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“O Universo é um borrão gigante de Rorschach”
A frase é de Alan Watts, um escritor doidão responsável por popularizar a filosofia zen nos EUA, mas serve perfeitamente para sintetizar todo o pensamento de Robert Anton Wilson, que via o mundo como uma divertida e caótica obra de arte incompreensível. Em sua busca por diversão e conhecimento, RAW conseguiu unir de forma única psicologia, anarquia, religião, magia e física quântica; num coquetel que, apesar de derreter o cérebro de qualquer cidadão, faz pensar — e muito.
Boa parte de suas pesquisas ele iniciou por conta própria, numa pequena propriedade afastada das cidades, onde experimentou mescalina pela primeira vez e teve visões de elementais verdes. É o tipo de experiência que místicos como Aleister Crowley e George Gurdjieff classificariam como “auto-iniciação”. Pouco tempo depois, seus três filhos — com idades entre 5 e 15 anos — viram seres similares e óvnis nas redondezas da propriedade, o que disparou em Robert uma série de insights fundamentais para a jornada mental descrita em diversas de suas obras — principalmente em sua autobiografia: O Gatilho Cósmico. O resultado é um livro que mistura pesquisas sobre os segredos dos Illuminati, com experiências com drogas psicodélicas, expansão da consciência, xamanismo e contato com extraterrestres da estrela de Sírius.
Depois de receber uma proposta irrecusável, ele volta para a vida urbana e inicia seu trabalho como editor da Playboy, que mudaria sua vida completamente. Na revista de Heffner, ele teria contato com tipos obscuros ao ser escalado para cuidar do fórum da revista. Teorias da conspiração bizarras, esquizofrenia aguda e religiões impensáveis eram rotinas nas cartas recebidas por ele e seu amigo de redação Robert Shea. As correspondências mais loucas e absurdas foram selecionadas pela dupla para a composição de uma obra-prima: Illluminatus! Trilogy, um catatau em três volumes que sintetiza todo o zeitgeist contracultural fantástico do século passado. No dia da estreia de uma adaptação teatral da trilogia, patrocinada pela Coroa Britânica, RAW entendeu a camada realista por trás da obra: Jim Jones, fundador do Templo dos Povos, comandou um suicídio coletivo que ceifou a vida de 918 seguidores dele, num ritual similar (e absurdo, imaginava RAW) ao descrito por Illuminatus! em um de seus capítulos.
Mas se as obras ficcionais de RAW — Illuminatus! seria sucedida por outra trilogia chamada Schrödinger’s Cat, focada na interpretação de Wilson da Física Quântica — o tornaram uma figura central entre os romancistas americanos, foi com seus trabalhos de não-ficção e acadêmicos que ele se tornou peça única entre as grandes cabeças da história recente. Em sua obra fundamental, Prometeus Rising, RAW desmonta sua própria cabeça e suas teorias acerca de seu campo acadêmico: a Psicologia. Os que não sacaram as ideias ali presentes, puderam ainda ler uma espécie de manual do iniciante a psicologia avançada, chamado Psicologia Quântica e escrito por Robert anos depois. São nesses dois livros que o leitor tem acesso a teoria dos Oito Circuitos Cerebrais, que diz que somos prisioneiros de nossos instintos herdados dos répteis e mamíferos. Cabe a cada um utilizar os circuitos cerebrais mais desenvolvidos e ajudar na evolução mundial.
As amizades de RAW contribuíam com a inteligência dele. O cara era amigo de boa parte das mentes mais loucas e aceleradas da década de 1960. O psicólogo Timothy Leary — de quem herdou a Teoria dos Oito Circuitos Cerebrais -, Alan Watts — que o ensinou sobre o Zen Budismo -, o escritor William Burroughs — que viralizou pra ele o enigma do número 23, após relatar uma série de coincidências pra lá de assustadoras -, o físico Jack Sarfatti, além de Kerry Thornley — um dos fundadores da religião Discordianista e companheiro de quarto de Lee Harvey Oswald, acusado do assassinato de Kennedy (conspiração pouca é bobagem!). Quando não era amigo pessoal, mantinha contato, caso de cientistas igualmente fundamentais para a Psicologia, como o tcheco Stanislav Grof e o americano John C. Lilly. Além disso, era influenciado por totens filosóficos e científicos do passado — Nietzsche, Alfred Korzybski, responsável pela criação da Semântica Geral, o escritor James Joyce, o físico Niels Bohr e o escritor de realismo fantástico Charles Fort.
Após balançar o cenário das religiões se tornando Papa do Discordianismo — bom, qualquer um que aceita Éris como Deusa vira papa, mas isso é outro assunto — e influenciando metade dos malucos com inclinações budistas dos EUA, RAW mirou seus olhos para o crescente fundamentalismo científico ao escrever A Nova Inquisição, obra com um jeitão mais acadêmico, porém recheada do bom humor subversivo típico de Wilson. O livro mistura um apanhado de fatos e notícias insólitas num estilo que ia fazer Charles Fort sorrir — chuvas de sapos e um pé-grande são só um aperitivo -, somado a um levantamento histórico de grupos científicos nada amistosos a chegada ideias novas. De lá saíram relatos como a perseguição sistemática ao psiquiatra e psicanalista austríaco-americano Wilhelm Reich, que culminou com uma fogueira que destruiu todo o seu trabalho — Reich morreria de ataque cardíaco após passar oito meses encarcerado. RAW veria o mesmo acontecer ao amigo Timothy Leary, perseguido mundo afora pelo governo americano por suas pesquisas com psicodélicos. “Substâncias psicodélicas fazem parte da primeira proibição registrada. Lembra-se do Jardim do Éden e a Árvore da Ciência do Bem e do Mal?!”, disse Leary sobre o motivo de sua perseguição.
“A certeza absoluta é o primeiro indício de morte cerebral”, afirma ele na abertura de Psicologia Quântica, uma cutucada na mente dos que gostam de pisar em cima das ideias dos outros. Em entrevista a revista maconheira High Times, RAW explicou que seu modo de pensar consiste basicamente de “nunca olhar para qualquer modelo ou mapa do universo com crença de 100% ou negação de 100%. Seguindo Korzybski, eu coloco as coisas em probabilidades, não em certezas… Minha única originalidade reside em aplicar esta atitude zetética fora do âmbito da mais complexa das ciências complexas, a Física, em ciências menos complexas e então nas não-ciências como a Política, Ideologia, vereditos do júri e, é claro, na teoria da conspiração”.
Esse relativismo intelectual levou muitos a classificarem a obra dele de mera “bagunça mental”, uma forma simplória de destruir o que existe de verdadeiro sem por nada no lugar. Mas qualquer um que classifica a obra dele dessa forma não chegou ao cerne do pensamento de Wilson. Na introdução de O Gatilho Cósmico ele deixa claro que uma crença serve unicamente como um gatilho para estados mentais superiores, ou como uma forma de “escapar da loucura”. Basta que saibamos que uma crença não passa disso: uma crença. A linguagem também recebeu atenção especial de seus trabalhos, fruto da influência de Alfred Korzybski, que definiu como a linguagem molda nossa forma de pensar. Para exemplificar e separar a linguagem do “mundo exterior”, Korzybski criou a expressão “O mapa não é o território”, um mantra repetido atualmente sem cessar em qualquer turma de Programação Neurolinguística ou de Psicologia. O que está na cabeça é um “mapa mental”, um “túnel-realidade” que serve como uma programação para interagirmos com o ambiente com sucesso. “Quem é o mestre que faz a grama verde?”, questiona um enigma zen budista — nossos cérebros, dirão os mais espertos.
Uma versão hardcore dessa ‘ditadura da linguagem’ foi criada por Grant Morrison em Os Invisíveis, quando King Mob (um avatar do próprio Morrison) está sendo torturado por seus inimigos com uma droga chamada Chave 17. Basta uma palavra escrita no papel pelo torturador para Mob ver aquilo como real. Se ele lia ‘dedos dilacerados’ em uma folha, ele veria seus próprios dedos caindo aos pedaços. Morrison, assim como RAW e Burroughs, vê a forma como as pessoas encaram a linguagem como um veneno reducionista, que diminui as possibilidades de amplificar a mente delas. Libertar-se dessas amarras internas e sociais é a principal missão dos subversivos, o que naturalmente traz consequências. “A Desobediência foi a Virtude original do homem”, disse, citando Oscar Wilde, ao mesmo tempo em que reconhece que o conflito entre pensamentos opostos é a chave para a evolução. “Já viu a harmonia dos insetos? E depois pense em como eles não evoluem nada há milênios”, completa.
Mesmo com esse realismo racional, RAW era otimista e confiava que o trabalho dele e de seus amigos e comparsas seria a chave para uma evolução do pensamento e nas relações humanas. Bom, não chegou ao ponto de mudar o mundo, mas transformou diversas mentes por aí, que transformam mais mentes a cada dia. A minha foi uma delas.
Lembro que uns amigos metidos a místicos compraram exemplares do Livro de São Cipriano. Eu resolvi entrar na onda de aprender magia e ser mais moderno e anarquista — comprei todos os livros que achei do tal de Robert Anton Wilson, que tinha escrito um texto que li sobre as técnicas de sigilos mágicos de Austin Osman Spare, usados pelos integrantes de Os Invisíveis. Eu não virei mago depois de ler os quatro livros que comprei dele, mas com certeza minha cuca saiu transformada da experiência. Mesmo achando o mundo ainda mais confuso do que antes, agora creio que estou no caminho certo da libertação mental — um processo interminável, mas extremamente divertido e desafiador.
Hoje o mundo carece de mentes brilhantes como a dele, capazes de misturar assuntos tão díspares como sociedades secretas, magia do caos (RAW era integrante dos Iluminados de Thanateros, uma ordem de Magia do Caos, a qual também pertence Grant Morrison), cultura cyberpunk (ele também colaborou com a revista Mondo 2000, obrigatória para todos que viveram a ascensão da cultura digital), parapsicologia, realismo fantástico, física e mais um monte de coisas que só os cérebros mais acordados manjam minimamente bem.
RAW morreu em 11 de janeiro de 2007, de complicações pós-poliomielite. Para voltar ao mundo, RAW só depende da ciência: a cabeça dele foi separada do corpo e congelada — Timothy Leary está na mesma situação -, na esperança de um dia algum cientista igualmente insano criar uma forma de fazer backup de todas as informações contidas no cérebro dele.
De qualquer forma, o mundo já foi violentamente impactado pela passagem de Robert Anton Wilson. Insanos como ele fazem falta.
[Texto originalmente publicado no blog do André Forastieri, em 13 de janeiro de 2012]
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2 respostas em “Robert Anton Wilson”
[…] esforços de pesquisadores de conspiração sinceros, e ele até acusa o autor deste ensaio [eu, R.A.W.] de envolvimento nessa conspiração […]
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