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A cidade de São Paulo guarda histórias e relatos, além de daemons e espíritos muito especiais que não existem em outros lugares do mundo. Aos que enxergam além da realidade ordinária ela nos oferece um repertório muito particular e especial. Vaguei através de suas ruas entre o final da década de noventa até quase 2010 reunindo fragmentos, relatos e histórias – a boa e velha pesquisa de campo, conversando com idosos, zeladores de capelas e igrejas e outras figuras pitorescas. Intercalei isso com o material acadêmico e de pesquisas – o que resultou em algo único e imaginativo no sentido mais positivo do termo.
Muito texto é chato, então assista aqui e reviva uma edição de 6 anos atrás do passeio:
Era um olhar akashíco da paisagem como disseram alguns amigos teosofistas. Para um budista tibetano era olhar o chamado estado de Bardo mencionado no Bardo Thodol (Livro dos Mortos Tibetano). Para uma adepta do sufismo que esteve em um desses passeios era caminhar através do istmo e vislumbrar o Mundus Imaginalis de Sohavad e Ibn Arabi, trazidos a contemporaneidade nas obras de Guénom e Henry Corbin. Para os amigos e amigas xamânicos uma jornada pessoal e de encontro com aliados poderosos. E para a Comunidade Vamp um repertório especial e proveitoso, singular e especial. E logo ele se tornou um safári fotográfico chamado São Paulo Maldita (tem uma página lá no Facebook, sigam)
Eu sei, eu sei que algumas pessoas esperam uma segunda parte da crônica que postei aqui no Morte Súbita no mês passado. Eu entrego numa próxima oportunidade. Mas hoje quero falar da minha terra um pouco.
Nossa cidade guarda em suas tessituras imaginárias histórias extraordinárias e lugares ainda mais fantásticos do que podemos imaginar. Vocês deveriam procurá-los, visitá-los e considerar exercerem lá suas práticas e ritos. Funcionou bem para mim, inclusive.
Acho que todo mundo poderia diversificar essa necessidade de só procurarem Daemons catalogados por autores de traço protestante do hemisfério norte. Tem muita gente por aqui que não respira esperando para conhecê-los, meus nobres amigos e amigas. Muitos inclusive esperam por bons contadores de histórias para revivê-los no imaginário comum. O que seria de Circe se não houvesse um Homero afinal?
Eu sei que um bom encantador ou encantadora de histórias será alcançado por este texto, uma garrafa com uma mensagem que jogo ao grande mar. O espaço e o tempo são vastos, mas você chegará até nós.
Antes de prosseguir saúdo e exalto meu nobre irmão Vincent Sahjaza, do Círculo Strigoi, que há pouco mais de uma década tem um grande amor por essas buscas e relatos, sem ele muito dessa história já teria sido perdida. Somos os precursores do chamado Dark Tourism no Brasil, segundo professores e pesquisadores de Universidades Paulistas com o projeto São Paulo Maldita! Desvendando Halo Antares.
Há uma tradição na Comunidade Vamp, há quase cinco décadas de muitas vezes escondermos as vistas de todos algumas fontes de poder, descobertas e aliados. O que muitas vezes pode parecer um exótico safári fotográfico, um passeio de limousine na calada da noite através de lugares incomuns e mesmo uma festa a bordo de um ônibus balada através destes trajetos é muito mais do que os olhos despreparados pensam. E há realmente mais, muito mais que oferecemos e deixamos aberto o convite.
Nas imagens de hoje duas construções que foram geograficamente vizinhas mas com um certo intervalo de tempo entre elas. Ficavam na mesma rua inclusive, frente a frente, mas em épocas distintas. Ambas sediaram duas sociedades discretas que enviesar por caminhos diferentes, mas surpreende a proximidade de ambas no mesmo terreno.
O prédio do farol, sede social de uma discreta sociedade chamada Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e a outra era a Chácara dos Ingleses. Em relação a primeira lá existiu um requintado teatro, uma gráfica e ainda uma clínica exemplar para os membros. Lugar frequentado por meu avô nas noites de quinta-feira de uma São Paulo elegante, da garoa, de chapéus, ternos, de chorinho e música clássica. De eruditos e de segredos. Ouvia as histórias contadas de maneira en passant por meu pai e minha tia. Saudosos. A discreta sociedade permanece na ativa até os dias de hoje no mesmo bairro em outro endereço, uma biblioteca lindíssima; está lá vencendo o tempo e firme nos seus fundamentos. Sonham em levantar um prédio com um farol ainda mais elevado. Eu torço para que consigam. Visitamos suas obras antes da pandemia.
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A outra construção, Chácara dos Ingleses, hospedou primeiramente a marquesa de Santos amante de D.Pedro I. Mulher extravagante e arrebatadora em vida e que depois da morte se tornou uma procurada santa popular dos amantes e das pessoas da noite em seu túmulo no Cemitério da Consolação. Continua lá para quem souber como conversar com ela. Até alguns anos atrás ainda recebia oferendas de batons, perfumes e garrafas de Champagne na calada da noite.
Como quem tem história, compartilha tem até um video de um desses passeios com o foco na Arte Tumular, no referido cemitério e onde pode ser visto o túmulo da Marquesa:
E o mesmo rendeu uma reflexão, spoken words e uma fala inspirada ao anoitecer sobre a impermanência, a escuridão, eremitérios e a deusa negra Kali, tão caros a todos nós.
A construção também sediou a primeira santa casa da cidade, um hospital público e onde ficava a infame roda dos enjeitados para bebês serem abandonados anonimamente no orfanato que mantinham lá. Era também o asilo dos expostos. Tudo fazendo divisa com o amplo cemitério dos aflitos na outra rua, mais próxima do Largo da Forca, atual praça da Liberdade. Era o cemitério dos escravos, dos imigrantes, dos pobres e dos soldados. O terreno do cemitério foi vendido, dado o seu tamanho é possível que os corpos nunca tenham sido retirados de lá, a capela que era ao centro da necrópole dá uma noção do tamanho. E ela permanece lá até hoje, hospedando outro requisitado santo popular chamado Soldado Chaguinha. Que recebe bastante culto até hoje.
Ainda mais tarde o casarão foi uma república estudantil com as paredes pintadas de preto e onde morou Álvares de Azevedo e outros sonhadores sombrios – que liam em voz alta Lord Byron, Baudelaire, Dante e preferiam reinarem no inferno a servirem no céu – tal como John Milton. Outro de seus autores favoritos. Malditos e donos de uma rica biblioteca, onde certamente tomos proibidos, serpentes, bodes, cachorros e gatos pretos moravam entre eles. Lugar de orgias e estranhos ritos na madrugada. Eles fundaram a sua própria Sociedade discreta chamada de Sociedade Epicuréia e a casa, agora toda pintada de preto e com uma estátua de fauno a porta foi imortalizada na abertura da obra Macário. Para o populacho era a estátua de Satã. Estes jovens luciferianos.
Inclusive meu nobre amigo Paulo Rezzuti fala de tudo isso nesta postagem do seu blog que destaco alguns trechos a seguir:
“(…)De circunspecto hospital de caridade o casarão vem conhecer dias mais turbulentos. Transforma-se numa república de estudantes, abrigando a nata da juventude intelectual e romântica da cidade naquele meio do século XIX, liderados por Bernardo Guimarães, autor de A Escrava Isaura e Álvares de Azevedo da Lira dos Vinte Anos. A antiga casa colonial passa então a ser palco de celebrações, pândegas e mesmo orgias. Vários textos daqueles jovens autores foram concebidos ali mesmo.
Alguns estudantes haviam formado em 1845 (segundo Spencer Vampré) uma associação de caráter secreto a que deram o nome de Sociedade Epicureia com o objetivo um tanto extravagante de “realizar os sonhos de Byron”. Lorde George Gordon Byron (1788-1824) foi um poeta excêntrico que cultivava a beleza do horror, do repulsivo, do monstruoso e do satânico.
Consta que certa vez passaram quinze dias fechados na casa, com todas as janelas vedadas, à luz de candeeiros, fazendo todo tipo de loucuras na companhia de algumas prostitutas. Contam que havia gatos pretos e morcegos soltos pelo casarão e esqueletos roubados do cemitério vizinho. Só saíram quando a bebida e o tabaco tinham terminado. Talvez estas “celebrações” tenham inspirado ao jovem Álvares de Azevedo a obra uma Noite na Taverna.
Na peça intitulada Macário, Álvares de Azevedo colocou Satã morando no casarão da Chácara dos Ingleses quando descreve a chegada do jovem Macário a São Paulo subindo a Rua da Glória:
“Macário: Oh! Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis um pântano escuro cheio de fogos errantes. Porque paras o teu animal?
Satã: Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando à direita, defronte do cemitério. Sturn, meu pajem, lá está preparando a ceia. Levanta-te sobre meus ombros: não vês naquele palácio uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a minha chegada.”
Podemos brincar um pouco e dizermos que Satã já teve sua própria casa bem aqui em São Paulo. Acredito que ao final do século seguinte sua madame inaugurou seu próprio clube. Hoje nem a torre do farol e tampouco a casa negra existem mais. Foram sepultadas pela Radial Leste. Onde era o cemitério há prédios e relatos de assombração diversos. As autoras de literatura fantástica Giulia Moon e Regina Drummond brincam e articulam muito bem este quarteirão assombrado no romance “A Gótica que Não Gostava de Fantasmas” (Sesi Sp Editora, 2017). É claro que isto é uma aposta pessoal da minha parte. E nada mais.
Duas construções icônicas para todos nós que amamos o que é chamado pelo vulgo de obscuro, não é verdade? Céu e Inferno frente a frente, quem sabe?
Ambas ficavam ali no bairro da Liberdade, quase vizinhas de frente uma para a outra. Mas em séculos diferentes, uma no XIX e a outra na primeira metade do XX. Acredito que o decreto de morte destas construções tenha sido afinal a construção da Radial Leste.
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Lord A:. tem mais de 10 livros publicados no Brasil e com mais de vinte anos de estrada na senda do vampyrismo. Respeitado não apenas no Brasil, mas também na Comunidade Vampyrica internacional, é rei da Dinastia Sahjaza e desenvolve o Círculo Strigoi desde 2006. Como autor, é um criador de mundos, tendo escrito o sucesso Mistérios Vampyricos (Madras Editora, 2014), Deus é um Dragão (Penumbra Livros, 2019) e a série Codex Strigoi (Selo Literário Rede Vamp, 7 volumes iniciados em 2017). Também organiza encontros, eventos, festas e passeios culturais. Apresenta o programa de rádio e Podcast Vox Vampyrica (quinzenal, desde 2006); o AcessoRedeVamp (desde 2020, diário) e é o editor-chefe do portal da Rede Vamp.
Site Oficial: https://redevampyrica.com/lord-a-oficial/
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