevi, e é inútil tentar obter o consolo sem antes passar pela consternação. Na religião, como na guerra e em todos os outros assuntos, o consolo é a única coisa que não pode ser alcançada quando é buscada diretamente. Se você buscar a verdade, encontrará a consolação no final; se buscar o consolo, não terá nem o consolo nem a verdade — terá somente uma melosidade vazia que culminará em desespero. Muitos entre nós já nos recuperamos da euforia de antes da guerra em matéria de política internacional. E hora de fazer a mesma coisa com a religião.
Excerto de Cristianismo Puro e Simples
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