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Miguel Angelo Almeida Teles2
Praticamente isolados no seu mundo, entregues aos desmandos dos coronéis e dos seus paus mandados e sem a ajuda efetiva dos poderes constituídos, os homens do sertão buscavam amparo, força e proteção no encosto do sobrenatural. Cercavam-se de signos sagrados e profanos como arma de defesa na sobrevivência perante sua fraqueza humana em lidar com os poderosos da terra.
Todos esses ensinamentos e religiosidade advêm de um catolicismo antigo, dos catecúmenos herdados dos colonizadores europeus, dos índios e negros que povoaram os sertões. Tal religiosidade era doutrinada nos escritos das Horas Marianas3, da Missão Abreviada4 e o do Lunário e Prognóstico Perpétuo para todos os Reinos e Províncias5 e impulsionada por lendas, superstições, ladainhas, novenas, Santas Missões, terços na boca da noite e ofícios na madrugada. O medo do inferno, do diabo, do purgatório, do pecado carnal, da perseguição de espíritos inferiores, do feitiço, criava nesses homens um combinado de crença e religiosidade pautadas na fé, preceitos e regras de um sincretismo religioso repassado entre gerações através dos tempos.
A vida atribulada, repleta de arroubos, crimes e assaltos causavam no homem do cangaço um alarme doentio, repleto de agouros e presságios, acreditando em tudo, porque em tudo acreditava, e assim, nutria a sua fé a seu modo. Nas aflições e nas horas dos aperreios, o cangaceiro fazia pactos com santos de sua devoção e com espíritos protetores, assumindo os mais diversos compromissos para posteriores pagamentos das promessas alusivas aos pedidos por ele alcançados. Em um emaranhado de crucifixos e patuás e apoderando-se a tudo que lhes dava proteção, o cangaceiro prestava contas às suas diletas divindades e, convicto em extinguir a dívida, retribuíam os favores com a doação de dinheiro nos oragos das igrejas, ouvindo missas, confessando os pecados e comungando, contudo sem perder a fé na oração forte que trazia repassada por algum preto velho que lhe fechara o corpo.
Entretanto, nas refregas, encangotados na mesma confiança dos rosários e bentinhos, utilizavam da própria fé para rogarem aos céus por uma pontaria certeira, encomendando assim, a alma de algum desafeto ou integrante das volantes, abrindo o caminho do infeliz para o outro mundo. Eram as contas do rosário contribuindo com a mira da espingarda. Eram Deus e o diabo palmilhando os sertões nos rastos dos cangaceiros.
Nos sertões nordestinos, para alguns crendeiros, Deus e o diabo concorrem na força e no poder de igualdade. Nas horas tidas como abertas – seis horas, meio-dia, dezoito horas e meia-noite – o capeta anda solto no mundo arrebanhando almas para seu reinado no inferno. Visando amealhar súditos, o “coisa-ruim” utiliza-se de artimanhas e tentações satânicas para impressionar com seus poderes excepcionais aqueles que almejam força e imunidade contra seus inimigos, no fechamento do corpo. Porém, segundo ainda se afirma por lá, o diabo dá, mas um dia cobra! Pelo sim ou pelo não, ao bocejarem, por lá ainda fazem cruzes sobre a boca escancarada para evitar que o diabo adentre nela.
Em suas anotações poéticas6, o ex-cangaceiro Antonio Ignácio da Silva, vulgo Moreno, (2008, p. 10) sintetiza com a perspicácia de um versejador sertanejo, a vida errante dos homens do cangaço, quando descreve “todos os cangaceiros do grupo de Lampião/ andando nas matas verdes/ na sombra da solidão”, viviam sem pouso certo para o corpo e sem refrigério para a alma. Sem moradias, capelas ou sacerdotes que lhes guiassem nos ensinamentos da fé cristã e dos dogmas do catolicismo, os cangaceiros enalteciam uma religião eclética que confessavam, com desusada fé nos santos, nas rezas, nos patuás e nas promessas que faziam. Seguiam uma série de ritos e temiam os abusos que eles mesmos criavam. Nas dúvidas, esmiuçavam os acasos, confrontavam os acontecimentos e faziam analogias para depois apurar as abstratas crenças que surgiam das suas suposições.
Diante do imaginário e das superstições que envolviam o mundo sertanejo do cangaço, o misticismo transitava livremente pelos caminhos da religião. Desta forma, esta pesquisa de cunho bibliográfico objetiva delinear a relação entre a religiosidade e a crendice de homens ditos cangaceiros, que palmilharam sertões nordestinos desde o século XVIII até meados do século XX, considerando José Gomes Filho, o Cabeleira (1751-1776) e Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco ou Diabo Louro (1907-1940) respectivamente, o primeiro e o último chefe representante do grupo de cangaceiros.
O FECHAMENTO DO CORPO
Cercados de insegurança em um espaço agressivo, brutal e atribulado, os cangaceiros buscavam proteção nas forças misteriosas do além, através de uma religiosidade heterogênea, que munida de muita fé no sobrenatural e vinculada às crendices, superstições e misticismo atuavam como supostas formas de defesa do corpo e do espírito.
Segundo Eliade, (1992, p. 17) “o homem toma conhecimento do sagrado, porque este se manifesta como algo absolutamente diferente do profano”. Assim, o autor sugere para esta revelação do sagrado, o termo hierofania, traduzindo apenas o que está implícito no seu conteúdo etimológico, como “algo de sagrado se nos revela”. Desta forma, ainda segundo o autor, o sagrado desponta para certos indivíduos por meios de símbolos e signos, na crença de que tais instrumentos os tornarão fortes e poderosos. Assim,
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível do sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos” como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale o poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia […] (ELIADE, 1992, p. 18).
Portanto, para os homens do cangaço, as proteções conseguidas sob a influência de rezas fortes, patuás e mandingas conferiam a esses crendeiros uma fé visceral nessa combinação mística. Acreditavam que amparados pela intercessão desses protetores sobre- humanos, que arremetiam em seu favor contra as forças malignas do universo, estariam fortalecidos e agraciados com o sortilégio do fechamento do corpo.
Buscando a concepção da expressão “fechar o corpo”, Ferreira (1986, p. 482) nos remete a “torná-lo invulnerável a facadas, tiros e mordidas de cobra, mediante orações e feitiçarias”. Do mesmo modo, Cascudo (1972), além de pactuar com as afirmações de Ferreira (1986), reporta-se também a outras prerrogativas de imunização corporal e espiritual do indivíduo, numa combinação de rezas, regras e preceitos, onde,
O corpo fechado pode resultar de amuletos conduzidos ao pescoço, livrando o portador de todos os perigos, morte súbita, águas vivas e mortas, faca fria e bala quente, agravo (injúria) ou por ter submetido o imunizado ao cerimonial do feitiço, da muamba, catimbó, macumba, de variadas formas quase dependendo de cada ‘mestre’ a maneira e cerimonial do ato. (CASCUDO, 1972, p. 294).
Todo este processo de autodefesa do corpo e do espírito, mediante um valor pecuniário, acontece em uma cerimônia reservada entre o mestre e o aspirante, cujas formalidades rituais da cerimônia do “fechamento do corpo” são pormenorizadas por Cascudo. Deste modo,
O cliente paga o calço da sessão, a quantia estipulada para fechar o corpo. Fecha-se a sala, acende a velaria, o mestre abre a sessão. Depois da defumação, goladas de cauim (aguardente), o mestre sopra a água e despeja numa bacia nova de flandres. O candidato se descalça, entra na bacia, equilibrando-se, com o pé direito sobre o pé esquerdo […].
Com um pé em cima do outro, dentro da bacia que tem água soprada pelo mestre, como em obediência a um rito de pajelança onde o sopro, peiuuá, é a essência, a materialização da força espiritual do pajé, reza o Creio em Deus Padre até a passagem morto e sepultado, substituindo pela frase guardado e fechado seja o meu corpo para todos os meus inimigos e desencarnados. O mestre, apanhando a chavezinha de aço, aproxima-se, dizendo num recitatório semi-cantado: “Fecha-te órgão, pelo Vacujá/ pra todos os males que no mundo há/ Fecha-te corpo, guarda-te irmão/ Na santa cova de Salomão.
E faz o gesto, de fechar com a chave, todas as articulações junta por junta dizendo em cada operação o mesmo versinho. Findando o serviço, entregam ao cliente uma garrafinha contendo um pouco da água que estava na bacia. Deverá ir jogá-la no mar à meia-noite. O mestre de outra parte fará o mesmo. Nessa noite o candidato beberá cauim legítimo, aguardente com raiz de jurema. (CASCUDO, 1972, p. 294-295).
Na obra “Meleagro”, Cascudo menciona mais uma variante da oração para resguardar o corpo contra todos os tipos de desgraças, ofensas, calamidades, aflições e doenças materiais e imateriais, recolhida pelo folclorista pernambucano Pereira da Costa, em sua obra Folclore Pernambucano:
Trago o meu corpo fechado com as chaves do Santo Sacrário; dentro dele se encontra o meu Jesus Sacramentado, como no Sacrário se encerra; e assim como vós ó meu Jesus, o meu corpo será guardado, a minha alma não será maltratada dos meus inimigos e o meu sangue não será derramado, porque tenho o meu Santíssimo Sacramento para o guardar, e a Virgem Maria para me livrar de malefícios, bruxarias e feitiços; e no meu corpo não entrarão, coberto com o sagrado manto da Virgem Maria, borrifado com o seu sagrado leite e trancado como o meu Jesus Sacramentado, com as chaves do Santo Sacrário e com o Credo em Cruz. Pax Domini, misericórdia, Aleluia. (COSTA [19–] apud CASCUDO, 1951, p. 62).
Além de todo o sincretismo religioso que envolvia o fechamento do corpo, os cangaceiros se valiam de uma série de benzimentos, rezas e talismãs, acreditando que tais fomentos adicionados à aludida ação, fortaleciam segundo suas crenças, a proteção do corpo e da alma. Assim, as orações fortes, bentinhos, patuás e escapulários eram utilizados pelos homens do cangaço para afastar os males, atrair sorte ou proteção, cujos signos variavam segundo a crença de cada possuidor.
AS ORAÇÕES FORTES, ‘BRABAS’ E AS REZAS CURADORAS
Embora biografados como criminosos com atributos de violentos, os cangaceiros professavam uma intensa religiosidade legada dos pais e avós com ênfase no catolicismo e nos preceitos da Igreja Católica. A vida delituosa e a incerteza do alvorecer, temendo o espectro da morte, faziam os cangaceiros buscarem nas orações a assistência divina para os males do corpo e do espírito. Por outro lado, utilizavam o suposto anteparo sobrenatural para propagarem entre os persigas a crença do “corpo fechado”, obtendo desta forma temor e respeito perante aqueles homens com fé e crendices idênticas.
Segundo Cascudo,
[…] a oração é sempre uma fórmula de pedido a Deus. A oração forte, amuleto e talismã, guardada numa sacola, defende de todos os males ou, lida ou rezada, abala os céus, cedendo a divindade aos rogos deprecatórios do suplicante, para o bem ou para o mal. (CASCUDO, 1972, p. 622).
Repletas de mistérios e de intenso ocultismo, as orações manuscritas, obra de escribas sertanejos sobre o domínio de alguma crendice supostamente poderosa, eram conservadas com zelo nos bornais ou carteiras dos cangaceiros e declamadas tão-somente em momentos de aflição extrema, como último recurso contra algum perigo ou ameaça. Outras, ensacadas em couro ou tecido, eram conduzidas como bentinhos no pescoço, com desvelo para não abrir o invólucro, incorrendo ao crendeiro o castigo de perderem as forças, abrirem o corpo e sucumbirem.
Conhecidas também como rezas forçosas, as rezas fortes faziam parte do grande arsenal crendeiro dos valentões, cangaceiros e salteadores que confiavam cegamente nos desmedidos poderes dessas rezas que conduziam consigo, sem a efetiva preocupação com o perigo, na confiança que tais rezas o faziam envultar7. Em viagem, fugindo de tocaias e cercos tais rezas eram pronunciadas para o livramento de encontros fatais, assim como, deter a rota do projétil, fechando e protegendo o corpo contra qualquer arma. Acreditavam que “[…] por sua virtude, nunca seriam feridos nos combates ou nas brigas, ou não morreriam em fogo, nem afogado, ou de morte súbita e que tudo lhe sucederia prosperamente”. (CASCUDO, [20–], p. 156).
Dentre as rezas forçosas mais conhecidas e consideradas como uma das mais fortes entre os cangaceiros, a Reza da Pedra Cristalina, encontrada nos pertences do rei do Cangaço, e transcrita na obra do Professor Estácio de Lima. Observamos que, assim como o catedrático, acatamos a ortografia e a pontuação do documento transcrito na integralidade na obra, corroborando com a ressalva da mantença ao respeito e ao cuidado quanto à “forma, as palavras que surgiam pela metade ou as falhas do texto”. (LIMA, 2006, p. 136).
Minha pedra christalina que no mar fosse achada entre o calix e a hostia consagrada, tremo a terra mas não treme nosso Senhor Jesus Christo no altar assim treme os coração de meus inimigo quando olharem para mim eu tibenzo em cruz inão tu a mim entre o sol ialua e as Estrellas as três pessoas distintas da Santíssima tridade meu deus na travissia avistei meus inimigos meu deus oqui fasso com elles Com o manto da Virgem Maria sou cuberto e com o sangue do meu senhor Jesus Christo sou valido tens, vontade de atirar porém não atira si mi atirar agua pello cano da Espingarda correrá si estiver vontade de mifura a faca da mão cahira si miamarrar os nós dizatarão e si mitrancar as portas si abrirão.
offiricimento
S salvo fui salvou sou e salvo serei com a chave do sacrário e me fecho.
1 PN 3 AM i 3 Gloria apatre iofereço a 5 Chagas de Nosso Senhor Jesus Christo. (LIMA, 2006, p. 136-137).
Outra oração estimada e considerada “forte demais” pelos crendeiros era o Rosário Apressado destinado à Nossa Senhora da Conceição. Unicamente verbal era proferido de maneira célere e contínua, sem qualquer engano ou detença na pronúncia – por até três vezes, segundo o preceito da oração – era tomado como uma resposta negativa da divindade e tido como mau augúrio.
Ó Virgem da Conceição, Senhora Concebida, Mãe de Deus, Reino da Vida, Senhora dai-me a mão que minh’alma caída está; meu corpo estremecido sem a vossa consolação, vos aflita e ofendida fostes, Virgem e ao pé da Cruz e aflita e ofendida chamo por vós, mãe de Jesus, Ó Virgem da Conceição, vós não fostes aquela que dissestes, pela vossa sagrada boca, que quem por vós chamasse cento e cinquenta vezes por dia havia de ser valida? Pois é chegada a ocasião em toda tribulação. Valei- me, Ó Virgem da Conceição. (CASCUDO, 1972, p. 624).
Mais adiante o folclorista potiguar cita a Oração do Rio Jordão como bastante conhecida no ambiente do cangaço, ora transcrita,
Estavam no Rio Jordão ambos os dois. Chegou o Senhor São João: Alevanta-te, Senhor, que lá vem os inimigos teus! Deixa vir, João, que todos vêm atados de pés e mãos e almas e coração. Com dois eu te vejo, com três eu te ato. O sangue eu te bebo, coração eu te parto. Vocês ficarão humildes e mansos como a sola dos meus sapatos (diz três vezes batendo com o pé direito). Deus quer, Deus pode, Deus acaba tudo quanto Deus e eu quisemos. (CASCUDO, [20–], p. 642).
No que concerne aos sucessos causados por animais peçonhentos da caatinga, habitat natural das jararacas e cascavéis, não foi encontrada na bibliografia pesquisada, ou qualquer outra fonte, nenhum relato sobre algum cangaceiro morto ou ofendido por alguma serpente venenosa. Segundo a crendice popular, estes homens tinham “força” diante das víboras, por serem curados contra o veneno das serpentes, clamando por São Bento: “Valei-me! Meu Senhor São Bento, Valei-me! Valei-me! Valei-me! Livrai-me das cobras e dos bichos peçonhentos.” (OLIVEIRA, 1970, p. 121).
Ainda como exemplo de oração forte, foi recolhido em um caderno de anotações manuscrito pelo ex-cangaceiro Antonio Ignácio da Silva, vulgo Moreno, o seguinte rogo: “Jesus, Filho de Maria Santíssima, Mãe do Salvador, dai-me resistência para eu escrever as palavras do Senhor. Valei-me Jesus Mãe de Deus Salvador nas horas necessitadas na sombra dos sete amor. P. F. E. Santo. Amém.” (SILVA, 2008, p. 5).
Outra forma de rogo bastante utilizada no cangaço eram as Rezas Curadoras. De ação exclusiva para cura ou prevenção de doenças e males, as aludidas rezas são utilizadas até hoje por curandeiros e rezadeiras em virtude da desconfiança nutrida por alguns perante a eficácia da alopatia.
Estas rezas diferem das “orações fortes” e concernem apenas às rezas e aos ensalmos, como parte da terapêutica religiosa para cura das doenças e males do corpo. Ratificando, César afirma que por aquelas paragens,
O termo oração nunca é proferido pelos rezadores e curadores. Aplicam sistematicamente a expressão reza com os seus derivados rezar e rezador. Chama-se o rezador para rezar a vaca engasgada; a rezadeira para rezar o mau olhado do menino; o vaqueiro para rezar no rastro de uma rês com bicheira. (CÉSAR, 1975, p. 159).
Prevalece ainda, entre as poucas rezadeiras sertanejas, a reza da espinhela caída, bastante utilizada no cangaço. Como regra, o rezador utiliza um barbante para aferir a distância da ponta do dedo mínimo até o cotovelo e confronta com o intervalo entre os ombros. Excedendo na medida, o cristão está com o mal e procede-se a reza, acompanhada de três Ave-Marias, três Pai-Nossos e três Glórias ao Pai, com oferecimento às Cinco Chagas do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Eu entro na palavra de Deus Padre, com as palavras de Deus Filho e de Deus Espírito Santo, espinhela caída eu te levanto com arcas e tudo, com os poderes de Deus Padre, com os poderes de Deus Filho e com os poderes de Deus Espírito Santo, Amém!. (SUSSOL, 1995, p. 213).
No tratamento do “impaludismo” ou “sezão,” o cangaceiro escavava o solo e depois recobria a abertura com a própria terra, pronunciando: “Sezão ti enterro aqui/ Ti afasta de mim/ Tu só torna vortá/, Si di novo eu aqui vim.” Em seguida, colocava um feixe de lenha para nunca mais retornar ao local. A eficácia da reza dependia do exato cumprimento dos preceitos e/ou da infelicidade do cristão em realizar o ato nos rastros de um corno. (MACHADO, 1974, p. 191).
As Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) traziam aos cangaceiros grandes incômodos com as infecções que elas ocasionam. Por considerarem as doenças venéreas uma “doença do mundo” ou “doença feita”, o tratamento era realizado exclusivamente à base da farmacopéia cangaceira, pois as forças das rezas não dispunham de poderes para curá-las. (MACHADO, 1974, p. 191).
As orações “brabas” são as orações adversas das instituídas pelo credo cristão da fé em um único Deus, repletas de menções e segredos obscuros e que reporta exclusivamente às forças demoníacas e misteriosas do inferno. Dentre elas, encontramos duas orações brabas, temidas e condenadas pela maioria dos crendeiros nordestinos e citadas no Livro de São Cipriano: “A oração da Cabra” Preta, a qual numa mistura com Santa Justina pede auxílio às forças satânicas e ao “Credo às Avessas”, lida “de trás pra frente” numa versão contrária ao “Credo Cristão”.
Em alusão aos amuletos, os cangaceiros dispunham de uma infinidade desses talismãs presos ao pescoço, pelos quais nutriam uma desmedida fé. Impregnados de suor e poeira só eram retirados, via de regra, na hora do coito, sobre a pena de incorrer no crendeiro uma série de castigos e desventuras, invalidando assim, os poderes do seu patuá.
Constituído de um pequeno envoltório confeccionado em tecido ou couro, os patuás traziam fragmentos de hóstias consagradas, relíquias, rezas forçosas e curadoras, facultando ao crédulo o fechamento do corpo, tornando-os valentes, audazes e temidos, os quais abduziam as coisas-feitas, os malogros e as moléstias. Desta forma, segundo Eliade,
Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural […]. (ELIADE, 1992, p. 18).
Além da proteção oferecida por orações, patuás e bentinhos, deparamos na iconografia do cangaço (JASMIN, 2006), com um legado de signos e símbolos visualizados nas armas e chapéus dos cangaceiros. Postulados na superstição para proteção dos armamentos, esses homens esculpiam o Signo de Salomão na parte externa das coronhas dos rifles e fuzis, em que a cada sete dias o benziam com sete cruzes e com o polegar sobreposto no centro da figura, rezavam um Pai Nosso e uma Ave Maria. (CÉSAR, 1975, p. 172). O chapéu, além de proteger o cérebro e órgãos do sentido contra as inclemências do tempo, era ornado com ícones cabalísticos, medalhas e moedas, postulando a salvaguarda do corpo. Sede da razão e da sabedoria, a cabeça era enaltecida como guia espiritual cristã, em apologia aos santos sacramentos da Igreja Católica relacionados como batismo, comunhão, crisma e extrema- unção.
Obstinados em manter o físico concatenado ao espiritual e, o corpo imune aos agravos do ferro quente8 e do ferro frio9, os cangaceiros, homens de credo e religiosidade apurada, seguiam à risca os mandamentos e preceitos pertinentes à mantença do “corpo fechado”. Cismados que o universo feminino anulasse tal mandinga, temiam e respeitavam o sexo oposto com uma desmedida fobia, em detrimento a uma passagem bíblica, escriturada no Antigo Testamento, onde:
A mulher, a que padece o seu fluxo de sangue menstrual, estará separada sete dias. Todo aquele que a tocar estará imundo até à tarde; e todas as coisas sobre que ela tiver dormido ou sobre o que se tiver assentado, durante os dias da sua separação, serão polutos. E se, com efeito, qualquer homem se deitar com ela, e a sua imundícia estiver sobre ele, imundo será por sete dias; também toda a cama, sobre que se deitar, será imunda. (BÍBLIA SAGRADA, LEVÍTICO 15:19-21).
Deste modo, o comportamento dos homens do cangaço relacionado às regras impostas às mulheres os levava à abstinência sexual nos três dias que antecediam um assalto ou ataque.
Assim, nos deslocamentos dessas empreitas, margeavam as estradas e caminhos vicinais com o firme propósito de evitar algum encontro casual com o sexo oposto ou até mesmo com certos vegetais da flora sertaneja como o mororó (Bauhinia fortificata) e as flores do maracujá (Passiflora edulis) por acharem as mesmas parecidas com a genitália feminina. Ainda nesse universo, o medo crendeiro aconselhava o exame minucioso nos arreios, receosos que algum desafeto camuflasse entre a manta e a sela alguma peça íntima das mulheres. (CÉSAR, 1975,
- 32). Ainda segundo César, (1975, p. 173), “quando se tem inimigo, não se deve viajar antes do terceiro dia que visitou uma mulher, que bebeu aguardente ou que sentou numa banca de jogo”.
Nessas marchas, professando outras superstições para o resguardo do corpo, os cangaceiros norteavam suas jornadas, traçada por um encandeamento de preceitos legado dos mais velhos, sobre o lado apropriado no perpassar dos caminhos. Nas encruzilhadas do caminho, pisavam sistematicamente no flanco direito e distantes do cruzamento, para não calcarem a cruz formada com a intersecção das veredas, entretanto, só ultrapassavam a sombra de uma árvore, estando à mesma do seu lado esquerdo. (CESAR, 1975, p. 53)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Objetivando relacionar a religiosidade e a crendice dos cangaceiros, compreendida entre o Séc. XVIII até meados do Séc. XX, encontramos nas obras pesquisadas e referenciadas neste artigo uma variedade de rezas e orações que associadas aos amuletos e preceitos, confirma a analogia entre a superstição e o devocionismo ao sagrado desses homens, que apesar de salteadores e assassinos, nutriam-se também de uma grande munição espiritual.
Assim, ficara manifesta a necessidade desses indivíduos em materializar a religiosidade, abstraindo a própria fé no espiritual e transpondo para os bentinhos e patuás a corporificação do sagrado. Ensimesmados, os homens do cangaço admitiam em suas crenças que esses aparatos além de oferecer um resguardo sobrenatural, fomentavam uma maior proximidade com o santo de sua devoção. Deste modo, acercados da fé nesses objetos consagrados, corroboravam nas suas convicções que tais talismãs e orações tinham o poder mágico de imunizá-los contra o ferro quente, o ferro frio, os achaques do corpo e os males do espírito.
Evidenciou-se também, nesses indivíduos, o temor com relação às mulheres, assim como tudo que evocasse o sexo oposto em razão de uma passagem bíblica concernente ao
mênstruo feminino, visto que tal impureza deixava o corpo e a alma suscetíveis às perversidades naturais e sobrenaturais.
Verificou-se que o esfacelamento do cangaço, em consequência da morte do seu comandante em 1938 – Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião – implicou nas rendições e prisões de homens remanescentes dos bandos, terminando assim por criar as condições determinantes para a compreensão dos aspectos estruturais, religiosos e sociais na historiografia cangaceira. A facilidade na obtenção das informações, em razão do acesso e do contato direto entre historiadores e ex-cangaceiros em reclusão, proporcionara aos estudiosos uma diversidade de conhecimentos, subsídios utilizados para os capítulos da vasta bibliografia da história brasileira e nordestina sobre o tema. Entretanto, nota-se, a partir do que foi constatado, que se torna imperativo aprofundar as pesquisas sob a perspectiva da religiosidade e crendices dos cangaceiros, visto que é um tema pouco explorado e demanda um olhar crítico a esse respeito.
Notas:
1 Trabalho apresentado no Seminário Angicos 80 anos: o Crepúsculo do Cangaço.
2 Miguel Angelo Almeida Teles, fotógrafo, documentarista e pesquisador de temas sertanejos como vaqueiros e cangaço. Sócio do IGHB. Aluno do VI Semestre do Curso de Licenciatura em História, UNOPAR.
3 ROQUETE, José Ignácio. As Horas Marianas ou Ofício Menor de Nossa Senhora trazia orações e práticas alusivas às devoções da Mãe de Deus.
4 COUTO, Manoel José Gonçalves. Editado em Portugal em 1859, além das biografias dos santos, trazia várias orações, bastante utilizadas pelos sertanejos.
5 CORTÊS, Jerónimo. Orientava os leitores na agricultura, previsão do tempo, fases da lua, biografia dos santos, antídotos contra venenos de animais peçonhentos, tratamento de moléstias, eclipses solares, festas religiosas, etc.
6 Manuscrito ofertado ao autor pelo ex-cangaceiro Antonio Ignácio da Silva, vulgo Moreno. Chegara a nossas mãos por obséquio de Carla Gomes, por ocasião da entrevista concedida à pesquisadora, em outubro de 2008.
7 Suposta capacidade mágica de certos indivíduos que, em situações complicadas, se tornam invisíveis perante seus perseguidores e transmutam-se em pedras, arbusto ou tocos de madeira com auxílio de algumas rezas ou encantamentos.
8 Ferimentos causados por armas de fogo.
9 Ferimentos produzidos por armas brancas como punhal, faca, etc.
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CÉSAR, Augusto. Crendices: suas origens e classificação. Rio de Janeiro: MEC, 1975. 280 p.
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. O misticismo moreno no Brasil. Petropólis: Vozes, 1991. 181 p. JASMIN, Élise. Cangaceiros. São Paulo: Terceiro Nome, 2006. 150 p.
LIMA, Estácio de. O mundo estranho dos cangaceiros: ensaio bio-sociológico. 2 ed. Salvador: ALB, 2006. 336 p.
MACHADO, Maria Cristina R. da Matta. Aspecto do fenômeno do nordeste brasileiro IV. Revista de História. São Paulo: v. XLVII, n. 97, p.161-200, jan./mar. 1974.
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