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Esquizofrênicos são assediados por espíritos obsessores do Umbral?

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Shirlei Massapust

Comecei a ouvir um determinado grupo de vozes poucos dias depois da defesa da minha dissertação de mestrado em Filosofia e Ensino, aprovada pelo corpo docente do PPFEN do CEFET/RJ, em 14/11/2017. Escrever e defender essa dissertação foi fácil e não gerou nenhum estresse. Portanto creio que o curso não funcionou como gatilho.

Essas vozes não chamavam umas às outras por nomes verdadeiros ou apelidos individuais e não se assemelhavam às vozes de ninguém que eu conhecesse. Eram três homens, uma mulher e um rádio comunicador walk talk. Eles conversavam uns com os outros, e não diretamente comigo, falando sobre mim tudo que pudesse ser concebido para amedrontar e ofender. Falavam pouco sobre eles mesmos e, quando se identificavam, era mera desinformação para caracterizar personagens intimidadores.

Para facilitar podemos chamar as vozes humanas de H1, H2, H3 e M1. Todos eles pareciam atuar desempenhando diferentes papeis de acordo com mudanças nas circunstancias. A função do H1 era me acusar e me ameaçar, tentando convencer os outros a tomar atitudes. A função do H2 era ouvir e opinar. H3 e M1 começavam me defendendo e terminavam convencidos de que eu estava mesmo errada e deveria ser executada. Quem lhes falava pelo walk talk interpretava o chefe que julgava e dava ordens, mas o aparelho era ruidoso e eu não conseguia compreender suas palavras.

As vozes repetiam várias vezes as mesmas falas quando dialogavam. Parecia uma conversa entre surdos falando alto ou uma técnica de fixação das ideias expostas.  Quando um dizia qualquer coisa para o grupo, logo a seguir um dos outros ou todos os outros repetiam o que foi dito de modo a confirmar que escutaram corretamente. Porém muitas vezes eles discordavam do que foi explanado pelo primeiro a falar. Este então tornava a repetir o argumento inicial e era novamente contradito num círculo vicioso que podia levar horas ou dias. Penso que isso servia unicamente para me deixar nervosa.

O som da voz de M1 parecia sair de dentro da Padaria Rodriguez e dos quartos alugados acima. Porém as vozes mencionaram algumas vezes que no local onde eles estariam faltava água. Diziam isso em dias que faltava, mas também quando não faltava água nas casas do morro. Lá no universo paralelo deles a água é sempre escassa.

No início as vozes atuavam de modo a transmitir a ideia de serem membros de uma facção do narcotráfico e questionavam entre eles se eu chamaria a polícia. Lhes parecia errado que eu fosse capaz de invadir sua privacidade ouvindo-os falar na rua, ou onde quer que estivessem, ainda que não fosse errado para eles me investigarem. A função deste grupo de personagens seria verificar dados obtidos por meio de grampo telemático instalado em todos os roteadores das residências da parte alta do bairro onde moro. Estes ou outros verificariam dados obtidos de grampos telefônicos e eu supunha que eles talvez também possuíssem interceptores para captar ligações de celular. Tudo isso para manter a segurança da facção detectando delatores e chamadas policiais.

Crendo que estavam me vigiando e tinham acesso em tempo real ao que eu escrevia no computador, redigi uma carta para eles informando que quando a polícia sobe o morro há tiroteio e correria, mas os policiais não ficam por mais do que algumas horas. Rapidamente tudo volta ao normal. Se eu prestasse queixa qualquer acusado preso ou morto seria vingado pelos seus iguais. Qualquer acusado que fugisse ou acabasse sendo ouvido e liberado pela polícia vingaria a si mesmo. Em qualquer hipótese a minha pena seria morte ou expulsão do morro. Portanto acusar uma ou mais pessoas não seria uma atitude inteligente. As vozes comentaram o que escrevi e daí em diante passaram a me chamar de “moradora do papo reto”.

Após verificar que eu não tenho problemas de convivência com a facção local, as vozes passaram a interpretar personagens infiltrados. As vezes acontece de a polícia subir o morro, havendo intenso tiroteio. As vozes falavam durante as trocas de tiros e estavam calmas. Declaravam que um deles havia se juntado aos atiradores no morro vizinho para fingir que atirava no caveirão (automóvel blindado da polícia) quando na verdade desperdiçava a munição do dono das armas mirando na minha casa.

Eu não acreditei nisso embora a informação pudesse parecer verossímil por estar batendo balas perdias na minha casa, como sempre acontece. Eles começaram a simular conversas onde se identificavam hora como informantes da polícia, hora como narcotraficantes duma facção rival estrategicamente infiltrados na facção local, usando a polícia para enfraquecer a facção local antes de preparar uma invasão do morro.

No dia seguinte estava tudo calmo. Meu pai declarou que iria molhar plantas e verificar se havia frutas noutro terreno. H1 falou: “Vá lá. Vá lá mesmo”. Estranhei isso e pedi que meu pai ficasse mais um pouco. Uns dez minutos depois começou o tiroteio.

Certa vez, quando H1, H2, H3 e M1 ainda estavam na fase de interpretação de personagens membros da facção local, eles passaram vários dias discutindo sobre se eu deveria ser ou não ser executada como informante da polícia. O motivo é o seguinte: Quando eu estudava no CEFET/RJ apresentei um artigo sobre xarpi e grafitagem aos professores C.G. e F.S., que me aconselharam a pedir autorização aos artistas antes de publicar. Eu não sabia quem eram todos os artistas produtores dos exemplos fotografados, então não publiquei o artigo. Eu somente conhecia os nomes de três artistas de xarpi da década de 90, mas não os achei em redes sociais e desconhecia seus endereços. Um era irmão da ex-namorada dum ex-amigo meu. Os outros eram colegas de infância duma amiga. Quando nós éramos crianças dois tinham passagem pela FEBEM. Eles se alistaram à facção dominante no bairro e, na década seguinte, assinaram mais muros em territórios da facção rival.

Numa determinada noite muitas vozes masculinas além de H1, H2 e H3 vieram, uma a uma, visitar o quarteto que parecia estar abrigado na casa à frente. Eles contavam a mesma história e eu tinha que convencer cada pessoa lá embaixo que eu podia ouvi-los e fornecer informações por meio remoto, digitando cartas no computador, afim de evitar um arrombamento. No meio da madrugada o homem no walk talk decidiu me condenar à morte, mas expliquei que não sou investigadora e ele desistiu. No dia seguinte as vozes falavam em baixo volume, atribuindo o abafamento a uma divisória recém instalada no cômodo onde estariam. Eles ainda queriam minha execução por “saber demais”. Então escrevi que ainda podia ouvi-los. As vozes simularam aborrecimento pela invasão da privacidade deles. E voltaram a falar alto. Para acabar com o falatório das vozes alucinatórias (que eu pensava serem pessoas), imprimi e entreguei meu artigo para o chefe da facção local, que não viu nada de errado e deu autorização para publicação. Na verdade, a facção local gostou do meu trabalho.

As vozes começaram a falar: “Olha lá, conhece um monte de bandidos”. Sob a perspectiva dos personagens interpretados pelas vozes agora eu era a bandida e eles os informantes da polícia. Isso não assustou. Então eles decidiram identificar H1 como R.T., o irmão da ex-namorada do meu ex-amigo, que alternou assinaturas em territórios de duas facções. R.T. estaria furioso porque eu sabia algo sobre ele desde 1995 e nunca lhe comuniquei. Eu expliquei às vozes, escrevendo no computador, que nunca o achei.

Quebrei todos os disquetes e CDs antigos que pude encontrar, apaguei fotos e textos relacionados a xarpi e grafitagem. H2, H3 e M1 ficaram especialmente satisfeitos porque eu arranquei muitos CDs usados como componentes de enfeites natalinos da parede, quebrei e joguei no lixo. Expliquei para minha mãe, sobre a destruição dos enfeites que ela fez, que o material sem rótulo poderia conter fotografias não autorizadas de xarpi e grafitagem. Mesmo assim H1, interpretando R.T., queria vingança e passou a procurar outros motivos para denunciar toda minha família ao homem no walk talk.

Desgraçadamente, para H1, nos acusar não era a tarefa mais fácil do mundo. A eventualidade mais grave a qual demos causa neste período foi quando achamos uma bolsa de lixo jogada por alguém em nosso terreno e meu pai jogou de volta no quintal do vizinho, mas, havendo vizinhos em dois lados, talvez ele haja sujado o quintal errado.

No primeiro dia em que H1 falou eu estava em casa, deitada na cama, quando já estavam todos dormindo. Acordei e escutei o que me pareceu ser o H1 falando com um ouvinte que não lhe respondeu nada. Era provavelmente o H3, único que fala baixo e mal dá para ouvir. H1 mencionou meu nome e comentou sobre o saldo da minha fatura de cartão de crédito, se queixando por eu haver feito compras no exterior. Disse que sou “toda errada”. Ele terminou falando que mulher periférica “não pode ser assim não”. Noutro dia ele ainda falaria sobre meus livros: “Tudo isso para educar uma única filha”.

Como eu não sabia que os falantes eram vozes desprovidas de corpos físicos pareceu-me que aquele indivíduo estivesse bravo comigo; supus que alguém havia acessado e distribuído meus dados pessoais para o escrutínio público, especificamente para um cidadão de sexo masculino andando numa rua de favela à noite. Então troquei todas as minhas senhas. Pela manhã tive de sair com meus pais e minha irmã. Logo antes de entrar no carro ouvi vozes masculinas discutindo se uma família com vestimentas tão humildes vive ou não vive em ostentação. Primeiro opinaram que não, depois concluíram que vivemos em ostentação por causa do automóvel da minha irmã, um Fiat Punto 2017.

Aqui nós não temos ar condicionado, usamos um telefone celular para quatro pessoas, etc. Os bens móveis mais caros são o carro e alguns bonecos.

Dois dias depois ouvi mais de um falante planejando o furto do cartão de crédito de uma mulher inominada. Eles mencionaram o limite do cartão da mulher e era o mesmo que o do meu. Então imaginei que aqueles falantes pretendiam fazer compras no meu cartão e podiam fazer isso pois dispunham de dados previamente digitados no meu computador. Fiquei acordada prestando atenção no que diziam. De madrugada uma voz feminina se reuniu às vozes masculinas. Era o cartão dela que eles desejavam e, para obtê-lo, ofereciam bebida alcoólica na tentativa de embebedá-la. Eles situaram uma descrição de cena de crime na frente do bar do meu amigo inocente, que tem um irmão inocente que trabalhava no provedor de internet da região. Portanto parece que a intenção das vozes era me induzir a arranjar briga injustificada com os irmãos.

O fenômeno das vozes metodicamente distribuía sua coleta de dados em uma progressão de uso conforme a verossimilhança da simulação e a gravidade da situação.  Sendo assim, na primeira noite o sujeito que posteriormente se revelaria obcecado por assuntos demoníacos se queixou de meras “compras no exterior” sem mencionar que os gastos realizados na data mais próxima, em 12/10/2017, se referiam a $ 130,00 para Ruya Qian que me vendeu uma cabeça do boneco Infernale da I.O.S., $ 100,00 para Karrie Whitfield pela venda do conjunto de roupinhas de boneco Hyperon – Lucifer Green Set (IDO16001), e a $ 98,00 para Kelly Johnston pela postagem do boneco Vampiro Auguste, de Washington para o Brasil, via USPS.

Se H1 houvesse mencionado um traje de Lúcifer, um boneco Infernale, etc., eu suspeitaria de um hacker acessado minha caixa de e-mail e não de um cracker baixando dados bancários. Claro que ele tinha todos os dados, porém omitindo estes detalhes seria obtido os melhores resultados no prejuízo de minha pessoa e foi o que ele fez.

O objetivo primário era me inserir num contexto que culminasse com a morte de uma ou mais pessoas. Coincidentemente algo transubjetivo, objetivo, afetou duas das três compras internacionais datadas de 12/10/2017. O rastreamento do pacote remetido por Karrie Whitfield acusou entrega ao destinatário, sendo que eu nada recebi.

Falei com os Correios. Responderam que apenas a remetente poderia formalizar reclamação para a devida apuração, conforme “normas da União Postal Universal – UPU, órgão da ONU que estabelece as regras postais a serem obedecidas por todos os correios do mundo”. Escrevi para a ONU Brasil denunciando violação das normas do Código de Defesa do Consumidor brasileiro (Lei nº 8.078/1990), Art. 6º, X; Art. 39 II e V; Art. 51 III. O e-mail não foi respondido. Pedi a Karrie Whitfield para reclamar. Ela comunicou que a resposta foi que o pacote LH022879175US chegou ao destino.

Telefonei para os Correios. Recomendaram-me a perguntar a todas as pessoas em todas as casas do bairro onde estava o pacote LH022879175US. Embora eu tenha dado o pacote como perdido, meus pais resolveram fazer exatamente isso. Enquanto eles batiam de porta em porta, explicando a situação, outros moradores se queixaram de atualizações de recebimento por desconhecidos inominados no rastreio de pacotes endereçados à localidade. O caso mais grave era o de uma cabelereira parcialmente impedida de trabalhar devido à não-entrega de cremes para pentear e outros produtos.

Os moradores queriam saber quem mais havia sido lesado e puseram-se a falar uns com os outros sobre algo que deixou de ser um problema individual. O boato chegou àqueles que resolvem. No morro é proibido furtar ou assaltar morador. Dizem por aqui que nas duas últimas vezes em que grandes volumes de correspondências coletiva se perderam, muitas cartas reapareceram e os dois ladrões se mudaram. Desta vez felizmente tudo se resolveu mais simplesmente. Todos os meus pacotes extraviados em 2017 apareceram. RE959437039BR e JR589869575BR continham livros e estavam na residência duma parenta com quem não temos convívio. LH022879175US estava na casa de um policial que não tem sobrenome ou endereço semelhante ao nosso.

A outra compra internacional de 12/10/2017 que culminou em falhas no processo de recebimento não gerou perigo a ninguém, só mero aborrecimento. Em 18/10/2017 começou a funcionar a versão 1.0.33.30 do sistema Portal Importador, dos Correios. Com isso os impostos e tributos calculados pela Receita Federal deixaram de ser cobrados presencialmente no ato da entrega das remessas internacionais.

No início o programa como um todo não funcionava bem. Deu erro nas primeiras tentativas de criar uma conta em Minhas Importações, onde o usuário do serviço vincula seu CPF aos seus pacotes. Na terceira tentativa consegui fazer minha parte. O próximo erro seria cometido pelo funcionário da Receita Federal, que inseriu a primeira DIS na minha conta sem adicionar a opção de pagamento por cartão de crédito ou boleto.

Nenhum meio de comunicação virtual ou telefônica deu solução ao problema. Fui a duas agências dos Correios e ninguém ajudou. No banco informaram que não é possível quitar débitos aduaneiros apenas exibindo uma DIS sem códigos de barras.

Mandei carta com aviso de recebimento para o GEARI e eles consertaram o defeito. Paguei o boleto. O pacote ficou aguardando retirada no Correio Central. Neste local recusaram meu documento de identidade porque a remetente escreveu “Shirlei de Oliveira” ao invés de “Shirlei Massapust” como destinatária do pacote. Perguntei à Kelly Johnston o que foi que aconteceu e ela disse que bebeu saquê demais. Imprimi o e-mail da remetente confessando o erro de preenchimento e retornei à agência levando um comprovante de residência. Consegui receber o pacote EC907367465US e acabei sendo solicitada a dar uma aula sobre o funcionamento do sistema Portal Importador, e como consertar seus bugs, para vários funcionários da agência do Correio Central, a fim de que eles orientassem outras pessoas com problemas parecidos com os meus.

Como eu não vinculei as falhas no recebimento de pacotes com as ameaças das vozes, as vozes passaram a criar enredos cada vez mais absurdos. H1, H2, H3 e M1 comentavam com insistência que eu dava pouca esmola para mendigos. O mínimo que eles julgavam aceitável dar a todo e qualquer indivíduo que solicitasse esmola era R$ 5 por pessoa, de modo que suspeitei que determinado mendigo fosse H1 disfarçado. Eu procurei no armário todas as roupas que não usava e que ainda estavam em bom estado e doei para um centro de umbanda que distribui cestas básicas. Também doei minhas bonecas de escala 1/6 e seus acessórios. As vozes se queixaram que eu havia pego livros e periódicos demais na estante “pegue e leve” do CEFET, onde qualquer um pode doar ou levar qualquer obra impressa. Fui ao CEFET, devolvi o material pego no local de volta para a estante e depositei mais algumas bolsas de livros que eram meus.

Após muitos supostos testes de caráter eles começaram a planejar um assalto à residência. Iriam invadir a casa num momento de vulnerabilidade. Então coloquei um facão e um spray que faz os olhos arderem ao lado da cama. Mantive as portas de entrada na casa trancadas, mas meus pais reabriam a todo momento. Eles tiraram as chaves do meu quarto e dos outros cômodos. Nunca mais me devolveram.

Eu mantive os bonecos de escala 1/3 e as vozes passaram a implicar com isso. Tenho um boneco chinês chamado Huika, mais outro coreano chamado Gluino. Ambos vieram embalados em almofadas com zíper imitando sacos de dormir. Isso poderia ser visto por qualquer um em vídeos de abertura das caixas no meu canal no YouTube. As vozes inventaram que os travesseiros que uso na cama tem bonecos escondidos dentro, utilizados em masturbação. As vozes insistiram durante dias que minha mãe troca semanalmente as roupas de cama para lavar porque as minhas fronhas ficariam sujas de menstruação. Eles supunham que o Lúcifer da I.O.S. ficaria numa almofada com zíper e que aquilo seria um travesseiro. Aliás, eles confundiam o boneco Lúcifer com o Crowley da Morning Star por causa dum colar de contas pretas e vermelhas parecido com uma guia de exu, guardado com ele.

Eu escrevi que os bonecos anatomicamente corretos ficam noutro cômodo e não são artigos de sex shop. Seria impossível para qualquer pessoa transar com o Huika ou com o Gluino. É verdade que o Ji Tian da Popo Doll e o Auguste da Loong Soul vieram com pênis magnéticos destacáveis, porém disfuncionais enquanto artigos sexuais devido ao tamanho diminuto dos falos e ao fato de serem feitos de resina de poliuretano. Enfim, eles não são dildos. Pensando que os falantes eram pessoas na rua ou ocultas nos quartos da casa em frente eu removi as fronhas usadas diante da janela, mostrando que estavam sem manchas de sangue, e dobrei os travesseiros para deixar claro que não havia nada dentro além de espuma. Os travesseiros não tem zíper.

As vozes alucinatórias planejavam a apreensão de um boneco da minha coleção para devolvê-lo a F.B. Eu digitei uma explicação provando que não furtei o boneco desta pessoa. Abri fotografias mostrando que o meu era um Kagel da Souldoll e o dela um modelo diferente fabricado noutra empresa. Apenas a pintura facial era um pouco parecida. Então apaguei as fotos do boneco dela – salvas da internet – para evitar acusação de furto de propriedade intelectual. As vozes continuaram insistindo que a F.B. encomendou alguns dos meus bonecos de escala 1/3 após me expulsar do fórum da comunidade dos bonequeiros. Segundo as vozes, ela havia prometido pagar com sexo a um apaixonado e repartir o lucro depois que vendesse cada um por mil reais. No entanto, embora a facção local possivelmente permitisse a invasão da residência de moradores para apreensão de um objeto furtado ou roubado (se assim o fosse), nem bandidos costumam aceitar o argumento de que certos bens de consumo deveriam ser privilégios de elite proibitivos para mulheres periféricas.

As vozes passaram a defender Samanta, uma estelionatária que vende itens a colecionadores de bonecos brasileiros e não entrega as encomendas. Eu estaria errada ao falar mal de um membro da facção. Então escrevi às vozes explicando que não sabia que Samanta tinha vínculos com a facção e apaguei meu feedback negativo sobre a compra de um item não entregue. Eles continuaram exigindo bonecos para F.B.

O assunto foi encerrado quando a verdadeira F.B. – ou alguém com o mesmo nome e aparência que ela – foi presa na fronteira do Brasil com outro país, levando uma robusta carga de drogas em um carro de luxo roubado. (Isso passou na TV).  Porém antes ocorreu algo incomum. Certo dia o vento fez a porta da sala bater e quebrar o vidro. Eu estava no cômodo adjacente e só ouvi o barulho. Duas mulheres jovens subiam a escada portando guarda-chuvas fechados. Imaginei que alguém poderia ter quebrado o vidro para que outros conseguissem apanhar a chave à noite. Colei um sino na porta da sala para fazer barulho em caso de movimento e fiz uma barricada.

Fiquei esperando alguém forçar a porta. Na terceira noite que passei sem dormir as vozes questionavam entre si por que eu estava fazendo isso e fingiam ignorar que eu estava ouvindo. No meio da noite H1 falou: “Se continuar assim ela vai me matar rapidinho”. Não entendi o que ele quis dizer, pois era ele quem estava me ameaçando e não o contrário. Por volta das 5h da manhã senti uma dor forte por baixo da mama esquerda e apertei o local para aliviar a contratura muscular. Então as vozes opinaram que eu estava acordada esperando todos dormirem para me masturbar.

Daí em diante masturbação foi um dos temas favoritos das vozes. Disseram que eu estava a vários dias sem conseguir evacuar para endurecer as fezes propositalmente e causar prazer na dor. O chuveiro do banheiro não é elétrico. Disseram que eu fervo a água do banho por fetiche masoquista e que uso ducha higiênica após urinar com intenção de masturbar-me com água fria. Eu cobri a janela basculante do banheiro com papel, mas as vozes continuavam comentando que eu estava na privada ou no banho, ressaltando como H1 era pervertido e se masturbava fazendo fotos e vídeos de minha nudez. Alguém afirmou que H1 era virgem até o dia em que comeu o cu de um colega.

Minha casa se situa em lugar algo. Não é possível olhar para dentro das janelas estando na rua ou nas casas vizinhas. Ao menos que houvessem olheiros munidos de telescópio ou binóculos de longo alcance nos morros ao redor, imaginei que poderiam ter instalado câmeras espiãs na minha casa. Vasculhei todos os orifícios próximos à fiação elétrica, sem encontrar nada. Cobri tudo com fita adesiva opaca. Eles se divertiam falando: “A câmera está no ralo”. “A câmera está na bacia”. “A Câmera está na vassoura”. “Quando ela descobrir que a câmera está nos olhos arrancará os olhos fora”.

Certa vez, quando eu estava no banho, H1 ou H3 comentou que ele e as outras vozes eram pessoas do futuro, viajantes do tempo. Não acreditei nisso. Provavelmente tal informação foi inventada por ele porque eu havia visto a descrição de um caso na série Alienígenas do Passado, temporada 14, episódio 10 – Projeto Híbrido, exibido no canal History Channel. Segundo este documentário, “origin year 8100” e “eyes of your eyes” são duas linhas da conversão do código binário de uma sequência de zeros e uns recebida telepaticamente pelo Sargento Jim Penniston durante um incidente ufológico na Rendlesham Forest, Inglaterra, em 26/12/1980, detalhado num livro de Nick Pope.[1]

Por causa das vozes eu havia passado a trocar de roupa e tomar banho de olhos fechados. No início de junho de 2019 pisquei e vi que tinha muitas pintas vermelhas no corpo. A médica da emergência da Casa de Portugal diagnosticou alergia. Dois dias depois o médico da Casa de Saúde Santa Therezinha confirmou minha suspeita de que era catapora. Sobre isso as vozes não falaram nada. Então percebi que o objetivo da humilhação no banheiro não se esgotava no escárnio. As vozes possivelmente queriam que o ato da não observação do meu próprio corpo se tornasse perigoso.

Muitas vezes as vozes simulavam estar vendo meu perfil no Facebook. Eu evito publicar fotos de família, portanto ninguém comentou sobre isso. Mas eles elegeram um incidente para agravar. Em 21/07/2017 um jacu macho, galináceo da espécie Penelope superciliaris, pousou no meu quintal e passou a voltar todos os dias durante pouco mais de um ano. No primeiro dia eu postei fotos no meu perfil do Facebook com o comentário: “Que coisa linda! Que bicho é esse? Alguém sabe? Pousou agora no meu quintal.   ”. As pessoas identificaram rapidamente a ave. Nos três dias seguintes postei mais fotos e numa delas chamei-o de “jacuzinho”.

Eu já não lembrava dessas postagens mais de cinco meses depois, porém as vozes lembravam dos mínimos detalhes. H1 estava furioso pelo meu desrespeito à ave ao usar um termo no diminutivo, jacuzinho. Ele alegou que o jacu, enquanto ave grande e preta, seria uma entidade que se alimenta como os urubus; quando eu já sabia que na verdade jacus são galináceos onívoros que gostam de banana, sementes de café e outras frutas. H1 teve uma discussão exaustiva com H2, H3 e M1, repetindo durante dias: “Jacu é carnívoro”. E os outros respondiam: “Jacu não é carnívoro”.

As vozes ameaçaram denunciar o cativeiro de animal silvestre ao departamento da polícia responsável pela investigação de crime de maus tratos a animais. Então eu mesma enviei e-mail para a DEMA comunicando que um jacu apareceu no meu terreno, estava interagindo com as galinhas, ingerindo milho, ração e bananas. Perguntei se o animal deveria ser resgatado para a soltura na natureza. Ninguém respondeu.

No dia seguinte H1 insistia que ter um jacu no quintal e não dar carne para a ave comer é crime de maus tratos e que toda minha família deveria ser punida. Ele dizia querer caçar o jacu e comê-lo ou vende-lo, pois é uma ave cara. Depois inventou um ritual de sacrifício. Por causa dos corações na postagem do Facebook ele alegava que meu coração estava prometido para a entidade e deveria ser dado como alimento ao suposto bicho de estimação. Minha morte e a oferenda deveriam ser realizadas por ele diante da minha família que seria, depois, fuzilada pelo grupo.

Certo dia todas as vozes comentavam sobre o achado de um jacu morto por um tiro caído do meu terreno. H2, H3 e M1 atuavam como se desconfiassem de H1 pois ele havia manifestado desejo de abater a ave em dias anteriores. O chefe que falava pelo walk talk veio de onde quer que estivesse para julgar o caso, entrevistou as testemunhas e eles mencionaram que eu era capaz de me comunicar com o grupo escrevendo mensagens no software Microsoft Word. Eu liguei o computador e digitei o que eles falavam, como já vinha fazendo com as outras vozes, provando assim para quem quer que estivesse hackeando meu computador que eu era mesmo capaz de ouvir e opinar.

Depois de mais uma longa discussão sobre jacu ser ou não ser carnívoro, H1 disse ao chefe que eu mantinha a grande ave aprisionada numa pequena gaiola. O chefe falou sobre a suposta foto dos meus arquivos pessoais que H1 estaria mostrando: “Isso aqui é um boneco”. O outro falou: “É um boneco de Lúcifer”. (Na verdade o boneco engaiolado não era meu e não era o Lúcifer). H1 acabou condenado pela morte do meu jacu. Mas então escrevi: “O jacu está vivo”. (Meu pai havia acabado de entrar alegando ter visto o jacu no quintal). Os outros diziam que o executor já estava com o dedo no gatilho e a arma apontada para a cabeça de H1 quando eu o “salvei”.

Porém H1 continuava exigindo minha morte, para dar meu coração ao jacu e depois fuzilar minha família. O chefe quis saber a minha opinião – essa foi a única vez que alguém nesse grupo de vozes me perguntou alguma coisa. – Respondi: “Só quero que isso acabe”. Então o personagem de H1 foi fuzilado e o corpo desovado noutro morro para parecer culpa da facção rival, ou pelo menos foi isso que as outras vozes alucinatórias comentaram nesta e noutras noites. Eu não escutei nenhum som de tiro.

À noite supostas gravações de trechos seletos de diálogos entre as vozes foram apresentadas juntamente com som instrumental de pancadão em um baile funk onde a história dos acontecimentos dos últimos meses estaria sendo apresentada ao escrutínio de todos os membros da facção local, bem como a representantes da facção vindos de outros morros e à toda a comunidade que comparece e aprecia esse tipo de baile.

O som vinha de longe, porém dava para escutar que, numa música interminável, vários homens bradavam pontualmente “moradora do papo reto”. Chamei meus pais para ouvir. Eles fecharam as portas e as janelas, dizendo que não tinha baile. Depois concordaram que tinha um baile, porém a melodia ruidosa possuía letra indistinguível.

Eu não tenho medo de baile de favela. Nesta localidade sempre teve baile com música alta, principalmente dos gêneros funk ousadia, funk proibido e funk ostentação. Esses bailes tem por objetivo entreter seus frequentadores promovendo os negócios da facção local e a glamourização da vida bandida. Eu já tinha ouvido músicas produzidas em homenagem a figuras de destaque nas comunidades localizadas nos territórios da facção. São enaltecidos os mais notórios narcotraficantes, DJs e MCs. Eles são os heróis dos morros. As meretrizes e jovens mulheres que vão aos bailes em busca de sexo também, mas elas raramente são citadas por nomes civis ou sociais; exceto pela personagem real ou fictícia da música Não Fala da Beth, do MC Saci: “Beth fortalece na xereca e no boquete”.

Nos bailes da vida real algumas músicas conhecidas, a exemplo de A Bala Vai Comer, do MC Rodson, recomendam o fortalecimento dos “bondes” de diferentes morros para o enfrentamento com troca de tiros durante operações policiais nos morros. Outras, poucas e raras, fantasiam a morte de chefes das facções rivais. Por aqui tocaram durante meses seguidos um funk sobre o “bonde” que teria sucesso na tarefa de meter bala no Playboy (Celso Pinheiro Pimenta), antigo chefe do tráfico do Morro da Pedreira, e isso fez tanto sucesso na comunidade que continuaram tocando até muito tempo depois da perda de sua finalidade, em 08/10/2015, quando agentes da polícia federal frustraram os planos da facção local matando o Playboy pessoalmente.

Nunca escutei uma música onde o homenageado ou sentenciado fosse um mero morador. Porém um mero morador nunca identificou um grampo telemático alucinatório e esteve em contato diário com seus operadores invisíveis. E eu seria uma matadora, pois supostamente teria dado causa à execução do primeiro personagem interpretado por H1. Naturalmente as vozes interpretando personagens membros da fação local (e infiltrados) não dispuseram gravações contendo menções ao grampo em um baile comunitário onde todos passariam a saber que estavam sendo vigiados. Gravações de falas previamente escutadas de H1, H2, H3 e M1 eram respondidas por falas inéditas de uma mulher MC debochada e desdenhosa interpretado minha pessoa. Ela criou um clima de júbilo pela morte de R.T., alegrando seus opositores e enfurecendo seus aliados contra mim.

No dia seguinte as crianças na macumba estavam cantando: “Moradora do papo reto! Moradora do papo reto!” Entrei no centro de Umbanda e não localizei as crianças, mas várias pessoas pareciam estar cochichando: “Essa é a moradora do papo reto?”

Quando H1 parou de interpretar R.T. surgiu um segundo personagem com a voz de H1, sem nome, que se juntou a H2, H3 e M1. Os quatro haviam convencionado que, embora a facção local proteja os moradores do morro, isso não acontece fora de um determinado território. Portanto, se eu me deslocasse para o território da facção rival eles dariam o alerta para que outros executassem a mim e minha família. Então eu evitava sair, mas meus familiares me arrastavam a força para fora de casa. Na Tijuca vozes alucinatórias que pareciam vir dos transeuntes comentavam que eu havia matado um herói local em um sacrifício ritual e dado o coração do homem para o jacu comer.

O argumento das vozes negativas era que todos em minha casa deveriam morrer para impedir que denunciassem meus executores à polícia depois que a facção rival me matasse vingando a morte de R.T. Deduzi que se eu morresse de qualquer outra causa, ninguém teria motivo para temer queixas-crime. Na intenção de proteger minha família contra os personagens criados pelas vozes eu decidi tentar cometer suicídio. Porém não consegui furar a carótida com um estilete porque, por mais que eu tentasse, a lâmina cega só produziu uma pequena ferida. Também não achei uma corda forte e um ponto de apoio onde eu pudesse me enforcar. Meus pais e minha irmã me forçaram a ir a um lugar onde um médico me deu injeção de calmante no glúteo.

Não sei onde eu estava nem perguntei o nome do médico. Não consta nenhum endereço de estabelecimento na Usina (Grande Tijuca) na relação dos hospitais psiquiátricos da Subsecretaria de Atenção à Saúde, da Secretaria de Estado de Saúde, do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Provavelmente isso se deve ao fato de não ser um hospital público. Minha mãe esqueceu o nome do hospital, mas reconheceu fotos na internet da Clínica Recuperação Acolher Vidas <https://www.acolhervidas.com>.

Depois disso passei a me consultar regularmente na Clínica Psiquiátrica Francisco Souza, situada à Rua Conde de Bonfim, 422/811, na Tijuca, até o Dr. Francisco decidir se aposentar. Na ocasião da primeira consulta, eu, meus pais e minha irmã ficamos presos dentro do elevador durante alguns minutos em que deu defeito. Pensei que meus perseguidores talvez houvessem tentado fazer algo com o elevador. O psicanalista receitou risperidona 3 ml e quetiapina 25 ml. Isso parecia não surtir efeito. Como o Dr. Francisco era um médico espírita ele pôs meu nome em um grupo de orações ou algo assim. As vozes negativas respeitaram mais os trabalhos espirituais do que os remédios, pois foram se tornando cada vez mais raras e menos intimidadoras.

Certa vez ouvi a voz do meu pai conversando com H2. Meu pai sempre conversa com o pessoal na rua gritando no alto da varanda e os outros gritam de volta. Neste dia olhei e meu pai estava acocorado no muro do quintal do primeiro andar olhando para a rua abaixo da garagem. Donde eu estava não era possível ver a calçada no nosso lado da rua. Pelo que escutei H2 tentava convencer meu pai a dar autorização para que eu saísse. A voz de meu pai respondeu questionado se o falante queria falar com minha irmã. H2 respondeu que não, pois queria sair comigo. E meu pai não autorizou. Então eu perguntei quem era o H2. Meu pai informou que não havia falado com ninguém.

Muitas vezes as vozes alucinatórias descreviam o que eu fazia em cômodos sem webcam ou qualquer espécie de câmera. Falavam o que eu fazia em ângulos invisíveis para quem estivesse na rua ou nos imóveis ao redor. Eu ignorava como algo assim poderia estar acontecendo. De minha casa tenho vista para áreas de favelas no Fallet (Santa Teresa), no Fogueteiro (Rio Comprido), no Querosene (Estácio e Rio Comprido) e no morro São Carlos (Complexo do São Carlos). Com binóculos de longo alcance qualquer olheiro nessas localidades poderia enxergar dentro dos quartos da frente e da sala de minha casa. Alguém na Rua Gomes Lopes (Santa Teresa) teria vista para uma pequena parte da parede do banheiro quando o basculante estivesse aberto. Contudo mesmo se o homem no walk talk estivesse recebendo informações de olheiros a pedido de H1, H2, H3 e M1, convencido de que eu poderia ser uma informante da polícia, isso não explicaria como o grupo poderia conhecer o conteúdo de uma carta escrita no chão, longe das janelas, ou de que lado da pia da cozinha estava a louça suja.

Lembrei de haver encontrado rascunhos de script da novela A Favorita no meio do lixo jogado ao chão do apartamento de E.B. que mudou-se deixando a bagunça para meu pai limpar. Este apartamento ficava dentro da recém-falida oficina automecânica da qual meu pai e o recém-falecido esposo de E.B. foram sócios. Pois bem, com base nos fatos havia fortes indícios de que E.B. trabalhava como ghost writer na Rede Globo.

Graças a uma reportagem televisiva descobri que a polícia inglesa investigou denúncias de que o grupo Time-Life espiona de modo contínuo não apenas as vidas de membros da realeza, políticos e celebridades, mas também as vidas de criminosos e de um grupo de controle composto por pessoas comuns seletas aleatoriamente. Eu também sabia que, desde 1961, Roberto Marinho firmou contratos com o grupo Time-Life a fim de determinar a orientação e conteúdo dos programas da emissora TV Globo, que começou a operar em 26/04/1965. Portanto não seria absolutamente impossível para E.B. solicitar favores a colegas de trabalho e colocar todos os gigantes da espionagem global no meu encalço, se ela assim desejasse. E como não desejaria? Eu sou bacharel em Direito e ela estava tentando obrigar meu pai – pintor de carros e servente geral – a assumir sozinho as dívidas da oficina falida, sobretudo as demandas trabalhistas e empréstimos que ele se negou a assinar juntamente com os sócios controladores majoritários.

O problema é que nem isso explicaria como H1, H2, H3 e M1 sabiam quando eu mexia no ralo do box do banheiro. Algumas vezes eles comentaram sobre a forma como eu escovo os dentes duas vezes, primeiro normalmente e depois junto com a água do bochecho; algo que os falantes julgaram uma boa ideia e decidiram imitar. Afinal, já existe neste planeta tecnologia para produzir um grampo cerebral? Penso que não.

Eu procurei microcâmeras e escutas na casa inteira, até nos canos do banheiro. Não havia nenhuma. Então comecei a suspeitar que algumas vozes que eu ouvia eram mal interpretadas. Só aceitei que todas as vozes eram alucinatórias quando eles marcaram uma data para invadir minha casa, me torturar e matar a todos nós, mas não invadiram nem deram um único tiro. Foi uma noite terrível, pois ninguém acreditava em mim. Eu queria que tirassem o botijão de gás do canto onde poderia ser atingido por uma bala que entrasse pela janela. Minha irmã ficou dançando na frente do botijão. Minha mãe brigou a noite inteira porque eu não fui para a cama.

Fazia meses que eu não estava dormindo ou comendo direito, até parei de menstruar. H1 inventou que havia sim invadido a casa e me estuprado. Depois mudou a história. Ele teria de algum modo extraído esperma do meu pai que dormia e usado isso para me engravidar com uma seringa. Não acreditei nisso, mas contei para a ginecologista e ela confirmou que eu não tinha traços de estupro. As vozes celebraram este dia pois foram bem sucedidas em me fazer passar vergonha diante de estranhos, julgando ridículo uma mulher ter gravidez psicológica. E duas vozes diziam que estavam atrás da porta gravando a conversa.

As vozes começaram a teorizar que eu colocava a louça suja do lado esquerdo da pia e a louça limpa do lado direito por motivo de ideologia política, relacionando a esquerda à sujeira. Então passei a pôr a louça suja do lado direito e a louça limpa do lado esquerdo. Mas eles não ficaram satisfeitos. Teorizaram que eu esfregava palha de aço nas panelas por preconceito “racial” à cor preta dos fundos de panelas velhas.[2]

Quando vi na TV o filme Animais Fantásticos e Onde Habitam (2016) comentei com minha irmã que o pelúcio (niffler) é um “bicho ladrão”. Então as vozes começaram a discutir se eu estava agindo de forma preconceituosa ou se um animal que furta as moedas de um mendigo pode ser chamado de ladrão. Todos concordavam que o bicho atraído por coisas brilhantes não agia mal ao furtar os ricos e a classe média. Algumas vezes eles também propuseram que piscar os olhos durante cenas de filmes, séries e comerciais onde aparecem atores negros seria uma manifestação de racismo. Quando pessoas estão concentradas numa tela é comum aumentar o espaço de tempo entre as piscadas; sendo assim não deixar de piscar por algum tempo seria sinal desrespeitoso de desdém e racismo porque o ator ou atriz de pele negra não recebeu a devida atenção.

No dia 01/09/2018 fui à Carlos Bacelar Clinica fazer um eletroencefalograma. H1, H2, H3 e M1 diziam haver me seguido e falavam muito. Eu os procurei e não achei ninguém que pudesse ser uma daquelas pessoas lá dentro. Conclui que eram vozes sem corpos, alucinações ou espíritos. Então passei a ignorá-los. Na sala de espera da clínica tem uma escada que eu fiquei observando para usar como modelo de desenho. As vozes teorizaram que eu pretendia me masturbar esfregando genitais ao descer pelo corrimão; repetindo as razões que eles deduziram sobre determinado incidente narrado pela minha mãe dias atrás, sobre como minha irmã, quando criança, decidiu brincar de escorregar pelo corrimão duma escada, caiu do alto e foi hospitalizada. (Na verdade naquela época ninguém associava canos à sensualidade, pois não existia pole dance e escorregar por corrimões de escadas era uma brincadeira infantil muito comum). Na sala do exame, as vozes continuaram tecendo teorias sexuais desagradáveis, dizendo que estavam passando esperma na minha cabeça, embora eu soubesse que aquilo era pasta condutora para fixação de eletrodos plugados à máquina de eletroencefalograma.

Ao voltar para casa, minha mãe viu algo no chão e perguntou o que era. Respondi que eram fezes de cachorro. Ela duvidou por causa da cor. Falei que não eram fezes recentes, por isso escureceram e ficaram daquele jeito. Então ela concordou que eram fezes de cachorro. H1 começou a falar que o que eu disse sobre o escurecimento de fezes apodrecidas era preconceito contra a cor preta do cocô. Desde este momento H2, H3 e M1 demonstram estarem demasiadamente aborrecidos com H1, alegando que ele vinha fazendo acusações bobas e estúpidas demais. No início algo em seus argumentos parecia intimidador, porém agora eu sabia que não eram pessoas vivas me perseguindo e tudo que eles discutiam era ridículo. Todas as vozes negativas cessaram de falar de modo contínuo e ininterrupto poucos dias depois, cansados e envergonhados de si mesmos, voltando apenas por breves momentos.

As vezes essas quatro vozes voltam a falar, mas logo param. Em janeiro de 2021 meu pai estacionou o carro em local proibido, em frente a uma garagem, alegando que o prédio estava abandonado. Ele foi à farmácia e deixou-me ali. Então uma caminhonete verde teve dificuldade em manobrar para entrar naquela garagem. Durante este tempo o quarteto falante ressurgiu comentando que chamariam o reboque, etc. Um dia, na última semana de junho de 2021, ouvi H2 e H3 interpretando pessoas na rua falando que meu pai estaria procurando a “chave do banco” para retirar algo de valor, quando na verdade ele estava procurando a chave do carro pois pretendia ir ao banco tirar um extrato. Pensei sobre a vozes: “Sei que são vocês de novo”. E eles pararam de falar.

NOTAS

[1] POPE, Nick; BURROUGHS, John & PENNISTON, Jim. Encounter in Rendlesham Forest: The Inside Story of the World’s Best-Documented UFO Incident. United States, Thomas Dunne Books, 2014. 311p.

[2] Isso foi antes da campanha de boicote e cancelamento da fabricante de produtos de limpeza Bombril, nas redes sociais, em junho de 2020, que obrigou a empresa a retirar a marca de esponja de aço Krespinha do mercado, sob alegações de racismo. Os queixosos afirmaram que o nome do produto remetia aos cabelos crespos e que, na década de 1950, o pacote da referida esponja de aço trazia o desenho de uma criança negra como garota propaganda.


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