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Nietzsche: Anticristo?

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por S.E. Parker

(Todas as citações de Nietzsche, a menos que indicado de outra forma, são retiradas da edição de O Anticristo, publicada por Haldeman-Julius em 1930.)

Houve muitos grandes ataques ao Cristianismo, fortes e eficazes de diferentes maneiras, e hesita-se em distinguir qualquer um deles com o superlativo “o maior”. Mas, se eu fosse usar esse superlativo — especialmente no que diz respeito à pura força devastadora de uma denúncia inspirada —, eu o aplicaria a “O Anticristo”, de Friedrich Nietzsche.

Não apenas somos intelectualmente impressionados, mas também emocionados e movidos às profundezas pela esplêndida e arrebatadora paixão de seu ataque.

É com essas palavras que o renomado livre-pensador e editor norte-americano E. Haldeman-Julius inicia a introdução de sua edição de 1930 de O Anticristo. Que Nietzsche seja anticristão — ou seja, contra a Igreja Cristã — é algo evidente para qualquer pessoa que o tenha lido. No entanto, a pergunta que quero levantar é: ele era realmente anti-Cristo, como afirmava ser? Antes de responder a essa questão, pode ser útil delinear brevemente como Nietzsche via o Cristianismo.

Nietzsche não se preocupa, em primeiro lugar, com as questões usuais sobre a datação dos Evangelhos cristãos, sua consistência ou inconsistência, ou se Cristo existiu ou não. Em outras palavras, ele não examina a validade das evidências documentais do Cristianismo. Tampouco se ocupa com os argumentos a favor ou contra a existência de Deus, embora se identifique como ateu. Ele adota o que descreve como uma abordagem “psicológica”, que gira em torno da seguinte questão: o Cristianismo enaltece ou deprecia a vida? Ele escreve:

“O que é bom? — Tudo o que aumenta o sentimento de poder, a vontade de poder e o poder em si, nos homens.
O que é mau? — Tudo o que é baseado na fraqueza.
O que é alegria? — A emoção do poder crescendo, da superação de uma resistência.
Não a satisfação, mas mais poder! Não a paz a qualquer preço, mas a guerra! Não a ‘bondade’, mas mais capacidade!…
Os fracos e os malformados devem sucumbir: esse é o nosso slogan humanitário; e eles deveriam ser ajudados a cair.
Qual é o vício mais nocivo? — A piedade, mostrada aos malformados e aos fracos — o Cristianismo.”

Nietzsche argumenta que os ataques feitos ao Cristianismo até o seu tempo não apenas foram tímidos, mas também falsos. Para ele, o Cristianismo é um crime contra a vida, e o problema de sua “verdade” é irrelevante, a menos que leve à consideração da validade de sua moralidade.

O Cristianismo tenta reverter a seleção natural. O cristão é um indivíduo doente e degenerado que busca frustrar o curso natural da evolução, tentando transformar o antinatural em lei. Ele procura preservar os fisiologicamente fracassados, os fracos, e fortalecer seu instinto de autopreservação mútua. Aqueles que não consideram essa atitude imoral pertencem à mesma multidão doentia.

“O verdadeiro amor pela humanidade”, ele escreve, “exige sacrifício pelo bem da espécie: é duro, cheio de autocontrole, porque necessita de sacrifício.”

Ele acrescenta:

“Nem como código ético nem como religião o Cristianismo possui qualquer ponto de contato com as coisas como elas realmente são. Ele se ocupa com causas puramente fantásticas… e efeitos puramente fantásticos. Ele comunga com criaturas puramente fantásticas… professa uma ciência fantástica, uma psicologia fantástica… Esse mundo de pura fantasia deve ser diferenciado, para seu detrimento, do mundo dos sonhos, pois o mundo dos sonhos ao menos reflete a realidade, enquanto o outro a falsifica, calunia e nega.”

Todas as religiões nascem do medo, mas a religião cristã é essencialmente um produto de mentalidades servis. Os escravos, temendo seus senhores, desejavam vingança por sua inferioridade. O Cristianismo surgiu desse ressentimento, tendo como objetivo minar a confiança das castas dominantes por meio de ideias de culpa e piedade. Foi uma doutrina niveladora, assim como seu rebento, o socialismo. O resultado dessa revolta triunfante dos escravos foi a destruição das realizações intelectuais do mundo antigo. O método científico, a arte de ler, o senso de fato — tudo foi em vão. Eles foram:

“Enterrados numa noite. Não esmagados por pés pesados alemães e outros! Mas trazidos à vergonha por vampiros astutos, furtivos e anêmicos. Não conquistados — apenas sugados até secar!”

Nietzsche termina O Anticristo com uma acusação ao Cristianismo:

“A única grande maldição, a única depravação intrínseca, o único impulso negro de ressentimento, para o qual nenhum subterfúgio é demasiado vil, furtivo, sorrateiro ou desprezível. Digo que essa é a única mácula indelével no feito do homem…”

Apesar da ferocidade da acusação de Nietzsche, no entanto, sua crítica ao Cristianismo é incompleta. Como Benjamin de Casseres apontou:

O Anticristo… é uma evasão. Foi um ataque tremendo — o maior já feito — ao Cristianismo. Mas Cristianismo e Cristo são idênticos.” (Dance With Nietzsche)

Nietzsche, de fato, poupa Cristo, concentrando seu ódio em São Paulo, a quem considera o verdadeiro fundador intelectual do credo cristão. Ele acusa Paulo de sacrificar “o Salvador; ele o pregou na própria cruz”. Até mesmo culpa os discípulos por possuírem “os mais anticristãos desejos de vingança”, como se as inúmeras ameaças de inferno e condenação atribuídas ao Cristo do Novo Testamento pudessem ser interpretadas de outra forma que não como um desejo muito cristão de vingança! Mais adiante, ele afirma que essas ameaças foram “postas na boca do Mestre” por “essas pessoas triviais”. E, em outro momento, ele reclama:

“O caráter do Salvador, seu ensinamento, seu modo de vida, o significado de sua morte e até mesmo os eventos subsequentes foram todos alterados até que nada no registro se aproximasse remotamente dos fatos.”

Que “fatos” seriam esses e como Nietzsche sabia que diferiam “do registro”, ele não diz. De fato, parece que aqui ele contrastava sua própria fantasia privada sobre Cristo com a fantasia pública da Igreja.

A famosa afirmação de Nietzsche de que “houve apenas um cristão e ele morreu na cruz” é mais um exemplo da reverência com que ele abordou o mito de Cristo. Até mesmo um ardente nietzschiano como Oscar Levy admite:

“Estamos diante de uma fraqueza na mente forte de Nietzsche que, com toda sua profunda percepção, foi mais um anticristão do que um anti-Cristo e que tinha, de sua herança ancestral, um resquício de veneração pelo Salvador em seu sangue.” (The Idiocy of Idealism)

Mas há mais na reverência de Nietzsche por Cristo do que a influência de sua herança ancestral. Se “Cristo” é tomado como símbolo da “redenção da humanidade”, então Nietzsche sentiria uma forte afinidade com ele, pois também desejava redimir a humanidade com seu evangelho do Super-Homem, apesar de sua declaração em Ecce Homo de que “a última coisa que prometo fazer é ‘melhorar’ a humanidade”.

“[…] Não estabeleço novos ídolos: que os antigos ídolos apenas aprendam quanto custa ter pés de barro.”

Aqui, por exemplo, está o messiânico Nietzsche em pleno vigor:

“Vós, solitários de hoje, vós, dissidentes, um dia sereis um povo: dentre vós, que vos escolhestes, surgirá um povo escolhido — e, a partir dele, o Super-Homem.
Verdadeiramente, a terra será um lugar de cura!
E já há uma nova ordem difundida ao redor, um odor portador de salvação — e uma nova esperança!” (Assim Falou Zaratustra)

Essa veia salvacionista no pensamento de Nietzsche foi claramente exposta em A Filosofia de Nietzsche, de Georges Chatterton-Hill:

“Aqueles que representam o Super-Homem como uma encarnação do egoísmo estão gravemente enganados. Não é seu próprio prazer que o Super-Homem busca, mas a justificação do eterno Devir, que é o processo eterno do mundo… a redenção da humanidade por meio do sofrimento, por meio de grande e intenso sofrimento. E desse intenso sofrimento emerge precisamente o supremo objeto e obra de arte que é o Super-Homem, que, por suas ações, justificará tudo aquilo que é miserável e lamentável na vida, elevando-o a um ápice de beleza. O Super-Homem, moldado na escola do sofrimento, refletirá, por sua vez, sua própria glória sobre a totalidade da vida; e a vida, vista à luz maravilhosa projetada por essa glória, será redimida, afirmada, santificada e justificada.”

É uma característica de todas as doutrinas religiosas e messiânicas exigirem a submissão do indivíduo a alguma entidade ou objetivo supraindividual. O cristão vê o indivíduo como um instrumento de seu Deus; o marxista vê o indivíduo como um instrumento do Processo Dialético; e Nietzsche, por sua vez, vê o indivíduo como um instrumento para a realização do Super-Homem. Após declarar a “morte de Deus”, ele se tornou obcecado com o problema de encontrar um novo objetivo para a “humanidade”. Sua resposta foi a criação do Super-Homem. Os que estavam sem Deus deveriam ter um novo deus.

Mas eu pergunto: por que minha vida precisa ser “justificada” e “redimida”, “purificada” pelo sofrimento e pela criação do Super-Homem? Para mim, tudo isso é simplesmente o velho lixo cristão com uma nova camada de tinta. Uma das razões pelas quais sou ateu é porque rejeito qualquer crença que exija que eu a sirva. Quero que minhas crenças sirvam a mim. Se Nietzsche me diz que o Cristianismo é uma doutrina servil, um lamento permanente daqueles que não são fortes o suficiente para enfrentar a realidade, concordo com ele. Mas, se ele continua dizendo que devo viver minha vida para a chegada do Super-Homem, classifico suas palavras na mesma categoria em que coloco as do cristão e de seu Cristo: espiritualismo mistificador! Vivo minha vida por mim mesmo, e não por causa de um objetivo estabelecido por outra pessoa e que me transcenda.

Nietzsche observou, de forma perspicaz:

“O homem de fé, qualquer tipo de ‘crente’, é necessariamente subserviente a algo fora de si mesmo: ele não pode se colocar como um fim em si mesmo, nem pode encontrar fins dentro de si mesmo. O crente realmente não pertence a si mesmo, ele é apenas um meio; precisa ser usado e precisa de alguém que o use. Seu instinto dá o mais alto lugar a uma moralidade de renúncia; e tudo dentro dele — sua prudência, sua experiência e sua vaidade — o leva a adotar essa moralidade. Qualquer tipo de fé é uma expressão de negação de si mesmo e de estranhamento de si…”

Se Nietzsche tivesse levado essas próprias palavras a sério e as aplicado à sua própria fé, ele teria se libertado de toda religião. Então, de fato, ele teria sido mais do que anticristão; ele teria sido verdadeiramente anti-Cristo.

Desde que escrevi o acima, encontrei a seguinte passagem em outra obra de Benjamin de Casseres: The Muse of Lies. Embora de Casseres fosse um fervoroso admirador de Nietzsche, o que ele escreve reforça meu argumento:

“A doutrina nietzschiana do ‘Eterno Retorno’ foi melhor ilustrada nele mesmo, pois ele pregou o ideal de sacrifício e de viver por um ‘Além’. Ele foi o último grande cristão. A vontade de criar o Super-Homem, o Além-Homem, ordena até mesmo o sacrifício dos amigos, diz Nietzsche em um de seus aforismos. Não é isso o furor eclesiástico por excelência? Não se pode ver o fanático encapuzado nisso? Não se pode sentir o cheiro dos feixes de lenha e do alcatrão queimando? Nós, niilistas e zombadores, não podemos ver o germe psicológico de um novo Torquemada nessa admoestação sacrificial? O Eterno Retorno! De fato, foste um Retorno, ó tu, dançante e dionisíaco precursor de uma Inquisição.”

Originalmente publicado na Revista Ego: An Individualist Review, No. 2


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