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Janaína de Fátima Zdebskyi*
RESENHA: BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1260-1350). Tradução: Igor Salomão Teixeira; revisão técnica: Neri de Barros Almeida.Campinas: Editora Unicamp, 2016.
O livro “Satã herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330)” é uma publicação do ano de 2016, pela Editora da Unicamp de São Paulo, de autoria de Alain Boureau e com tradução para o português por Salomão Teixeira. A obra é composta por 252 páginas e subdividida em prefácio à edição brasileira – escrito por Néri de Barros Almeida -, introdução, um total de sete capítulos, epílogo, bibliografia selecionada e índice onomástico. Para além disso, ao final de cada um dos capítulos o autor apresenta uma rica e detalhada seleção das bibliografias e fontes utilizadas para as discussões e apontamentos que apresenta na obra.
Alain Boureau nasceu em 1946 e de acordo com informações do site oficial da “École des hautes etudes en sciences sociales” é diretor do “Groupe d’anthropologie scolastique” e co-diretor das coleções “Histoire”, “Bibliothèque scolastique” e “Les Belles-Lettres”.
A temática central abordada na obra se refere à questão de que até o século XIII os demônios não representavam um problema de fato para as pessoas, visto que não havia possibilidade de intervenção desses demônios no mundo dos humanos. Depois do século XIII a heresia passa a englobar outras questões como, por exemplo, a possibilidade de pacto e de possessão com os demônios e é esse fator que consiste em alicerce para a caça às bruxas e bruxos no século XV. Essas conclusões gerais são embasadas em uma pesquisa feita por Alain Boureau por meio da análise de documentos da Europa medieval, sendo que sua fonte inicial – apresentada ainda na introdução – é um inquérito sobre a santidade de Tomás de Aquino que se desenvolveu em Nápoles, em 1319.
O autor também aborda outros documentos ao longo do livro, principalmente as bulas elaboradas a partir do pontificado de João XXII (1316-1334), como por exemplo, a bula que foi escrita em 1326 e que ameaça de excomungação aqueles e aquelas que conjurassem demônios por meio da necromancia, ou seja, a produção de objetos que servissem para invocar ou abrigar demônios. Os feitos e a trajetória de João XXII são elementos que embasam toda a obra, visto que para o autor, são esses feitos que protagonizam a construção da ideia dos pactos e possessões, configurando-se enquanto heresia. As ideias de João XXII são respaldadas por uma parcela importante do clero, consultada pelo papa.
Na introdução da obra, Alain Boureau faz importantes explanações sobre os conceitos que utiliza e apresenta a ideia de uma “virada demoníaca” ao afirmar sua hipótese de que o fenômeno de obsessão pelo diabo só aparece na Europa entre 1280 e 1330. Apesar do importante trabalho que o autor realiza com relação aos conceitos e à história das terminologias e suas ressignificações, a obra não apresenta uma definição e diferenciação entre os termos “diabo, demônio e satanás”, visto que esses termos são utilizados no decorrer dos capítulos e podem ter conotações diferentes uns dos outros.
No primeiro capítulo, o autor trata das convicções demonológicas de João XXII, pontuando que as discussões a respeito do demônio no cristianismo têm uma história mais antiga que a chamada demonologia, a qual é uma ciência mais recente e que surge como marco da emergência de uma disciplina, de um saber ou experiência cumulativa que se expressa por meio dos tratados eclesiásticos. Alguns desses tratados e manuais para inquisidores, como o “Martelo das Feiticeiras” ou “Malleus Maleficarum” – primeiro tratado prático e teórico conhecido, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger e traduzido para o português pela Editora Rosa dos Ventos – são apresentados na obra, juntamente com outros documentos elaborados por João XXII. Esses tratados pontuam a forma como os pactos e possessões começaram a aparecer em documentos, configurados como heresias, mesmo que as primeiras inscrições sobre o sabá das bruxas apareçam somente a partir de 1430.
Neste primeiro capítulo o autor retoma a questão das consultas realizadas por João XXII, em 1320, a teólogos e canonistas questionando se pactos e invocações seriam heresias ou apenas sortilégios, demonstrando as intenções desse papa em construir uma legislação nova a respeito das heresias, o que o levou a criar o conceito de feito herético, onde a heresia deixa de constituir-se apenas de pensamentos e opiniões e passa a englobar atos. Esse processo fica explicito com o uso do verbo “hereticar” que traz essa ideia da heresia como uma ação. A narrativa do livro consegue trazer a perspectiva de que os fenômenos discutidos não são puramente teológicos, são também políticos e sociais, considerando, por exemplo, que os interesses do papa em reformular o conceito de heresia estavam ligados ao seu objetivo de banir algumas práticas – na época consideradas como magia erudita -, como a astrologia e a alquimia, visto que essas práticas já estavam sendo utilizadas, inclusive, nas bases do próprio clero.
Fica explicito nas discussões de Alain Boureau que os feitos de João XXII têm um objetivo também político, visto que expressam conflitos internos da igreja católica: João XXII não era bem aceito entre os Franciscanos, aparecendo, inclusive, como um “agente do diabo” em alguns escritos ligados a esse grupo. Em contrapartida João XXII também combatia enfaticamente algumas ideias franciscanas, como o ideal de pobreza e a interpretação que faziam das escrituras bíblicas.
No segundo capítulo, o autor faz uma detalhada descrição a respeito da comissão de teólogos formada por João XXII com o objetivo de discutir quatro questões formuladas por ele próprio para encontrar fundamentos doutrinais para tratar das invocações dos demônios como heresia. Essa comissão é apresentada com detalhes do perfil de cada um de seus membros, bem como as contribuições que eles deram para os objetivos de João XXII. Além disso, neste mesmo capítulo, Alain Boureau descreve diversos exemplos de realizações de pactos com o diabo, bem como formas encontradas para anulação desses pactos.
Durante toda a obra, é possível traçar comparações entre a metodologia e a narrativa adotada por Alain Boureau com o método de análise documental de seu contemporâneo Carlo Ginzburg. A proximidade entre esses dois autores fica explicita quando Boureau cita Ginzburg para fundamentar a tese de que as discussões de João XXII também deram suporte à ideia de “complô”: ou seja, a constituição de instituições de confiança ou solidariedade mútua, tema já discutido por Ginzburg em “História Noturna”, livro no qual o autor visa fazer uma leitura da construção ocidental da bruxaria por meio dos complôs. Além de ser uma possível referencia para Alain Boureau em suas pesquisas e na adoção de metodologias, é significativo contextualizar a obra de Ginzburg pelo fato de ser uma referência na área de estudos sobre religião, micro história, análise de processos inquisitoriais e em diálogos com o campo da antropologia, sendo que esses campos do saber permeiam toda a obra “Satã Herético”.
O quarto capítulo discute a respeito dos agentes receptores do demônio e, também, cita novos documentos como, por exemplo, o considerado primeiro grande texto de demonologia escolástica, provavelmente escrito em 1272, que traz discussões sobre os demônios aludidas por Tomás de Aquino em seu tratado sobre “O Mal”. Esses artigos abordam a origem do mal nos demônios e de sua capacidade de agência sobre o corpo e o intelecto humano. Além disso, Boureau também levanta diversos questionamentos filosóficos sobre a natureza dos demônios, inclusive sobre sua corporeidade, sendo que a tese da incorporeidade seria a opinião mais comum na época.
O quinto capítulo trata da relação de santos e demônios nos casos de canonização, como nos relatos em que os santos teriam o papel de salvar pessoas que foram possuídas ou que sofreram com a agência dos demônios. Esses processos de canonização apresentados pelo autor podem ser uma rica fonte para o estudo da demonologia na Europa medieval. Neste capítulo o autor também problematiza as semelhanças e confusões que se faziam entre os quadros de loucura e possessão.
No sexto capítulo, o autor reafirma e fundamenta a ideia tratada durante toda a obra, de que só a partir do século XIII está presente a ideia de que os demônios podem agir sobre o mundo humano, possuindo ou estabelecendo pactos com as pessoas. Neste capítulo o autor também faz uma interessante abordagem, inclusive trazendo discussões filosóficas, a respeito dos “dormentes” ou sonâmbulos. A figura desses dormentes é comparada à figura do possesso por estar em posição de passividade. Porém, a questão principal desse debate é se esse dormente teria ou não responsabilidade por seus atos. Nesse sentido, a figura do sonâmbulo também passa por um processo de satanização no século XIII e, então, constrói-se um laço entre sonambulismo e bruxaria. Dois séculos depois, as discussões sobre o sabá das bruxas vai apresentar aspectos como o movimento noturno, o desdobramento da personalidade e a possessão diabólica.
Também é importante o contraponto que o autor faz com a discussão sobre pactos diabólicos ao lançar a ideia de “pactos divinos”, representados, por exemplo, pelo batismo como sendo um sinal de pertencimento cristão ou de consagração a Deus, o que afastaria os demônios.
Ao encerrar esse capítulo Alain Boureau também levanta importantes discussões sobre o debate sobre a psicologia e a filosofia da “personalidade humana”. Apresenta as divergências ocorridas no século XIII sobre se o humano teria uma única personalidade essencial e selada por Deus, ou seja, uma forma substancial única – ideia defendida pelos domistas -, ou se teria múltiplas personalidades, conforme defendiam os neo-agostinianos. Era mais consensual, no período, a ideia de que algumas pessoas teriam uma personalidade dupla ou múltipla por exceção sobrenatural.
No sétimo último capítulo, Boureau retoma o debate sobre a ideia de “possessão divina” e suas diferentes formas, tomando como exemplo o caso de São Francisco de Assis que teria adquirido, em sua carne, durante uma meditação, as marcas das chagas de Cristo. Esse capítulo também levanta o questionamento, a partir do caso de São Francisco, sobre o poder do pensamento, da imaginação e dos sentimentos para gerar os sintomas das chagas de Cristo.
Neste último capítulo, o autor apresenta uma nova categoria de documento que chama de “autobiográfica mística”, utilizando como exemplo “O Memorial” de Angela Foligno, quem seria a fundadora de “uma prática sistemática de subjetividade organizada em um tipo de texto”. A obra da autora consiste de uma confissão, provavelmente ditada ao Frade Arnaldo e redigidas entre 1300 e 1310. Esse Frade, segundo Boureau, escreveu os relatos de Angela justapondo sua própria voz e suas percepções. Penso que essa discussão gera elementos para as construções atuais de pesquisas que têm como base as biografias ou que visam produzi-las, considerando que, de acordo com relato da própria Angela, o frade Arnaldo não conseguia refletir na sua escrita aquilo que era precioso para ela. Afirmava que as palavras do frade lembravam o que ela dizia, mas, eram secas e não transmitiam o sentido que ela queria transmitir.
No epílogo, o autor afirma que é por volta de 1320 que as narrativas de possessão e invocação se tornaram criveis e significativas. É nesse sentido que a caça às bruxas teve um aspecto de continuidade da demonologia escolástica.
O livro “Satã herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330)” dá conta de abordar um longo período da Idade Média, apresenta a etimologia dos conceitos que aborda, principalmente o de heresia. Analisa as transformações sobre a noção de possessão e pacto com o demônio em seu viés teológico, mas, também político. Além disso, a obra aponta como as repercussões que essas mudanças trouxeram no período que consideramos como Idade Moderna como, por exemplo, as práticas de caça às bruxas e bruxos na Europa.
Além disso, a obra de Alain Boureau foi traduzida para o português muito recentemente – em 2016 –, e cita uma grande diversidade de fontes primárias. Isso pode servir como um gatilho para incentivar novas pesquisas que tenham por tema a questão da heresia, da figura do diabo, da inquisição, do papel da igreja católica na construção do imaginário popular e dos valores da sociedade, bem como dos mais diversos fenômenos que permeiam a Idade Média e que ainda não são largamente debatidos por uma parcela ampla de pesquisadores brasileiros. Submetida em: 23-01-2017 Aceita em: 19-05-2017
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