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Organizando o Vazio

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Paulo Jacobina

(O Nada – parte 3)
parte 2, parte 1

Normalmente, a ideia de se organizar o Vazio pode parecer absurda para as pessoas. Entretanto, é algo possível de ser feito, inclusive do ponto de vista matemático.

Na matemática, existe um ramo chamado “contagem avançada”, que também é conhecido pela nomenclatura de “análise combinatória”. Esse nome se dá em decorrência do seu objetivo, descobrir como um conjunto de objetos pode ser organizado[1]. Por exemplo, para se descobrir quantas formas três objetos podem ser dispostos, verifica-se que, inicialmente, existem 3 (três) escolhas de qual objeto deve ser colocado primeiro; depois, uma vez que um dos objetos foi escolhido, existem outras 2 (duas) possibilidades de qual será o segundo; e, por fim, apenas 1 (uma) para qual ocupará o último local. Há, portanto, 6 (seis) organizações possíveis (3 x 2 x 1 = 6). Esse mecanismo de multiplicar sucessíveis números inteiros recebe o nome de fatorial e é representado pelo símbolo de exclamação (!). Assim, para denominar a solução do exemplo apresentado, um matemático usaria a seguinte notação: 3! (três fatorial).

Fazendo uso de análise combinatória para se descobrir de quantas maneiras é possível organizar o Vazio, estabelece-se a notação 0! (zero fatorial). Contudo, diferentemente do que pode parecer a princípio, o resultado encontrado não é 0 (zero), mas 1 (um). 0! = 1. Isso significa que existe uma forma de se organizar o Vazio[2] ou, em outras palavras, o Vazio pode ser arranjado de 1 (uma) maneira.

Uma coisa que se torna importante destacar é o fato de que, tal qual o português e o inglês, a matemática é uma ferramenta de representação da realidade, isto é, a matemática pode ser considerada como sendo um idioma. Sendo um idioma, ela passa a atuar como um intermediário entre a realidade e as pessoas, fazendo o uso de símbolos próprios para representar o Universo, as Leis que O regem e além. Uma das vantagens da matemática sobre outros idiomas é que, dificilmente, suas expressões apresentam mais de um significado e, portanto, sua informação se torna mais concreta para aquele que é alfabetizado na sua linguagem.

Por se tratar de uma maneira de representar a realidade, a matemática foi utilizada pelos mais variados pensadores e, talvez, o filósofo grego Pitágoras (570 – 495 AEC) tenha sido o primeiro a fazer o seu uso como símbolo representativo de maneira mais enfática. Para o filósofo e seus discípulos, todas as coisas eram feitas à imagem dos números e esses eram o princípio de todas as coisas, fazendo com que o Universo fosse Harmonia e Número[3].

Tal qual Pitágoras e outros filósofos, a Física faz uso da matemática para expressar e compreender o Universo. Adotando modelos matemáticos, a Física tem a possibilidade de verificar inúmeros cenários e constatar quais se aproximam mais da verdade. Inclusive pode propor explicações de como o Universo foi criado, como as estudadas na chamada gravitação quântica.

A gravitação quântica não apenas parece permitir que Universos surjam do nada – o que significa (nesse caso, enfatizo) a ausência de espaço e tempo –, mas pode exigir que o façam. O “nada” – nesse caso nada de espaço, nada de empo, nada de qualquer coisa! – é instável. Além do mais, seria esperado que as características gerais de um Universo desse tipo, se ele durar muito tempo, fossem as que observamos no Universo hoje.[4]

Assim, por intermédio dos símbolos e modelos organizacionais da matemática, a Física e outras ciências ditas exatas apenas buscam fazer o que também é feito por muitas linhas filosóficas que, ao invés de usarem a matemática como idioma, adotam outras línguas. É claro que, em muitos casos, essas linhas de pensamento utilizam palavras com conotações simbólicas, tanto para representar aquilo o que é abstrato, quanto para facilitar a compreensão e a propagação do conteúdo, posto que uma narrativa acaba por facilitar a memorização e, consequentemente, a difusão daqueles conhecimentos tanto no espaço, quanto no tempo.

Ponto que merece destaque, encontra-se no fato de que, embora, atualmente, a linguagem escrita se encontre difundida na sociedade, por muito tempo, a capacidade de ler e escrever era restrita a um pequeno grupo, enquanto, em outros períodos, alguns povos não possuíam o conhecimento do alfabeto. Dessa forma, visando propagar o conhecimento e sem ter como fazer uso de textos escritos, histórias/canções foram criadas. A título ilustrativo, pode-se destacar um trecho do item 1.2.1 do Brhadaranyaka Upanisad[5] indiano: “Aqui nada havia no início. Só pela morte isto era coberto, pela fome. Pois a morte é fome. A morte teve o pensamento: ‘Que eu ganhe um corpo (atman)’, e pôs-se a recitar. Ao que recitou, nasceram as águas[6]”. Interpretando o poema de maneira simbólica, verifica-se que ele ensina que, no início, existia o Vazio e que ele era coberto pela existência negativa (morte). Essa existência, após vibrar (recitar) deu origem àquilo que se encontra manifesto (atman, na condição de essência luminosa, e “água”, no sentido da materialidade). Em suma, o citado Upanisad explica, com expressões utilizadas pela sua cultura, o mesmo que as expressões físicas apresentadas no estudo da gravitação quântica. Porém, enquanto a física faz uso da matemática como idioma, os Upanisads usam o sânscrito. Em outro trecho, o citado Upanisad explica que:

No início, não havia nada exceto o princípio único unitário brahman. Mas, como estava sozinho, brahman sentia-se solitário e “não tinha nenhum prazer” (1.4.2). Nesse estado de solidão, ele desejava outro ser e, por isso, dividiu-se em duas partes, homem e mulher. Saindo do estado original de neutralidade abstrata, o par homem e mulher começou a se relacionar sexualmente, e disso nasceu todo o universo de formas diversas. Logo, o ponto original de unidade indiferenciada se dividiu, e, numa espécie de explosão, produziu o mundo fenomênico de formas múltiplas. O Brihad Aranyaka denomina isso a “supercriação de brahman” (1.4.6). Esse relato da criação exprime a verdadeira natureza da realidade e a meta última dos seres no âmbito dessa realidade.[7]

O mesmo ensinamento pode ser encontrado em hebraico, exposto no primeiro versículo da Torá, onde se lê, já transliterado, Bereshit bara Elohim et hashamayim ve’et ha’aretz. A passagem costuma ser traduzida como “No início D’us criou céu e terra”[8], contudo, a expressão D’us é utilizada no lugar da palavra Elohim que, dentre outros significados que carrega, transmite a ideia de algo oculto e dotado da potencialidade latente de tudo, e que é responsável pela sustentação das coisas. Assim, fazendo uso dessas chaves interpretativas, constata-se que o primeiro versículo da Torá apresenta que, inicialmente, uma energia oculta estabeleceu, a partir de si, aquilo que é essência (céu) e aquilo o que é forma (terra). Isto é, o primeiro versículo da Torá, e, consequentemente, da Bíblia cristã, contém ensinamento similar ao presente no Upanisad e nos modelos científicos atuais. O mesmo conteúdo também pode ser encontrado no poema 11 do Tao Te Ching:

Trinta ralos convergentes no centro

Tem uma roda.

Mas somente os vácuos entre os raios

É que facultam seu movimento[9].

O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,

Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.

Paredes são massas com portas e janelas,

Mas somente o vácuo entre as massas

Lhes dá utilidade –

Assim são as coisas físicas,

Que parecem ser o principal,

Mas o seu valor está no metafísico.[10]

E os ensinamentos contidos no poema transcrito são reforçados em outros, a exemplo do poema 14. Nele, o filósofo chinês Lao-Tzu (? – 351 AEC) apresenta relações entre os buscadores e o Tao, demonstrando, constantemente, que o Tao é diferente do que se percebe com os sentidos, posto se tratar de uma existência negativa que dá causa a existência positiva:

Quem quer ver a Divindade, não a verá, porque ela é invisível. Quem quer ouvir a Divindade, não a ouvirá, porque ela é inaudível. Quem quer tanger a Divindade, não a tangerá, poque ela não tem forma. (…) Só na visão do Todo se encontra a Divindade, e então a superfície parece tenebrosa escuridão, enquanto a profundeza parece luminosa superfície. Nunca a Divindade é inteligível, Ela permeia o Universo sem fim e gira pelo Todo como se fosse o Nada. A Divindade é uma forma sem forma. A Divindade é o Ser sem Existir, é o mais Insondável de todos os insondáveis. (…) Só quem sintoniza com o Infinito, esse o conhece realmente, como os antigos o conheciam. Eles, que sabiam que todos os visíveis nascem do Invisível.[11]”.

Em suma, várias culturas, cada qual dotada de suas subjetividades próprias, apresentaram modelos similares visando explicar a origem do Universo e como o mesmo se tornou aquilo o que pode ser percebido atualmente pelos sentidos. Em outra época, os ensinamentos passados pelos sábios eram o suficiente para fazer com que as pessoas, mesmo sem compreender a totalidade das informações, guardassem para si a possibilidade de elas serem verdadeiras. Em contrapartida, atualmente, parece que para muitas pessoas, talvez em função de uma confusão entre o conceito de “espiritualidade” com o de religião institucionalizada, esses ensinamentos se tornaram sinônimos de falsas histórias criadas para controlar as massas. Porém, mesmo nesses casos de deturpação do significado original, os ensinamentos ainda se encontram presentes, como diz o adágio cristão, para aqueles que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir. Tal pensamento é compartilhado por mitólogos, a exemplo do estadunidense Joseph Campbell (1904 – 1987):

Em termos sucintos: a doutrina universal ensina que todas as estruturas visíveis do mundo – todas as coisas e seres – são o efeito de uma força ubíqua de que emergem, força essa que os sustenta e preenche no decorrer do período de sua manifestação e para a qual eles devem retornar quando de sua dissolução última. Trata-se da força que (…) os melanésios [conhecem] como mana, os índios sioux como wakonda, os hindus como shakit e os cristãos como o poder de Deus. (…) E sua manifestação no cosmo constitui a estrutura e o fluxo do próprio universo.[12] (grifos no original e enxertos nossos)

Do ponto de vista da física, ao se descobrir que a energia no Vazio é negativa, assim como a pressão, e gravitacionalmente repulsiva, infere-se que o Universo “realiza trabalho no espaço vazio enquanto se expande”[13]. Desse modo, se no “princípio” as propriedades decorrentes do vácuo quântico “acabaram dotando mesmo uma região infinitesimal pequena do espaço vazio com energia, essa região pode crescer e se tornar arbitrariamente grande e plana”[14], como o Universo percebido atualmente.

Cabe salientar que o referencial adotado para se observar alguma coisa, incluindo o próprio Universo, tem a capacidade de modificar a percepção que se tem do objeto analisado e, consequentemente, a sua compreensão. Conforme constatou o matemático polonês Benoit Mandelbrot (1924 – 2010), responsável por cunhar o termo “fractal”, cada escala adotada gera uma percepção que lhe é relativa e revela apenas uma porção do TODO[15]. E, uma vez que “escala” é uma referência normalmente utilizada dentro do idioma, mas não exclusiva a ele, entende-se que também é possível encontrá-la como mecanismo de referenciação em outros idiomas. Assim, diversos povos fizeram uso de escalas típicas de seus idiomas para representar o TODO, apresentando seus próprios modelos cosmogônicos.

Dessa forma, entendendo que cada idioma possui a sua subjetividade que lhe é particular, verifica-se que a sua compreensão do TODO será relativa, posto se encontrar embasada nos seus próprios referenciais e em diferentes escalas adotadas. Porém, caso busque se aproximar, cada vez mais, da compreensão do Uno, faz-se necessário perceber que escalas geram parâmetros relativos sem, de fato, definir alguma coisa. Numa escala de tamanho, por exemplo, pode-se dizer que um prédio é maior do que uma pessoa, mas menor do que uma montanha. Isso não diz se o prédio é grande ou não, posto que essa conclusão só pode ser alcançada por intermédio de uma comparação.

Da mesma forma, ao se observar o Universo e perceber que ele se revela como sendo gigantesco e duradouro, tal conclusão é relativa a um observador que se encontra no interior do próprio Universo e, portanto, tem medidas de tempo e espaço inferiores às do objeto analisado. Contudo, para um observador externo, o Universo pode ser tão pequeno e de curta existência quanto uma partícula virtual que acabou se formar pelo aumento da amplitude de um campo quântico, e aguarda a colisão com sua contraparte de carga negativa para deixar de ser uma partícula e retornar à condição original de campo[16]; ou, como um pensamento que se forma na mente pelo aumento da amplitude das ondas cerebrais e, posteriormente, desaparece, retornando ao inconsciente[17].

Notas:

[1] CRILLY, Tom. 50 ideias de matemática que você precisa conhecer. São Paulo: Planeta, 2017. Pg. 167.

[2] CRILLY, Tom. 50 ideias de matemática que você precisa conhecer. São Paulo: Planeta, 2017. Pg. 168.

[3] ANTISERI, Dario; e REALE, Giovanni – História da Filosofia – filosofia pagã antiga, São Paulo: Paulus, 2003. Pg. 26.

[4] KRAUSS, Lawrence M. Um universo que veio do nada. São Paulo: Paz e Terra, 2013. Pg. 181.

[5]Upanisad é o nome que recebe um conjunto de textos em sânscrito compostos, desde, aproximadamente, a metade do primeiro milênio AEC. até talvez o primeiro século da era cristã (comum), no norte do subcontinente indiano, região que hoje corresponde grosso modo aos territórios do Paquistão e do norte da Índia” in UPANISADAS: os doze textos fundamentais. São Paulo: Mantra, 2020. Pg. 11.L

[6] UPANISADAS: os doze textos fundamentais. São Paulo: Mantra, 2020. Pg. 30.

[7] STEVENSON, Leslie Forster, HABERMAN, David. Dez teorias da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Pg. 68-69.

[8] Torá, Bereshit 1:1. In A Torá Viva, anotada por Rabino Aryeh Kaplan. São Paulo: Maayanot, 2000. Pg. 2.

[9] Segundo Huberto Rohden, tradutor da edição do Tao Te Ching utilizada no capítulo, provavelmente, Lao-Tsé se refere à roda de um moinho e vento, que não funcionaria se não houvesse interstícios entre as palhetas, por onde passa o vento.

[10] LAO-TSÉ. Tao Te Ching: o livro que revela Deus. São Paulo: Martin Claret, 2006. Pg. 37

[11] LAO-TSÉ. Tao Te Ching: o livro que revela Deus. São Paulo: Martin Claret, 2006. Pg. 41.

[12] CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007. Pg. 255.

[13] KRAUSS, Lawrence M. Um universo que veio do nada. São Paulo: Paz e Terra, 2013. Pg. 115.

[14] KRAUSS, Lawrence M. Um universo que veio do nada. São Paulo: Paz e Terra, 2013. Pg. 115.

[15] SOUZA, Maria Helena. 21 teoremas matemáticos que revolucionam o mundo. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018. Pg. 235.

[16] TRÊS INICIADOS. O caibalion. Estudo da filosofia hermética do antigo Egito e da Grécia. São Paulo: Pensamento, 1978.

[17] TRÊS INICIADOS. O caibalion. Estudo da filosofia hermética do antigo Egito e da Grécia. São Paulo: Pensamento, 1978.


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