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Lívio Túlio Pincherle (1924-1927) foi médico, escrito e psicoterapeuta e um pioneiro no uso de sessões de regressão na psicoterapia. Foi também sócio-fundador e presidente da Associação Brasileira de Terapia de Vida Passada e organizador do “
primeiro livro sobre o assunto no pais. A entrevista a seguir foi concedida a Gátima Afonso e Eduardo Araia e publicada na revista Planeta edição de março de 1991.Qual é sua formação profissional e como o senhor chegou à terapia de vidas passadas?
Eu sou médico formado desde 1950 pela Faculdade Paulista de Medicina, mas desde que concluí o curso trabalhei na Faculdade de Medicina da USP. Participei inicialmente de uma revista que pertencia à Clínica Pediátrica do Hospital das Clínicas e, mais tarde, como chefe do grupo de modificações do comportamento. Mas há mais de 36 anos que eu uso hipnose, e foi através dela que cheguei à terapia de regressão. A possibilidade de regressão da memória mental é conhecida há muitos anos, só que a gente não sabia que valor isso tinha do ponto de vista terapêutico. O que surgiu das minhas experiências com hipnose é que muitas pessoas que regrediam além da memória da vida atual obtinham resultados melhores em seus tratamentos.
O senhor tem formação psicoterapêutica?
Tenho. Eu estudei análise transacional na Argentina e depois, com os americanos, fiz gestalt-terapia; além disso, participei de vários outros cursos. Também dei muitas aulas há vários anos, mas, quando comecei a lidar com a regressão, descobri que havia grupos — principalmente nos Estados Unidos, mas também na Holanda e Alemanha — que estudavam o mesmo assunto que eu. Então, há uns oito anos decidimos convidar o dr. Morris Netherton, dos Estados Unidos, que havia publicado um pequeno livro sobre aquilo que ele chamava terapia de vidas passadas (past lives therapy). Depois nós modificamos para terapia de vida passada porque não é obrigatório que uma pessoa acredite que realmente aquilo que vem à mente da parte profunda da consciência seja uma memória de vidas anteriores. Pode ser considerada uma fantasia do inconsciente, mas isso não fará diferença do ponto de vista terapêutico. Não obrigamos ninguém a ser reencarnacionista.
Nos casos em que não acredita em reencarnação o paciente já vem com uma certa barreira?
Não obrigatoriamente. Se não quiser fazer, não acredita no que eu falei, claro, ele cria uma barreira. Mas essa barreira é a mesma coisa que alguém fazer psicanálise e não acreditar — vai se tornar um obstáculo. A pessoa diz: mas e se não for? Se não for não interessa; do ponto de vista terapêutico, o que importa é o material que vem da profundidade. Muitas pessoas me procuram unicamente para saber o que foram em vidas passadas. Hoje não as aceito mais; a vida passada me interessa só se tiver função terapêutica. Eu não faço esoterismo, faço psicoterapia.
Geralmente se leva quanto tempo para resolver um problema através da terapia de vida passada?
Resolver ou voltar ao problema?
Voltar e até mesmo resolver…
Voltar pode ser de dois minutos até algumas horas; depende do cliente. Mas a solução do problema nem sempre é fácil. Nós trabalhamos com terapia de regressão, com outras formas de terapia e também com medicação, se necessário. Por exemplo, você pode tratar uma fobia por terapia de regressão e também por dessensibilização sistemática, que é uma técnica comportamental. Você pode trabalhar uma depressão com terapia de regressão, mas poderá trabalhá-la com psicodrama ou, em certos casos, com medicação. Quanto à medicação, tenho colegas que fazem uso da homeopatia e outros da alopatia também — é questão de escolha filosófica.
Então, só a partir do momento em que se chega ao problema no passado é que se determina a linha terapêutica a ser seguida?
Não, não é bem assim. Dependendo do problema que a pessoa traz, eu vejo se há indicação ou não de uma regressão. Por exemplo, em pleno surto de psicose e esquizofrenia, é praticamente inútil tentar trabalhar com regressão porque a pessoa não tem concentração suficiente. Mas, fora do surto, ela pode ter uma concentração bastante boa e conseguimos algum resultado através da regressão. Às vezes, porém, o assunto precisa ser trabalhado no momento, gestalticamente ou até com aconselhamento — como no caso de dificuldades profissionais, problemas de casais, etc. Quando isso não é suficiente, nós podemos entrar em regressão. Por exemplo, atrito de casal pode mostrar uma ou várias razões em vidas anteriores ou naquilo que supomos serem vidas anteriores.
Em setembro último eu estive numa reunião em Perugia, uma cidade universitária italiana, a convite da cátedra de etnologia e antropologia cultural, que estuda antropologia médica. Ali mostrei a minha experiência, que é uma coisa praticamente desconhecida para eles. Isso provocou uma série de perguntas, e como nós permanecemos mais dois dias e noites no local, uma antropóloga me pediu se eu podia fazer uma regressão particular para ela. Tratava-se de um problema de casal; ela possuía um namorado com o qual brigava violentamente e de quem não conseguia se separar. Eles brigavam e voltavam, e às vezes ele dizia: “Não consigo entender, mas tenho medo de você.” E a antropóloga não entendia nem por que brigavam nem por que ele dizia que tinha medo. Na regressão, sem parar, sem grandes dados, ela voltou a uma época por volta de 1600, se viu com roupas da época; ela era uma pessoa do povo e havia um nobre que certa vez tentou violentá-la. Para se defender, a moça pegou uma faca de cozinha, enfiou na barriga desse homem e fugiu. Ele caiu, provavelmente morreu, e ela fugiu para não ser presa e morta. Essa antropóloga percebeu que o nobre era o seu namorado atual, e disse: “Agora entendo por que ele afirma que tem medo de mim; isso não fazia sentido.” Os atritos se devem provavelmente a essa vida anterior.
Mas esse simples contato com o trauma no passado resolve o problema?
Não obrigatoriamente. Em primeiro lugar, é necessária uma catarse emocional – a eliminação da angústia que está ligada a essa memória. Pode se tratar de algo desta vida ou de vidas anteriores. A psicanálise, no início, deu muito valor à catarse; mais tarde foi abandonando-a, desvirtuando-a ou dando-lhe menos importância. Acontece que a psicanálise não chega à profundidade que nós chegamos. Na verdade, essa revalorização da catarse se deve ao encontro de coisas bem anteriores, portanto transpessoais. É a vibração emocional que resolve. Cabe enumerar: primeira fase, a rememoração; segunda, a vibração por catarse ou eliminação de angústia; terceira, redecisão, que pode inclusive ser proposta pelo terapeuta, não se indicando o caminho, mas mostrando, por exemplo, que o problema não pertence a esta vida, e que não há por que continuar esse atrito na existência atual. Ou mesmo que se tratasse de algo que aconteceu na vida intra-uterina ou no começo desta vida.
Quando descobre esse tipo de problema no passado, a pessoa não corre o risco de encarar isso como o pagamento por um erro cometido, como um carma?
Aplicar a palavra carma implica um risco. Existem pessoas que passaram parte da vida de maneira muito negativa e de uma hora para outra redecidiram tudo. Elas sabem que passaram a vida de maneira negativa – o sujeito foi ladrão, vagabundo – e decide que vai fazer uma obra de bem, trabalhar honestamente ou coisa assim. Portanto, não vejo qual seria o risco. Agora, se o paciente acredita em carma, deixo a ele a escolha. A visão cármica, inclusive, é muito complexa. Se eu faço mal a você, na próxima vida você vai fazer mal a mim? Evidentemente isso é simplista demais, não acabaria nunca.
O carma pode ser a percepção de que eu fiz mal a alguém: eu preciso entender o que fiz para poder melhorar. E também existem fatos que são difíceis de se atribuir propriamente a um carma. A situação pode estar relacionada a uma decisão no fim de uma vida. Eu tenho uma paciente, por exemplo, que, quando os romanos invadiram a Grécia, se apaixonou por um soldado invasor. E ele tinha ordem de não se confraternizar com os gregos – como acontece com qualquer exército até hoje. Mas esse soldado romano também se apaixonou e, quando o comandante descobriu, mandou matá-lo. A moça ficou tão desesperada que se suicidou. E no momento do suicídio disse: “Nunca mais vou amar um homem.” O que aconteceu? Em vidas sucessivas, que foram vistas em várias sessões, ela foi uma prostituta no Egito, foi lésbica, freira, uma mulher medieval que utilizava os homens para obter títulos e, nesta vida, tinha dificuldades sexuais. Ela mesma havia decidido nunca mais amar um homem e, ao perceber isso, começou a melhorar. Vamos chamar isso de carma? Não sei. Não adianta procurar carma ao infinito; vamos procurar somente aquilo que tem uma influência direta sobre seu problema crônico.
Quais os métodos que o senhor usa para chegar a uma regressão?
Antigamente eu usava técnicas de hipnose propriamente dita. Hoje se sabe que isso não tem valor nenhum: a pessoa fecha os olhos e se utiliza de sua própria queixa.
Netherton usa essa técnica, que, aliás, não é dele, é uma técnica gestáltica. Ele manda o paciente fechar os olhos e repetir, murmurando, a própria queixa. Por exemplo, a pessoa diz: “Eu tenho uma sensação de que alguma coisa me afeta a cabeça, já consultei um neurologista clínico, fiz uma radiografia e não encontraram nada.” Então, com os olhos fechados, ela começa a dizer: “Alguma coisa afeta a minha cabeça.” O terapeuta pergunta:
“O que você tem a impressão de que seja?” Ela responde: “Não sei, como se fosse uma pedra.” Então, vai murmurando: “Uma pedra, uma pedra…” De uma hora para outra, surgem visões ou intuições e a pessoa começa a ver, por exemplo, uma montanha que desmorona e sua morte com uma pedrada na cabeça. Pode ser que numa outra vida isso já tenha acontecido. De alguma maneira, o mesmo problema pode se repetir de forma semelhante em vidas sucessivas: numa, caiu uma pedra, em outra ela foi torturada, na terceira levou uma martelada na cabeça, etc.
Essa repetição teria a função de trazer o problema à tona?
Se nós aceitarmos o carma, então é possível que seja isso. Você pode até chamar de fantasia do inconsciente. Ou uma revisão de algum fato, pois nem todo paciente volta obrigatoriamente a uma vida anterior… Ele pode voltar à infância ou à vida intra-uterina. Uma paciente que odiava a mãe, por exemplo, percebeu que na vida intra-uterina a mãe tentou abortá-la mais de uma vez e não conseguiu. Essa paciente começou a vida não aceitando o peito e foi alimentada às colherzinhas, porque não queria nem mamadeira. Ela nunca soube, nem os médicos, o porquê disso. Na regressão, a paciente contou que a mãe tentou abortá-la, não a queria de jeito nenhum, e por isso ela nunca quis aceitar o peito. Veja que explicação incrível! Foi uma coisa que veio numa regressão à vida intra-uterina, aliás, muito importante.
Alguns anos atrás me chamaram na Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas e perguntaram se eu achava que o feto deveria ser anestesiado quando eles fizessem intervenções no bebê ainda no útero materno. Eu disse que, evidentemente, se deve anestesiar, o feto, mesmo no útero, é altamente sensível à dor. E, naquele tempo, nós havíamos proposto um trabalho sobre memória que incluía dados do nascimento e da vida intra-uterina do paciente. Lamentavelmente, o trabalho se perdeu, porque o Hospital das Clínicas joga fora as papeletas com mais de 20 anos.
Como era feito esse trabalho?
O paciente falava com um médico, relatava o que sabia do seu nascimento e da vida intra-uterina, baseando-se em depoimentos da mãe. Depois, outro médico examinava a papeleta da época para saber se havia acontecido alguma coisa de importante e se isso tinha sido anotado. Por outro lado, no escuro completo, eu fazia uma regressão para ver se surgia alguma coisa. No final, a gente comparava a papeleta. Lembro um caso em que a cliente afirmava que a mãe ia levar um tombo. A mãe caiu e eu perguntei a ela o que sentiu no momento, ao que respondeu: “Ondas.” Ou seja, o líquido amniótico se mexendo. De fato, na papeleta constava uma queda, que a mãe confirmou.
Em alguns casos, há dados, às vezes, que não correspondem à realidade; talvez porque a fantasia entrou no meio, ou porque não se referem ao nascimento nesta vida.
Como o senhor consegue distinguir uma coisa da outra?
Não dá. É claro que se houver um componente emocional muito alto, provavelmente é uma coisa real. Se for baixo, provavelmente a pessoa esteja criando, ou tenha uma memória intuitiva sem grande emoção. O que me interessa não é saber se é ou não verdade, mas se há ou não resultado terapêutico.
Durante as sessões, existe a possibilidade de intromissão por parte de obsessores?
Sim. A dra. Edith Fiore escreveu um livro sobre o assunto e fazia desobsessão no próprio consultório. E, quando esteve aqui, ela viu toda uma tecnologia montada nesse sentido, inclusive trabalhos em centros. Alguns, aliás, disseram que sua técnica era inadequada. Mas eu também não lido com centro espírita, não sigo uma religião, de maneira que sempre trabalhei como a Edith Fiore. Agora, em casos muito complexos eu recomendo que a pessoa procure um centro, um padre exorcista ou um rabino, tanto faz — não obrigo ninguém a seguir uma linha religiosa.
E como ocorre a identificação do obsessor?
Em geral, suspeita-se de um obsessor quando a pessoa muda completamente de disposição, usa outra maneira de falar, o tom de voz torna-se agressivo, os olhos ficam esquisitos, esgazeados, exageradamente abertos… Aqui o diagnóstico vai desde histeria, psicose, personalidade múltipla até penetração de entidades obsessoras. Há muita incompreensão entre a psiquiatria clássica e a linha espiritualista. Agora, precisamos lembrar o seguinte: a física moderna nos ajuda a compreender toda essa riqueza de fenômenos, entendendo que não existe tempo nem espaço, que são conceitos da nossa mente.
O senhor já teve algum tipo de problema com a psiquiatria tradicional?
Sim, certa vez, por exemplo, eu quis dar um curso numa faculdade de psiquiatria sobre hipnose. E entre vários assuntos eu coloquei uma matéria denominada “Discussão sobre a assim chamada terapia de vidas passadas”. O professor Carvalhal Ribas não aceitou, disse que isso era misticismo, esoterismo e que os alunos de psiquiatria não se interessavam por essas coisas. Aí eu dei o curso pelo centro acadêmico, no mesmo local. Havia mais de 200 pessoas na sala e o maior número de perguntas foi sobre esse assunto.
O Conselho Regional de Psicologia andou agindo com rigor quanto a esse tipo de terapia…
Mas o CRP não tem o menor direito de discutir esse assunto. Eu não dou a nenhum Conselho Regional o direito de discutir filosofia. Eles só têm o direito de verificar se a utilização de uma determinada linha provoca prejuízo a um cliente. Eu rebati essa atitude do Conselho: mandei uma carta para a petista do CRP — que, como petista, se achava no direito de discutir Deus —, mas ela não respondeu.
Atualmente existe alguém que usa drogas para fazer regressão?
Usou-se no começo; até em São Paulo foi utilizado o LSD. Hoje essa técnica está abandonada.
Os casos de personalidades intrusas são frequentes?
É muito frequente aquilo que a gente procura e raro o que a gente não procura — li isso anos atrás… No começo eu não procurava muito personalidades intrusas e raramente encontrava. Se eu começar a procurar com mais cuidado, vou encontrar mais.
Quais os pré-requisitos para se utilizar a técnica de regressão?
Em primeiro lugar, conhecer o assunto. Segundo, não ser preconceituoso. Terceiro, ter conhecimento de psicologia ou psiquiatria, conhecimentos humanísticos para perceber que uma técnica não é a solução dos problemas.
Como diferenciar, nessa área, o charlatão de um profissional sério?
Pelo conhecimento da pessoa e pelo valor que ela dá ao dinheiro. Se for excessivo, eu desaconselho. Charlatão existe em qualquer carreira. Eu procuro mandar o paciente embora o mais rápido possível, não acredito em psicanálise de 15, 20 anos.
O mais rápido possível significa quanto tempo?
Pode ser de algumas sessões até meses. Há os chamados casos perdidos, que ninguém sabe tratar. Esses vão e voltam, porque são pessoas mal estruturadas. E eu digo casos perdidos até agora, até que nossos conhecimentos médicos evoluam mais um pouco.
Como surgiu a Associação Brasileira de Terapia de Vida Passada, que o senhor preside?
Houve um atrito entre a atual diretora da outra associação e a nossa associação, da qual ela fazia parte. Em vez de resolver isso, ela preferiu se separar do grupo. Ela se sentiu ofendida porque não quiseram aceitar a opinião dela.
A outra associação tem algum vínculo religioso?
Eu não sei. Na nossa há várias pessoas espíritas, budistas, judias — não seguimos uma linha religiosa, mas uma técnica terapêutica útil.
Nossa associação surgiu de um grupo de estudos, e percebemos que as pessoas não levam a coisa a sério se não existe uma sociedade que controla, que tem um conselho de ética, um presidente… Mas eu não gosto de fazer sociedade pela sociedade. Inclusive, quando fui eleito presidente, disse de início que iríamos nos fiscalizar para ver se tínhamos condições de ser didatas. Cada um deu uma série de aulas e fomos criticados abertamente pelos colegas; alguns foram eliminados por falta de conhecimento. Assim, selecionamos a elite que iria dirigir a sociedade. Lançamos o primeiro livro, porque não havia nenhum material no Brasil; a obra não é perfeita, não constitui um tratado, a editora pediu para reduzir várias partes… Assim mostramos que somos ativos; damos cursos porque didata que não dá curso não é didata. Alguns que acharam bonito o título, mas não quiseram montar um curso em tempo hábil, vêm sendo eliminados.
O senhor trabalha na área de pesquisa?
Já trabalhei, hoje não tenho um hospital à disposição que pudesse pesquisar. Se alguém me oferecer, aceito. A própria associação faz algumas pesquisas, mas não temos possibilidade de desenvolver algo científico.
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