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Além do Materialismo Espiritual

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Chögyam Trungpa

Tradução por Octavio Mendes Cajado
Revisão de conteúdo e forma a cargo do Grupo de Estudos do Dharma de São Paulo

“O percurso correto do caminho espiritual é um processo muito sutil e não alguma coisa a que possamos atirar-nos ingenuamente. Existem numerosos desvios que levam a uma distorção egocentrada da espiritualidade; podemos iludir- nos, imaginando que estamos nos desenvolvendo espiritualmente quando, na verdade, não fazemos senão fortalecer nosso egocentrismo por meio de técnicas espirituais. A essa distorção básica pode dar-se o nome de materialismo espiritual.”

Além do materialismo espiritual é a transcrição de duas séries de palestras dadas por Trungpa Rinpoche em 1970-
71. “As palestras discutem, em primeiro lugar, as várias maneiras pelas quais as pessoas se envolvem com o materialismo espiritual, as muitas formas de auto-ilusão em que os aspirantes podem cair. Depois desse passeio pelos desvios ao longo do trajeto, discutimos o verdadeiro caminho espiritual, em seus contornos mais amplos.

“O que se apresenta aqui é um enfoque budista clássico — não no sentido formal, mas no sentido de mostrar o cerne do enfoque budista da espiritualidade. Apesar de não ser teísta, o caminho budista não contradiz as disciplinas teístas. As diferenças entre os caminhos são mais uma questão de ênfase e de método. Os problemas básicos do materialismo espiritual são comuns a todas as disciplinas espirituais.”

Para Chokyi-lodrö, o Marpa, Pai da linhagem Kagyu

Biografia do Autor

Chogyam Trungpa, Rinpoche, fundou várias comunidades contemplativas budistas na América do Norte, sendo as duas maiores Karma Dzong, em Boulder, Colorado, e Karmê Chòling, em Barnet, Vermont. Tambe’m fundou uma comunidade terapêutica experimental e criou o Instituto Naropa, entidade acadêmica na qual estudantes podem experimentar a interação entre disciplinas budistas e ocidentais. Sendo diretor e principal instrutor desses centros, representa um amigo e mestre de meditação para inúmeros alunos.

Como a décima primeira encamação do Trungpa Tulku, foi educado desde a infância, para ser o abade superior dos mosteiros Surmang, no leste do Tibete. Após um longo e árduo treinamento, foi iniciado e entronizado como herdeiro das linhagens de Milarepa e Padmasambhava. Assim, concluiu seus estudos meditativos e intelectuais nas tradições Kagyü e Nyingma.

Obrigado a deixar seu país em virtude da invasão do Tibete pelos comunistas chineses em 1959, Trungpa passou três anos na índia, indo depois para a Inglaterra com a finalidade de estudar religião comparada e Psicologia, na Universidade de Oxford. Após quatro anos em Oxford, fundou o primeiro centro budista tibetano de estudos e meditação no hemisfério ocidental — Samyeling, na Escócia. Em 1970, visitou a América do Norte e, em resposta ao interesse extraordinário despertado pelos seus ensinamentos, decidiu fixar residência nos Estados Unidos.

Lecionou na Universidade do Colorado e tem viajado largamente pelos Estados Unidos e Canadá, conduzindo seminários e pronunciando conferências. É autor de uma autobiografia, de dois livros de poesia e outras obras, entre os quais The Myth o f Freedom e Shambala: The Sacred Path of the Warrior.

O leitor que desejar maiores informações sobre os centros de Trungpa pode escrever, em inglês, para: Vajradhatu, 1345 Spruce St., Boulder, Colorado, 80302 U.S.A.; ou, em português, para o Grupo de Estudos do Dharma, Caixa Postal 8.312, 01051 São Paulo, SP, Brasil.

Introdução

A série de palestras aqui contida foi proferida em Boulder, Colorado, no outono de 1970 e na primavera de 1971. Naquela ocasião, estávamos formando Karma Dzong, nosso centro de meditação em Boulder. Embora a maioria de meus alunos fossem sinceros em sua aspiração de seguir o caminho espiritual, traziam para o caminho uma grande dose de confusão, mal-entendidos e expectativas. Desse modo, julguei necessário apresentar a meus alunos um apanhado geral do caminho, com-algumas advertências acerca dos perigos que poderiam encontrar ao percorrê-lo.

Parece agora que a publicação dessas palestras poderá ser útil àqueles que se interessam por disciplinas espirituais. O percurso correto do caminho espiritual é um processo muito sutil e não alguma coisa a que possamos atirar-nos ingenuamente. Existem numerosos desvios que levam a uma distorção egocentrada da espiritualidade; podemos iludir- nos imaginando que estamos nos desenvolvendo espiritualmente quando, na verdade, não fazemos senão fortalecer nosso egocentrismo por meio de técnicas espirituais. A essa distorção básica pode dar-se o nome de materialismo espiritual.

As palestras discutem, em primeiro lugar, as várias maneiras pelas quais as pessoas se envolvem com o materialismo espiritual, as muitas formas de auto-ilusão em que os aspirantes podem cair. Depois desse passeio pelos desvios ao longo do trajeto, discutimos o verdadeiro caminho espiritual em seus contornos mais amplos.

O que se apresenta aqui é um enfoque budista clássico — não no sentido formal, mas no sentido de mostrar o cerne do enfoque budista da espiritualidade. Apesar de não ser teísta, o caminho budista não contradiz as disciplinas teístas. As diferenças entre os caminhos são mais uma questão de ênfase e de método. Os problemas básicos do materialismo espiritual são comuns a todas as disciplinas espiri tuais. O enfoque budista começa com a nossa confusão e o nosso, sofrimento, e atua no sentido de destrinchar sua origem. O enfoque teísta começa com a riqueza de Deus e atua no sentido de elevar a consciência de modo que ela experimente a presença de Deus. Todavia, dado que os obstáculos ao relacionamento com Deus são as nossas confusões e negatividades, o enfoque teísta também precisa lidar com elas. O orgulho espiritual, por exemplo, causa tantos problemas nas disciplinas teístas quanto no Budismo.

De acordo com a tradição budista, o caminho espiritual é o processo de atravessar e superar a nossa confusão, de descobrir o estado desperto da mente. Quando este estado se encontra entulhado pelo ego e pela paranóia que o acompanha, assume o caráter de um instinto subliminar. Dessa forma, não se trata de construir o estado desperto da mente, mas sim de queimar as confusões que o obstruem. No processo de consumir as confusões, descobrimos a iluminação. Se o processo fosse outro, o estado desperto da mente seria um produto dependente de causa e efeito e, assim, passível de.dissolução. Tudo o que é criado, mais cedo ou mais tarde, tem de morrer. Se a iluminação fosse criada dessa maneira, haveria sempre a possibilidade de o ego reafirmar-se, provocando um retomo ao estado de confusão. A iluminação é permanente porque não a produzimos; apenas a descobrimos. Na tradição budista, a analogia do Sol que surge por trás das nuvens é freqüentemente empregada para explicar o descobrimento da iluminação. Na prática da meditação, removemos a confusão do ego a fim de vislumbrar o estado desperto. A ausência da ignorância, da sensação de opressão, da paranóia, descerra uma visão fantástica da vida. Descobrimos um modo diferente de ser.

O cerne da confusão é o fato de o homem ter um senso de ego que lhe parece contínuo e sólido. Quando ocorre um pensamento, uma emoção, ou um evento, há o sentido de que alguém tem consciência do que está acontecendo. Você sente que você está lendo estas palavras. Esse senso do eu, na realidade, é um evento transitório, .descontínuo, que em nossa confusão parece perfeitamente estável e contínuo. Como tomamos por real a nossa visão confusa, lutamos para manter e incrementar esse eu sólido. Tentamos alimentá-lo com prazeres e escudá-lo contra a dor. A experiência ameaça continuamente revelar-nos nossa transitoriedade, de modo que lutamos continuamente para encobrir qualquer possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condição. “Mas”, poderíamos perguntar, “se a nossa verdadeira condição é um estado desperto, por que nos ocupamos tanto em evitar que tomemos consciência disso?” Porque estamos tão imersos em nossa confusa visão do mundo que consideramos real o único mundo possível. Essa luta por manter o senso de um eu sólido e contínuo é obra do ego.

O ego, contudo, consegue apenas sucesso parcial em sua tentativa de defender-nos do sofrimento. É a insatisfação que vem junto com a luta do ego que nos inspira a examinar o que estamos fazendo. E, uma vez que sempre existem hiatos na consciência que temos de nós mesmos, torna-se possível algum discernimento.

Uma interessante metáfora empregada no Budismo tibetano para descrever o funcionamento do ego é a dos ‘Três Senhores do Materialismo”: o “Senhor da Forma”, o “Senhor da Fala”, e o “Senhor da Mente”. Na discussão que se segue sobre os Três Senhores, as palavras “materialismo” e “neurótico” dizem respeito à ação do ego.

O Senhor da Forma refere-se à perseguição neurótica do conforto físico, da segurança e do prazer. Nossa sociedade altamente organizada e tecnológica reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico de modo a nos

salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisíveis da vida. Elevadores acionados por botões de comando, carne empacotada, ar condicionado, privadas com descarga de água, velórios particulares, planos de aposentadoria, produção em massa, satélites meteorológicos, máquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregos das nove às cinco, televisão — tudo são tentativas de criar um mundo controlável, seguro, previsível e prazeroso.

O Senhor da Forma não significa as situações de vida em si que criamos para serem fisicamente ricas e seguras. Refere-se, antes, à preocupação neurótica que nos impele a criá-las, a tentar controlar a Natureza. O ego ambiciona assegurar-se e entreter-se, buscando evitar toda e qualquer irritação. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e propriedades, tememos mudanças ou forçamos mudanças, tentamos criar um ninho ou um playground.

O Senhor da Fala tem a ver com o emprego do intelecto no relacionamento com o mundo. Adotamos grupos de categorias que servem como alavancas, como meios para manipular fenômenos. Os produtos mais plenamente desenvolvidos dessa tendência sâo as ideologias, os sistemas de ide’ias que racionalizam, justificam e santificam nossas vidas. Nacionalismo, comunismo, existencialismo, Cristianismo, Budismo — todos nos proporcionam identidades, regras de ação e interpretações de como e por que as coisas acontecem como acontecem.

Aqui, novamente, o emprego do intelecto não é em si mesmo o Senhor da Fala. O Senhor da Fala indica a inclinação do ego a interpretar o que quer que seja ameaçador ou irritante de modo a neutralizar a ameaça ou transformá-la em algo “positivo” do ponto de vista do ego. O Senhor da Fala refere-se ao uso de conceitos como filtros que nos resguardam de uma percepção direta do que é. Os conceitos são levados demasiado a sério; são utilizados como instrumentos para solidificar o nosso mundo e a nós mesmos. Se existe um mundo com coisas a que se possa dar nomes, então o “eu”, como uma das coisas nomeáveis, também existe. Nosso desejo é não deixar espaço algum para dúvidas ameaçadoras, para a incerteza ou a confusão.

O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência em conservar a percepção de si mesma. O Senhor da Mente impera quando usamos disciplinas espirituais e psicológicas como meios de conservar a consciência que temos de nós mesmos, de nos agarrar ao senso de eu. Drogas, ioga, orações, meditação, transes, várias psicoterapias — tudo pode ser usado com essa finalidade.

O ego é capaz de converter tudo para seu uso próprio, inclusive a espiritualidade. Se aprendemos, por exemplo, uma técnica de meditação dentro de uma prática espiritual particularmente benéfica, o ego se põe, primeiro, a tratá-la como um objeto de fascinação e, depois, a examiná-la. Por fim, visto que o ego é sólido apenas na aparência e não pode, de fato, absorver coisa alguma; só é capaz de arremedar. Em tais circunstâncias, ele procura examinar e imitar a prática da meditação e o modo de vida meditativo. Depois de aprendermos todos os truques e todas as respostas do jogo espiritual, tentamos imitar automaticamente a espiritualidade, já que o envolvimento verdadeiro exigiria uma completa eliminação do ego, e a última coisa que desejamos fazer é renunciar completamente a ele. Entretanto, não podemos experimentar aquilo que estamos tentando imitar; podemos apenas encontrar alguma área dentro dos limites do ego que pareça ser a mesma coisa. O ego traduz tudo em termos do seu próprio estado de saúde, de suas qualidades intrínsecas. Experimenta um sentido de grande realização e excitação quando consegue criar um modelo desse tipo. Finalmente criou um feito tangível, uma confirmação de sua própria individualidade.

Se formos bem-sucedidos em manter a consciência que temos de nós mesmos através de técnicas espirituais, o desenvolvimento espiritual autêntico será altamente improvável. Nossos hábitos mentais se tomam tão fortes que fica difícil penetrá-los. Podemos até chegar ao desenvolvimento totalmente demoníaco da completa “Egoidade”.

Embora o Senhor da Mente detenha o maior poder para subverter a espiritualidade, os outros dois Senhores podem também reger a prática espiritual. O retiro no seio da Natureza, o isolamento, a gente simples, sossegada, digna — tudo pode ser meio para nos proteger da irritação, tudo pode ser expressão do Senhor da Forma. Ou talvez a religião nos forneça uma racionalização para criarmos um ninho seguro, um lar singelo mas confortável, para conseguirmos um companheiro afável e um emprego estável e fácil.

O Senhor da Fala também se envolve com a prática espiritual. Ao seguir um caminho espiritual, podemos substituir nossas crenças anteriores por uma nova ideologia religiosa, continuando, porém, a usá-la da antiga maneira neurótica. Por mais sublimes que sejam nossas idéias, se as tomamos com excessiva seriedade e as utilizamos para manter nosso ego, ainda assim estaremos sendo governados pelo Senhor da Fala.

Se examinarmos nossos atos, quase todos concordaremos, provavelmente, em que somos governados por um ou mais dos Três Senhores. “Mas”, poderíamos perguntar, “e daí? Isto é simplesmente uma descrição da condição humana. Sim, sabemos que a tecnologia não consegue pôr-nos a salvo de guerras, crimes, doenças, insegurança econômica, trabalho laborioso, velhice e morte; tampouco nossas ideologias nos resguardam da dúvida, incerteza, confusão e desorientação; nem podem as nossas terapias proteger-nos da dissolução dos altos estados de consciência que viermos temporariamente a alcançar ou da desilusão e angústia daí decorrentes. Mas que outra coisa podemos fazer? Os Três Senhores parecem poderosos demais para serem derrubados e não sabemos com que poderíamos substituí-los.”

Perturbado por essas indagações, o Buda examinou o processo pelo qual os Três Senhores governam. Investigou por que nossas mentes os seguem e se não havia um outro caminho. Descobriu que os Três Senhores nos seduzem criando um mito fundamental: o de que somos seres concretos. Todavia, o mito, em última análise, é falso, uma imensa burla, uma fraude gigantesca, a raiz do nosso sofrimento. Para fazer essa descoberta, ele precisou romper as defesas muito complexas erguidas pelos Três Senhores, com o fim de impedir que seus súditos descobrissem o engano fundamental que é a origem do poder deles. Não poderemos, de maneira alguma, livrar-nos do domínio dos Três Senhores a menos que nós, também, cortemos e atravessemos, camada por camada, as suas complexas defesas.

As defesas dos Senhores são criadas com material das nossas mentes, que eles utilizam para preservar o mito básico da solidez. A fim de enxergar por nós mesmos como este processo funciona, precisamos examinar nossa própria experiência. “Mas como,” podemos perguntar, “haveremos de conduzir este exame ? Que método ou instrumento vamos usar?” O método descoberto pelo Buda foi a meditação. Ele verificou que lutar para encontrar respostas não surtia efeito. Só quando havia brechas na sua luta é que lhe acudiam discernimentos. Começou a dar-se conta de que existia dentro de si uma qualidade sadia e desperta que só se manifestava na ausência de luta. Por isso, a prática da meditação implica “deixar ser”.

Tem havido uma série de idéias errôneas acerca da meditação. Algumas pessoas a consideram um estado mental semelhante a um transe. Outras pensam nela em termos de treinamento, no sentido de ginástica mental. A meditação, contudo, não é nenhuma dessas coisas, embora lide com estados mentais neuróticos. Não é difícil nem impossível lidar com tais estados. Eles têm energia, pressa e um certo padrão. A prática da meditação implica deixar ser — uma tentativa de acompanhar o padrão, uma tentativa de acompanhar a energia e a velocidade. Dessa forma, aprendemos como lidar com esses fatores, como relacionar-nos com eles, não no sentido de fazê-los amadurecer como gostaríamos, mas no sentido de conhecê-los como são e de trabalhar com o seu padrão.

Há uma história sobre o Buda em que se conta como ele, de uma feita, transmitiu ensinamento a um famoso tocador de citara que desejava estudar meditação. Perguntou o músico: “Devo controlar minha mente ou devo deixá-la completamente solta?” O Buda respondeu: “Visto que você é um grande músico, diga-me como afinaria as cordas do seu instrumento.” Disse o músico: “Eu não as deixaria ficar nem demasiado retesadas nem demasiado frouxas.” “Da mesma forma,” acudiu o Buda, “na sua prática da meditação você não deve impor nada com demasiada força à sua mente, nem deve permitir que fique ao leu.” Eis aí o ensinamento de como deixar a mente ser de um modo bastante aberto, de como sentir o fluxo da energia sem tentar sujeitá-lo e sem deixar que ele se descontrole, de como acompanhar o padrão da energia da mente. Essa é a prática da meditação.

Tal prática se faz necessária, via de regra, porque o padrão do nosso pensamento, o nosso modo conceitualizado de conduzir a vida, ou é demasiado manipulativo, impondo-se ao mundo, ou completamente desgovernado e sem controle. Por conseguinte, nossa prática da meditação precisa começar com a camada mais superficial do ego, com os pensamentos discursivos que estão sempre a atravessar-nos a mente, com a nossa tagarelice mental. Os Senhores empregam o pensamento discursivo como a sua primeira linha de defesa, como peões, em seu esforço para iludir-nos. Quanto mais geramos pensamentos, tanto mais ocupados nos tornamos mentalmente e tanto mais nos convencemos da nossa existência. Desse modo, os Senhores estão constantemente tentando ativar esses pensamentos, tentando criar uma constante sobreposição de pensamentos, para que nada mais se possa ver além deles. Na verdadeira meditação nío existe a ambição de suscitar pensamentos, e tampouco existe a ambição de suprimi-los. Permite-se apenas que ocorram espontaneamente e se tomem a expressão de uma sanidade básica. Eles se tomam a expressão da precisão e da clareza do estado desperto da mente.

Se for vazada a sua estratégia de estar sempre criando pensamentos sobrepostos, os Senhores, então, agitam emoções para distrair-nos. A qualidade excitante, colorida e dramática das emoções nos prende a atenção como se estivéssemos assistindo a um filme absorvente. Na prática da meditação não encorajamos as emoções nem as reprimimos. Vendo-as com clareza, deixando que sejam como são, não mais permitimos que sirvam de meios para nos entreter e distrair. Dessa maneira, elas se tomam a energia inexaurível que executa a ação sem ego.

Na ausência de pensamentos e emoções, os Senhores introduzem uma arma ainda mais poderosa, os conceitos. A rotulação dos fenômenos cria a sensação de um mundo sólido e definido de “coisas”. Um mundo estável reassegura que somos, igualmente, uma coisa sólida e contínua. O mundo existe e, portanto, eu, que o percebo, também existo. A meditação implica ver a transparência dos conceitos, de sorte que a rotulação já não serve como meio de solidificar o nosso mundo e a nossa imagem do eu. A rotulação passa a ser, simples mente, ato de discriminação. Os Senhores ainda têm outros mecanismos de defesa, mas seria por demais complicado discuti-los no presente contexto.

Mediante o exame dos seus próprios pensamentos, emoções, conceitos e demais atividades mentais, o Buda descobriu que não precisamos lutar para provar nessa existência, não precisamos ficar sujeitos ao jugo dos Três Senhores do Materialismo. Não há necessidade de lutar para sermos livres; a ausência de luta, em si mesma, é liberdade. Este estado desprovido de ego é a realização da Natureza Búdica. O processo de transformar o material da mente para

que deixe de ser expressão da ambição do ego e passe a ser, por meio da prática da meditação, expressão da sanidade básica e da iluminação — eis o que poderíamos chamar de verdadeiro caminho espiritual.

Materialismo Espiritual

Estamos aqui para aprender um pouco sobre espiritualidade. Eu confio na qualidade autêntica desta busca, mas é preciso questionar sua natureza. O problema é que o ego consegue transformar todas as coisas visando ao seu uso próprio, inclusive a espiritualidade. O ego está constantemente tentando adquirir e aplicar os ensinamentos da espiritualidade em benefício próprio. Os ensinamentos são tratados como uma coisa externa, externa a “mim”, uma filosofia que procuramos copiar. Na realidade, não desejamos identificar-nos com os ensinamentos ou vir a ser os ensinamentos. Assim, quando o nosso mestre fala em renúncia do ego, tentamos imitar essa renúncia. Cumprimos as formalidades, fazemos os gestos apropriados mas, na verdade, não queremos sacrificar parte alguma do nosso modo de vida. Tomamo-nos atores habilidosos e, ao mesmo tempo que brincamos de surdos-mudos com o verdadeiro significado dos ensinamentos, encontramos algum conforto fingindo seguir o caminho.

Sempre que começamos a sentir qualquer discrepância ou conflito entre as nossas ações e os ensinamentos, imediatamente interpretamos a situação de modo a abrandar o conflito. O intérprete é o ego no seu papel de conselheiro espiritual. A situação se parece com a de um país em que Igreja e Estado sejam separados. Se a política do Estado estiver afastada dos ensinamentos da Igreja, a reação automática do rei é dirigir-se ao chefe da Igreja, seu conselheiro espiritual, e pedir-lhe a bênção. O chefe da Igreja arquiteta alguma justificativa e confere sua bênção à política, a pretexto de ser o rei o protetor da fé. Em nossa mente, as coisas se processam assim, muito bem arrumadas, sendo o ego, ao mesmo tempo, rei e chefe da Igreja.

Se é para se atingir a verdadeira espiritualidade, essa justificação do caminho espiritual e das nossas ações deve ser traspassada. Entretanto, não é fácil lidar com essa justificação porque todas as coisas são vistas através do filtro da filosofia e da lógica do ego, que faz com que tudo pareça arrumado, preciso e muito lógico. Para cada pergunta, tentamos encontrar uma resposta que se autojustifique. A fim de nos tranqüilizar, procuramos adaptar ao nosso esquema intelectual todos os aspectos de nossa vida que possam trazer confusão. E o nosso esforço é tão sério e solene, tão direto e sincero que é difícil suspeitar dele. Confiamos sempre na “integridade” do nosso conselheiro espiritual.

Não importa o que possamos usar para chegar à autojustificação: a sabedoria dos livros sagrados, diagramas ou mapas, cálculos matemáticos, fórmulas esotéricas, religião fundamentalista, psicologia profunda, ou qualquer outro mecanismo. Toda vez que nos pomos a fazer avaliações, decidindo se devemos ou não fazer isto ou aquilo, já teremos associado nossa prática ou nosso conhecimento a categorias contrapostas umas às outras, e isso é materialismo espiritual, a falsa espiritualidade do nosso conselheiro espiritual. Toda vez que temos uma noção dualística como, por exemplo: “Estou fazendo isto porque quero atingir um determinado estado de consciência, um determinado estado de ser”, automaticamente nos separamos da realidade do que somos.

Se perguntarmos a nós mesmos: “Que há de mau em avaliar, que há de mau em tomar partido?”, a resposta será que, quando formulamos um juízo secundário: “Eu devia estar fazendo isto e devia evitar fazer aquilo”, estamos atingindo um nível de complicação que nos faz enveredar por um longo caminho, afastando-nos da simplicidade básica do que somos. A simplicidade da meditação significa apenas vivenciar o instinto simiesco do ego. Se algo além disso é superposto à nossa psicologia, ela se toma uma máscara muito pesada e espessa, uma armadura.

É importante notar que o aspecto principal de qualquer prática espiritual é deixar para trás a burocracia do ego, isto é, deixar para trás o constante desejo do ego de adquirir uma versão mais elevada, mais espiritual, mais transcendental do conhecimento, da religião, da virtude, do julgamento, do conforto ou de qualquer particularidade que um determinado ego esteja procurando. Precisamos deixar para trás o materialismo espiritual. Se não pusermos de lado o materialismo espiritual, se, na verdade, o praticarmos, poderemos, posteriormente, surpreender-nos na posse de uma imensa coleção de caminhos espirituais. Podemos pensar que esse aglomerado espiritual é muito precioso. Estudamos muito. Talvez tenhamos estudado filosofia ocidental ou filosofia oriental, praticado ioga ou estudado sob a orientação de dúzias de grandes mestres. Conseguimos realizações e adquirimos conhecimentos. Acreditamos ter acumulado um arsenal de conhecimentos. E, no entanto, depois de passar por tudo isso, ainda nos resta abrir mão de alguma coisa. Isso é extremamente misterioso: Como pôde acontecer algo assim? Impossível! Mas, infelizmente, é assim mesmo. Os nossos vastos conjuntos de conhecimentos e experiências são apenas parte da exibição do ego, parte da característica aparatosa do ego. Nós as exibimos ao mundo e, ao fazê-lo, reasseguramo-nos de que existimos, sãos e salvos, como pessoas “espirituais”.

Teremos, porém, apenas criado uma loja, uma loja de antigüidades. Poderemos estar nos especializando em antigüidades orientais ou antigüidades cristãs medievais, ou em antigüidades de uma outra civilização ou de um outro tempo, mas estamos, todavia, gerenciando uma loja. Antes de a enchermos de tantas coisas, a sala era bonita: paredes

caiadas de branco, soalho bem simples e uma lâmpada brilhante acesa no teto. No meio da sala havia um belo objeto de arte. Todas as pessoas que chegavam apreciavam sua beleza, inclusive nós mesmos.

Mas não estávamos satisfeitos e pensamos: “Já que este único objeto embeleza tanto a minha sala, se eu conseguir outras antigüidades, minha sala ficará ainda mais bonita.” Assim, pusemo-nos a colecionar, e o resultado final foi o caos.

Percorremos o mundo inteiro à cata de belos objetos — a índia, o Japão, vários países. E sempre que encontrávamos uma antigüidade, como estávamos lidando apenas com um objeto de cada vez, víamos sua beleza e pensávamos como ficaria bonito em nossa loja. Mas quando levamos o objeto para casa e o colocamos na sala, ele se tornou apenas mais um acréscimo a nossa coleção de quinquilharias. A beleza do objeto já não se irradiava, pois estava cercado de outras tantas coisas bonitas. O objeto já não tinha significado algum. Em lugar de uma sala cheia de belas antigüidades, estávamos criando uma loja de entulhos!

Comprar adequadamente não implica acúmulo de uma grande quantidade de informações ou de coisas bonitas, mas requer uma apreciação plena de cada objeto individualmente. Isto é muito importante. Quando apreciamos de fato um belo objeto, indentificamo-nos completamente com ele e esquecemo-nos de nós mesmos. É como assistir a um filme muito interessante, fascinante, e esquecermo-nos de que somos o público. Naquele momento, o mundo deixa de existir; todo o nosso ser é aquela cena daquele filme. É a esse tipo de identificação que aludimos, o completo envolvimento com uma coisa. Será que efetivamente saboreamos, mastigamos e engolimos, de forma adequada, aquele objeto de arte, aquele ensinamento espiritual? Ou nos limitamos a considerá-lo como parte de nossa vasta a crescente coleção?

Coloco tanta ênfase sobre esse ponto porque sei que todos nós chegamos aos ensinamentos e à prática da meditação não para ganhar bastante dinheiro, mas porque tínhamos um desejo autentico de aprender, de desenvolver- nos. Se, porém, consideramos o conhecimento como uma antigüidade, como “sabedoria secular” a ser colecionada, estamos no caminho errado:

No que diz respeito à linhagem dos mestres, o conhecimento não se transmite como uma antigüidade. Ao contrário, um mestre vivência a verdade dos ensinamentos e a transmite como uma inspiração ao seu aluno. Essa inspiração desperta o aluno, tal como seu mestre foi despertado antes dele. Em seguida, o aluno passa os ensinamentos a um outro estudante, e assim segue o processo. Os ensinamentos estão sempre atualizados. Não são “sabedoria secular”, uma lenda antiga. Não passam de uma pessoa a outra como informações, não se transmitem como as histórias populares tradicionais que um avô conta a seus netos. Não e’ assim que as coisas funcionam. Trata-se de uma experiência real.

Há um dito nas escrituras tibetanas: “O conhecimento precisa ser aquecido, malhado e batido como o ouro puro. Só depois poderemos usá-lo como um ornamento.” Portanto, quando você recebe instrução espiritual das mãos de outra pessoa, não a aceite sem espírito crítico, mas a aqueça, malhe e golpeie até que apareça a cor brilhante e nobre de ouro. Então, você faça dela um ornamento, dando-lhe o desenho que desejar, e passe a usá-la. Dessa forma, o dharma se aplica a todas as épocas, a todas as pessoas; possui uma qualidade viva. Não nos basta imitar o mestre ou guru; não estamos tentando nos transformar em uma réplica do nosso instrutor. Os ensinamentos constituem uma experiência pessoal de cada um, até chegar ao detentor atual da doutrina.

É possível que muitos dos meus leitores estejam familiarizados com as histórias de Naropa, Tilopa, Marpa, Milarepa, Gampopa e outros mestres da linhagem Kagyü. Foi uma experiência viva para eles e é viva a experiência dos atuais detentores da linhagem. Apenas os pormenores das situações de vida é que são diferentes. Os ensinamentos têm a qualidade do pão quente, recém-saído do forno; o pão ainda se conserva quente e fresco. Cada padeiro precisa aplicar os conhecimentos gerais de como fazer pão ao seu próprio amassar e enfornar. A seguir, precisa experimentar pessoalmente o pão fresco, cortá-lo enquanto fresco e comê-lo enquanto quente. Precisa tornar seus os ensinamentos e, depois, praticá-los. Este é um processo muito vivo. Não há engano algum em termos de coletar conhecimentos. Temos de trabalhar com nossas próprias experiências. Quando ficamos confusos, não podemos nos voltar para a nossa coleção de conhecimentos e tentar encontrar alguma confirmação ou consolo: “O mestre e todos os ensinamentos estão do meu lado.” O caminho espiritual não segue por esse rumo. É um caminho solitário, individual.

P: O senhor acha que o materialismo espiritual é um problema particularmente americano?

R: Toda vez que os ensinamentos chegam do exterior a um país, intensifica-se o problema do materialismo espiritual. Neste momento, sem dúvida nenhuma, os Estados Unidos são um solo fértil e preparado para receber os ensinamentos. E por ser tão fértil e estar à procura da espiritualidade, os Estados Unidos têm a possibilidade de encorajar charlatães. Os charlatães não decidiriam ser charlatães se não se sentissem motivados a tanto. Não fosse assim, seriam assaltantes de bancos ou bandidos, já que desejam ganhar dinheiro e ficar famosos. E como os Estados Unidos estão buscando a espiritualidade com tanto empenho, a religião toma-se um modo fácil de ganhar dinheiro e conquistar fama. Nessas circunstâncias, vemos charlatães no papel de estudante, cheia, assim como no papel de guru. Acho que os Estados Unidos, neste momento atual, oferecem um solo interessantíssimo.

P: O senhor aceitou algum mestre espiritual como guru, algum mestre espiritual vivo em especial?

R: Neste momento, não tenho nenhum. Fisicamente, deixei meus gurus e mestres para trás, no Tibete, mas os ensinamentos permanecem comigo e continuam.

P: Então, quem é que o senhor está mais ou menos seguindo?

R: As situações são a voz do meu guru, a presença do meu guru.

P: Depois que o Buda Shakyamuni alcançou a iluminação, permaneceu nele algum vestígio do ego, de modo que ele pudesse prosseguir nos seus ensinamentos?

R: Os ensinamentos simplesmente aconteceram, Ele não tinha o desejo de ensinar nem de não ensinar. Ele passou sete semanas sentado à sombra de uma árvore e caminhando ao longo de um rio. Então, ocorreu que alguém apareceu por ali e ele começou a falar. Não há escolha. Você está ali, uma pessoa aberta. Então, a situação se apresenta e o ensinamento acontece. É o que se chama “atividade búdica”.

P: É difícil não ser aquisitivo, com relação à espiritualidade. O desejo de adquirir é uma coisa de que nos desfazemos ao longo do caminho?

R: Você deve deixar que o primeiro impulso se esvazie. O seu primeiro impulso em direção à espiritualidade poderá colocá-lo em um cenário espiritual específico; mas se você trabalhar com esse impulso, pouco a pouco ele se extingue e, num determinado ponto, se torna tedioso, monótono. Esta mensagem é muito útil. Veja bem, é essencial relacionar-se consigo mesmo, com sua própria experiência, efetivamente. Quando não nos relacionamos conosco, o caminho espiritual torna-se perigoso, passa a ser mais um entretenimento puramente externo do que uma experiência pessoal, orgânica.

P: Se decidirmos procurar uma saída para a ignorância, podemos supor, quase com certeza, que tudo o que fizermos e que nos der prazer será benéfico ao ego e estará, na verdade, bloqueando o caminho. Qualquer coisa que parece certa está errada; tudo que não nos virar de cabeça para baixo acabará por enterrar-nos. Existe alguma saída para isto?

R: Se você executa um ato que seja aparentemente certo, isso não quer dizer que ele seja errado, pela simples razão de que errado e certo estão fora deste contexto. Você não está trabalhando de nenhum lado, nem do lado “bom”, nem do lado “mau”, mas sim com a totalidade do conjunto, para além de “isso” e “aquilo”. Eu diria que há uma ação completa. Não existe ato parcial, embora tudo que façamos relacionado com bom e mau pareça um ato parcial.

P: Quando nos sentimos muito confusos e procuramos nos desvencilhar e sair da confusão, pode parecer que estamos nos esforçando demais. Mas se não fizermos nenhuma tentativa, devemos então entender que estamos nos iludindo?

R: Sim, mas isso não significa que temos de viver nos extremos, esforçando-nos muito ou não fazendo tentativa alguma. Precisamos trabalhar com uma espécie de “caminho do meio”, um estado completo de “sermos como somos”. Poderíamos descrevê-lo com uma porção de palavras, mas temos realmente que passar por ele. Se você começa, de fato, a viver o caminho do meio, então irá enxergá-lo, irá encontrá-lo. Você precisa permitir-se confiar em si próprio, confiar em sua própria inteligência. Somos pessoas incríveis, temos coisas incríveis dentro de nós. Temos simplesmente que nos deixar ser. Auxílio externo não pode oferecer ajuda. Se você não está disposto a se permitir crescer, então cairá no processo autodestrutivo da confusão. Aqui temos autodestruição ao invés de destruição por outra pessoa. Eis por que isso é eficaz: porque é auto-destruição.

P: O que é a fé? Ela é útil?

R: A fé pode ser simplista, confiante e cega, ou pode ser uma confiança definitiva que não pode ser destruída. A fé cega é destituída de inspiração; é muito ingênua. Não é criativa, embora não seja exatamente destrutiva. Não é criativa porque entre sua fé e você mesmo nunca se estabeleceu nenhuma conexão, nenhuma comunicação. Você apenas aceitou, cegamente, toda a crença, muito ingenuamente.

No caso da fé como confiança, existe uma razão viva para você ser confiante. Você não espera que uma solução pré-fabricada lhe seja misteriosamente apresentada. Você trabalha com as situações existentes, sem medo, sem qualquer dúvida de envolver-se ou não. Essa atitude é sumamente criativa e positiva. Se sua confiança é definitiva, você está tão seguro de si que não tem que se fiscalizar. Trata-se de confiança absoluta, uma verdadeira compreensão do que está acontecendo agora. Portanto, você não hesita em seguir outros caminhos nem em tomar a atitude necessária frente a cada nova situação.

P: O que é que o guia no caminho?

R: Na realidade, não parece haver nenhum guia em particular. De fato, se alguém estiver nos guiando, isso é suspeito, porque estaremos nos amparando em algo externo. Ser plenamente o que somos em nós mesmos passa a ser o guia, mas não no .sentido de vanguarda, porque não há um guia para seguir. Não precisamos seguir os passos de ninguém, mas apenas seguir livremente. Em outras palavras, o guia não caminha à nossa frente, mas ao nosso lado.

P: O senhor poderia dizer mais alguma coisa sobre como a meditação provoca um curto-circuito nos mecanismos protetores do ego?

R: O mecanismo protetor do ego implica você se fiscalizar, o que é uma forma desnecessária de auto-observação. A base da meditação não está no fato de meditar sobre determinado assunto por meio de uma autofiscalização; mas a meditação significa uma completa identificação com as técnicas que você estiver empregando. Desse modo, na prática da meditação, não há esforço algum para buscar segurança.

P: Parece que estou vivendo num ferro-velho espiritual. Como posso transformá-lo numa sala simples com apenas um objeto bonito?

R: A fim de desenvolver a capacidade de apreciar sua coleção, você tem que começar com um único objeto. É preciso encontrar uma entrada, uma fonte de inspiração. Talvez não seja preciso passar pelo resto dos objetos da sua coleção se você estudar apenas uma peça. Esse único objeto poderia ser uma placa que você conseguiu furtar em Nova York; poderá ser tão insignificante quanto isso. Mas precisamos começar com uma coisa, enxergar sua simplicidade, a qualidade tosca deste traste velho, ou desta bela peça de antigüidade. Se conseguíssemos começar apenas com uma coisa, isso eqüivaleria a ter um único objeto numa sala vazia. Creio que é uma questão de encontrar uma entrada. Por termos tantos bens em nossa coleção, o problema, em grande parte, é que não sabemos por onde começar. Você tem que permitir que seu instinto determine qual será a primeira coisa que irá apanhar.

P: Por que o senhor acha que as pessoas protegem tanto o ego delas? Por que é tão difícil abrir mão do nosso ego?

R: As pessoas têm medo do vazio do espaço, da ausência de companhia, da ausência de uma sombra. Poderia ser uma experiência apavorante não ter ninguém nem nada com quem se relacionar. A idéia disso pode ser extremamente assustadora, se bem que a experiência real não o seja. Trata-se, geralmente, de um medo de espaço, de um medo de não sermos capazes de nos ancorarmos em um solo firme, de perdermos nossa identidade como uma coisa fixa, sólida e definida. Isto pode ser muito ameaçador.

Entrega

A esta altura podemos ter chegado à conclusão de que deveríamos abandonar todo o jogo do materialismo espiritual, isto é, de que deveríamos desistir de tentar defender-nos e aperfeiçoar-nos. Podemos ter entrevisto que nossa luta é fútil e querer entregar-nos, abandonar por completo nossos esforços para nos defender. Mas quantos de nós poderíamos realmente fazer isto? A coisa não é tão simples e fácil como se pode pensar. Até que ponto poderíamos verdadeiramente desapegar-nos e sermos abertos? Em que ponto passaríamos para a defensiva?

Nesta palestra vamos discutir a entrega, especialmente em termos da relação entre o trabalho sobre o estado neurótico da mente e o trabalho com um guru ou mestre pessoal. Entregar-se ao “guru” poderia significar abrir nossas mentes para as situações da vida bem como para um mestre individual. No entanto, se o nosso estilo de vida e a nossa inspiração apontam no sentido de descobrir a mente, então quase certamente iremos também encontrar um guru pessoal. Por isso, nas próximas palestras vamos enfatizar o relacionamento com um mestre pessoal.

Uma das dificuldades de entregar-nos a um guru são as nossas idéias preconcebidas em relação a ele e as nossas expectativas do que acontecerá com ele. Estamos absorvidos com idéias do que gostaríamos de experimentar com o nosso mestre: “Eu gostaria de ver isso; esta seria a melhor maneira de ver. Eu gostaria de vivenciar essa situação, porque está perfeitamente de acordo com a minha expectativa e a minha fascinação.”

Deste modo, tentamos encaixar as coisas em escaninhos, tentamos ajustar a situação às nossas expectativas, e não conseguimos renunciar a parte alguma do que aguardamos. Se saímos à procura de um guru ou de um mestre, esperamos que ele seja piedoso, sereno, discreto, um homem simples e, não obstante, sábio. Quando descobrimos que ele não corresponde às nossas expectativas, começamos a nos decepcionar, começamos a duvidar.

A fim de estabelecer um verdadeiro relacionamento mestre-discípulo, é necessário que renunciemos a todas as nossas idéias preconcebidas a respeito deste relacionamento e de como abrir-nos e entregar-nos. “Entregar-nos” significa abrir-nos completamente, tentando passar além da fascinação e da expectativa.

Entregar-nos também significa reconhecer as qualidades cruas, rudes, desajeitadas e chocantes do nosso ego, reconhecê-las e renunciar a elas. Geralmente, achamos muito difícil mostrar e entregar as qualidades nuas e cruas do nosso ego. Embora possamos odiar-nos, ao mesmo tempo, vemos neste auto-ódio uma espécie de serventia. Apesar de não gostarmos do que somos e acharmos penosa nossa auto-condenação, ainda assim não conseguimos abrir mão deste fato completamente. Se começamos a renunciar nossa autocrítica, podemos sentir que estamos perdendo a nossa ocupação, como se alguém estivesse tirando o nosso emprego. Não teríamos nenhuns outros afazeres, se tivéssemos que renunciar a tudo; não haveria coisa alguma a que nos agarrar. A auto-avaliação e a autocrítica são, basicamente, ten- dências neuróticas que decorrem do fato de não termos suficiente confiança em nós mesmos, “confiança” no sentido de ver o que somos, saber o que somos, saber que podemos permitir-nos uma abertura. Podemos permitir-nos a entrega dessa qualidade neurótica nua e crua do eu, e deixar para trás o fascínio, deixar para trás as idéias preconcebidas.

Precisamos abrir mão de nossas esperanças e expectativas, assim como de nossos medos, e marchar diretamente para dentro do desapontamento, trabalhar com o desapontamento, entrar nele e fazer dele o nosso modo de vida, o que é uma coisa muito difícil de fazer. O desapontamento é um bom sinal de inteligência básica. Não pode ser comparado a nada: é nítido, preciso, óbvio e direto. Se formos capazes de nos abrir, começaremos a ver, de repente, que nossas expectativas são irrelevantes, se comparadas à realidade das situações que estamos enfrentando. Isto, automaticamente, traz uma sensação de decepção.

A decepção é o melhor veículo que podemos usar no caminho do dharma. Ela não confirma a existência do nosso ego nem de seus sonhos. Entretanto, se estamos envolvidos com materialismo espiritual, se encaramos a espiritualidade como parte de nosso acúmulo de aprendizado e virtudes, se a espiritualidade se transforma num meio de nos formar a nós mesmos, o curso de todo o processo de entrega está completamente distorcido. Se consideramos a espiritualidade um meio de adquirirmos conforto, toda vez que tivermos uma experiência desagradável, uma decepção, tentaremos racionalizá-la: “É claro que isto deve ser um gesto de sabedoria da parte do guru, pois eu sei, tenho certeza de que ele não faz nada que seja prejudicial. Guruji é um ser perfeito e tudo o que faz está certo. Tudo o que faz, não importa o quê, Guruji faz por mim, porque está do meu lado. Por isso estou em condições de me abrir. Posso entregar-me com segurança. Sei que estou seguindo pelo caminho certo.” Há qualquer coisa não muito certa numa atitude assim. Na melhor das hipóteses, ela é simplista e? ingênua. Ficamos cativados pelo aspecto impressionante, inspirador, digno e pitoresco de “Guruji”. Não ousamos ter um outro ângulo de visão. Desenvolvemos a convicção de que tudo quanto vivenciamos faz parte do nosso desenvolvimento espiritual. “Eu consegui. Eu vivenciei a experiência. Sou uma pessoa que se fez por si mesma e sei quase tudo, porque li livros e eles confirmam minhas crenças, minhas idéias, que eu tenho razão. Tudo coincide.”

Podemos conter-nos ainda de outra forma: não nos entregando de fato porque nos julgamos pessoas muito bem- educadas, sofisticadas e dignas. “Por certo que não podemos entregar-nos a esta realidade prosaica, vulgar e suja”. Temos a impressão de que cada passo do caminho que percorremos deveria ser uma pétala de lótus e criamos uma lógica que concordantemente interpreta tudo o que nos aconteça. Se caímos, criamos um pouso macio para impedir qualquer choque brusco. Mas, a entrega não inclui preparativos para um pouso suave; significa simplesmente cair em solo duro, comum, em terreno agreste, cheio de pedras. Quando nos abrimos, caímos no que realmente existe.

Tradicionalmente, a entrega é simbolizada por práticas como a prostração, que é o ato de cair ao chão num gesto de renúncia. Ao mesmo tempo nos abrimos psicologicamente e nos entregamos completamente ao nos identificarmos com o mais humilde dos humildes, reconhecendo nossa qualidade crua e rude. Não há nada que temamos perder quando nos identificamos com o mais baixo dos baixos. Ao fazê-lo, preparamo-nos para ser um recipiente vazio, pronto para receber os ensinamentos.

Na tradição budista existe uma fórmula básica: “Refugio-me no Buda, refugio-me no dharma, refugio-me no sangha.” Refugio-me no Buda como exemplo de entrega, o exemplo do reconhecimento da negatividade como parte da nossa constituição e de nossa abertura à ela. Refugio-me no dharma — dharma, a “lei da existência”, a vida como ela é. Estou disposto a abrir os olhos e enxergar as circunstâncias da vida exatamente como elas são. Não estou inclinado a vê-las como espirituais ou místicas, mas quero ver as situações da vida como elas realmente são. Refugio-me no sangha. “Sangha” significa “comunidade de pessoas no caminho espiritual”, “companheiros”. Estou disposto a compartilhar a experiência de toda a vida que nos cerca com os meus companheiros de peregrinação, meus companheiros de busca, os que caminham comigo; mas não estou disposto a encostar-me neles a fim de obter apoio. Minha vontade é apenas caminhar com eles. Há uma tendência muito perigosa de nos apoiarmos uns nos outros ao percorrer o caminho. Se os membros de um grupo se firmam uns nos outros, todos cairão se, por acaso, um deles cair. Por isso mesmo não nos apoiamos em uma outra pessoa. Limitamo-nos a caminhar uns com os outros, lado a lado, ombro a ombro, a trabalhar com os outros, a ir com eles. Essa atitude com relação à entrega, essa noção de refúgio é muito profunda.

A maneira errada de nos refugiarmos supõe a busca de um abrigo — adorar montanhas, deuses do Sol, deuses da Lua, divindades de todos os tipos, pela simples razão de parecerem maiores do que nós. Esse gênero de refugiar-se é semelhante à resposta da criança que diz: “Se você me bater, vou contar tudo para minha mãe”, na suposição de que sua mãe seja o arquétipo de uma pessoa poderosa e grande. Quando atacada, seu recurso automático é correr para a mãe, uma personalidade invencível, onisciente e onipotente. A criança acredita que a mãe pode protegê-la, que, na realidade, é a única pessoa capaz de salvá-la. Buscar refúgio numa figura materna ou paterna é realmente auto-aniquilante. Quem o faz não tem, em absoluto, qualquer força básica efetiva, qualquer inspiração verdadeira. Está constantemente ocupado em avaliar poderes maiores e menores. Se somos pequenos, alguém maior do que nós pode nos esmagar. Buscamos refúgio porque não podemos nos permitir ser pequenos e desprotegidos. Tendemos a nos menosprezar desculpando-nos: “Sou muito pequenino, mas reconheço a grandeza de sua qualidade. Gostaria de adorar sua grandeza, juntar-me a ela; você poderia fazer o favor de me proteger?”

Entregar-se não significa ser inferior e tolo, nem querer ser elevado e profundo. Não tem nada a ver com níveis e avaliações. Ao invés disso, entregamo-nos porque gostaríamos de nos comunicar com o mundo tal “como ele é”. Não precisamos nos classificar como cultos ou como ignorantes. Sabemos onde estamos e, portanto, fazemos o gesto de entrega, da abertura, que quer dizer comunicação, ligação, comunicação direta com o objeto da nossa entrega. Não nos constrangemos com nossa rica coleção de qualidades cruas, rudes, belas e puras. Apresentamos tudo ao objeto da nossa entrega. O ato básico da entrega não implica a adoração de um poder externo. Antes disso, significa trabalhar junto com a inspiração, de modo que nos tomamos um recipiente aberto no qual o conhecimento pode ser vertido.

Dessa forma, a abertura e a entrega constituem a preparação necessária para o trabalho com um amigo espiritual. Nós reconhecemos nossa riqueza fundamental em vez de lastimar a pobreza imaginária do nosso ser. Sabemos que somos dignos de receber os ensinamentos, dignos de relacionar-nos com a riqueza das oportunidades de aprender.

O Guru

Ao chegarmos ao estudo da espiritualidade nos deparamos com o problema do relacionamento com um mestre, lama, guru, ou como quer que nós chamamos a pessoa que, supomos, nos dará compreensão espiritual. Essas palavras, sobretudo o termo “guru”, adquiriram no Ocidente significados e associações enganosos e que, geralmente, aumentam a confusão em tomo da questão de saber o que significa estudar com um mestre espiritual. Isso não quer dizer que as pessoas no Oriente saibam como devem relacionar-se com um guru, enquanto os ocidentais não o saibam; o problema é universal. As pessoas chegam sempre ao estudo da espiritualidade com algumas idéias já fixas a respeito do que vão conseguir e como lidar com a pessoa da qual presumem que vão conseguir. Até a noção de conseguir alguma coisa de um guru — felicidade, paz de espírito, sabedoria, seja o que for que procuremos — é um dos preconceitos mais difíceis de todos. Desse modo, penso que seria proveitoso examinar o modo com que alguns discípulos famosos lidaram com os problemas de como relacionar-se com a espiritualidade e com um mestre espiritual. É bem possível que esses exemplos tenham alguma relevância para a nossa própria busca.

Um dos mais renomados mestres tibetanos e também um dos principais gurus da linhagem Kagyü, da qual sou um membro, era Marpa, aluno do mestre indiano Naropa e guru de Milarepa, seu mais famoso filho espiritual. Marpa é um exemplo de alguém que se tornaria um homem bem-sucedido, por iniciativa própria. Nascera de uma família de agricultores, porém, como um jovem, era ambicioso, o que o levou a escolher os estudos e o sacerdócio como caminho para a preeminência. Podemos imaginar o tremendo esforço e determinação que devem ter custado ao filho de um lavrador, para elevar-se à posição de sacerdote segundo a tradição religiosa local. Havia apenas umas poucas maneiras de um homem nessas condições adquirir qualquer tipo de posição no Tibete do século X — como mercador, como bandido ou, sobretudo, como sacerdote. Ingressar no clero local, naquele tempo, eqüivalia, aproximadamente, a se tomar, ao mesmo tempo, médico, advogado e professor universitário.

Marpa começou estudando tibetano, sânscrito, várias outras línguas e a língua falada da índia. Depois de cerca de três anos desses estudos, ele já era bastante competente para começar a ganhar dinheiro como um erudito e, com esse dinheiro, financiou seus estudos religiosos, e tomou-se um sacerdote budista razoável, o que lhe valeu certo grau de proeminência local. Marpa, contudo, era mais ambicioso e, assim, embora já fosse casado e tivesse uma família, continuou a economizar o que ganhava até acumular grande quantidade de ouro.

Nesse ponto, anunciou aos parentes a intenção de viajar para a índia a fim de colher mais ensinamentos. Nessa época, a índia era o centro mundial dos estudos budistas, onde se erguia a Universidade de Nalanda e onde viviam os maiores sábios e eruditos budistas. Marpa pretendia estudar e adquirir textos desconhecidos no Tibete, levá-los para casa e traduzi-los, estabelecendo-se, dessa maneira, como grande tradutor erudito. A viagem para a índia naquele tempo, e até muito recentemente, era uma longa e perigosa jornada. A família de Marpa e seus parentes idosos tentaram dissuadi-lo de fazê-la. Mas ele, muito determinado, pôs-se a caminho, acompanhado apenas de um amigo e colega de estudos.

Após uma difícil caminhada de alguns meses, os dois cruzaram os Himalaias e entraram na índia, dirigindo-se a Bengala, onde se separaram, seguindo cada qual o seu rumo. Ambos tinham as necessárias qualificações para o estudo da língua e da religião e, assim sendo, decidiram procurar seus próprios mestres, que satisfizessem às preferências de cada um. Antes de se separarem, combinaram tornar a encontrar-se para a viagem de regresso ao lar.

Enquanto viajava pelo Nepal, Marpa ouviu falar no mestre Naropa, homem de enorme fama. Naropa fora abade da Universidade de Nalanda, talvez o maior centro de estudos budistas que o mundo já conheceu. No ponto culminante da sua carreira, percebendo que entendia o sentido mas não aprendia o verdadeiro significado dos ensinamentos, abandonou o posto e saiu à procura de um guru. Durante doze anos sofreu terríveis apuros nas mãos de seu mestre Tilopa, até que, finalmente, atingiu a iluminação. Na ocasião em que Marpa ouviu falar a seu respeito, ele era considerado um dos maiores santos budistas que já tinham vivido. Marpa, naturalmente, partiu à sua procura.

Marpa encontrou Naropa vivendo pobremente numa casa singela nas florestas de Bengala. Tinha esperado encontrar tão grande mestre vivendo num ambiente religioso altamente desenvolvido e, por isso mesmo, sentiu-se um tanto decepcionado. Entretanto, como estivesse meio confuso diante das surpresas que lhe proporcionava um pais estranho, dispôs-se a fazer algumas concessões, achando que talvez fosse daquela maneira que viviam os mestres indianos. Além do que, a apreciação da fama de Naropa pesou mais do que o desapontamento, e ele, dando ao mestre a maior parte do seu ouro, solicitou-lhe os ensinamentos. Explicou-lhe que era casado, sacerdote, erudito e lavrador do Tibete, e que não estava disposto a renunciar à vida que construíra para si, mas pretendia recolher ensinamentos que pudesse levar de volta ao Tibete a fim de traduzi-los e, com eles, ganhar mais dinheiro. Naropa concordou sem dificuldade com as solicitações de Marpa, deu-lhe instruções, e tudo correu da melhor maneira possível.

Depois de algum tempo, Marpa decidiu que já coligira ensinamentos suficientes para satisfazer aos seus propósitos e preparou-se para voltar. Dirigiu-se a uma estalagem numa cidade grande, onde se reencontrou com o companheiro de jornada. Sentaram-se os dois para comparar os resultados dos seus esforços. Quando o amigo viu o que Marpa arrecadara soltou uma gargalhada e disse-lhe: “O que você traz aí não vale nada! Já temos esses ensinamentos no Tibete. Você deveria ter encontrado algo mais emocionante e raro. Pois eu encontrei ensinamentos fantásticos, que recebi de grandiosos mestres.”

Marpa, naturalmente, sentiu-se extremamente frustrado e conturbado depois de haver feito um percurso tão longo, com tamanhas dificuldades e despesas, de modo que decidiu voltar para junto de Naropa e tentar mais uma vez. Quando chegou à cabana de Naropa e pediu-lhe ensinamentos mais raros, mais exóticos e adiantados, para surpresa sua Naropa respondeu-lhe: “Sinto muito, mas você não pode receber de mim tais ensinamentos. Terá de recebê-los de outra pessoa, um homem chamado Kukuripa. A jornada é difícil, porque Kukuripa vive numa ilha no meio de um lago venenoso. Mas é a pessoa que você terá de encontrar se quiser esses ensinamentos.”

A essa altura, Marpa estava ficando desesperado, de forma que resolveu empreender a viagem. Além do que, se Kukuripa possuía ensinamentos que nem mesmo o grande Naropa podia dar-lhe e vivia no meio de um lago envenenado, era evidente que teria de ser um mestre extraordinário, um grande místico.

Nessas condições, Marpa realizou a jornada e conseguiu atravessar o lago e chegar à ilha, onde começou a procurar Kukuripa. Ali encontrou um velho indiano que vivia no meio da sujeira e cercado de centenas de cadelas. A situação era estranhíssima, para dizer o mínimo, mas assim mesmo Marpa tentou falar com Kukuripa. Tudo o que obteve como resposta foram frases sem sentido. Kukuripa parecia estar dizendo apenas besteiras.

A situação se tornara quase insustentável. Além de não compreender uma única palavra do que lhe dizia Kukuripa, Marpa precisava estar constantemente em guarda contra as centenas de cadelas. Assim que conseguia fazer amizade com uma delas, outra latia e ameaçava mordê-lo. Finalmente, quase fora de si, Marpa desistiu de tudo, desistiu de tentar tomar notas, de tentar receber qualquer tipo de doutrina secreta. Nesse instante Kukuripa principiou a falar-lhe com voz perfeitamente inteligível e coerente, as cadelas deixaram de atormentá-lo e Marpa recebeu os ensinamentos.

Depois de haver completado os estudos com Kukuripa, Marpa retornou mais uma vez ao guru original, Naropa. E Naropa lhe disse: “Agora você precisa voltar ao Tibete e ensinar. Não lhe basta receber ensinamentos teóricos. Você precisa passar por certas experiências de vida. Depois, poderá voltar outra vez e continuar a estudar.”

Marpa tornou a encontrar-se com o companheiro de buscas e, juntos, iniciaram a longa jornada de regresso ao Tibete. O companheiro de Marpa também estudara muito e os dois homens carregavam uma pilha de manuscritos. Enquanto viajavam, discutiam o que tinham aprendido. Não tardou que Marpa se sentisse inquieto em relação ao amigo, o qual, cada vez mais inquisidor, tentava descobrir a todo custo os ensinamentos que Marpa obtivera. As conversações que travavam pareciam girar, cada vez mais, em torno desse assunto, até que, afinal, o companheiro de Marpa chegou à conclusão de que este obtivera ensinamentos mais valiosos do que ele e, assim, acabou ficando com inveja. Enquanto atravessavam um rio numa balsa, o colega de Marpa começou a queixar-se de que estava numa posição incômoda, estorvado por toda a bagagem que ambos traziam. Trocou de posição na balsa, a fim de instalar-se de maneira um pouco

mais confortável e, ao fazê-lo, deu um jeito de atirar todos os manuscritos de Marpa no rio. Marpa tentou desesperadamente recuperá-los, mas estavam perdidos. Todos os textos que tanto se esforçara por obter haviam desaparecido num instante.

Foi, assim, com um sentimento de perda muito grande, que Marpa retomou ao Tibete. Tinha inúmeras histórias para contar sobre suas viagens e estudos, mas nada sólido como prova de seus conhecimentos e experiências. Apesar disso, passou vários anos trabalhando e ensinando, até que, para sua surpresa, começou a compreender que os seus escritos lhe teriam sido inúteis, ainda que tivesse podido resgatá-los. Enquanto se achava na índia, anotara apenas as partes dos ensinamentos que não compreendera. Não pusera por escrito os que faziam parte da sua própria experiência. Somente anos mais tarde veio a descobrir que eles se haviam transformado, realmente, numa parte de si mesmo.

Com esse descobrimento, Marpa perdeu todo o desejo de tirar proveito dos ensinamentos. Já não se preocupava em ganhar dinheiro ou prestígio; em vez disso, sentiu-se inspirado a atingir a iluminação. Então, juntou ouro em pó como oferenda a Naropa e, mais uma vez, seguiu viagem à índia. Desta vez ia ansioso por ver o guru e ávido dos ensinamentos.

No entanto, o encontro seguinte de Marpa com Naropa foi muito diferente dos anteriores. Naropa parecia muito frio e impessoal, quase hostil, e as primeiras palavras que lhe dirigiu foram: “Prazer em vê-lo novamente. Quanto ouro você tem para pagar meus ensinamentos?” Marpa trouxera grande quantidade de ouro mas, como quisesse guardar algum para as suas despesas e para a viagem de volta, abriu a bolsa e só deu a Naropa uma porção do que tinha. Naropa
contemplou a oferta e disse: “Não, isso não basta. Preciso de mais ouro do que este para ensiná-lo. Dê-me todo o seu ouro.” Marpa deu-lhe um pouco mais de ouro, mas nem assim Naropa se contentou; pediu-lhe todo o ouro e o diálogo prosseguiu dessa maneira até que, finalmente, Naropa desatou a rir e disse: “Você acha que pode comprar meus ensinamentos com o seu embuste?” Nesse ponto, Marpa cedeu e entregou-lhe todo o ouro que levava. Para seu assom- bro, Naropa pegou as bolsas e pôs-se a atirar o pó de ouro para o ar.

Marpa sentiu-se, de súbito, extremamente confuso e paranóide. Não podia compreender o que estava acontecendo. Trabalhara com afinco para ganhar aquele ouro, com o qual pretendia pagar os ensinamentos que tanto ambicionava. Naropa parecera indicar-lhe que precisava do ouro e que, em troca, o ensinaria. E, no entanto, estava jogando tudo fora! Disse-lhe então Naropa: “Que necessidade tenho eu de ouro? O mundo inteiro é ouro para mim!”

Foi esse um grande momento de abertura para Marpa, que, abrindo-se, pôde receber os ensinamentos. Permaneceu com Naropa por muito tempo depois disso e recebeu um treinamento austero, mas não se limitou a ouvir os ensinamentos, como até então fizera; foi-lhe preciso senti-los na própria pele. Teve de renunciar a tudo que possuía, não apenas o que possuía materialmente, mas também o que resguardava na mente. Foi um processo contínuo de abertura e entrega.

No caso de Milarepa, a situação desenrolou-se de maneira muito diferente. Este era um camponês, muito menos instruído e sofisticado do que Marpa quando conheceu Naropa, e já praticara inúmeros crimes, incluindo o homicídio. Sentia-se miseravelmente infeliz, almejava a iluminação e estava disposto a pagar qualquer preço que Marpa lhe pedisse. Assim sendo, Marpa o obrigou a pagar num nível literalmente físico. Ele fez Milarepa construir uma série de casas, uma depois da outra, e, após a completa edificação de cada uma delas, Marpa ordenava a Milarepa que a derrubasse e colocasse todas as pedras de volta no lugar onde as encontrara, para não estragar a paisagem. Cada vez que Marpa mandava Milarepa desmanchar uma casa, apresentava alguma desculpa absurda, como alegar que estava bêbado quando ordenara a construção ou afirmar que absolutamente nunca a encomendara. E Milarepa, cada vez mais ansioso pelos ensinamentos, punha a casa abaixo e recomeçava.

Por fim, Marpa planejou uma torre de nove andares. Milarepa passou por tremendo sofrimento físico para carregar as pedras e construir a casa e, quando terminou, dirigiu-se a Marpa e, mais uma vez, rogou-lhe que o ensinasse. Marpa, contudo, lhe respondeu: “Você quer que eu lhe dê ensino, assim, sem mais nem menos, só porque construiu esta torre para mim? Pois receio que ainda tenha de dar-me um presente como taxa de iniciação.”

A essa altura, Milarepa não possuía coisa alguma, pois gastara todo o seu tempo e trabalho construindo torres. Mas Damema, esposa de Marpa, teve pena dele e disse-lhe: “Estas torres que você construiu são um gesto maravilhoso de devoção e fé. Meu marido seguramente não se incomodará se eu lhe der alguns sacos de cevada e um rolo de tecido para a sua taxa de iniciação.” Milarepa levou, portanto, a cevada e o tecido para o círculo de iniciação em que Marpa estava ensinando e ofereceu-os como gratificação, junto com os presentes dos outros estudantes. Marpa, porém, ao reconhecer o presente, enfureceu-se e gritou para Milarepa: “Essas coisas são minhas, seu hipócrita! Você está tentando enganar-me!” E chutou-o literalmente, a pontapés, do círculo de iniciação. .

Nesse ponto, Milarepa perdeu toda e qualquer esperança de conseguir, um dia, que Marpa lhe ensinasse. Desesperado, decidiu suicidar-se e já estava prestes a dar cabo da vida quando Marpa o procurou e declarou que ele, afinal, estava pronto para receber os ensinamentos.

O processo de receber ensino depende do aluno dar alguma coisa em troca; é necessário uma espécie de entrega psicológica, algum presente dessa natureza. Por isso precisamos discutir a entrega, a abertura, a renúncia das expectativas, antes de podermos falar sobre o relacionamento entre mestre e aluno. É fundamental que você se entregue, que se abra, que se apresente tal como é ao guru, em vez de tentar apresentar-se como um aluno meritório. Pouco importa o quanto esteja disposto a pagar, o decoro do seu comportamento, a inteligência que demonstra ao dizer a coisa certa ao seu mestre. Não é como realizar uma entrevista para conseguir emprego nem como comprar um carro novo. A questão de obter ou não o emprego depende das suas credenciais, do bom aspecto do seu traje, do bonito lustro que deu aos sapatos, do seu modo correto de falar, das suas boas maneiras. Se você estiver comprando um carro, tudo dependerá da quantia de dinheiro que tenha e do seu crédito na praça.

Em se tratando, porém, de espiritualidade, requer-se algo mais. Já não é uma questão de solicitar um emprego, de vestir-se bem a fim de impressionar o possível empregador. Esse tipo de engano não se aplica a uma entrevista com um guru, que enxerga nossas intenções. Ele achará engraçado que você se vista especialmente para falar com ele. Não se fazem gestos cativantes nessa situação; na verdade, isso é fútil. Precisamos assumir um compromisso verdadeiro de abrir-nos perante o mestre; precisamos estar dispostos a desistir de todas as nossas idéias preconcebidas. Milarepa tinha a expectativa de que Marpa fosse um grande letrado e um santo, vestido à maneira iogue, cheio de rosários, recitando mantras, meditando. Em lugar disso, encontrou-o trabalhando na fazenda, dirigindo os trabalhadores e arando sua terra.

Receio que a palavra “guru” seja usada em demasia no Ocidente. Teria sido melhor se falássemos em “amigo espiritual”, uma vez que os ensinamentos enfatizam um encontro recíproco de duas mentes. É mais uma questão de comunicação mútua do que uma relação de amo e criado entre um ser altamente desenvolvido e um ser miserável e confuso. No relacionamento de amo e criado, o ser altamente desenvolvido pode dar a impressão de não estar sequer sentado na sua poltrona, mas parecerá flutuar, levitar, olhando de cima para nós. Sua voz, penetrante, difunde-se pelo espaço. Cada palavra, cada tosse, cada movimento que faz é um gesto de sabedoria. Mas isto é um sonho. O guru há de ser um amigo que nos comunica e oferece suas qualidades, como Marpa fez com Milarepa, e Naropa com Marpa. Este último ofereceu sua qualidade de iogue-agricultor. Acontece que ele tinha sete filhos e uma esposa, tratava da fazenda, cultivando a terra e sustentando a si e aos seus. Tais atividades, entretanto, eram apenas uma parte corriqueira da sua vida. Ele cuidava dos discípulos como cuidava das colheitas e da família. Era um homem tão minucioso, prestando atenção a cada pormenor da sua vida, que era capaz de ser um mestre competente além de pai e lavrador competente. Não havia nem materialismo físico nem espiritual no seu estilo de vida. Ele não enfatizava a espiritualidade nem ignorava a família ou sua relação física com a terra. Quem não estiver envolvido com o materialismo, nem espiritual nem fisicamente, não dará ênfase a nenhum extremo.

Tampouco vale a pena escolher alguém como guru simplesmente por ser famoso, ser renomado por ter publicado montes de livros e convertido milhares ou milhões de pessoas. O critério, nesse caso, seria se você pode, de fato, comunicar-se com a pessoa, direta e completamente. Até que ponto você se ilude a si mesmo? Se você abrir-se realmente com o seu amigo espiritual, vocês com certeza trabalharão juntos. Você é capaz de falar com ele plena e devidamente? Ele sabe alguma coisa a seu respeito? E, a propósito, ele sabe alguma coisa a respeito de si próprio? O guru é, de fato, capaz de enxergar através das suas máscaras, de comunicar-se com você adequada e diretamente? Na procura do mestre, estas parecem ser as indicações, muito mais do que a fama e a sabedoria.

Há uma história interessante de um grupo de pessoas que resolveu estudar sob a orientação de um grande mestre tibetano. Eles já tinham estudado um pouco com outros mestres, mas se haviam determinado a não poupar esforços para estudar com aquela determinada pessoa. Estavam todos muito ansiosos por se tornarem seus alunos e por isso lhe solicitaram uma audiência, mas o grande mestre não quis aceitar nenhum deles. “Só os aceitarei com uma condição”, disse ele: “se estiverem dispostos a renunciar aos seus mestres anteriores.” Todos lhe rogaram encarecidamente, decla- rando o quanto lhe eram devotados, quão grande era a sua reputação e o quanto gostariam de estudar com ele. O mestre, porém, não quis aceitar nenhum, a menos que cumprissem a condição. Finalmente, todos, exceto um, decidiram renunciar aos mestres anteriores, com os quais, de fato, haviam aprendido muita coisa. O guru lhes pareceu muito feliz quando eles assim fizeram e pediu-lhes que todos voltassem no dia seguinte. Mas, quando voltaram, disse-lhes: “Com- preendendo a hipocrisia de vocês. Da próxima vez que forem procurar outro mestre, renunciarão a mim. Por isso, fora daqui!” E enxotou-os a todos, menos ao que valorizava o que aprendera antes. A pessoa que ele aceitou já não estava mais disposta a tramas mentirosas, nem a tentar agradar o guru simulando ser diferente do que era. Se você for fazer amizade com um mestre espiritual, terá de agir com simplicidade, abertamente, de modo que a comunicação se estabeleça entre iguais, em lugar de tentar conquistar-lhe a simpatia.

Para poder ser aceito pelo guru corno amigo, você terá de abrir-se completamente com ele. E para poder abrir-se, terá provavelmente de sujeitar-se a provas que lhe serão dadas pelo seu amigo espiritual e pelas situações da vida em geral, e todas elas assumirão a forma de desapontamento. Em alguma fase do processo você duvidará de que o amigo espiritual tenha qualquer sentimento, qualquer emoção em relação a você. Isso é lidar com a própria hipocrisia. A hipocrisia, o fingimento e a deformação básica do ego é extremamente dura; tem uma pele muito grossa. Tendemos a usar armaduras, uma em cima da outra. Essa hipocrisia é tão densa e multinivelada que, assim que retiramos uma camada da armadura, encontramos outra debaixo dela. Esperamos que não sejamos obrigados a despir-nos completa- mente. Esperamos que o simples despojar de algumas camadas nos faça apresentáveis. Em seguida, aparecemos envergando a nova couraça com um rosto insinuante, mas o nosso amigo espiritual não usa nenhum tipo de armadura; é uma pessoa nua. Em comparação com a sua nudez, estamos vestidos de cimento. A nossa armadura é tão grossa que o nosso amigo não consegue sentir a textura da nossa pele, de nossos corpos. Não pode sequer ver direito o nosso rosto. Há muitas histórias antigas sobre relações entre mestre e aluno em que este último precisava fazer longas viagens e suportar muitas dificuldades até que a sua fascinação e os seus impulsos começassem a desgastar-se. Essa parece ser a questão: o impulso para procurar alguma coisa é, por si mesmo, um bloqueio. Quando este impulso começa a desgastar- se, a nossa nudez básica fundamental começa a aparecer e o encontro das duas mentes começa a ocorrer.

Já houve quem dissesse que a primeira fase do encontro com o amigo espiritual é como a ida a um supermercado. Você está emocionado e sonha com todas as coisas diferentes que irá comprar: a riqueza do amigo espiritual e as coloridas qualidades da sua personalidade. A segunda fase do relacionamento é como o comparecimento a um tribunal, como se você fosse um criminoso. Incapaz de satisfazer às exigências do seu amigo, você começa a sentir-se constrangido, porque não ignora que ele sabe tanto quanto você a respeito de você mesmo, o que é sumamente embaraçoso. A terceira fase, quando você vai ver o amigo espiritual, é como estar vendo uma vaca que pasta feliz, num campo. Você apenas lhe admira o sossego e a paisagem, e continua andando. Finalmente, a quarta fase é como passar por uma pedra na estrada. Você nem sequer percebe, passa por ela e segue em frente.

No princípio, ocorre uma espécie de namoro com o guru, um caso de amor. Até que ponto você é capaz de obter as boas graças dessa pessoa? Há uma tendência para querer estar mais perto do amigo espiritual, porque deseja realmente aprender. Sente grande admiração por ele. Ao mesmo tempo, porém, ele o assusta, o perturba. Ou a situação não corresponde às suas expectativas, ou há um sentimento embaraçoso que o leva a pensar: ‘Talvez eu não seja capaz de abrir-me total e completamente.” Surge, então, um relacionamento de amor e ódio, como um processo de entrega e fuga. Em outras palavras, começamos a jogar um jogo: o jogo de querermos nos abrir, de querermos nos envolver num caso de amor com o guru e, logo fugir. Se chegarmos demasiado perto do amigo espiritual, começaremos a nos sentir subjugados por ele. Como diz o antigo provérbio tibetano: “O guru é como o fogo. Se você se aproximar demais, se queimará; mas, se permanecer demasiado longe, não receberá calor suficiente.” Esse gênero de namoro acontece da parte do aluno, que tende a chegar perto demais do mestre, mas, ao fazê-lo, queima-se. Então deseja fugir de uma vez por todas.

Por fim, o relacionamento começa a tornar-se muito efetivo e sólido. Você começa a compreender que o desejo de estar perto e o desejo de estar longe do guru é simplesmente um jogo seu. Não tem relação alguma com a situação real, pois é apenas uma alucinação sua. O guru ou amigo espiritual está sempre lá, ardendo, sempre como um fogo de vida. Você pode entreter-se com ele, ou não, como bem entender.

A seguir, o relacionamento com o amigo espiritual começa a ficar muito criativo. Você aceita as situações de ser engolfado ou ser excluído por ele. Se ele decidir representar o papel da água gelada, você o aceita. Se ele decidir representar o papel do fogo, você o aceita. Nada o consegue abalar e você se reconcilia com ele.

A fase seguinte é aquela em que, tendo aceito tudo o que o amigo espiritual pode fazer, você começa a perder a própria inspiração porque se entregou completamente, desistiu completamente. Sente-se reduzido a um grãozinho de pó. É insignificante. Começa a achar que o único mundo que existe é o do seu amigo espiritual, o guru. Como se estivesse assistindo a um filme fascinante, tão emocionante que você passa a fazer parte dele. Já não há você, nem sala de cinema, nem poltronas, nem expectadores, nem amigos sentados ao seu lado. O filme é tudo o que existe. Este é o chamado “período da lua-de-mel”, em que se vêem todas as coisas como parte do ser central, o guru. Você não passa de uma pessoa inútil, insignificante, continuamente alimentada pelo grande e fascinante ser central. Toda vez que se sente fraco, cansado ou entediado, senta-se na sala do cinema e é entretido, enaltecido, rejuvenescido. Nesse ponto, destaca-se o fenômeno do culto da personalidade. O guru é a única pessoa do mundo que existe, viva e vibrante. O próprio significado da sua vida depende dele. Se você morrer, morrerá por ele. Se viver, sobreviverá por ele e é insignificante.

Esse caso de amor com o amigo espiritual, todavia, não dura para sempre. Mais cedo ou mais tarde diminuirá de intensidade e você terá de enfrentar sua própria situação de vida e sua própria psicologia. É como se houvesse casado e se acabasse a lua-de-mel. Você não só toma consciência da pessoa amada como foco central de sua atenção, mas também começa a perceber-lhe o estilo de vida. Começa reparando no que faz dessa pessoa um mestre, para além dos limites da individualidade e da personalidade. Dessa forma, o princípio da “universalidade do guru” entra igualmente em cena. Cada problema com que você se depara na vida é parte do seu casamento. Sempre que você vivência dificuldades, ouve as palavras do guru. Este é o ponto em que começa a conquistar a independência do guru como amante, porque cada situação passa a ser uma expressão dos ensinamentos. Primeiro você se entregou ao amigo espiritual. Depois se comunicou e entreteve-se com ele. E agora chegou ao estado de abertura completa, em conseqüência do qual começa a ver a qualidade de guru em cada situação da vida, e a perceber que todas as situações da vida lhe oferecem a oportunidade de ser tão aberto quando você é com o guru, de modo que todas as coisas podem transformar-se no guru.

Milarepa teve uma visão vivida do seu guru Marpa enquanto meditava num retiro muito rigoroso no Vale da Jóia da Pedra Vermelha. Enfraquecido pela fome e fustigado pelos elementos, desmaiara enquanto procurava juntar paus de lenha fora da caverna. Quando voltou a si, olhou para o oriente e viu nuvens brancas na direção em que vivia Marpa. Com muita saudade, cantou uma súplica, dizendo a Marpa o quanto ansiava por estar com ele. Marpa, então, apareceu- lhe numa visão, cavalgando um leão branco das neves, e disse-lhe algo corno: “Que aconteceu? Passou por alguma espécie de crise neurótica? Você compreende o dharma, por isso continue a praticar a meditação.” Reconfortado, Milarepa voltou à caverna, a fim de meditar. Sua confiança e dependência de Marpa nesse ponto indica que ainda não se libertara da noção do guru como amigo pessoal, individual.

Contudo, ao voltar para a caverna, encontrou-a cheia de demônios de olhos grandes como caçarolas e corpos do tamanho de polegares. Usou todos os tipos de artimanhas para obrigá-los a deixar de zombarias e provocações, mas eles se recusaram a sair até que Milarepa, finalmente, deixou de reagir reconhecendo a própria hipocrisia e cedeu à abertura. A partir desse ponto observou-se enorme mudança de estilo de seus poemas, porque ele aprendera a identificar-se com a qualidade universal de guru, em lugar de relacionar-se unicamente com Marpa como indivíduo.

O amigo espiritual passa a fazer parte de nós, ao mesmo tempo que continua a ser um indivíduo, uma pessoa externa. Como tal, o guru, tanto interno quanto externo, desempenha parte muito importante na penetração e exposição das nossas hipocrisias. O guru pode ser uma pessoa que age como um espelho, refletindo-nos, ou a nossa própria inteligência básica assume a forma do amigo espiritual. Quando o guru interno começa a funcionar, não se pode mais fugir da exigência de abrir-se. A inteligência básica nos segue a toda parte; não se pode escapar da própria sombra. “O Grande Irmão1 está nos vigiando.” Embora não sejam entidades externas que nos observam e assediam, nós nos assediamos. Nossa própria sombra nos assedia.

Podemos olhar para isso de duas maneiras diferentes. Podemos ver o guru como um fantasma, que nos assombra e zomba da nossa hipocrisia. Pode haver uma qualidade demoníaca na compreensão do que somos. De outro lado, há sempre a qualidade criativa do amigo espiritual que também se torna parte de nós. A inteligência básica, continuamente presente nas situações de vida, é tão aguda e penetrante que, em determinada fase, não conseguimos livrar-nos dela, ainda que o desejemos. Às vezes, ela assume uma expressão severa, outras um sorriso inspirador. Segundo a tradição tântrica, não vemos o rosto do guru, apenas a sua expressão durante o tempo todo, sorrindo, sardônico, ou fechando a cara, colérico. Sua expressão faz parte de cada situação de vida. A inteligência básica, tathagata-garbha, natureza de Buda, está sempre presente em toda experiência que a vida nos traz. Não há como escapar-lhe. Diz-se também nos ensinamentos: “É melhor não começar. Mas se você começar, é melhor terminar.” Por isso é melhor que você só ponha os pés no caminho espiritual, se precisar fazê-lo. Mas, depois que tiver posto os pés no caminho, depois que o tiver realmente feito, não pode voltar atrás. Não há jeito de escapar.

P: Tendo percorrido vários centros espirituais, tenho á impressão de que uma personalidade como a de Marpa deve ser um fenômeno muito perturbador para a maioria das pessoas intoxicadas com a busca espiritual. Eis um homem que parece não fazer nenhuma das coisas que, todos dizem, nos levarão até lá. Ele não é ascético nem se abstém de coisa alguma. Trata dos negócios de todos os dias. É um ser humano normal e, no entanto, aparentemente, é mestre de enorme capacidade. Foi Marpa o único que tirou o máximo proveito das possibilidades que se oferecem a um homem normal sem passar pela enorme dor do ascetismo e da disciplina da purificação?

R: É claro que Marpa é um exemplo das possibilidades que nos são oferecidas. Sujeitou-se, todavia, a uma tremenda disciplina e a um árduo treinamento enquanto esteve na Índia. Estudando com afinco sob a orientação de mestres indianos, preparou o seu caminho. Sou de opinião, porém, que devemos compreender o verdadeiro significado das palavras “disciplina” e “ascetismo”. A idéia básica do ascetismo é uma vida de acordo com o dharma, é ter o espírito fundamentalmente são. Se você pensa que levar uma vida vulgar é uma coisa mentalmente sadia, isso é dharma. Por outro lado, você talvez ache que levar a vida de um iogue ascético, tal. como a descrevem os textos, pode converter-se numa expressão de insanidade. Tudo depende do indivíduo. Trata-se de saber o que é realmente são para você, qual é o seu enfoque sólido, sadio e estável da vida. O Buda, por exemplo, não era um fanático religioso, que tentasse agir de acordo com algum alto ideal. Limitava-se a lidar com as pessoas de maneira simples, aberta e muito sábia. A sabedoria vinha-lhe do bom-senso transcendental. Seus ensinamentos eram saudáveis e abertos.

O problema parece ser que as pessoas se preocupam com um conflito entre o religioso e o profano. Acham dificílimo reconciliar a chamada “consciência mais elevada” com assuntos de ordem prática. Mas as categorias de mais alto e mais baixo, religioso e profano, não parecem realmente pertinentes a um enfoque de vida basicamente são.

Marpa era uma pessoa comum, preocupada em viver cada pormenor de sua vida. Nunca tentou ser alguém especial. Quando perdia a cabeça, simplesmente a perdia e chegava às vias de fato. Com a maior naturalidade. Nunca representou nem fingiu. Os fanáticos religiosos, por outro lado, estão sempre tentando viver de acordo com algum

1 Referência ao onivigilante ditador do livro 1984 de George Orwell (N. T.).

modelo do que supõem que tudo isso deve ser. Tentam conquistar as boas graças das pessoas apresentando-se agressivamente e com muita agitação, como se fossem totalmente puros e bons. A meu ver, todavia, a tentativa de provar que somos bons indica um medo qualquer. Marpa, porém, nada tinha para provar. Era apenas um respeitável cidadão comum, mentalmente sadio e, ao mesmo tempo, uma pessoa muito iluminada. De fato, é o pai de toda a linha- gem Kagyü, do qual emanam todos os ensinamentos que estamos estudando e praticando.

P: Existe um dito zen: “A princípio as montanhas são montanhas e os ribeirões são ribeirões. Depois, as montanhas já não são montanhas e os ribeirões já não são ribeirões. Mas, no fim, as montanhas voltam a ser montanhas e os ribeirões voltam a ser ribeirões.” Pois bem, não estamos todos na fase em que as montanhas já não são montanhas e os ribeirões já não são ribeirões? O senhor, todavia, dá destaque à qualidade vulgar. Mas não temos de passar por esse período “invulgar” antes de podermos ser realmente vulgares?

R: Marpa ficou muito transtornado quando morreu seu filho, e um dos seus discípulos perguntou: “O senhor costumava dizer que tudo é ilusão. Que me diz da morte de seu filho? Não é ilusão?” E Marpa replicou: “É verdade, a morte de meu filho é uma superilusão.” Quando experimentamos pela primeira vez a vulgaridade verdadeira, a experiência é tão extraordinariamente vulgar que poderíamos dizer que montanhas já não são mais montanhas, assim como os ribeirões já não são mais ribeirões, porque os vemos tão vulgares, tão precisos, “assim como são”. A invulgaridade deriva da experiência da descoberta. Finalmente, porém, esta supervulgaridade, esta precisão, converte-se num acontecimento de todos os dias, alguma coisa com a qual vivemos o tempo todo, realmente vulgar, e voltamos ao ponto em que começamos: as montanhas são montanhas e os ribeirões são ribeirões. E podemos relaxar.

P: Como é que tiramos a armadura? Como nos abrimos? R: Não se trata do como fazê-lo. Não existe ritual, nem cerimônia, nem fórmula de abertura. O primeiro obstáculo é a própria pergunta: “Como?” Se não nos interrogarmos, se não nos observarmos, fá-lo-emos simplesmente. Não pensamos em como vamos vomitar; vomitamos. Não há tempo para pensar; a coisa acontece. Se estivermos muito tensos; sentiremos uma dor tremenda e não seremos capazes de vomitar direito. Tentaremos engolir de novo, tentaremos lutar contra o mal-estar. Precisamos aprender a relaxar quando estamos doentes.

P: Quando as situações de vida principiam a transformar-se em nosso guru, tem importância a forma que assume a situação? Tem importância a situação em que nos encontramos?

R: Não temos escolha. O que quer que aconteça é uma expressão do guru. A situação pode ser de dor ou de inspiração, mas a dor e o prazer são a mesma coisa nesta abertura de ver a situação como guru.

Iniciação

A maior parte das pessoas que vieram estudar comigo, o fizeram porque ouviram falar de mim como pessoa, da minha reputação como mestre de meditação e lama tibetano. Mas quantas teriam vindo se nos tivéssemos encontrado por acaso na rua, ou nos tivéssemos conhecido num restaurante? Pouquíssimas ficariam inspiradas a estudar Budismo e meditação em virtude de um encontro desses. Ao contrário, as pessoas parecem inspirar-se no fato de eu ser um mestre de meditação vindo do exótico Tibete e ser a décima primeira reencarnação do Trungpa Tulku.

Deste modo, as pessoas vêm e buscam iniciação por meu intermédio, iniciação nos ensinamentos budistas e no sangha, a comunidade dos meditadores que seguem o caminho. Mas o que realmente significa essa iniciação? Existe uma longa e grande tradição de transmissão da sabedoria da linhagem budista de uma geração de meditadores à seguinte, e esta transmissão está ligada à iniciação. Mas em que consiste tudo isso?

Acho que vale a pena ser um pouco desconfiado a este respeito. As pessoas gostariam de receber iniciação; gostariam de entrar para o clube, receber um título, adquirir sabedoria. Pessoalmente, não me agrada manipular as fraquezas dos outros, o seu desejo de conseguir alguma coisa de extraordinário. Certas pessoas compram uma tela de Picasso simplesmente pelo nome do artista. Pagam milhares de dólares, sem considerar se o que estão comprando tem algum valor como arte. Estão comprando as credenciais do quadro, o nome; estão aceitando reputação e “diz-que-diz” como garantia de mérito artístico. Não há muita inteligência num ato destes.

Ou alguém poderá entrar para um clube, iniciar-se numa determinada organização por se sentir miserável, sem valor. O grupo é pródigo e rico, e a pessoa quer alguém que a alimente. Ela é alimentada e engorda, como esperava que acontecesse. Mas e daí? Quem está iludindo quem? O mestre, ou guru, está se iludindo, inflando seu ego? “Tenho um grande rebanho de seguidores que foram iniciados.” Ou está ele iludindo seus discípulos, levando-os a pensar que se tornaram mais sábios, mais espirituais, simplesmente porque se comprometeram com a organização e receberam o rótulo de monge, iogue, ou outro título qualquer? Há muitos títulos diferentes que se pode receber. Será que esses nomes, essas credenciais, nos trazem algum benefício verdadeiro? Será que trazem mesmo? Meia hora de cerimônia não

nos leva à etapa seguinte da iluminação; vamos encarar os fatos. Pessoalmente, tenho imensa devoção à linhagem budista e ao poder dos ensinamentos, e confio profundamente neles, mas não de um modo simplista.

Precisamos aproximar-nos da espiritualidade com um tipo de inteligência realista. Se formos ouvir um mestre falar, não devemos permitir que sua reputação e seu carisma nos arrebatem; devemos, sim, vivenciar adequadamente cada palavra da palestra ou cada aspecto da técnica de meditação que está sendo ensinada. Precisamos estabelecer uma relação clara e inteligente com os ensinamentos e com o homem que está ensinando. Esta inteligência não tem nada a ver com emocionalismo nem com a romantização do guru. Não tem nada a ver com a aceitação crédula de credenciais impressivas, nem se trata de ingressarmos num clube para enriquecer-nos.

Tampouco se trata de encontrar um guru sábio de quem possamos comprar ou roubar sabedoria. A verdadeira iniciação implica lidar honesta e diretamente com nosso amigo espiritual e com nós mesmos. Assim sendo, precisamos fazer algum esforço para nos expor e expor nossos auto-enganos. Temos que nos entregar e expor a qualidade nua e crua do nosso ego.

O equivalente em sânscrito de “iniciação” é abhisheka, que significa “espargir”, “Verter”, “unção”. E para se verter é preciso que haja um vaso onde possa cair o líquido vertido. Se nos comprometemos realmente, abrindo-nos para nosso amigo espiritual de maneira apropriada e completa, transformando-nos num vaso que possa receber a comunicação, ele também se abrirá, e então a iniciação ocorre. Este é o significado de abhisheka ou “o encontro das duas mentes”, a do mestre e a do discípulo.

Tal abertura não implica obter as boas graças do nosso amigo espiritual, nem tentar agradá-lo ou impressioná-lo. A situação é semelhante àquela em que um médico, percebendo que há qualquer coisa de errado com você, tira-o de casa, à força se necessário, e submete-o a uma operação sem anestesia. Você talvez ache este tipo de tratamento um pouco violento e doloroso demais; porém, depois, começa a compreender o quanto custa a verdadeira comunicação — o quanto custa estar em contato com a vida.

Doações em dinheiro a uma causa espiritual, contribuições em trabalho físico, envolvimento com determinado guru, nada disso significa necessariamente que nos comprometemos de fato com uma abertura. Mais provavelmente, esses tipos de compromisso são simples meios de provar que nos juntamos ao lado “certo”. O guru parece ser uma pessoa sábia. Sabe o que está fazendo e nós gostaríamos de ficar do seu lado, do lado seguro, o lado bom, a fim de garantirmos o nosso bem-estar e o nosso êxito. Mas, uma vez ligados ao seu lado, ao lado da sanidade, da estabilidade, da sabedoria, descobrimos, então, para nossa surpresa, que não conseguimos nos assegurar de maneira nenhuma, porque só comprometemos a nossa fachada, o nosso rosto, a nossa armadura. Não comprometemos a nós mesmos, por completo.

Então, somos obrigados a abrir a retaguarda. Para nosso horror, descobrimos que não há lugar para onde correr. Somos surpreendidos no ato de nos esconder atrás de uma fachada, ficamos expostos de todos os lados; o enchimento e a armadura que usávamos nos são arrancados. Não há mais lugar algum onde nos esconder. Chocante! Tudo é revelado: nosso mesquinho fingimento e egoísmo. A essa altura, poderemos compreender que as nossas tentativas desajeitadas de usar máscara sempre foram sem sentido.

Ainda assim, procuramos racionalizar esta situação penosa, tentando encontrar algum modo de nos proteger, de explicar a nossa difícil situação, de forma a satisfazer o nosso ego. Olhamos para ela deste e daquele ângulo, e a nossa mente se põe extremamente ocupada. O ego é muito profissional, espantosamente eficiente à sua maneira. Quando pensamos estar trabalhando para ir adiante, num processo de tentar esvaziar-nos, surpreendemo-nos caminhando para trás, tentando nos garantir, encher-nos. E a confusão continua e se intensifica até descobrirmos, afinal, que estamos completamente perdidos, que perdemos o chão, que não há ponto de partida, nem meio, nem fim, porque a nossa mente vem sendo soterrada por nossos mecanismos de defesa. Nestas circunstâncias, parece que a única alternativa é nos render e deixar as coisas serem como são. Nossas idéias engenhosas e nossas soluções astutas não nos ajudam, porque somos avassalados por um número excessivo de idéias; não sabemos quais escolher, nem quais as que irão nos proporcionar a melhor maneira de nos trabalhar. Nossa mente se encontra superpovoada por sugestões extraordinárias, inteligentes, lógicas, científicas e sagazes. Mas, por alguma razão, o número é grande demais e não sabemos que sugestão seguir.

Assim, finalmente, talvez possamos abrir mão de todas essas complicações e deixar algum espaço, simplesmente desistir. Este é o momento em que abhisheka — o ato de espargir e verter — realmente acontece, porque estamos abertos e abandonamos de fato toda tentativa de fazer alguma coisa, desistimos de todo afã e sobrecarga. Por fim, somos forçados a realmente parar de forma apropriada, o que é uma ocorrência rara para nós.

Temos muitos mecanismos diferentes de defesa, moldados pelos conhecimentos que recebemos, as leituras que fizemos, as experiências por que passamos, os sonhos que sonhamos. Finalmente, porém, começamos a questionar o que realmente significa a espiritualidade. É simplesmente urna questão de tentar ser religioso, devoto e bondoso? Ou é

tentar saber mais do que os outros; tentar aprender mais sobre o significado da vida? O que significa realmente a espiri- tualidade? As teorias e as doutrinas conhecidas da igreja de nossa família estão sempre à nossa disposição, mas por algum motivo não são estas as respostas que procuramos. Elas são um tanto ineficazes demais, inaplicáveis. E, assim, nos afastamos das doutrinas e dogmas da religião em que nascemos.

Podemos concluir que a espiritualidade é algo muito emocionante e colorido. É uma questão de nos explorarmos a nós mesmos segundo a tradição de alguma seita ou religião exótica e diferente.

Adotamos um outro gênero de espiritualidade, portando-nos de uma certa maneira, tentando modificar nosso tom de voz, nossos hábitos alimentares e nosso comportamento em geral. Depois de algum tempo, porém, tais tentativas artificiais de sermos espirituais começam a parecer desajeitadas e óbvias demais, familiares demais. Pretendíamos que estes padrões de comportamento se tomassem habituais, uma segunda natureza; mas, de uma forma ou de outra, eles não se transformaram completamente em uma parte de nós. Por mais que desejássemos que estes padrões de comportamento “iluminado” passassem a ser uma parte natural da nossa constituição, a neurose continua presente em nossa mente. Começamos a nos perguntar: “Se tenho agido de acordo com as sagradas escrituras de tal e tal tradição, como é que isso foi acontecer? Deve ter sido conseqüência da minha confusão, naturalmente. Mas o que é que eu faço agora?” A confusão prossegue, apesar de nós seguirmos fielmente as escrituras. A neurose e o descontentamento continuam. Nada realmente se encaixa; não estabelecemos uma ligação com os ensinamentos.

A essa altura, precisamos efetivamente do “encontro das duas mentes”. Sem abhisheka, nossas tentativas de atingir a espiritualidade resultarão apenas numa imensa coleção espiritual, em lugar de uma verdadeira entrega. Temos andado a colecionar diferentes padrões de comportamento, diferentes maneiras de falar, de vestir, de pensar, modos de agir totalmente diferentes. E tudo isso não passa de uma coleção que tentamos impor a nós mesmos.

Abhisheka, a verdadeira iniciação, nasce da entrega. Abrimo-nos para a situação tal e qual ela é e, depois, estabelecemos uma comunicação real com o mestre. De qualquer modo, o guru já está ali, conosco, num estado de abertura; e se nos abrirmos, se estivermos dispostos a renunciar às nossas coleções, a iniciação então acontece. Nenhuma cerimônia “sagrada” se faz necessária. De fato, considerar “sagrada” a iniciação é provavelmente uma sedução pelo que os budistas denominam as “filhas de Mara”. Mara representa a tendência neurótica da mente, o estado desequilibrado do ser, e manda suas filhas nos seduzir. Quando as filhas de Mara participam de uma iniciação em que o encontro das duas mentes está mesmo ocorrendo, elas dirão: “Você se sente sereno? Isso é porque está recebendo instrução espiritual, porque esta é uma coisa espiritual que está acontecendo com você, é sagrada.” Elas têm vozes suavíssimas, trazem uma linda e encantadora mensagem e nos seduzem, induzindo-nos a pensar que a comunicação, o “encontro das duas mentes”, é uma “coisa fantástica”. Aí então começamos a gerar novos padrões samsá-ricos da mente. Isto se parece com a idéia crista de morder a maçã; é a tentação. Quando consideramos abhisheka sagrado, a precisão e a incisividade começam imediatamente a desaparecer porque nós começamos a avaliar. Ouvimos as vozes das filhas de Mara dando-nos parabéns por havermos conseguido fazer uma coisa tão sagrada. Elas dançam à nossa volta e tocam música a pretexto de nos honrar neste momento cerimonial.

Na verdade, o encontro das duas mentes ocorre de maneira muito natural. Tanto o instrutor quanto o aluno, ao se encontrar, acham-se num estado de abertura em que ambos compreendem que a abertura é a coisa mais insignificante do mundo.

É totalmente insignificante, realmente comum, absolutamente nada. Quando somos capazes de ver a nós mesmos e ao mundo desta maneira, então a transmissão começa a ocorrer de forma direta. A tradição tibetana chama este modo de ver as coisas de “mente comum”, thamal-gyi-shépa. É a coisa mais insignificante de todas, a abertura completa, a ausência de qualquer espécie de arrecadação ou avaliação. Poderíamos dizer que esta insignificância é muito significativa, que este ser comum é verdadeiramente extraordinário. Mas isso não seria mais do que outra sedução tecida pelas filhas de Mara. Por fim, precisamos desistir de tentar ser alguma coisa especial.

P: Parece que não consigo desistir de tentar segurar-me. Que devo fazer?

R: Você quer tanto ficar seguro que a idéia de não se assegurar se converteu num jogo, numa grande piada, e num modo de você se assegurar. Você está preocupado em observar-se, e observar-se observando-se, e observar-se observando o ato de observar-se. E assim por diante; não tem fim. É um fenômeno bastante comum.

O que se faz realmente necessário é deixarmos completamente de nos importar, é pormos completamente de lado esta história toda. As complicações que vão se sobrepondo, construindo um finíssimo detector de mentiras, e também de um detector para o detector de mentiras; tais estruturas complexas têm que ser eliminadas. Você tenta se assegurar e, tendo alcançado a segurança, tenta assegurá-la também. Tais fortificações podem se estender por um império infinito. Talvez tenhamos somente um castelo pequenino, mas o raio de ação da nossa proteção pode ser tão extenso que cubra a terra toda. Se você efetivamente quer se assegurar, não há, a rigor, limite para os esforços que pode empreender.

Portanto, é necessário largar de mão completamente a idéia de segurança e ver a ironia das nossas tentativas para nos assegurar, a ironia da nossa estrutura sobreposta de autoproteções. Temos de abandonar o observador do observador do observador. E, para fazê-lo, temos de deixar de lado o primeiro observador, a própria intenção de proteção.

P: Não sei que nacionalidade citar, mas creio que, se fôssemos indianos, por exemplo, o senhor não falaria conosco desta maneira, falaria? Quero dizer, porque somos americanos e estamos tão empenhados em fazer coisas é que o senhor precisa falar conosco desta maneira. Se fôssemos dados a não fazer coisa alguma, a ficarmos sentados por aí, o senhor não falaria conosco assim.

R: Eis aí um ponto muito interessante. Tenho para mim que o estilo em que os ensinamentos são apresentados depende do quanto os ouvintes em questão estejam envolvidos com a agitação materialista. Os Estados Unidos atingiram um nível extremamente sofisticado de materialismo físico. Todavia, a possibilidade de um envolvimento com este tipo de agitação não se limita aos americanos; é mundial, universal. Se a índia chegar ao estágio de desenvolvimento econômico que os Estados Unidos conseguiram, onde as pessoas conquistaram e se desiludiram com o materialismo físico, os hindus virão assistir a uma palestra como esta. Nos dias de hoje, não acredito que haja público para este gênero de palestra, exceto no Ocidente, porque as pessoas nos outros lugares ainda não estão suficientemente cansadas da agitação do materialismo físico. Ainda estão guardando dinheiro para comprar bicicletas enquanto não podem comprar automóveis.

Auto-ilusão

A auto-ilusão é um problema constante à medida que avançamos por um caminho espiritual. O ego está sempre tentando alcançar a espiritualidade. É como se quiséssemos assistir ao nosso próprio enterro. No começo, por exemplo, podemos nos aproximar de nosso amigo espiritual com a esperança de conseguir dele alguma coisa maravilhosa. A esta aproximação dá-se o nome de “caça ao guru”, tradicionalmente comparada à caça do veado almiscareiro. O caçador persegue o veado, mata-o e dele retira o almíscar. Poderíamos adotar essa atitude para com o guru e a espiritualidade, mas isso não passaria de auto-ilusão. Nada teria a ver com uma abertura ou entrega verdadeira.

Podemos também supor erroneamente que a iniciação significa transplante, a transplantação do poder espiritual dos ensinamentos, do coração do guru para o nosso. Essa mentalidade encara os ensinamentos como algo estranho a nós; é semelhante à idéia de transplantar um coração de verdade ou mesmo uma cabeça. Implanta-se em nós um elemento estranho, proveniente de fora do nosso corpo. Podemos ficar inclinados a avaliar esse possível transplante. Talvez nossa velha cabeça não sirva mais; talvez deva ser jogada no lixo. Merecemos uma cabeça melhor, nova, uma cabeça mais inteligente e cheia de massa cinzenta. Estamos tão preocupados com o que vamos conseguir com a possível operação que nos esquecemos do médico que vai realizá-la. Será que paramos para estabelecer uma relação com o nosso médico? Ele é competente? A cabeça que escolhemos é mesmo adequada? Não teria o médico alguma coisa a dizer a respeito da cabeça que escolhemos? Talvez o nosso corpo vá rejeitar essa cabeça. Estamos tão envolvidos com aquilo que pensamos conseguir que ignoramos o que está de fato acontecendo, nossa relação com o médico, nossa doença, o que esta nova cabeça é na realidade.

Essa atitude para com o processo de iniciação é muito sonhadora e não tem nada de válido. Por isto necessitamos de alguém que esteja pessoalmente interessado em nós como realmente somos, necessitamos de uma pessoa que represente o papel de espelho. Toda vez que estivermos envolvidos com algum tipo de auto-ilusão, é preciso que o processo todo seja revelado, aberto. Qualquer atitude de apego deve ser exposta.

A verdadeira iniciação dá-se pelo “encontro das duas mentes”. É uma questão de sermos o que efetivamente somos e de nos relacionarmos com o amigo ou amiga espiritual tal como ele ou ela é. Esta é a verdadeira situação em que a iniciação pode ocorrer, porque a idéia de nos submetermos a uma operação e de nos modificarmos de maneira fundamental é completamente irreal. Ninguém pode, na verdade, modificar, de maneira absoluta, nossa personalidade. Ninguém pode virar-nos completamente de ponta-cabeça ou pelo avesso. Temos que usar o material existente, o que já está aí. Precisamos aceitar-nos como somos e não como gostaríamos de ser, o que significa renunciar à auto-ilusão e ao faz-de-conta. Toda a nossa constituição, as características de nossa personalidade precisam ser reconhecidas, aceitas; depois talvez possamos encontrar alguma inspiração.

Nesse momento, se manifestamos disposição para trabalhar com nosso médico, internando-nos num hospital, o médico, de sua parte, colocará à nossa disposição um quarto e tudo o mais que se fizer necessário. Assim, ambos os lados estarão criando uma situação de comunicação aberta, que é o significado fundamental do “encontro das duas mentes”. Este é o verdadeiro modo de unir a bênção ou adhishthana, a essência espiritual do guru, à nossa própria essência espiritual. O mestre exterior, o guru, abre-se, e, porque o discípulo também está aberto, porque está “desperto”, verifica-se o encontro dos dois elementos, que são idênticos. Este é o verdadeiro significado de abhisheka, da iniciação. Não se trata de entrarmos para um clube ou fazermos parte de um rebanho: sermos uma ovelha com as iniciais do dono marcadas no traseiro.

Podemos, agora, examinar o que vem depois do abhisheka. Com a experiência do encontro das duas mentes, estabelecemos uma comunicação verdadeira com nosso amigo espiritual. Nós não só nos abrimos como também vivenciamos — como um clarão — uma súbita intuição, um entendimento instantâneo de parte dos ensinamentos. O mestre criou a situação, nós experimentamos o clarão, e tudo parece muito bem.

A princípio ficamos muito entusiasmados; tudo é belo. Podemos verificar que, por vários dias, nos sentimos eufóricos e animados. Até parece que já atingimos o nível do estado búdico. Nenhuma preocupação mundana nos incomoda em absoluto; tudo transcorre sem nenhum empecilho; meditação instantânea ocorre o tempo todo. É uma experiência contínua do nosso momento de abertura com o guru. Isto é muito comum. A essa altura, muitas pessoas talvez achem que já não precisam trabalhar com o amigo espiritual, que até podem deixá-lo, podem ir embora. Ouvi inúmeras histórias de casos assim, acontecidos no Oriente: estudantes que encontraram um mestre, receberam uma experiência instantânea de iluminação e depois se foram. Eles tentavam preservar a experiência mas, à medida que o tempo passava, ela se tornava uma simples lembrança, palavras e idéias que eles repetiam a si mesmos.

É bem possível que sua primeira reação depois de uma experiência dessa natureza seja a de escrevê-la num diário, explicando em palavras tudo o que aconteceu. Você tenta fixar-se firmemente na sua experiência por meio de escritos e memórias, comentários com os outros, ou conversas com as pessoas que o viram passar pela experiência.

Ou pode ser que uma pessoa vá ao Oriente, tenha este tipo de experiência e, em seguida, volte para o Ocidente. Os amigos talvez a achem tremendamente mudada. Ela pode parecer mais calma, tranqüila, sábia. Muita gente talvez peça, a esta pessoa, ajuda e conselhos para seus problemas pessoais, peça uma opinião sobre sua experiência com a espiritualidade. No princípio, o modo como a pessoa ajuda os outros é autêntico, relacionando os problemas deles com a sua própria experiência no Oriente, contando-lhes histórias belas e genuínas do que lhe aconteceu. Isto lhe serviria como uma grande inspiração.

Mas, num dado momento, nesse tipo de situação, alguma coisa tende a se desencaminhar. A lembrança daquele súbito clarão, da visão penetrante que a pessoa experimentou, perde intensidade; não dura porque a pessoa a considera externa a si mesma. Sente que teve uma súbita experiência do estado desperto da mente e que ela pertence à categoria das coisas sagradas, da experiência espiritual. A pessoa atribui grande valor à experiência e depois a relata ao mundo corriqueiro e familiar de sua terra natal, a seus inimigos e amigos, pais e parentes, e a todos de suas relações que agora pensa ter transcendido e superado. Acontece, porém, que agora a experiência já não está mais com quem a viveu. Só resta uma lembrança. E, no entanto, tendo proclamado sua experiência e conhecimento aos outros, a pessoa evidentemente não pode voltar atrás e afirmar que o que disse anteriormente era falso. Não pode fazer isto de maneira alguma; seria humilhante demais. Além do que, ainda tem fé na experiência, acredita que algo profundo de fato aconteceu. Infelizmente, porém, a experiência já não se acha presente no momento atual, porque foi usada e avaliada.

Falando de um modo geral, o que sucede é que, depois que nos abrimos, que temos o “clarão”, num segundo momento, percebemos que estamos abertos e a idéia de avaliação aparece subitamente. “Oba! Fantástico! Tenho que pegar uma coisa destas, tenho que capturá-la e conservá-la, porque é uma experiência muito rara e valiosa.” Assim, procuramos agarrar-nos à experiência e aí começam os problemas — com a consideração de que a experiência verdadeira da abertura é algo valioso. Tão logo tentamos capturar a experiência, toda uma série de reações em cadeia se inicia.

Se considerarmos alguma coisa valiosa e extraordinária, ela então se tomará bem distinta de nós. Não consideramos valiosos, por exemplo, nossos olhos, nosso corpo, nossas mãos ou nossa cabeça, porque sabemos que fazem parte de nós. Está claro que, se perdêssemos qualquer um deles, nossa reação automática seria a de que perdemos uma coisa valiosíssima: ‘Perdi minha cabeça, perdi meu braço; é impossível substituí-los!” Compreendemos, então, que são coisas valiosas. Quando alguma coisa nos é tirada, temos a oportunidade de compreender que ela é valiosa. Mas quando a temos conosco o tempo todo, quando faz parte da nossa constituição, não podemos valorizá-la particularmente; ela apenas está aí. A avaliação decorre do medo de ficarmos separados, o que é precisamente aquilo que nos mantém separados. Consideramos extraordinariamente importante qualquer inspiração repentina, porque receamos perdê-la. É nesse ponto exato, nesse exato momento, que a auto-ilusão entra em cena. Em outras palavras, perdemos a fé na experiência da abertura e na sua relação conosco.

De alguma forma, perdemos a unidade da abertura e daquilo que somos. A abertura passou a ser uma coisa separada e, então, começamos a dissimular. É evidente que não podemos dizer que perdemos a abertura. “Eu costumava tê-la, mas a perdi.” Não podemos dizer isto, porque iria destruir o nosso status de pessoa realizada. Portanto, o papel da auto-ilusão consiste em recontar histórias. Preferimos contar histórias a experimentar realmente a abertura, porque as histórias são muito vividas e nos entretém. “Quando eu estava com meu guru, aconteceu isso e aquilo; ele me disse tal e tal coisa, e abriu-me desta e daquela maneira, etc., etc.” Neste caso, auto-ilusão significa tentar recriar reiteradamente uma experiência passada, em vez de vivenciar de fato a experiência no momento presente. Para viver a experiência

agora, teríamos de desistir da avaliação, da maravilha que foi o clarão, pois é esta lembrança que a mantém à distância. Se tivéssemos a experiência continuamente, ela pareceria bastante corriqueira, e é este fato que não podemos aceitar. “Se ao menos eu pudesse ter outra vez aquela experiência da abertura!” É assim que nos conservamos ocupados em não ter a experiência: recordando-a. Este é o jogo da auto-ilusão.

A auto-ilusão necessita da idéia da avaliação bem como de uma memória de longo alcance. Pensando no que passou, sentimo-nos nostálgicos e comprazemo-nos com nossas recordações, embora não saibamos onde estamos neste exato momento. Lembramos os “bons tempos”, “aqueles dias bons do passado”. Não permitimos em absoluto que a depressão venha à tona; não queremos aceitar a suspeita de que perdemos contato com alguma coisa. Toda vez que surge a possibilidade de uma depressão e um sentimento de perda ameaça aparecer, a natureza defensiva do ego imediatamente traz à mente lembranças e palavras que ouvimos no passado, a fim de nos confortar. Assim, o ego está continuamente à procura de inspiração sem raízes no presente; é um contínuo voltar para trás. Esta é a ação mais complicada da auto-ilusão: não deixamos, de maneira nenhuma, que a depressão chegue a existir. “Visto que recebi bênçãos tão grandes e tive a sorte de passar por essas maravilhosas experiências espirituais, como é possível dizer que estou deprimido? Impossível, não há lugar para a depressão.”

Conta-se uma história a respeito do grande mestre tibetano, Marpa. Quando Marpa se encontrou pela primeira vez com seu próprio mestre, Naropa, este criou um altar que, segundo ele, era a corporifi-cação da sabedoria de um determinado heruka. Como tanto o santuário quanto Naropa dispunham de energia espiritual e poderes enormes, Naropa perguntou a Marpa diante de qual dos dois iria prostrar-se a fim de experimentar a súbita compreensão da iluminação. Sendo Marpa um estudioso, refletiu que o guru vivia na carne, num corpo humano comum, ao passo que a sua criação, o altar, era um corpo puro de sabedoria, nada tendo a ver com a imperfeição humana. Assim, Marpa se prostrou diante do santuário. Naropa, então, lhe disse: “Receio que a sua inspiração vá diluir-se. Você fez a escolha errada. Este santuário é minha criação e, sem mim, nem estaria aqui. A questão do corpo humano versus o corpo de sabedoria é irrelevante. A grande exibição do mandala foi tão-somente uma criação minha.”

Essa história ilustra o princípio do sonho, da esperança, do desejo, como auto-ilusão. Enquanto você olhar para si mesmo ou para qualquer parte de sua experiência como “o sonho que virou realidade”, estará envolvido com auto- ilusão. A auto-ilusão parece depender sempre do mundo dos sonhos, porque você preferiria ver o que ainda não viu a ver o que está vendo agora. Não aceita que o que está aqui agora seja o que é, nem está disposto a continuar com a situação tal qual ela é. Assim, a auto-ilusão sempre se manifesta sob a forma de tentativas de criar ou recriar um mundo sonhado, a nostalgia da experiência de sonhar. E o oposto da auto-ilusão é simplesmente trabalhar com os fatos da vida.

Se procurarmos qualquer tipo de alegria ou felicidade plena, a realização de nossa imaginação e de nossos sonhos, então ficaremos, igualmente, sujeitos a insucesso e depressão. Tudo se resume nisto: o medo da separação, a esperança de alcançar a união, não são simplesmente manifestações ou ações do ego ou da auto-ilusão, como se o ego fosse, de algum modo, uma coisa real que praticasse determinadas ações. O ego são as ações, os eventos mentais. O ego é o medo de perder a abertura, o medo de perder o estado não-egóico. Este é o significado da auto-ilusão neste caso: o ego que chora a perda do estado não-egóico, de seu sonho de realização. Medo, esperança, perda, ganho — estes formam o constante desenrolar do sonho do ego, a estrutura que se autoperpetua, que se automantém e que é a auto-ilusão.

Portanto, a verdadeira experiência, que está além do mundo dos sonhos, é a beleza, as cores e o entusiasmo da experiência real do agora na vida cotidiana. Quando enfrentamos as coisas tais como são, abandonamos a esperança de algo melhor. Não há mágica alguma, porque não podemos mandar que saiamos da nossa depressão. Depressão e ignorância, seja qual for a emoção que experimentamos, todas são reais e contém verdades extraordinárias. Se quisermos, de fato, aprender a ver a experiência da verdade, teremos de estar onde estamos. Tudo é apenas uma questão de ser um grão de areia.

P: O sr. poderia falar um pouco mais sobre a mecânica dessa força do desespero? Consigo compreender como o desespero pode ocorrer, mas por que ocorre a felicidade, o estado de graça?

R: É possível, no princípio, nos forçarmos a ter a experiência dessa felicidade. É uma espécie de auto-hipnose, no sentido de que nos recusamos a ver o quadro geral que forma nosso pano de fundo. Focalizamos somente a experiência imediata da felicidade. Ignoramos todo o terreno básico em que realmente nos encontramos, por assim dizer, e nos conduzimos para produzir uma experiência de enorme alegria. O problema é que este tipo de experiência se baseia unicamente na observação que fazemos de nós mesmos. Trata-se de uma atitude totalmente dualista. Nós gostaríamos de experimentar alguma coisa e, trabalhando muito, vamos de fato consegui-lo. Todavia, depois que descemos das alturas, depois que percebemos que ainda estamos aqui, como uma rocha escura erguida entre as ondas do mar, instala- se a depressão. Gostaríamos de nos embebedar, de nos embriagar, de nos fundir com o universo inteiro, mas por alguma razão isto não acontece. Continuamos aqui, o que é sempre a primeira coisa que nos faz descer. Mais tarde começam todos os outros jogos da auto-ilusão, as tentativas de nos dar corda ainda mais, porque estamos tentando nos proteger por inteiro. É o princípio do “observador”.

P: O sr. fala de pessoas que vivem alguma experiência e, em seguida, vão agarrá-la intelectualmente, rotulando-a dizendo: “Isto é fantástico.” Isto parece ser quase que uma reação automática. O sr. poderia descrever como as pessoas começam a afastar-se deste comportamento? Tenho a impressão de que, quando mais tentamos não avaliar, mais avaliamos.

R: Bem, quando você compreende que está realmente fazendo isso e não está conseguindo nada, acho então que começa a encontrar a saída. Começamos a ver que o processo todo faz parte de um jogo imenso que, na verdade, não traz nenhum proveito, pois estamos continuamente construindo, em vez de chegar à compreensão de alguma coisa. Não há magia nem truque nenhum presente. A única coisa a fazer é tirar a máscara, o que é bastante doloroso.

Talvez você tenha que construir e construir, até entender a futilidade das tentativas de alcançar a espiritualidade. Toda a sua mente pode ficar completamente congestionada com sua luta. Na realidade, você pode até ficar sem saber se está indo ou vindo, a ponto de se sentir completamente exausto. Aí pode ser que você aprenda uma lição muito útil: desistir de toda a situação, não ser nada. Talvez você até sinta um anseio de não ser nada. Parece haver duas soluções: ou simplesmente tirar a máscara, ou construir e construir, lutar e lutar, até atingir um crescendo, e depois largar tudo.

P: O que acontece quando dizemos: “Oba, consegui!” Isto não acaba com tudo, acaba?

R: Não necessariamente. Mas o que acontece depois? Você prefere ficar repetindo sua experiência a trabalhar com a situação presente daquilo que é? Podemos experimentar uma alegria imensa no primeiro clarão de abertura, que é muito bonito. Porém, o que vem depois é importante: se você vai esforçar-se para agarrar e recriar a experiência, ou se vai deixar as coisas serem como são, permitindo que a experiência seja apenas uma experiência, sem tentar recriar o primeiro clarão.

P: Somos ambiciosos, estamos sempre construindo e, quanto mais pensamos no caso, pior fica. Daí tentamos simplesmente fugir de tudo, tentamos não pensar na situação, tentamos enveredar por todos os tipos de fuga. O que significa isso e como podemos superar o fato de que, quanto mais pensamos na iluminação e tentamos investigá-la, piores ficam as coisas e mais se acumulam conceituações? O que podemos fazer?

R: É muito óbvio. Deixamos por completo de procurar o que quer que seja, deixamos de lado a tentativa de descobrir alguma coisa, de nos provar a nós mesmos.

P: Mas, às vezes, podemos ter um sentimento ativo de estar fugindo, e isto não é o mesmo que não fazer nada.

R: Quando nos pomos a fugir, descobrimos que não somente estamos sendo perseguidos por trás, como também que há pessoas vindo ao nosso encontro pela frente. No final, não há lugar para escapar. Ficamos completamente acuados. A esta altura, a única coisa que podemos mesmo fazer é nos render, pura e simplesmente.

P: O que significa isto?

R: Bem, temos que passar pela experiência. Significa abandonar as tentativas de ir para algum lugar, tanto em termos de fugir de algo, como de correr para algo, pois ambos são a mesma coisa.

P: A lembrança de si ou a auto-observação são incompatíveis com o desistir e o estar aqui?

R: A lembrança de si é, na verdade, uma técnica muito perigosa. Pode tanto consistir na observação de nós mesmos e de nossos atos, como um gato faminto observa um rato, quanto pode ser um gesto inteligente de estarmos onde estamos. Toda a questão se resume em que, se tivermos alguma idéia de relação — estou vivendo esta experiência, estou fazendo isto – o “eu” e o “isto” são, igualmente, muito fortes. De uma forma ou de outra, haverá conflito entre “eu” e “isto”. É mais ou menos como dizer que “isto” é a mãe, e “eu”, o pai. Com a presença destes dois extremos tão polarizados, estamos fadados a dar origem a alguma coisa. Daí que a idéia toda consiste em fazer com que “isto” não esteja presente, pois neste caso “eu” tampouco estará. Ou, então, que “eu” não esteja presente e, portanto, “isto” também não. Não se trata de nos dizermos isto, mas sim de senti-lo, uma experiência efetiva. Precisamos afastar o observador que vigia os dois extremos. Afastado o observador, a estrutura toda cai por terra. A dicotomia só subsiste enquanto houver um observador que mantenha o quadro todo em pé. Precisamos remover o observador e a complicadíssima burocracia que ele cria para se certificar de que nada vai escapar ao quartel-general. Afastado o observador, abre-se um espaço enorme, pois ele e a sua burocracia ocupam demasiado lugar. Se eliminamos o filtro do “eu” e “outro”, o espaço torna-se vivo, preciso e inteligente. O espaço contém a precisão incrível de poder trabalhar com as situações nele existentes. Na realidade, não precisamos do “vigia” ou do “observador” para nada.

P: Será que o observador existe porque desejamos viver no que parece ser um nível mais alto, ao passo que, se deixarmos as coisas como estão, talvez vamos nos encontrar aqui?

R: É verdade. Quando o observador desaparece, não se aplicam noções de níveis mais altos e mais baixos, de modo que não há mais tendência alguma para lutar, nenhuma tentativa para ficar no alto. Então, limitamo-nos a estar onde estamos.

P: Podemos remover o observador à força? Não seria novamente um jogo da avaliação?

R: Não precisamos encarar o observador como um vilão. Assim que começamos a compreender que o propósito da meditação não é passar para uma posição mais elevada, mas sim estar presente, aqui, o observador deixa de ter eficiência bastante para cumprir sua função, e desaparece automaticamente. A qualidade fundamental do observador é tentar ser extremamente eficiente e ativo. Mas a atenção plena é algo que já temos, de modo que tentativas ambiciosas ou “eficientes” de sermos atentos já nascem mortas. À medida que começa a perceber que é irrelevante, o observador se vai.

P: Pode haver consciência sem o observador? R: Sim, porque o observador é apenas paranóia. Podemos ter abertura completa, uma situação panorâmica, sem precisar discriminar entre dois lados, “eu” e “outro”.

P: Esta consciência implicaria um sentimento de felicidade completa?

R: Creio que não, porque essa felicidade é uma experiência muito individual. Você é independente e vive a sua felicidade. Quando o observador se vai, não há avaliação da experiência em termos de prazer ou dor. Quando você tem consciência panorâmica sem a avaliação do observador, a bem-aventurança se torna irrelevante pelo simples fato de não haver ninguém que a esteja experimentando.

A Via Difícil

Já que ninguém vai nos salvar, pois ninguém vai nos iluminar magicamente, o caminho que estamos discutindo chama-se “via difícil”. Este caminho não se coaduna com a nossa expectativa de que o envolvimento com os ensinamentos budistas será suave, tranqüilo, agradável, compassivo. Eis a via difícil: é um simples encontro de duas mentes. Se abrirmos nossa mente, se estivermos dispostos a nos encontrar, então o mestre também abrirá a sua mente. Não é uma questão de mágica; a condição da abertura é uma criação mútua.

Em geral, quando falamos em liberdade, libertação ou compreensão espiritual, acreditamos que para alcançar estas coisas não precisamos fazer absolutamente nada, pois alguém cuidará de nós. “Você está bem, não se preocupe, não chore, tudo vai correr muito bem. Cuidarei de você.” Inclinamo-nos a pensar que tudo o que temos de fazer é entrar para a organização, pagar a jóia de admissão, assinar o livro de registro e, em seguida, obedecer às instruções que nos forem dadas. “Estou convencido de que a sua organização é válida, responde a todas as minhas perguntas. Vocês podem me programar como quiserem. Se quiserem colocar-me em situações difíceis, façam-no, deixo tudo por sua conta.” Essa atitude proporciona o conforto de No precisar fazer nada, senão cumprir ordens. Fica tudo a cargo da outra pessoa, que se encarrega de instruir-nos e atenuar as nossas deficiências. Para nossa surpresa, no entanto, as coisas não funcionam dessa maneira. A idéia de que não temos nada para fazer por nós mesmos é um extremado faz-de-conta.

Exige tremendo esforço o desbravamento das dificuldades do caminho até engajarmo-nos efetivamente, de forma ideal e adequada, às situações da vida. Por conseguinte, o essencial na via difícil parece ser a necessidade de um esforço individual, que terá de ser feito pelo discípulo para reconhecer-se a si mesmo, para passar pelo processo de desmascaramento. Precisamos estar dispostos a ficar sozinhos, o que No é fácil.

Isso No quer dizer que o mais importante do caminho difícil seja que devamos ser heróicos. A atitude de “heroísmo” baseia-se na presunção de que somos maus, impuros, de que não somos dignos, de que não estamos preparados para a compreensão espiritual. Precisamos nos reformar, ser diferentes do que somos. Se pertencermos à classe média americana, por exemplo, precisaremos desistir dos nossos empregos ou abandonar a faculdade, sair de nossas casas suburbanas, deixar crescer o cabelo, talvez experimentar drogas. Se formos hippies, precisaremos largar as drogas, cortar o cabelo, jogar fora os nossos jeans rasgados. Julgamo-nos especiais, heróicos, conseguindo negar a tentação. Tomamo-nos vegetarianos e mais isto e mais aquilo. Há muitas coisas em que nos podemos converter. Achamos que o nosso caminho seja espiritual porque segue literalmente na contramão do que éramos, mas isto é apenas o caminho do falso heroísmo, e nesse sentido o heróico é unicamente o ego.

Podemos levar esse gênero de falso heroísmo a grandes extremos, colocando-nos em situações completamente austeras. Se os ensinamentos que nos comprometemos a seguir recomendarem que fiquemos de cabeça para baixo durante vinte e quatro horas por dia, assim ficaremos. Purificamo-nos, praticamos a austeridade e nos sentimos extremamente limpos, reformados, virtuosos. Talvez não pareça haver nisso nada de errado na ocasião.

Podemos tentar imitar certos caminhos espirituais, como o do índio americano, ou o do hindu, ou o do zen-budista japonês. Podemos abandonar nossos temos, colarinhos e gravatas, nossos cintos, calças e sapatos, na tentativa de seguir- lhes o exemplo. Ou podemos decidir rumar para o norte da Índia a fim de juntarmo-nos aos tibe-tanos. Podemos usar roupas tibetanas e adotar costumes tibetanos. Isso nos parecerá ser a “via difícil”, porque sempre haverá obstáculos e tentações para distrair-nos do nosso propósito.

Sentados num ashram hindu, não comemos chocolate durante seis ou sete meses e, portanto, sonhamos com chocolate, ou com outras guloseimas que apreciamos. Talvez sintamos saudades das festas do Natal ou das comemorações do Ano-novo. Mas ainda assim cremos haver encontrado o caminho da disciplina. Lutamos contra os empecilhos desse caminho e nos tomamos competentes, mestres em alguma espécie de disciplina. Esperamos que a magia e a sabedoria do nosso treinamento e da nossa prática nos conduzam ao estado mental correto. Às vezes, chegamos a pensar que alcançamos a meta. Talvez estejamos completamente eufóricos ou absortos por um período de seis ou sete meses. Mais tarde o nosso êxtase desaparece. E assim caminham as coisas, sempre na mesma direção. Como haveremos de lidar com essa situação? Podemos ser capazes de permanecer eufóricos e bem-aventurados por um espaço de tempo muito longo, mas depois teremos de voltar, ou “descer”, ou retornar ao normal.

Não estou dizendo que as tradições estrangeiras ou discipli-nares não se aplicam ao caminho espiritual. Estou dizendo que temos a noção de que deve haver alguma espécie de remédio ou poção mágica que nos ajude a atingir o estado correto da mente. Isto parece uma abordagem às avessas do problema. Esperamos que, manipulando a matéria, o mundo físico, possamos alcançar a sabedoria e a compreensão. Podemos até esperar que cientistas especializados o façam por nós. Eles nos internariam num hospital, nos administrariam as drogas corretas e nos alçariam a um estado elevado de consciência. Creio, porém, que, infelizmente, isso é impossível, que não podemos fugir do que somos, disso que carregamos conosco durante todo o tempo.

Assim, o ponto para o qual voltamos é que é necessário uma espécie de dádiva verdadeira ou sacrifício, se quisermos abrir-nos completamente. Essa dádiva pode assumir qualquer forma. Mas, para ser significativo, terá de implicar desistência da nossa esperança de obter alguma coisa em troca. Não importa o número de títulos que possuímos, nem quantos trajes exóticos esfarrapamos de tanto usá-los, nem de quantas filosofias, compromissos e cerimônias sacramentais participamos. Precisamos renunciar à ambição de conseguir alguma coisa em troca da dádiva. Essa é a verdadeira via difícil.

Podemos ter passado dias maravilhosos passeando pelo Japão. Podemos ter apreciado a cultura japonesa, os formosos templos zen, as magníficas obras de arte. E não somente achamos belas tais experiências, como elas também nos disseram alguma coisa. Essa cultura é a criação de todo um estilo de vida inteiramente diferente do estilo de vida do mundo ocidental, e tais obras mexeram conosco. Mas até que ponto o requinte da cultura e das imagens, a beleza das formas externas realmente nos abalam, nos comovem? Não sabemos. Desejamos tão-só saborear nossas belas lembranças. Não queremos examinar muito de perto nossas experiências. Essa é uma área sensível.

Por outro lado, talvez um determinado guru nos tenha iniciado numa cerimônia muito comovente, extremamente significativa. A cerimônia era real, direta e bela; mas quanto da experiência estamos dispostos a examinar? Isto é algo muito pessoal, delicado demais para que o questionemos. Teríamos preferido entesourar e preservar o sabor e a beleza da experiência, de modo que, quando chegassem tempo difíceis, quando estivéssemos deprimidos e “na fossa”, pudés- semos trazer essa lembrança à mente a fim de confortar-nos, dizer-nos que, na realidade, fizemos alguma coisa que valeu a pena, que estamos no caminho. Esta não parece, de maneira alguma, a via difícil.

Pareceria, ao contrário, que mais teríamos estado amealhando do que dando. Se refletirmos sobre como fizemos nossas compras espirituais, poderemos lembrar-nos de alguma ocasião em que demos algo completa e apropriadamente, em que nos abrimos e demos tudo? Alguma vez nos desmascaramos, despindo-nos da armadura, da camisa, da pele, da carne, das veias e até do coração? Experimentamos realmente o processo de despir-nos, de abrir-nos e de darmos? Esta é a questão fundamental. Precisamos, de fato, entregar-nos, dar alguma coisa, desistir de alguma coisa de maneira muito dolorosa. Temos de começar a desmantelar a estrutura básica desse ego que conseguimos produzir. O processo de desmantelamento, de desagregação, de abertura, de renúncia, é o verdadeiro processo de aprendizagem. A quanto dessa situação de unha encravada decidimos renunciar? O mais provável é que não tenhamos conseguido renunciar a coisa alguma. Limitamo-nos a juntar, construir, adicionar camada sobre camada. De modo que a perspectiva da via difícil é muito ameaçadora.

O problema é que tendemos a procurar uma resposta fácil e sem dor. Mas esse tipo de solução não se aplica ao caminho espiritual, que muitos de nós não devíamos sequer ter iniciado. Uma vez que enveredamos pelo caminho espiritual, ele é por demais doloroso, e padeceremos as conseqüências. Comprometemo-nos com a dor de expor-nos, de tirar a roupa, a pele, os nervos, o coração, os miolos, até ficarmos expostos ao universo. Nada restará. Será terrível, insuportável, mas assim é que é.

Seja como for, surpreendemo-nos em companhia de uma estranho médico. Ele vai nos operar, mas não usará

anestesia porque deseja realmente se comunicar com a nossa doença. Não permitirá que usemos nossa fachada de espiritualidade, sofisticação psicológica, falsa doença psicológica, ou qualquer outro disfarce. Desejamos nunca o ter conhecido. Gostaríamos de saber nos anestesiar. Mas agora estamos fadados a isso. Não há saída. Não por ele ser muito poderoso. Poderíamos dizer-lhe adeus num minuto e partir. Mas já nos expusemos demais a esse médico e, se tivermos de fazer tudo isso outra vez, será muito doloroso. Não desejamos precisar repeti-lo. De modo que, agora, teremos de ir até o fim.

Estar com esse médico é extremamente incômodo para nós, porque estamos sempre tentando enganá-lo, embora saibamos que ele vê nossas intenções por trás de nossas artimanhas. A operação é a sua única maneira de comunicar-se conosco, de modo que precisamos aceitá-la; precisamos nos abrir para a via difícil, para a operação. Quanto mais perguntamos — “O que é que você vai fazer comigo?” — tanto mais perturbados ficamos, porque sabemos o que somos. É um caminho estreitíssimo, sem saída, um caminho doloroso. Precisamos nos entregar completamente e nos comunicar com esse médico. Ademais, precisamos desmascarar nossas expectativas de magia da parte do guru, de que ele possa, mercê de seus poderes mágicos, nos iniciar em alguns caminhos extraordinários e indolores. Precisamos desistir de procurar uma operação indolor, desistir da esperança de que seja empregado um anestésico ou um sedativo de modo que, ao acordarmos, tudo esteja perfeito. Precisamos estar dispostos a comunicar-nos de um modo totalmente aberto e direto com o nosso amigo espiritual e com a nossa vida, sem nenhum canto escondido. É difícil e dolorosa; é a via difícil.

P: A nossa auto-exposição é alguma coisa que simplesmente acontece, ou há um modo de fazê-lo, um modo de abrir-nos?

R: Creio que se já estivermos comprometidos com o processo de expor-nos, quanto menos tentarmos nos abrir tanto mais óbvio se tornará o processo da abertura. Eu diria que se trata mais de uma ação automática do que de alguma coisa que tenhamos de fazer. No princípio, quando discutimos a entrega, eu disse que, tendo exposto tudo ao amigo espiritual, não teremos de fazer mais nada. É uma questão de aceitar o que é, o que, em todo caso, tendemos a fazer de qualquer maneira. Vemo-nos, não raro, em certas situações, completamente nus, desejando ter roupas para nos cobrir. Situações embaraçosas como essas sempre surgem na vida.

P: Precisamos ter um amigo espiritual antes de poder nos expor, ou podemos simplesmente nos abrir para as situações da vida? R: Creio que precisamos de alguém para vigiar-nos, porque assim o processo nos parecerá mais real. É muito fácil despirmo-nos num quarto, com ninguém por perto, mas achamos constrangedor nos despir numa sala cheia de gente.

P: Quer dizer que se trata efetivamente de nos expormos a nós mesmos?

R: Sim. Mas não o vemos desse jeito. Temos uma forte consciência do público porque temos muita consciência de nós mesmos.

P: Não vejo por que a prática de austeridades e o domínio da disciplina não seja a “verdadeira” via difícil.

R: Você pode iludir-se imaginando estar percorrendo a via difícil, quando, na realidade, não está. É como participarmos de urna peça heróica. A “via suave” pertence muito mais à experiência do heroísmo, ao passo que a via difícil é muito mais pessoal. Depois de seguir pelo caminho do heroísmo, ainda nos restará a via difícil para percorrer, o que é muito chocante descobrir.

P: É necessário passar pela via heróica primeiro e perseverar nela a fim de percorrer depois a via realmente difícil?

R: Acho que não. E é isso mesmo que estou tentando evidenciar. Se nos envolvermos com a via heróica, estaremos acrescentando camadas ou peles à nossa personalidade, porque imaginamos haver alcançado alguma coisa. Mais tarde, para nossa surpresa, descobrimos que é necessário alguma coisa mais. Precisamos remover as camadas, as peles.

P: O senhor fala na necessidade de experimentarmos uma dor cruciante. A compreensão do processo de desmascaramento não pode tornar desnecessária a experiência da dor?

R: Essa é uma questão muito delicada. O compreender não significa, realmente, o fazer; apenas o compreender. Podemos compreender o processo fisiológico que se desenrola numa pessoa torturada e a experiência da dor por que ela passa, mas a verdadeira experiência será de todo diferente. Não basta a compreensão filosófica ou intelectual da dor. Na realidade, precisamos senti-la na própria pele. A única maneira de chegar ao âmago da questão consiste em experi- mentá-las nós mesmos, embora não tenhamos de criar situações dolorosas. Tais situações ocorrerão com a ajuda do amigo espiritual, que é um médico com uma faca afiada.

P: Se estivermos no processo de entregar-nos e o nosso amigo espiritual nos aponta o bisturi e afasta de nós a anestesia, nos veremos, com efeito, numa situação aterradora. O nosso amigo espiritual parece zangadíssimo e enojado e nós desejamos fugir. Como explicaria o senhor uma coisa dessa?

R: Está nisso justamente o problema. Trata-se de uma operação sem o uso de anestésicos. Precisamos estar dispostos a sofrê-la. Se fugirmos, pareceremos um homem necessitado de uma apendicecto-mia, que sai correndo da sala de cirurgia; o seu apêndice poderá supurar.

P: Mas isto acontece logo no princípio do relacionamento com o amigo espiritual. Ainda não estivemos com ele nem cinco minutos. De repente, o teto desaba e ele simplesmente nos deixa sozinhos para lidarmos com a situação. Talvez esteja dizendo: “Não o acompanharei nesta neurose. Já se passaram cinco minutos. Entregue-se, desista de tudo, lide com ela você mesmo e, quando tiver se livrado da confusão, falarei com você.” Foi isso que vivenciei.

R: Veja bem, não importa que sejamos iniciantes ou estudantes avançados. É uma questão de quanto a pessoa tem estado consigo mesma. Se temos estado conosco, havemos de conhecer-nos. É como uma doença comum. Suponhamos que estamos viajando de um país para outro, nos sentimos mal e decidimos procurar um médico. Ele mal fala a nossa língua, mas pode sentir-nos o corpo, percebe o que há de errado em nós e decide nos levar sem perda de tempo para o hospital a fim de nos operar. Tudo depende da fase de desenvolvimento da doença. A gravidade da operação dependerá da progressão da doença em nosso corpo. Poderemos explodir completamente. Se tivermos apendicite e o médico esperar demais, talvez com a intenção de fazer-se amigo, o nosso apêndice poderá estourar. E nós não diríamos que este é um meio muito bom de praticar a medicina.

P: Por que alguém dá o primeiro passo no caminho? O que o leva a isso? Um acidente, o destino, o karma, ou o
quê?

R: Se nos expusermos completamente, já estaremos no caminho. Se nos dermos pela metade, estaremos apenas parcialmente no caminho; e isto repercutirá de volta sobre nós. Se dermos informações insuficientes ao médico, nos recuperaremos muito mais devagar, porque não lhe contamos todo o histórico do caso. Quanto mais revelarmos ao médico, tanto mais cedo ele será capaz de curar-nos.

P: Se a via verdadeiramente difícil implica que eu me exponha, devo permitir minha exposição ao que julgo ser mau, sabendo que isso poderá ferir-me?

R: Abrir-se não é uma questão de martirizar-se diante de cada ameaça que surge. Não precisamos ficar parados à frente de um trem que avança sobre nós para nós abrir-nos com ele. Essa seria a via do heroísmo, a falsa via difícil.

Toda vez que nos defrontamos com uma coisa que consideramos “má”, ela ameaça a autopreservação do ego. Estamos tão atarefados preservando a nossa existência diante dessa ameaça que não podemos ver a coisa com toda a clareza. Para abrir-nos teremos de cortar o desejo de preservar nossa própria existência. Só então poderemos ver claramente a situação e lidar com ela como ela é.

P: Esta abertura não será definitiva, não é? Quero dizer, podemos abrir-nos num contexto e, quando nos virmos em outra situação, tomarmos de repente uma máscara e colocá-la no rosto, ainda que não desejemos fazê-lo. Pelo visto, conseguir a abertura completa é difícil.

R: O essencial é que a luta No tem importância alguma para a abertura. Uma vez que tenhamos dado um passo no caminho, o abandono da própria luta resolve todo o problema. Nesse caso, já não se trata de querer ou não querer envolver-se em situações de vida. Dissolve-se o instinto simiesco do ego porque ele se baseia mais em informações de segunda mão do que na experiência direta. A luta é o ego. Uma vez que abrimos mão da luta, não fica mais ninguém para vencê-la; ela simplesmente desaparece. Como vemos, não se trata de conseguir a vitória sobre a luta.

P: Quando nos sentimos irados, devemos simplesmente expressar a ira para abrir-nos ?

R: Quando se fala em abertura e entrega como, por exemplo, no caso da ira, não se quer dizer que devemos sair de casa e agredir imediatamente alguém. Isso parece ser antes um meio de alimentar o ego do que de expor convenientemente a ira, de ver-lhe a verdadeira qualidade viva. O mesmo se aplica à auto-exposição em geral. É uma questão de ver a qualidade básica da situação como ela é, em lugar de tentar fazer alguma coisa com ela. É claro que, se estivermos completamente abertos para a situação, sem quaisquer ide’ias preconcebidas, saberemos qual das ações é a certa e qual é a inadequada. Se determinado curso de ação for deselegante e inábil, na encruzilhada, não optaremos por ele, tomaremos o caminho da ação hábil e criativa. Não estamos envolvidos no juízo como tal, mas escolhemos o caminho criativo.

P: A coleção de coisas e a defesa de disfarces é um estado inevitável?

R: Colecionamos coisas e, mais tarde, se torna penoso dá-las a outrem. É como se tivéssemos pontos cirúrgicos na pele depois de uma operação. A perspectiva de arrancá-los nos assusta, ficamos apreensivos, já nos acostumamos com um corpo estranho em nosso organismo.

P: Acredita ser possível começarmos a ver o que é. a ver como somos, sem um mestre ?

R: Não o acredito possível de maneira alguma. Precisamos ter um amigo espiritual para que possamos entregar-nos e abrir-nos completamente.

P: É absolutamente necessário que o amigo espiritual seja um ser humano vivo?

R: É. Qualquer outro “ser” com o qual pudéssemos pensar estar nos comunicando seria imaginário.

P: Os ensinamentos do Cristo, por si mesmos, poderiam ser um amigo espiritual?

R: Eu não diria isso. Essa é uma situação imaginária. O mesmo se dá com quaisquer ensinamentos; e não especificamente os ensinamentos do Cristo. O problema reside em que nós mesmos podemos interpretá-los. Nisto está o ponto essencial: ensinamentos escritos estão sempre sujeitos à interpretação do ego.

P: Quando o senhor fala em nos abrirmos e nos expormos, isso me lembra certas escolas de psicoterapia. Qual é, no seu entender, a função daquilo que as pessoas fazem em psicoterapia? R: Na maior parte das formas de psicoterapia o problema é que, se consideramos o processo como “terapêutico”, na realidade não estamos falando sério, mas o vemos como a coisa terapêutica que devemos fazer. Em outras palavras, a terapia é um passatempo, um hobby. De mais a mais, vemos a situação terapêutica definida pelo histórico do caso. Porque qualquer coisa desandou no relacionamento entre nós e nossos pais, temos uma tendência mórbida para… Assim que começamos a lidar com todo o histórico do caso de uma pessoa, tentando torná-lo relevante no presente, a pessoa começa a sentir que não há escapatória, que a sua situação não tem remédio, porque não pode desfazer o que fez no passado.

Sente-se presa numa armadilha pelo seu passado, sem nenhuma possibilidade de fuga. Esse gênero de tratamento é extremamente inepto, é destrutivo, porque estorva o envolvimento com o aspecto criativo do que está acontecendo agora, do que está aqui, neste momento. Por outro lado, se a psicoterapia fosse apresentada dando ênfase ao viver no momento presente, ao trabalhar com os problemas atuais, não apenas no tocante à expressão verbal, e aos pensamentos senão em termos de experimentar a realidade das emoções e dos sentimentos, então seria, a meu ver, um estilo muito equilibrado. Infelizmente existem muitas espécies de psicoíerapias e inúmeros psicoterapeutas envolvidos na tentativa de se afirmarem e de afirmarem suas teorias em lugar de trabalhar com o que é. Eles acham, com efeito, extremamente assustador trabalhar com o que é.

Precisamos antes simplificar do que complicar o problema com teorias de quaisquer espécies. A situação de momentaneidade, este exato momento, contém históricos inteiros de casos e futuras determinações. Tudo está aqui mesmo, de modo que não precisamos ir mais longe do que isso para provar quem fomos, quem somos ou quem poderemos ser. Logo que tentamos desenredar o passado, vemo-nos envolvidos com a ambição e a luta no presente, incapazes de aceitar o atual momento como ele é. É uma grande covardia. Além disso, encarar o nosso terapeuta ou guru como nosso salvador não é saudável. Precisamos trabalhar em nós mesmos. Na realidade, não há outra alternativa. O amigo espiritual pode acentuar nossa dor em certas circunstâncias, o que faz parte do relacionamento entre médico e paciente. A idéia é não considerar o caminho espiritual como algo muito luxuoso e agradável, mas vê-lo como simples defrontar com os fatos da vida.

A Via Aberta

A esta altura já deve estar claro que, para encontrar a via aberta, precisamos vivenciar primeiro a auto-ilusão tal qual ela é, expondo-nos completamente. Podemos até hesitar em pensar sobre um assunto tão cheio de boas perspectivas como a via aberta, porque desconfiamos muito da nossa ambição. Essa cautela, porém, é sinal de que estamos preparados para pensar nisso. Com efeito, a hesitação, a essa altura, poderia ser outra forma de auto-ilusão: Não ver os ensinamentos com o fundamento lógico de que estamos tentando ser perfeitos e excessivamente cuidadosos.

O enfoque da via aberta reside na vivência de nos expormos — vivência que discutimos na palestra intitulada “Iniciação” —, de nos abrirmos para a vida, de sermos o que somos, de apresentarmos nossas qualidades positivas e negativas ao amigo espiritual e de abrirmos caminho através delas. Em seguida, tendo-nos apresentado, tendo vivenciado a iniciação, o encontro das duas mentes, podemos, então, avaliar nossas credenciais. Participamos de um

acontecimento extraordinário; estávamos prontos para nos abrir, o nosso amigo espiritual abriu-se e nós encontramos a nós mesmos e ao nosso amigo espiritual no mesmo momento. Foi emocionante, foi maravilhoso.

O problema reside no fato de estarmos sempre tentando nos garantir, nos reassegurar de que estamos bem. Vivemos constantemente à procura de algo sólido a que possamos nos agarrar. A situação “miraculosa” do encontro das duas mentes é uma experiência tão fantástica que parece confirmar nossa expectativa de prodígios e magia.

Daí, a etapa seguinte no caminho da auto-ilusão é o desejo de ver milagres. Lemos muitos livros que descrevem a vida de grandes iogues e swamis, santos e avatares. E todos parecem aludir a milagres extraordinários. Seja alguém que passou através de uma parede, seja alguém que virou o mundo de cabeça para baixo — milagres como esses. Gostaríamos de provar a nós mesmos que tais milagres existem, porque gostaríamos de ter a certeza de que estamos do lado do guru, do lado da doutrina, do lado dos milagres, certos de que o que estamos fazendo é seguro e poderoso, realmente sensacional, certos de estarmos do lado dos “certinhos”. Gostaríamos de ser uma das poucas pessoas que fizeram algo fantástico, extraordinário, superextraordinário, uma das pessoas que viraram o mundo pelo avesso. “Eu realmente pensava que estava em pé no chão, mas descobri que estava de ponta-cabeça!” O súbito lampejo do encontro com o amigo espiritual, o encontro das duas mentes, é positivamente real, acontecimento autêntico, sensacional, milagre de fato. Talvez No estejamos inteiramente certos mas, sem dúvida, um milagre dessa natureza deve significar que estamos na pista de alguma coisa e que, finalmente, descobrimos o verdadeiro caminho.

Esses intensos esforços para provar a nós mesmos que o que estamos fazendo é certo indicam um estado de espírito muito introvertido; estamos cônscios de nós mesmos e do nosso estado de ser. Sentimo-nos participando de uma minoria e que estamos realizando algo fora do comum, que somos diferentes de todas as outras pessoas. Esse tipo de tentativa de provar nossa própria singularidade é simplesmente uma tentativa de validar nossa auto-ilusão. “É claro que participei de algo extraordinário; é claro que vi o milagre; é claro que tive o Insight; por conseguinte, continuarei seguindo nessa direção.” Isto se constitui numa situação muito fechada, muito introvertida. Não temos tempo para nos relacionarmos com mais ninguém, amigos ou parentes, o mundo externo. Estamos preocupados unicamente conosco.

Finalmente, esse enfoque se torna tedioso e sem graça. Principiamos a compreender que andamos nos iludindo e começamos a nos aproximar da autêntica via aberta, começamos a suspeitar de que todas as nossas crenças são alucionatórias, que distorcemos a experiência avaliando-a. “É verdade, tive um lampejo de iluminação instantânea mas, ao mesmo tempo, tentei possuí-lo, agarrá-lo, e ele se foi.” Começamos a descobrir que a auto-ilusão positivamente não funciona, que ela está apenas tentando nos satisfazer, tentando entrar interiormente em contato com nós mesmos, tentando provar alguma coisa a nós mesmos em vez de abrir-se realmente. Neste ponto, podemos punir-nos dizendo: “Se estou tentando não me iludir, essa é outra espécie de auto-ilusão, e se tentar não o fazer, então isso é auto-ilusão igualmente. Como poderei libertar-me? E se estou tentando libertar-me, não será essa também outra forma de auto- ilusão?” E assim, infindavelmente, prossegue a reação em cadeia, a reação em cadeia da paranóia imbricante.

Ao descobrir a auto-ilusão, passamos a sofrer de intensa paranóia e autocrítica, o que é benéfico. É bom experimentar a desesperança da ambição, da tentativa de abrir-nos, da tentativa de estimular-nos, porque isso prepara o terreno para outro tipo de atitude em relação à espiritualidade. O ponto a que estamos tentando chegar é: quando vamos nos abrir realmente? A ação da nossa mente é tão imbricada quanto introvertida, como unha encravada. Se eu fizer isso, acontecerá aquilo; se eu fizer aquilo, acontecerá isto. Como poderei fugir da auto-ilusão? Reconheço-a, vejo-a, mas como sairei dela?

Receio que todos nós tenhamos de passar por isto individualmente. Não estou dando um roteiro turístico para a iluminação; não garanto coisa alguma. Mas sugiro que talvez haja alguma coisa errada nesse enfoque.

Sentimos algo errado em nossa abordagem e pedimos conselhos ao nosso guru.

“Estou inteiramente convencido de que este caminho é o certo para mim, sem dúvida — nem precisamos discutir isso. Mas parece que alguma coisa está errada. Trabalhei muito comigo mesmo e, apesar disso, vejo-me envolvido numa reação em cadeia de derrotas sucessivas.”

“Muito bem, e depois?”

“Estou ocupado demais com isso para fazer qualquer outra coisa, porque o que está acontecendo me atormenta muito.”

“Muito bem, relaxe.”

“O que posso fazer? Não tem sugestão alguma para me dar?”

“Receio não poder dar uma solução imediata ao seu problema. Para começar, preciso saber o que está realmente

errado com você. Isso é o que diriam todos os profissionais. Se houver algo de errado em sua televisão, você não trocará uma peça imediatamente. Primeiro se deve examinar o aparelho todo. Qual é a parte que não funciona? Que válvulas se queimaram?”

“Bem, exatamente não parece haver nada de errado. Mas assim que tento tocar no assunto, tudo simplesmente se descontrola e não funciona mais. Quando tento fazer alguma coisa para corrigir a situação, não obtenho nenhum resultado. Alguma coisa parece ter-se derretido.”

“É problema grave.”

“Veja bem, toda vez que tento sair disso, como você e outros gurus me aconselharam que fizesse, eu tento, repetidamente, mas o problema parece não ter fim. As coisas sempre estão acontecendo erradas. Posso praticar asanas, pranayama, zazen, tudo o mais, e por mais que procure fazê-lo corretamente, ainda assim os tais problemas, sempre os mesmos, retornam incessantemente. Tenho muita confiança nas doutrinas, nos ensinamentos, nos métodos — é claro que tenho. Amo os mestres, amo os métodos, amo mesmo. Tenho-lhes absoluta fé. Sei que muita gente se dá muito bem seguindo o mesmo caminho que estou tentando percorrer, mas o que há de errado comigo? Talvez eu tenha um mau karma, talvez eu seja a ovelha negra da família. Poderia ser isso? Se for, farei uma peregrinação, de joelhos à índia, qualquer sacrifício que for preciso. Poderia até me matar de fome. Farei qualquer tipo de voto, mas quero consegui-lo, quero entrar nesse caminho. Que posso fazer? Não haverá nada mais em seus livros sagrados que prescreva algo apropriado a uma pessoa como eu? Não haverá remédio que eu possa tomar, sacrifício que possa fazer?”

“Não estou bem certo, volte mais tarde, amanhã, e procure-me, talvez encontremos alguma coisa.”

Isso é o que poderia dizer um amigo espiritual: “Venha me ver de novo amanhã ou no fim da semana. Conversaremos, mas não se preocupe.” Voltamos outra vez a vê-lo pensando estar enfrentando algum enorme problema e supomos que ele tem todas as respostas elaboradas especialmente para nós. E ele tornará a perguntar:

“Como vai? Como vão as coisas?”

“O que é que você quer dizer? Eu estava à espera de uma resposta sua. Você sabe como estou… estou num estado terrível!”

Tomamo-nos mal-humorados, e até com certa razão. Nada acontece, como sempre. E as semanas vão se passando como nós vamos voltando insistentemente. Entramos em desespero, suspeitando que nada resultará de tudo isso, acalentando o desejo secreto de que o próximo será o momento, talvez na quarta semana, talvez na quinta, talvez na sétima. O sete é um número de grande simbo-lismo, um número místico. Passa-se o tempo: desespero completo. Estamos prestes a investigar a possibilidade de outras soluções. “Talvez eu deva procurar outra pessoa”, pensamos. “Talvez eu deva voltar para casa e trabalhar com minha própria gente; esta situação me é totalmente avessa. Parece não haver comunicação entre ele e mim, creio que ele devia estabelecer alguma espécie de comunicação comigo, mas tudo é muito decepcionante, nada realmente acontece.” Então sentamo-nos e esperamos. Toda vez que o vemos, sabemos quase imediatamente que suas palavras serão: “Volte e medite”, ou “Como vai? Tome uma xícara de chá.” E sempre a mesma coisa, sempre.

O que é que está errado? Na realidade, nada está errado, absolutamente nada. A situação é muito boa, no que diz respeito ao amigo espiritual. Mas esse período de espera da nossa parte, tentando passar por cima de alguma coisa, por si só é errado, porque um período de espera significa que estamos excessivamente concentrados em nós mesmos, que passamos a trabalhar para dentro em vez de trabalhar para fora. Existe uma tendência à centralização e existe a noção de “algo importante” envolvendo nossa psique, nosso estado de espírito. É isso o que está errado.

Eu talvez deva contar-lhes a história de Naropa e de seu mestre Tilopa, o grande sábio indiano. Tilopa era um guru e passou doze anos com o seu discípulo Naropa fazendo, praticamente, a mesma espécie de coisa que estivemos expondo aqui. “Se você for buscar sopa para mim naquela cozinha, eu lhe ensinarei; sou capaz de lhe ensinar”, dizia Tilopa. Então Naropa trazia a sopa, depois de levar uma surra terrível do pessoal da cozinha e dos donos da casa para obtê-la. Voltava ensangüentado mas feliz e, depois, Tilopa lhe dizia: “Quero outra tigela de sopa, vá buscá-la.” E Naropa ia buscar a sopa e retomava com ela, semimorto. Fazia-o porque ambicionava os ensinamentos. E Tilopa lhe falava “Obrigado, vamos a um outro lugar.” Esse tipo de incidente ocorreu inúmeras vezes, até que o sentido de expectativa de Naropa atingiu o ponto culminante. Chegado esse momento, Tilopa tirou uma sandália do pé e bateu com ela no rosto de Naropa. Foi esse Abhisheka, o mais alto, e o mais profundo, o maior — poderíamos usar muitos outros adjetivos para descrevê-lo —, o maior Abhisheka. Uma pancada de sandália no rosto de um homem e, súbito, já não havia mais nada com que Naropa precisasse trabalhar.

Mas não devemos deixar-nos arrebatar por essa cena mística. Tudo se resume na via aberta. Examinamos e vivenciamos a auto-ilusão plenamente. Andamos carregando um fardo muito pesado, como a tartaruga carrega a sua

carapaça. Tentamos continuamente fechar-nos nessa casca procurando, na realidade, chegar a “Algum lugar” agressiva e apressadamente. Precisamos abrir mão de toda a pressa e agressividade, de toda espécie de exigências. Ao se desen- volver alguma compaixão por nós mesmos, começa a via aberta.

Neste ponto, é necessário discutir o significado da compaixão, que é a chave da via aberta e sua atmosfera básica. A melhor e mais correta maneira de apresentar a idéia de compaixão é, em termos de clareza, a que contém um certo calor fundamental. Nessa fase, a nossa prática da meditação é o ato de confiar em nós mesmos. À proporção que a nossa prática se destaca mais nas atividades da vida cotidiana, começamos a confiar em nós mesmos e a assumir uma atitude compassiva. A compaixão, nesse sentido, não é ter pena de alguém. É esse calor básico. Por mais espaço e claridade que haja, há também esse calor, uma agradável sensação de que coisas positivas estão acontecendo constantemente em nós. Seja o que for que façamos, a nossa ação não é considerada um entrave mecânico em termos de meditação forçada, mas a meditação torna-se uma coisa gostosa e espontânea. É o ato contínuo de travarmos amizade com nós mesmos.

Assim, tendo estabelecido amizade conosco, não podemos simplesmente guardar essa amizade dentro de nós; precisamos de um escape que é o nosso relacionamento com o mundo. Nessas condições, a compaixão passa a ser uma ponte entre nós e o mundo exterior. A confiança e a compaixão em relação a nós mesmos nos inspiram a dançar com a vida, a nos comunicar com as energias do mundo. Carecendo desse gênero de inspiração e abertura, o caminho espiritual se transforma no caminho samsárico do desejo. Ficamos presos na armadilha do desejo de aprimorar-nos, do desejo de alcançar metas imaginárias. Se nos acharmos incapazes de alcançar o nosso objetivo, o desespero e a insatisfação da ambição frustrada tomarão conta de nós. Por outro lado, se acharmos que estamos atingindo nossa meta, poderemos ficar orgulhosos e agressivos. “Sei o que estou fazendo. Não mexa comigo.” Podemos ficar inchados com o nosso conhecimento, como certos “especialistas” que encontramos e que conhecem o assunto a fundo. Quando alguém faz perguntas, sobretudo perguntas estúpidas ou provocadoras, eles ficam com raiva em vez de tentar explicar alguma coisa: “Como é que você pode dizer uma coisa dessas, como pode sequer sonhar em fazer perguntas tão estúpidas? Não vê o que sei?”

Ou podemos até ser bem-sucedidos em alguma forma de prática de concentração dualística e vivenciar uma espécie de “estado místico”. Em tais casos pareceremos tranqüilos e religiosos no sentido convencional. Mas teremos constantemente de carregar e manter o nosso “estado místico” e haverá, então, um senso contínuo de apreciação, o ato repetido de verificar a nossa realização e satisfazer-mo-nos com ela. Esta é a distorção típica da prática Hinayana da meditação estanque, da auto-iluminação, e que, de certo modo, é uma forma de agressão. Inexiste o elemento de compaixão e abertura em virtude de estarmos muito concentrados em nossa experiência. A compaixão não tem relação alguma com a consecução. É espaçosa e muito generosa. Quando uma pessoa manifesta a verdadeira compaixão, não sabe se está sendo generosa para com os outros ou para consigo mesma, porque a compaixão é uma generosidade ambiental, sem direção, sem “para mim” e sem “para eles”; é cheia de alegria, de uma alegria que existe espontaneamente de uma alegria constante no sentido de confiança, no sentido de que a alegria contém uma enorme riqueza, um tesouro.

Poderíamos dizer que a compaixão é a atitude final da riqueza: uma atitude contra a pobreza, uma guerra declarada à miséria. Contém toda a sorte de qualidades heróicas, essenciais, positivas, visionárias, expansivas. E implica reflexão em ampla escala, um modo mais livre e expansivo de nos relacionarmos conosco e com o mundo. É precisamente por isso que ao segundo yana se dá o nome de “Mahayana”, o “Grande Veículo”. Seria a atitude de quem já nasceu fundamentalmente rico e não daquele que ainda precisa enriquecer. Sem esse tipo de confiança a meditação não pode, de modo algum, ser transformada em ação.

A compaixão nos convida automaticamente a nos relacionarmos com pessoas, porque já não as vemos como um desgaste para nós. Elas recarregam a nossa energia porque, no processo de relacionamento com elas, reconhecemos nossa riqueza, nosso tesouro. Nessas circunstâncias, se tivermos tarefas difíceis para cumprir, tais como lidar com pessoas ou situações de vida, não nos sentiremos à míngua de recursos. Toda vez que enfrentamos uma tarefa difícil, esta se apresenta como ótima oportunidade de demonstrarmos nossa riqueza, nossos recursos. Não há nenhum sentimento de pobreza neste enfoque da vida.

A compaixão como chave da via aberta, o Mahayana, toma possível os atos transcendentais do Bodhisattva. O Caminho do Bodhisattva se inicia com generosidade e abertura — o dar-se e o abrir-se — o processo da entrega. A abertura não é uma questão de darmos alguma coisa a alguém, mas de abrirmos mão de nossas exigências e dos critérios básicos dessas exigências. Esta é a dana para-mita, a paramita da generosidade. Consiste em aprender a confiar no fato de não precisarmos garantir o nosso terreno, em aprender a confiar em nossa riqueza fundamental, em poder correr o risco de estarmos abertos. Essa é a via aberta. Se renunciarmos à atitude psicológica de “exigir”, a sanidade básica principia a evolver e conduz ao ato seguinte do Bodhisattva — shila paramita, a paramita da moralidade ou da disciplina.

Tendo-nos aberto e renunciado a tudo, sem mais referências aos critérios básicos do “Eu estou fazendo isto, eu estou fazendo aquilo,” sem referência a nós mesmos, outras situações ligadas à manutenção do ego ou ao seu

enriquecimento tornam-se irrelevantes. Essa é a moralidade final, que intensifica a situação de abertura e coragem: não receamos ferir a nós nem a outras pessoas porque estamos completamente abertos. Não nos sentimos despojados de inspiração pelas situações, o que nos traz a paciência, Kshanti para-mita. E a paciência conduz à energia — virya – a qualidade da alegria encantadora. Há a intensa alegria do envolvimento, a qual é energia, que também proporciona a visão panorâmica da meditação aberta — a experiência de dhyana — abertura. Já não olhamos a situação externa como separada de nós porque estamos muito envolvidos na dança e no jogo da vida.

Tornamo-nos, então, ainda mais abertos. Não mais distinguimos as coisas como rejeitáveis ou aceitáveis; acompanhamos simplesmente cada situação. Não participamos de nenhuma disputa, nem a que tenta derrotar um inimigo, nem a que busca um objetivo. Não há envolvimento no receber nem no dar. Nenhuma esperança e nenhum medo. Esse é o desenvolvimento de prajna, conhecimento transcendente, a capacidade de ver as situações tais quais são.

Assim o principal tema da via aberta consiste em abandonar a luta básica do ego. O verdadeiro significado da compaixão e do amor é sermos completamente abertos, é termos essa espécie de confiança total em nós mesmos. Já se fez uma infinidade de discursos sobre amor, paz e tranqüilidade no mundo. Mas que fazer para que exista realmente amor? Cristo disse: “Ama o teu próximo”, mas como amarmos? Como fazê-lo? Como irradiar o nosso amor a toda a humanidade, a todo o mundo? “Porque é nosso dever irradiá-lo e essa é a verdade!” “Se não amarmos, seremos condenados, seremos maus; estaremos prestando um desserviço à humanidade.” “Se amarmos, estaremos no caminho, estaremos na direção certa.” Mas como? Muitas pessoas ficam por demais românticas diante do amor, se inebriam com ele à simples menção da palavra. Mas, depois, haverá uma lacuna, um período em que não estaremos inebriados de amor. Outra coisa surge, coisa constrangedora, uma questão particular. Tendemos a excluí-la; são as “partes pudendas”, vergonhosas, que não participam da nossa divindade. Não pensemos mais nisso. Provoquemos simplesmente outra explosão de amor e assim seguiremos em frente, ignorando as partes do nosso ser que rejeitamos, tentando ser virtuosos, amantes e bons.

Isso talvez seja desconcertante para muita gente, mas receio que o amor não seja só, e realmente, a experiência do belo e da alegria romântica. O amor está associado à fealdade, à dor e à agressão, bem como à beleza do mundo; o amor não é a recriação do céu. Amor ou compaixão, o caminho aberto, está associado ao “que é”. A fim de desenvolver o amor — o amor universal, o amor cósmico, seja como for que vocês gostariam de chamá-lo —, é necessário aceitar toda a situação da vida como ela é, tanto a luz como as trevas, tanto o bom como o mau. Precisamos abrir-nos para a vida, comunicar-nos com ela. Talvez vocês estejam lutando para desenvolver o amor e a paz, lutando por realizá-los: “Vamos realizá-lo, vamos gastar milhares de dólares a fim de transmitir a doutrina do amor para toda a parte, vamos proclamar o amor.” Certo, proclamem-no, façam isso, gastem o seu dinheiro, mas que dizer da pressa e da agressão por trás do que estarão fazendo? Por que vocês têm de empurrar-nos para que aceitemos o seu amor? Por que há tanta pressa e tanta força envolvidas nisso? Se o seu amor se move com a mesma precipitação e ímpeto com os quais outras pessoas odeiam, alguma coisa deve estar errada. Seria o mesmo que chamar a luz de escuridão. Há muita ambição envolvida nisso, tomando a forma de proselitismo. Não é uma situação aberta de comunicação com as coisas como elas são. Em última análise, o sentido das palavras “paz na terra” é afastar de vez as idéias de paz e guerra, para que nós nos abramos igual e completamente para os aspectos positivos e negativos do mundo. É como ver o mundo de um ponto no espaço: há luz e há escuridão; ambas são aceitas. Não estamos tentando defender a luz contra a escuridão.

A ação do Bodhisattva é como a Lua que brilha em uma centena de tigelas de água, de modo que há uma centena de luas, uma em cada tigela. Isso não é intenção da Lua nem projeto de alguém mais. Por alguma estranha razão, porém, há uma centena de luas refletidas numa centena de tigelas de água. A abertura exprime esse tipo de convicção absoluta e de autoconfiança. A situação aberta da compaixão funciona mais desse jeito do que tentando deliberadamente criar uma centena de luas, uma em cada tigela.

O problema básico que parecemos enfrentar é estarmos envolvidos demais com a tentativa de provar alguma coisa, a qual está ligada à paranóia e ao sentimento de pobreza. Quando tentamos provar ou obter algo, já não estamos abertos, temos de verificar tudo, temos de arranjar as coisas “corretamente”. É um jeito muito paranóide de viver e, realmente, não prova coisa alguma. Podemos estabelecer recordes em relação a números e quantidades — construímos o maior, o mais avantajado, coligimos o mais numeroso, o mais comprido, o mais gigantesco. Mas quem se lembrará do recorde quando estivermos mortos? Ou daqui a cem anos? Ou daqui a dez anos? Ou daqui a dez minutos? Os recordes que valem são os do momento, os de agora — quer estejam ou No ocorrendo agora a comunicação e a abertura.

Essa é a via aberta, o caminho do Bodhisattva. Um Bodhisattva não daria importância ao fato de receber, de todos os Budas, uma medalha em que fosse proclamado o mais corajoso Bodhisattva do universo inteiro; não daria a menor importância. Nunca lemos nos escritos sagrados histórias de Bodhisattvas que tivessem recebido medalhas. O que, diga- se de passagem, está muito certo, porque eles não têm necessidade alguma de provar o que quer que seja. A ação do Bodhisattva é espontânea, é a vida aberta, a comunicação aberta que não envolve luta nem pressa.

P: Imagino que ser Bodhisattva significa ajudar as pessoas, e as pessoas fazem pedidos específicos. Por isso

mesmo o Bodhisattva precisa praticar atos específicos. Mas como a idéia de ser totalmente aberto se ajusta à necessidade de praticar atos específicos?

R: O estar aberto não significa ser insensível, um zumbi. Significa estar livre para fazer o que for necessário em determinada situação. Por não querermos nada da situação, estamos livres para agir da maneira exatamente apropriada a ela. E, da mesma forma, se outras pessoas desejam alguma coisa de nós, o problema é delas. Não precisamos captar as boas graças de ninguém. A abertura significa “sermos o que somos”. Quando nos sentimos à vontade sendo nós mesmos, surge, automática e naturalmente, um ambiente de abertura e comunicação. É como a idéia da Lua e das tigelas de água a que fizemos referência. Se as tigelas estiverem lá, refletirão o seu “estado de lua”. Se não estiverem, não o refletirão. Ou se estiverem apenas pela metade, refletirão apenas metade. Isso depende delas. Se nós estivermos lá, como a Lua, abertos, as tigelas podem refletir-nos ou não. Isso nem nos importa nem nos deixa de importar. Apenas estamos lá.

As situações surgem automaticamente. Não precisamos ajustar-nos a papéis e ambientes especiais. Creio que muitos de nós temos tentado fazê-lo por muito tempo, limitando-nos, encaixando-nos em conjuntos estreitamente definidos de circunstâncias. Despendemos tanta energia, focalizando nossa atenção num determinado ponto, que descobrimos, para nossa surpresa, a existência de áreas inteiras que deixamos escapar.

P: Podemos agir com compaixão e, ainda assim, fazer as coisas como elas devem ser feitas?

R: Quando não há pressa nem agressão, percebemos que há espaço suficiente para mover-nos e fazermos coisas, e vemos, com maior clareza, o que deve ser feito. Tornamo-nos mais eficientes e o nosso trabalho mais preciso.

P: Acredito, Rinpoche, que o sr. estabeleceu uma distinção entre o caminho aberto e o caminho interno. Não poderia ampliar as diferenças que vê entre o interno e o externo?

R: A palavra “interna”, tal como você a emprega, parece sugerir esforço, introspecção, reflexão sobre se você é ou não uma pessoa suficientemente digna, correta e apresentável. Nesse enfoque, há excesso de “trabalho consigo mesmo”, demasiada concentração interior. Ao passo que, o caminho aberto é uma questão de trabalhar puramente com o que é, de abandonar o medo de que alguma coisa não venha a funcionar, de que alguma coisa venha a falhar. Precisamos deixar a paranóia de que talvez não nos adeqüemos às situações, de que podemos ser rejeitados. Lidamos unicamente com a vida tal qual ela é.

P: De onde vem a atitude de calor?

R: Da ausência de agressão.

P: Mas não é essa a meta?

R: Tanto quanto o caminho, a ponte. Não moramos na ponte. Caminhamos sobre ela. Na experiência da meditação há automaticamente algum sentido de ausência de agressão, que é definição de Dharma. Define-se Dharma como “ausência de paixão” ou “impassibilidade” e a impossibilidade supõe a ausência de agressão. Se formos apaixonados, estaremos querendo obter alguma coisa rapidamente para satisfazer o nosso desejo. Quando não há desejo para ser satis- feito, não há agressão nem pressa. Assim sendo, quando uma pessoa pode relacionar-se realmente com a simplicidade da prática da meditação, haverá automaticamente ausência de agressão. Porque não há pressa, podemos nos permitir relaxar. Porque podemos nos permitir relaxar, podemos nos permitir fazer companhia a nós mesmos, podemos tranqüilamente amar a nós mesmos, ser amigos de nós mesmos. Assim, pensamentos, emoções, o que quer que ocorra na mente, acentuam constantemente o ato de estabelecer amizade com nós mesmos.

Outrossim, podemos dizer que a compaixão é a qualidade terrena da prática da meditação, a sensação de terra e a solidez. A mensagem do calor compassivo resume-se em não ter pressa e em nos relacionarmos com cada situação tal qual ela é. O nome do índio americano “Touro Sentado” parece um perfeito exemplo disso. “Touro Sentado” é sólido e orgânico. Estamos, com efeito, realmente presentes e despreocupados.

P: Entendi dizer que a compaixão cresce, mas estava implícito nisso que não precisamos cultivá-la?

R: Ela se desenvolve, cresce, fermenta por si mesma. Não precisa de nenhum esforço.

P: E morre?

R: Não parece morrer. Diz Shantideva que toda ação sem compaixão é como plantar uma árvore morta, mas tudo o que se relaciona com a compaixão é como plantar uma árvore viva. Ela cresce e cresce sem parar e nunca morre. Ainda que pareça morrer, sempre deixa para trás uma semente da qual outra árvore nascerá. A compaixão é orgânica; persiste indefinidamente.

P: Há certa espécie de calor, de cordialidade, que se manifesta quando começamos a nos relacionar com alguém, e depois, seja lá como for, essa energia se toma avassaladora e nos pega de tal maneira que não nos deixa espaço nenhum em que possamos nos mover.

R: Se for destituído de implicações e auto-reafirmações, esse calor será auto-sustentado e fundamentalmente saudável. Quando fazemos iogurte, se elevarmos a temperatura ou tentarmos enriquecê-lo em demasia, não faremos um bom iogurte. Se o deixarmos à temperatura certa e o largarmos onde está, será um bom iogurte.

P: Como saber quando deixá-lo?

R: Não precisamos estar controlando constantemente. Devemos antes abandonar do que tentar manter o controle, antes confiar em nós do que nos testar. Quanto mais tentarmos nos analisar, tanto maior será a possibilidade de interrompermos o jogo e a progressão naturais da situação. Mesmo que o que estejamos fazendo seja incerto e arriscado, ainda que pareça possível que todo o negócio acabe explodindo e fique deformado, não nos preocupamos com isso.

P: O que acontece quando alguém cria uma situação e nós nos preocupamos com ela?

R: O preocupar-nos não ajuda. Pelo contrário, só torna as coisas piores.

P: Parece que o processo de que estamos falando requer alguma espécie de destemor.

R: Sim, muito destemor. É o pensar positivo, a mentalidade da riqueza.

P: E se sentirmos a necessidade de praticar um ato violento para, ao fim de tudo, beneficiar uma pessoa? R:
Faremos exatamente isso.

P: Mas, se não estivermos no ponto da compaixão e sabedoria verdadeiras?

R: Não questionamos a nossa sabedoria nem nos preocupamos com ela. Fazemos o que é preciso fazer. A situação que estamos enfrentando é, por si só, suficientemente profunda para ser considerada conhecimento. Dispensamos outros recursos de informação. Dispensamos reforços e diretrizes para ação. O reforço é automaticamente proporcionado pela situação. Quando as coisas precisam ser conduduzidas de maneira rude, agimos rudemente, porque a situação exige a nossa resposta. Não impomos a rudeza; somos um instrumento da situação.

P: O que fazemos à guisa de ponte quando não nos sentimos com-passivos?

R: Não precisamos sentir compaixão. Essa é a distinção entre compaixão emocional e compaixão: não a sentimos necessariamente, somos a compaixão. Em regra geral, se estivermos abertos, a compaixão acontece porque No estamos preocupados com qualquer espécie de satisfação de nossos desejos.

P: A ponte da compaixão requer manutenção contínua?

R: Acho que não. Requer mais reconhecimento do que manutenção. Tal é a mentalidade da riqueza: reconhecermos que a ponte está lá.

P: Que fazer quando estamos com medo de alguém, talvez com razão? No meu entender, isso destrói a compaixão.

R: A compaixão não está olhando sobranceiramente para alguém que precisa de ajuda, que precisa de atenção, mas é um pensamento positivo geral, básico, orgânico. O medo de outrem parece gerar incerteza quanto ao que somos. É por isso que temos medo dessa situação ou dessa pessoa. O medo procede da incerteza. Se soubermos exatamente como lidar com uma situação assustadora, não teremos medo dela. O medo vem do pânico, da desorientação da incerteza. A incerteza relaciona-se com a falta de confiança em nós mesmos, o sentimento de que somos inaptos para lidar com o misterioso problema que nos ameaça. Não haverá medo se mantivermos conosco um relacionamento compassivo, porque saberemos então o que estamos fazendo. Se soubermos o que estamos fazendo, nossas projeções também se tornarão, de certo modo, metódicas ou previsíveis. E desenvolveremos prajna, o conhecimento de como nos relacionarmos com qualquer situação.

P: O que quer dizer projeções neste contexto?

R: Projeção é o nosso reflexo no espelho. Por estarmos incertos a respeito de nós mesmos, o mundo reflete essa

incerteza e o reflexo principia a assediar-nos. A incerteza nos segue, mas é apenas o nosso reflexo no espelho.

P: O que quer dizer quando afirma que, se formos compassivos conosco, saberemos o que estamos fazendo?

R: Esses dois aspectos da meditação sempre aparecem simultaneamente. Se estamos nos abrindo para nós mesmos e tivermos uma atitude positiva para conosco, automaticamente saberemos o que estamos fazendo porque não somos um enigma para nós. Isto é jnana, “sabedoria”, “sabedoria-consciência-existente-espontaneamen-te”. Sabemos que existimos espontaneamente, sabemos o que somos e, ao mesmo tempo, podemos nos permitir confiar em nós.

P: Se eu realmente fizesse amizade comigo mesmo, não teria medo de cometer erros o tempo todo?

R: Isso mesmo. A palavra tibetana designando sabedoria é yeshe, que quer dizer “inteligência primordial”. Vocês estão no princípio de todo princípio. Quase poderíamos chamar-lhe “a confiança inata em nós mesmos”. Não precisamos, de maneira alguma, descobrir o princípio. É uma situação primordial e, por isso, não há por que tentar encontrar logicamente o princípio. Ele já é. É sem princípio.

Senso de Humor

Seria interessante examinar este assunto em termos do que não é senso de humor. A falta de humor parece provir do confrontar-se com “acontecimentos pesados”. As coisas são muito rígidas e terrivelmente autênticas, mortalmente sérias, assim, para usar uma analogia, como um cadáver ambulante. Ele vive totalmente a dor, tem uma constante expressão de dor em sua face. Viveu um fato concreto — a realidade — e está mortalmente sério, ao ponto de parecer um cadáver ambulante. A rigidez desse cadáver vivo expressa o oposto do senso de humor. É como se alguém estivesse em pé, atrás de nós, empunhando uma espada afiada. Se não estivermos meditando convenientemente, sentados, imóveis e erectos, esse alguém estará pronto para nos agredir. Ou, então, na vida, se não estivermos procedendo de maneira adequada, honesta, direta, alguém estará pronto para nos golpear. É a nossa própria consciência constrangendo- nos desnecessariamente. O que quer que façamos está sendo constantemente vigiado e censurado. Na realidade não é o Grande Irmão que nos vigia; é o Grande Eu! Outro aspecto nosso está nos observando, por trás, na iminência de nos golpear, pronto para apontar o menor erro. Não existe alegria nesse enfoque, nenhum senso de humor.

Esse tipo de seriedade relaciona-se também com o problema do materialismo espiritual. “Uma vez que faço parte de determinada linhagem de meditadores, ligados à igreja e à sua organização, e por causa do meu compromisso religioso, preciso ser um bom menino ou uma boa garota, uma pessoa honesta, bondosa, freqüentadora da igreja. Preciso acomodar-me aos padrões da igreja, a suas regras e regulamentos. Se eu não cumprir minhas obrigações, serei condenado, destruído.” Há a ameaça de ponderação e de morte — a morte no sentido de fim de qualquer novo processo criativo. Essa atitude traz a sensação de limitação, de rigidez: não nos deixa espaço algum para nos movermos.

Poderemos perguntar então: “E as grandes tradições religiosas, os ensinamentos? Falam de disciplina, regras e regulamentos. Como conciliar essas coisas com a noção de senso de humor?” Muito bem, examinemos convenientemente a questão. Os regulamentos, a disciplina, a prática da moral baseiam-se, de fato, na atitude puramente julgadora do “bom” em oposição ao “mau”? Os grandes ensinamentos espirituais advogam realmente a nossa luta contra o mal porque estamos do lado da luz, do lado da paz? Estão recomendando-nos que combatamos esse outro lado “indesejável”, o mau e o negro? Eis aí uma grande pergunta. Se há sabedoria nos ensinamentos sagrados, não deveria haver nenhuma guerra. Enquanto uma pessoa estiver envolvida numa guerra, tentando defender ou atacar, a sua ação não é sagrada; é uma situação mundana, dualística, de campo de batalha. Ninguém esperaria que os grandes ensinamentos fossem tão simplórios assim, buscando o bom e lutando contra o mau. Esse seria o enfoque de um filme de faroeste de Hollywood – antes mesmo de termos visto a conclusão, já sabendo, sem sombra de dúvida, que os “bonzinhos” não serão mortos e os “mauzinhos” não serão poupados. Esse enfoque é claramente simplório; mas é justamente esse tipo de situação que estamos criando em termos de luta “espiritual”, realização “espiritual”.

Não estou dizendo que o senso de humor deva ser loucamente descontrolado. Estou me referindo a algo mais do que a guerra, a luta, a dualidade. Se encaramos o caminho da espiritualidade como um campo de batalha, então somos fracos e débeis, pois nosso progresso nesse caminho dependerá da extensão territorial que tivermos conquistado, da superação de nossos erros e dos erros alheios, de quanta negatividade tivermos eliminado. Será relativa ao quanto de escuro tivermos suprimido, ao quanto de luz tivermos produzido. Isso tudo é muito pouco; dificilmente poderíamos chamar isso de liberação, liberdade, mukti ou nirvana. Teríamos alcançado a libertação derrotando outra coisa, o que é puramente relativo.

Não quero fazer do “senso de humor” algo solene, mas temo que outras pessoas o façam. Com a finalidade, porém, de compreender realmente a rigidez, representada pelo cadáver, não podemos evitar o perigo de transformar o senso de humor em coisa séria. Senso de humor significa ver os dois pólos de uma situação como eles são, de um ponto de vista

espacial. Há coisas boas e más e as vemos com uma visão panorâmica, como se as víssemos de cima. Começamos então a perceber que aquelas criaturinhas no chão, que se matam entre si ou que estão fazendo amor, ou que estão sendo apenas criaturinhas, são muito insignificantes, porque, se elas estão dando muita importâ-cia à sua guerra ou ao seu ato de amor, nós passamos a ver o aspecto irônico da sua gritaria. Se tentarmos intensamente construir algo formidável, realmente significativo, poderoso como: “Estou verdadeiramente procurando alguma coisa, estou realmente tentando combater meus erros”, ou “Estou sinceramente tentando ser bom” —, essa tentativa perderá a seriedade, e se transformará num tigre de papel; é extremamente irônico.

O senso de humor parece provir de uma alegria que tudo penetra, de uma alegria que tem espaço para expandir-se numa situação completamente aberta porque não está empenhada na batalha entre “isto” e “aquilo”. A alegria se desenvolve na situação panorâmica de ver ou sentir todo o terreno, o terreno aberto. Essa situação aberta não tem sinal de limitação ou de solenidade forçada. E se, efetivamente, tentarmos tratar a vida como um “negócio sério” se tentarmos impor-lhe formalidade como se tudo fosse excessivamente importante, a coisa fica engraçada. Por que tanta importância?

Uma pessoa pode tentar meditar numa postura 100% ou 200% correta. Grande coisa. Gozado. Ou, por outro lado, uma pessoa pode tentar desenvolver o senso de humor, buscando sempre rir-se das coisas, achar graça em cada ponto, em cada canto. Isto em si mesmo é um jogo muito sério, o qual é igualmente engraçado. Se criarmos uma tensão física a ponto de ficarmos cerrando os dentes, mordendo a língua, alguma coisa, de repente, nos fará cócegas, porque teremos ido longe demais; é demasiado absurdo chegar a tais extremos. Essa máxima tensão torna-se humor automaticamente.

Conta-se a história tibetana de certo monge que renunciou à sua vida samsárica e confusa e decidiu ir viver numa caverna, a fim de meditar o tempo todo. Antes disso, andara pensando continuamente em dor e sofrimento. Chamava-se Ngonagpa de Langru, o Cara Preta de Langru, porque nunca sorria e via tudo na vida em função da dor. Permaneceu em retiro por muitos anos, muito circunspecto e corretíssimo, até que, um dia, olhando para o sacrário, viu que alguém lhe deixara de presente uma grande turquesa. Enquanto contemplava a pedra, viu um camundongo entrar sorrateiramente e tentar arrastá-la. Como não lograsse fazê-lo, o camundongo voltou para o seu buraco e chamou outro camundongo. Ambos tentaram arrastar a turquesa, mas ainda assim não o conseguiram. Por isso, puseram-se a guinchar juntos e chamaram mais oito camundongos que, acudindo, finalmente conseguiram levar a turquesa para o buraco deles. Então, pela primeira vez, Ngonagpa de Langru começou a rir e sorrir. Foi essa a sua estréia na abertura, um súbito lampejo de iluminação.

Nessas circunstâncias, o senso de humor não é tão-só uma questão de contar piadas ou fazer trocadilhos, tentando ser deliberadamente engraçado. Envolve a visão da ironia básica da justaposição de extremos, de modo que não somos surpreendidos levando-os a sério, nem seriamente fazemos seu jogo de esperança e medo. Eis aí a razão por que a experiência do caminho espiritual é tão importante, e por que a prática da meditação é a mais insignificante experiência de todas: É insignificante porque não lhe fazemos nenhum julgamento. Assim, desde que estejamos mergulhados nessa insignificante situação de abertura sem envolvimento com avaliações, começaremos a ver todos os jogos que se desenrolam a nossa volta. Se alguém está tentando ser severo e espiritualmente solene, buscando ser uma boa pessoa, ela poderá levar a sério a ofensa que alguém lhe dirigir, e poderá querer brigar. Se trabalharmos de acordo com a básica insignificância do que é, começaremos a ver o humor dessa atitude solene, nessas pessoas que dão tamanha importância às coisas.

P: A maioria dos argumentos que tenho ouvido em favor de fazer o que é bom e direito diz: Primeiro acumule méritos, seja bom, se afaste do mal; mais tarde, será ainda mais fácil renunciar às suas “neuroses inócuas”. O que lhe parece esse enfoque?

R: Se olharmos para isso do ponto de vista do senso de humor, a idéia de “renunciar” parece demasiado literal e ingênua. Se estivermos tentando ser bons e desistir de tudo, isso, ironicamente, é não desistir de coisa alguma; é envolver-se com mais coisas. Aí está a parte engraçada da história. Alguém pode imaginar estar apto para abandonar a carga pesada que vem carregando, mas a ausência da carga, a desistência, é mais pesada, centenas de vezes mais pesada do que a que a pessoa deixou para trás. É fácil abrir mão de alguma coisa, mas o efeito colateral dessa renúncia poderá consistir numa virtude demasiado pesada. Toda vez que nos encontrarmos com alguém estaremos pensando ou realmente dizendo: “Abri mão disto e daquilo.” O “abrir mão” faz-se cada vez mais pesado, como se estivéssemos carre- gando um grande saco de germes nas costas. Finalmente, o que carregamos pode transformar-se num grande cogumelo, que passará a crescer cada vez mais depressa. E chega um ponto em que a pessoa se torna completamente insuportável por haver renunciado a tantas coisas.

A propósito, se tratarmos a prática da meditação como assunto sério, coisa de importância, ela se acabará tomando embaraçosa e pesada, esmagadora. Não seremos sequer capazes de pensar nela. Seria o mesmo se uma pessoa tivesse feito uma refeição extremamente pesada, estando a ponto de sentir-se mal e começasse a pensar: “Queria estar com fome, pelo menos, seria uma sensação mais leve. Mas agora tenho toda essa comida na barriga e estou quase vomitando. Antes eu não tivesse comido.” Não podemos tomar a espiritualidade tão seriamente. Ela é a causa do

próprio malogro, contrária ao verdadeiro significado da “renúncia”.

P: Há então sentido de tragédia no que uma pessoa iluminada haja superado?

R: Não precisamos ser necessariamente iluminados para pôr de lado a tragédia. Se estivermos envolvidos com a intensidade de situações que progride para um clímax, com a intensidade da tragédia, poderemos começar também a ver o humor dessas situações. Como na música, quando ouvimos desenvolver-se o crescendo, se a música parar de repente, ouviremos o silêncio como parte da música. Não se trata de nenhuma experiência invulgar: é muito vulgar, muito mundana. Foi por isso que a qualifiquei de uma das mais insignificantes experiências de todas, porque não damos a ela maior importância. A experiência quase nem está lá. Evidentemente, se empregássemos a tendência distorsiva básica do ego, poderíamos continuar dizendo que, porque a experiência quase nem está lá, porque é tão insignificante, conseqüentemente, é uma das mais valiosas e extraordinárias de todas as experiências. Mas isso seria apenas um modo conceptual de tentar provar que aquilo em que estamos envolvidos é muito importante. Pois não é muito importante.

P: O senso de humor está de algum modo relacionado com a experiência da iluminação instantânea, satori?

R: Certamente, há até a história de uma pessoa que morreu dando risada. Era um simples aldeão e perguntou a um mestre qual era a cor de Amitabha, a qual, tradicional e iconograficamente, é o vermelho. Fosse lá como fosse, o aldeão se enganou e supôs que o mestre dissera que a cor de Amitabha era a cor cinza. E isso influiu em toda a sua prática de meditação; pois quando praticava visualizando Amitabha, visualizava-o de cor cinza.

E assim, o homem chegou ao fim da vida. Prostrado em seu leito de morte e querendo certificar-se, perguntou a outro mestre qual era a cor de Amitabha. O mestre respondeu-lhe que a cor de Amitabha era o vermelho, e o homem, súbito, caiu na gargalhada: “Eu pensava que a cor dele fosse o cinzento, e agora o senhor me diz que é o vermelho.” Caiu na gargalhada e morreu rindo. Trata-se, portanto, de uma questão de superar alguma espécie de seriedade.

Há muitas histórias de pessoas que foram realmente capazes de ver o estado desperto caindo em risadas — vendo o contraste, a ironia das situações antagônicas. Há, por exemplo, a do eremita que tinha um devoto morador em uma cidade, vários quilômetros distante. Esse protetor o sustentava fornecendo alimentos e os demais meios para viver. Na maior parte das vezes, o homem mandava a esposa, a filha ou o filho levarem os suprimentos ao eremita; certo dia, porém, ouviu dizer que o seu benfeitor viria vê-lo pessoalmente. O eremita pensou: “Preciso impressioná-lo, preciso limpar e polir os objetos do santuário, deixá-lo bem limpo e o meu quarto bem arrumado.” Então, limpou e arrumou tudo até que o santuário adquiriu um aspecto muito bom com tigelas de água e lamparinas acesas e cintilantes. Quando terminou, sentou-se e ficou admirando o aposento, olhando a sua volta. Tudo parecia muito bem arrumado, de certo modo irreal e viu que o local também parecia irreal. De repente, para sua surpresa, compreendeu que estava sendo hipócrita. Dirigiu-se, então, à cozinha e, pegando punhados de cinzas, atirou-as sobre o santuário, até que o aposento se converteu numa completa confusão. Seu protetor ao chegar mostrou-se sumamente impressionado com o estado do aposento, por não estar arrumado. O eremita não se conteve e, começando a rir, disse: “Tentei me arrumar e arrumar o meu quarto, mas depois pensei que eu talvez devesse mostrá-lo desse jeito.” E assim ambos, protetor e eremita. desataram a rir. E aquele foi o grande momento de despertar para os dois.

P: Em cada palestra o sr. descreve uma situação aparentemente inescapável, em que nos vemos todos apanhados, na qual já estamos enredados. Eu me pergunto se não pretende deixar implícito que existe uma saída?

R: Veja bem, o caso é que, se ficarmos falando de uma saída o tempo todo, estaremos lidando com uma fantasia, o sonho da fuga, da salvação, da iluminação. Precisamos ser práticos. Precisamos examinar o que está aqui, agora, a nossa mente neurótica. Depois que estivermos completamente familiarizados com os aspectos negativos do nosso estado de ser, conheceremos automaticamente a “saída”. Mas se ficarmos falando sobre a beleza e a alegria que será a realização do nosso objetivo, tomar-nos-emos extremamente sinceros e românticos; e esse enfoque passa a ser um obstáculo.

Precisamos ser práticos. É como visitar o médico porque estamos doentes. Para que o médico possa nos tratar, é preciso primeiro que ele saiba o que está errado em nós. Não se trata de saber o que poderia estar certo; isso não tem importância. Se contarmos ao médico o que há de errado em nós, então, teremos uma saída para a nossa doença. Foi por isso que Buda ensinou-nos as quatro nobres verdades, seu primeiro ensinamento. Precisamos começar com a compreensão da dor, duhkha, sofrimento. A seguir, tendo compreendido duhkha, vamos à origem do sofrimento, ao caminho que conduz para fora do sofrimento e à libertação. O Buda não começou ensinando o belo da experiência da iluminação.

P: Seguindo os padrões usuais de avaliação e julgamento, passo a pensar que os erros e obstáculos que você descreveu nas últimas palestras são, de certo modo, mais avançados do que os descritos nas palestras anteriores. Está certo isso?

R: É verdade. Mesmo depois de havermos posto o pé no caminho, como no caso dos bodhisattvas, depois de

termos começado a despertar, pode manifestar-se uma tendência para analisar o nosso estado desperto; passamos, então, a olhar para nós mesmos, analisando e avaliando, até que ocorra um brusco impacto que é denominado samadhi semelhante ao vajra. Esse é o último samadhi da meditação. A realização da iluminação denomina-se “semelhante ao vajra” porque não tolera nenhuma tolice; apenas cortantemente atravessa todas as nossas maquinações. Na história da vida de Buda ouvimos falar nas tentações infinitamente sutis de Mara. A primeira é o medo da destruição física. A última é a sedução das filhas de Mara. Esta, a sedução do materialismo espiritual, é extremamente poderosa por ser a sedução de pensar que “eu” alcancei alguma coisa. Se julgarmos ter alcançado alguma coisa, ter “conseguido”, então, teremos sido seduzidos pelas filhas de Mara, a sedução do materialismo espiritual.

O Desenvolvimento do Ego

Visto que vamos examinar agora o caminho budista do princípio ao fim, desde a mente do principiante até a do iluminado, tenho para mim que será melhor começar por alguma coisa concreta e realística, ou seja, o campo que vamos cultivar. Seria tolice estudar assuntos mais adiantados antes de nos familiarizarmos com o ponto de partida, a natureza do ego. Temos um dito no Tibete segundo o qual não adianta apanhar a língua enquanto a cabeça não estiver devidamente cozida. Toda prática precisa dessa compreensão básica do ponto de partida, o material com que estamos trabalhando.

Se não conhecermos o material com que estamos trabalhando, nosso estudo será inútil; as especulações sobre a meta se tornarão mera fantasia. Tais especulações poderão assumir a forma de idéias avançadas e descrições de experiências espirituais, mas apenas exploram os aspectos mais fracos da natureza humana, nossas expectativas e desejos de ver e ouvir algo colorido, algo invulgar. Se começarmos nossos estudos com esses sonhos de experiências extraordinárias, esclarecedoras e dramáticas, desenvolveremos nossas expectativas e preconceitos de modo que, mais tarde, quando estivermos realmente trabalhando no caminho, teremos a mente muito mais ocupada com o que será do que com o que é. É destrutivo e injusto para as pessoas o jogo com suas fraquezas, expectativas e sonhos, em lugar de se apresentar o ponto de partida realístico do que elas são.

É necessário, portanto, começar pelo que somos e por que estamos procurando. Todas as tradições religiosas, de um modo geral, lidam com esse material, aludindo, seja ao alaya-vijnana, seja ao pecado original, à queda do homem ou à base do ego. A maioria das religiões se refere a esses assuntos de modo um tanto pejorativo, mas não me parece coisa tão chocante ou terrível. Não devemos envergonhar-nos do que somos. Como seres sencientes temos antecedentes maravilhosos, que podem não ser particularmente iluminados, tranqüilos ou inteligentes. Não obstante, temos um solo muito bom para cultivar, em que podemos plantar qualquer coisa. Por conseguinte, ao tratar deste assunto, não estamos condenando nem tentando eliminar nossa psicologia do ego; estamos simplesmente reconhecendo-a, vendo-a como ela é. Com efeito, a compreensão do ego é o fundamento do Budismo. Vejamos, pois, como se desenvolve o ego.

Fundamentalmente, só existe o espaço aberto, o solo básico, o que realmente somos. É esse o estado primordial de nossa mente, antes da criação do ego, havendo abertura básica, liberdade básica, espaço, e temos agora, como sempre tivemos, essa abertura. Tomemos, por exemplo, nossa vida e nossos padrões de pensamento cotidianos. Quando vemos um objeto, ocorre no primeiro instante súbita percepção sem lógica nem conceituação em relação a ele; apenas o percebemos no campo aberto. Então, de imediato, caímos em pânico e passamos a correr desorientadamente, tentando acrescentar-lhe alguma coisa, ou encontrar um nome para ele, ou ainda achando uma classificação para que possamos localizá-lo e categorizá-lo. Pouco a pouco, as coisas se desenvolvem a partir desse ponto.

Esse desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Ao contrário, é um desenvolvimento ilusório, a crença equivocada num “eu” ou “ego”. A mente confusa tende a ver-se como coisa sólida, em funcionamento, mas não passa de um conjunto de tendências e eventos. Na terminologia budista esse conjunto é conhecido como os Cinco Skandhas ou as Cinco Pilhas. Assim, talvez, possamos acompanhar o desenvolvimento dos Cinco Skandhas.

O ponto inicial é a existência de um espaço aberto, que não pertence a ninguém. Há sempre a inteligência primordial ligada ao espaço e à abertura. Vidya, que significa “inteligência” em sânscrito — precisão, agudeza, agudeza com espaço, agudeza com lugar em que se pode colocar coisas, trocar coisas. Poderíamos dizer um espaçoso salão em que há lugar para dançar, em que não corremos o risco de derrubar coisas nem tropeçar em coisas, pois o espaço é completamente aberto. Nós somos esse espaço, nós “somos um” com ele, com vidya, inteligência e abertura.

Mas se o somos durante o tempo todo, de onde veio a confusão, para onde foi o espaço, que aconteceu? Na realidade, nada aconteceu. Apenas nos tornamos demasiado ativos naquele espaço. Por ser vasto, ele nos convida a dançar; mas a nossa dança torna-se um pouco ativa demais, principiamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Nesse ponto, nos tornamos conscientes de nós mesmos, cônscios de que “eu” estou dançando no espaço.

A essa altura, o espaço deixa de ser espaço como tal. Faz-se sólido. Em lugar de “sermos um” com ele, percebemos o espaço sólido como entidade separada, tangível. Essa é a primeira experiência de dualidade — o espaço e eu, eu estou dançando neste espaço, e essa vastidão é uma coisa sólida, separada. Dualidade significa “o espaço e eu”, mais do que a completa identificação com o espaço. Assim nasce a “forma”, o “outro”.

Ocorre, então, uma espécie de desmaio, no sentido de que nos esquecemos do que estávamos fazendo. Há uma súbita parada, uma pausa e nós nos viramos e “descobrimos” o espaço sólido, como se nunca tivéssemos feito coisa alguma até então, como se não fôssemos os criadores de toda aquela solidez. Há uma lacuna. Tendo criado o espaço solidificado, somos engolfados por ele e começamos a perder-nos nele. Há um escurecimento e, depois, repentinamente, um despertar.

Quando despertamos, recusamo-nos a ver o espaço como abertura, recusamo-nos a ver-lhe a qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo completamente, e a isso se chama avidya. A significa “negação”, vidya significa “inteligência” e, portanto, avidya significa “não-inte-ligência”. Porque essa extrema inteligência se transformou na percepção do espaço sólido, porque essa inteligência luminosa, aguda, precisa e fluente se tornou estática, dá-se-lhe o nome de avidya, ou seja, “ignorância”. Ignoramos deliberadamente. Não nos satisfazemos apenas em dançar no espaço, mas queremos ter um parceiro e, assim, escolhemos o espaço por parceiro. Se escolhermos o espaço por parceiro de dança, haveremos de querer, evidentemente, que ele dance conosco. A fim de tê-lo como parceiro, temos de solidificá-lo e ignorar-lhe a qualidade fluente, aberta. Isso é avidya, ignorância, ignorar a inteligência. É o ápice do Primeiro Skandha, a criação da Ignorância-Forma.

Com efeito, este skandha, o skandha da Ignorância-Forma. tem três aspectos ou fases diferentes que podemos examinar empregando outra metáfora. Suponhamos que, no princípio, haja uma planície aberta sem montanhas nem árvores, uma terra completamente aberta, um simples deserto sem nenhuma característica especial. Eis aí como somos, o que somos. Somos muito simples e básicos. E, todavia, há um Sol que brilha, uma Lua que brilha, e haverá luzes e cores, a textura do deserto. Haverá alguma sensação da energia que brinca entre o Céu e a Terra. E, assim por diante, indefinidamente.

Depois, estranhamente, surge de improviso, alguém para notar tudo isso. Como se um dos grãos da areia espichasse o pescoço para fora e principiasse a olhar à sua volta. Nós somos o grão de areia, chegando à conclusão do nosso estado de separação. Este é o “Nascimento da Ignorância” em seu primeiro estágio, uma espécie de reação química. A dualidade começou.

À segunda fase da Forma-Ignorância dá-se o nome de “A Ignorância Nascida no Interior”. Tendo reparado que somos isolados, sobrevém a sensação de que sempre fomos assim. É uma inépcia, o instinto da constrangedora consciência de si mesmo. É também uma desculpa para permanecermos independentes, um grão de areia individual. Um tipo agressivo de ignorância, embora não exatamente agressivo no sentido de colérico; ele ainda não se desenvolveu tanto assim. Trata-se antes de agressão no sentido de nos sentirmos desajeitados, desequilibrados e, por isso mesmo, de tentarmos garantir o nosso território, de criar um abrigo para nós. É a atitude do indivíduo confuso e separado, e isso é tudo. Nós nos identificamos como separados da paisagem básica do espaço e da abertura.

O terceiro tipo de ignorância é a “Ignorância que se Observa”, que se vigia. Há um sentido de nos vermos como um objeto externo, o que nos conduz à primeira noção do “outro”. Estamos começando a relacionar-nos com um mundo chamado “externo”. É por isso que os três estágios da ignorância constituem o Skandha da Forma-Ignorância; estamos começando a criar o mundo das formas.

Quando falamos de “ignorância” não queremos, de maneira alguma, dizer estupidez. Em certo sentido, a ignorância é muito inteligente, mas é uma inteligência bidirecional. Isto é, reagimos meramente às nossas projeções em lugar de diretamente limitar-nos a ver o que é. Não há nenhuma situação de “deixar ser”, porque ignoramos o que somos durante o tempo todo. Esta é a definição básica de ignorância.

O desenvolvimento seguinte é o estabelecimento de um mecanismo de defesa para proteger nossa ignorância; esse mecanismo é a Sensação, o Segundo Skandha. Desde que já ignoramos o espaço aberto, gostaríamos de sentir as qualidades do espaço sólido a fim de trazer completa satisfação à índole gananciosa que estamos desenvolvendo. Claro está que o espaço não significa apenas o espaço nu, pois contém cor e energia. Há intensas e magníficas exibições de cor e energia, belas e pitorescas. Mas nós as ignoramos. Em vez disso, há apenas uma versão solidificada daquela cor; e a cor passa a ser cor capturada, e a energia passa a ser energia capturada, porque nós solidificamos todo o espaço e o transformamos no “outro”. Assim, começamos a estender a mão e a perceber as qualidades do “outro”. Fazendo-o, asseguramo-nos da nossa existência. “Se posso sentir aquilo ali, conseqüentemente estou aqui.”

Toda vez que acontece alguma coisa, estendemos a mão para sentir se a situação é sedutora, ameaçadora ou neutra. Toda vez que ocorre uma repentina separação, uma sensação de não conhecer a relação entre “isto” e “aquilo”, tendemos a procurar sentir o chão. Tal é o mecanismo de sensação extremamente eficiente que começamos a

estabelecer o Segundo Skandha.

O mecanismo seguinte, destinado a reforçar o estabelecimento do ego é o Terceiro Skandha, Percepção-Impulso. Começamos a nos fascinar pela nossa própria criação, cores e as energias estáticas, queremos nos relacionar com elas e, dessa maneira, gradativamente, principiamos a investigá-las.

Para podermos investigar com eficiência, é preciso haver uma espécie de sistema de quadro de distribuição, um controlador do mecanismo da sensação. Esta transmite suas informações ao quadro central de distribuição, que é o ato da percepção. De acordo com as informações, nós fazemos julgamentos, nós reagimos. A nossa reação favorável, contrária ou indiferente é automaticamente determinada pela burocracia da sensação e da percepção. Se percebermos a situação e ela nos parecer ameaçadora, nós a empurraremos para longe. Se nos parecer atraente, puxá-la-emos para junto de nós. Se nos parecer neutra, nós lhe seremos indiferentes. São esses os três tipos de impulso: ódio, desejo e estupidez. Assim sendo, a percepção se refere à recepção de informações do mundo exterior e o impulso se refere à nossa resposta a essas informações.

O desenvolvimento seguinte é o Quarto Skandha, Conceito. A Percepção-Impulso é uma reação automática à sensação intuitiva. Entretanto, esse tipo de reação automática realmente não basta a uma defesa destinada a proteger nossa ignorância e a garantir nossa segurança. A fim de proteger-nos e enganar-nos completa e adequadamente, precisamos do intelecto, da capacidade de nomear e categorizar as coisas. Assim, rotulamos coisas e eventos qualificando-os de “bons”, “maus”, “belos”, “feios”, etc., de acordo com o impulso que julgamos apropriado a eles.

Nessas condições, a estrutura do ego se torna gradativamente mais e mais pesada, mais e mais forte. Até este ponto o desenvolvimento do ego tem sido apenas um processo de ação e reação; mas de agora em diante, aos poucos, o ego se desenvolve para além do instinto simiesco e torna-se mais sofisticado. Começamos a experimentar a especulação intelectual, confirmando-nos ou interpretando-nos, colocando-nos em certas situações lógicas, interpretativas. A natu- reza básica do intelecto é muito lógica. Haverá, obviamente, tendência para trabalhar em favor de uma condição positiva: confirmar nossa experiência, interpretar a fraqueza como força, fabricar uma lógica de segurança, confirmar nossa ignorância.

Em certo sentido, pode-se dizer que a inteligência primordial opera o tempo todo, mas está sendo empregada pela fixação dualística, a ignorância. Nos estados iniciais do desenvolvimento do ego, essa inteligência opera como a agudeza intuitiva da sensação. Mais tarde, opera em forma de intelecto. Na realidade, parece não existir o ego; nada existe parecido com o “eu sou”. Trata-se de acúmulo de uma porção de coisas. É uma “brilhante obra de arte”, um produto do intelecto que diz: “Vamos dar-lhe um nome, vamos chamá-lo de qualquer coisa, vamos chamá-lo ‘eu sou'”, o que é muito inteligente. “Eu” é o produto do intelecto, o rótulo que unifica num todo o desenvolvimento desorganizado e disperso do ego.

O derradeiro estágio do desenvolvimento do ego é o Quinto Skandha, a Consciência. Nesse nível se processa uma amálgama: a inteligência intuitiva do Segundo Skandha, a energia do Terceiro e a intelectualização do Quarto se misturam para produzir pensamentos e emoções. Nessas condições, no nível do Quinto Skandha, encontramos os Seis Reinos assim como os padrões incontroláveis e ilógicos do pensamento discursivo.

Esse é o retrato completo do ego. Foi a esse ponto que todos nós chegamos em nosso estudo da psicologia e da meditação budistas.

Há uma metáfora na literatura budista comumente empregada para descrever todo esse processo, a criação e o desenvolvimento do ego. Refere-se a um macaco encerrado numa casa vazia, uma casa de cinco janelas, que representam os cinco sentidos. O macaco é curioso, vive enfiando a cabeça pelas cinco janelas e pulando para cima e para baixo, sem parar. É um macaco cativo numa casa vazia. Uma casa sólida, diferente da mata em que ele costumava saltar e balançar-se, diferente das árvores em que escutava o vento que se movia e o farfalhar das folhas e dos galhos. Todas essas coisas se tomaram completamente solidificadas. De fato, a própria mata passou a ser a sua casa sólida, a sua prisão. Em lugar de encarapitar-se numa árvore, o macaco curioso foi emparedado por um mundo sólido, como se uma coisa que flui, uma impressionante e bela catarata, se houvesse, de repente, congelado. A casa congelada, feita de cores e energias congeladas, está completamente imóvel. Esse parece ser o ponto em que o tempo começa como passado, futuro e presente. O fluxo das coisas torna-se tempo tangível sólido, sólida idéia do tempo.

O macaco curioso desperta do seu desmaio, mas não desperta completamente. Desperta para encontrar-se preso no interior de uma casa sólida, claustrofóbica, de apenas cinco janelas. Ele se aborrece, como se vivesse cativo num jardim zoológico por trás de barras de ferro, e procura explorar as barras, subindo e descendo por elas. O fato de haver sido capturado não tem muita importância; mas a idéia da captura é aumentada mil vezes em virtude do seu fascínio por ela. Quando estamos fascinados, o sentido da claustrofobia torna-se mais e mais vivido, mais e mais agudo, porque começamos a explorar o nosso aprisionamento. A fascinação, na verdade, é parte da razão por que ele permanece prisioneiro, capturado por ela.

No princípio, evidentemente, houve o súbito desmaio, que lhe confirmou a crença num mundo sólido. Mas agora, tendo aceitado a solidez como verdadeira, está preso na armadilha do seu envolvimento nela.

É claro que o macaco curioso não investiga o tempo todo. Começa a ficar agitado, começa a sentir que algo é muito repetitivo e desinteressante e torna-se neurótico. Ávido de entretenimento, busca sentir e apreciar a textura da parede, tentando certificar-se de que a aparente solidez é realmente sólida. A seguir, certo de que o espaço é sólido, o macaco passa a se relacionar com ele, agarrando-o, repelindo-o ou ignorando-o. Se tenta agarrar o espaço a fim de possuí-lo como sua própria experiência, sua própria descoberta, sua própria compreensão, isso é desejo. Ou, se o espaço lhe parece uma prisão, e ele tenta sair dela a murros e pontapés, lutando com vigor cada vez maior, isso é ódio. O ódio não é somente a mentalidade da destruição; mais do que isso, é uma sensação de defesa, de defesa de si mesmo contra a claustrofobia. O macaco não sente necessariamente que há um adversário ou inimigo se aproximando; ele simplesmente deseja fugir da prisão.

Finalmente, o macaco pode tentar não tomar conhecimento de que é prisioneiro ou de que existe algo de sedutor em seu ambiente. Age como se fosse surdo e mudo e, portanto, mostra-se indiferente e preguiçoso em relação ao que acontece ao seu redor. Isso é estupidez.

Retrocedendo um pouco, podemos dizer que o macaco nasceu em sua casa ao despertar do desmaio. Não sabe como chegou àquela prisão, por isso presume que sempre esteve lá, esquecido de que ele próprio solidificou o espaço em paredes. Depois, sente a textura das paredes, o que é o Segundo Skandha, Sensação. Depois, relaciona-se com a casa em termos de desejo, ódio e estupidez, o Terceiro Skandha, Percepção-Impulso. Depois, tendo desenvolvido essas três maneiras de relacionar-se com a casa, o macaco se põe a rotulá-la e categorizá-la: “Isto é uma janela. Este canto é agradável. Aquela parede me assusta e é má.” Desenvolve uma estrutura conceituai que lhe permite rotular, categorizar e avaliar a sua casa, o seu mundo, de acordo com o que sente por eles, se os deseja, se os odeia ou se lhes é indiferente. Esse é o Quarto Skandha, Conceito.

O desenvolvimento do macaco até o Quarto Skandha foi razoavelmente lógico e previsível. Mas o padrão de desenvolvimento começa a se desagregar quando ele entra no Quinto Skandha, Consciência. O padrão de pensamento torna-se irregular e imprevisível e o macaco começa a desvairar, a sonhar.

Quando falamos em “desvario” ou “sonho”, queremos dizer que estamos dando às coisas e aos acontecimentos um valor que eles podem não ter. Possuímos opiniões já definidas sobre o modo como são e deveriam ser as coisas. Isso é projeção: projetamos a nossa versão das coisas sobre o que está ali. Afundamos assim, completamente, num mundo de nossa própria criação, um mundo de valores e opiniões conflitantes. O desvario, nesse sentido, é uma interpretação errônea das coisas e dos eventos, que empresta ao mundo fenomenal significados que ele não tem.

Isso é o que o macaco principia a experimentar no nível do Quinto Skandha. Tendo tentado fugir e fracassado, sente-se deprimido, indefeso, e vai-se tornando inteiramente louco. Porque está tão cansado de lutar, é uma tentação para ele se relaxar e deixar a mente vagabundear e desvairar. Esta é a criação dos Seis Lokas ou Seis Reinos. Há muita discussão na tradição budista acerca de seres infernais, seres celestiais, o mundo humano, o reino animal e outros estados psicológicos de ser. São estes os diferentes tipos de projeções, os mundos de sonho que criamos para nós.

Tendo lutado e não conseguido fugir, tendo experimentado a claustrofobia e a dor, o macaco começa a almejar algo bom, algo belo e sedutor. Por isso, o primeiro reino com que começa a sonhar é o Deva Loka, o Reino dos Deuses, o “céu”, lugar cheio de belas e esplêndidas coisas. O macaco sonha sair andando de casa, caminhar por campos luxuriantes, comer frutos maduros, sentar-se e balouçar-se nas árvores, viver uma vida de liberdade e sossego.

Começa a sonhar também com o Reino dos Asuras, ou Reino dos Deuses Invejosos. Tendo experimentado o sonho do céu, o macaco quer defender e conservar sua grande ventura e felicidade. Sofre a paranóia, preocupando-se que outros possam tentar roubar-lhe os tesouros e, assim, começa a sentir inveja. Orgulhoso de si próprio, satisfez-se com a sua criação do Reino dos Deuses, e isso o levou à inveja do Reino dos Asuras.

Daí ele percebe também a qualidade quase terrena dessas experiências. Em vez de alternar simplesmente entre a inveja e o orgulho, começa a sentir-se à vontade, em casa, no “mundo humano”, o “mundo terreno”. O mundo cujos habitantes levam uma vida regular, fazem as coisas de maneira comum, de um modo mundano. É o Reino Humano.

Entretanto, o macaco também sente que alguma coisa é meio obtusa, que alguma coisa não está fluindo direito, porque, à medida que progride do Reino dos Deuses para o Reino dos Deuses Invejosos e para o Reino dos Seres Humanos, e as suas alucinações se tornam mais e mais sólidas, todo esse desenvolvimento começa a parecer-lhe pesado e estúpido. Nesse ponto, ele nasce no Reino Animal. Preferiria rastejar, mugir ou latir a desfrutar o prazer do orgulho ou da inveja. Esta é a simplicidade dos animais.

A seguir, o processo se intensifica, e o macaco passa a experimentar uma sensação desesperada de inanição, porque realmente não deseja descer para nenhum dos reinos inferiores. Gostaria de voltar aos aprazíveis reinos dos deuses; e começa a sentir fome e sede, uma tremenda saudade do que se lembra de ter sido outrora. Esse é o Reino dos Espectros Famintos ou Reino dos Pretas.

Ocorre, então, súbita perda de fé e o macaco se põe a duvidar de si mesmo e do seu mundo, começa a reagir com violência. Tudo é um terrível pesadelo. Compreende que o pesadelo não pode ser verdadeiro e começa a odiar-se por haver criado todo esse horror. É o sonho do Reino do Inferno, o último dos Seis Reinos.

Em todo o correr do desenvolvimento dos Seis Reinos, o macaco experimentou pensamentos discursivos, idéias, fantasias e padrões inteiros de pensamento. Até o nível do Quinto Skandha, o seu processo de evolução psicológica foi muito regular e previsível. A partir do Primeiro Skandha, cada desenvolvimento sucessivo surgiu num padrão sistemático, como o sobrepor das telhas de um telhado. Mas agora o estado de espírito do macaco torna-se muito deformado e intranqüi-lo; subitamente esse quebra-cabeça irrompe, e seus padrões de pensamento tornam-se irregulares e imprevisíveis. Parece ser este o nosso estado de espírito quando chegamos aos ensinamentos e à prática da meditação. E é a partir desse ponto que devemos iniciar a nossa prática.

Penso que é muito importante discutir a base do caminho — o ego, a nossa confusão — antes de falarmos em libertação e liberdade. Seria muito perigoso se eu me limitasse apenas a discutir a experiência da libertação. É por isso mesmo que começamos considerando o desenvolvimento do ego; é uma espécie de retrato psicológico de nossos estados mentais. Receio que não tenha sido especialmente agradável essa explanação; mas temos de enfrentar os fatos. Parece ser este o processo de trabalhar no caminho.

P: Pode explicar algo mais sobre o que chamou de desmaio?

R: Não é nada particularmente profundo. Acontece apenas que, no nível do Primeiro Skandha, trabalhamos com muito afinco tentando solidificar o espaço. Trabalhamos tanto e com tanta pressa que a inteligência, de repente, sofre um colapso. Poderíamos dizer que isto é uma espécie de satori inverso, uma experiência inversa de iluminação, a experiência da ignorância. Entramos de repente num transe, em conseqüência de havermos trabalhado com tanto empe- nho. Toda essa solidez é alguma coisa que realmente realizamos, uma obra-prima. E, tendo-a realizado completamente, súbito nos vemos engolfados por ela. É uma meditação desse gênero, uma espécie de samadhi ao contrário.

P: Crê que as pessoas devem ter consciência da morte para estarem realmente vivas?

R: Não creio que tenhamos de estar particularmente conscientes da morte, no sentido de analisá-la, mas temos de ver o que somos. Tendemos, não raro, a procurar o lado positivo, a beleza da espiritualidade, e a ignorar-nos como somos. Esse é o maior perigo. Se estivermos empenhados na análise de nós mesmos, nossa prática espiritual estará tentando encontrar alguma conclusão final, uma derradeira auto-ilusão. A inteligência do ego é muito talentosa, ela pode distorcer qualquer coisa. Se nos apegarmos às idéias de espiritualidade, ou de auto-analise, ou de transcendência do ego, este se apossa imediatamente delas e as traduz em auto-ilusão.

P: Quando o macaco começa a desvairar, é conseqüência de alguma coisa que conheceu antes? De onde provém a alucinação?

R: Ê uma espécie de instinto, um instinto secundário, o instinto simiesco que todos temos. Se houver dor, sonharemos com o prazer, para contrastar. Há o impulso inato de defender-nos, de estabelecermos o nosso território.

P: Providos apenas com o nível de consciência que temos agora, estaremos destinados a lutar e pelejar desesperançadamente nesse nível, a menos que possamos voltar ao espaço que o sr. descreveu?

R: É claro que teremos de lutar o tempo todo, não há fim para isso. Poderíamos continuar falando, para todo o sempre, sobre a sucessão de lutas que teremos de suportar. Não existe nenhuma outra resposta, a não ser, como você disse, tentar encontrar novamente o espaço primordial. Se assim não for, estaremos presos na atitude psicológica deste em oposição àquele, o que é um obstáculo. Estamos sempre combatendo um adversário. Não há um só momento que deixemos de lutar. O problema é a dualidade, a guerra em termos de mim e meu adversário.

A prática da meditação é uma forma completamente diferente de trabalhar. Temos de modificar toda a nossa atitude e maneira de conduzir a vida. Temos de mudar toda a nossa política, por assim dizer. Isso pode ser muito doloroso. De repente, começamos a compreender: “Se eu não lutar, como lidarei com meus inimigos? Estará tudo bem para mim se eu não lutar, mas que dizer deles? Eles, ainda assim, continuarão lá.” Esse é o ponto interessante.

P: Ver a parede, reconhecer que estamos ali e não seguirmos adiante — parece uma posição muito perigosa.

R: É precisamente esse o ponto: não é perigosa. Poderá ser dolorosa no momento em que compreendermos que a parede é sólida e que estamos presos por ela, mas é esse, justamente, o ponto interessante.

P: Mas o sr. não acabou de dizer que o desejo de voltar ao outro estado, o espaço aberto, é instintivo?

R: Afirmei sim, mas esse macaco não se deixará apenas ser outra vez. Ele luta continuamente, ou se envolve em alucinações. Nunca pára, nunca permite a si mesmo sentir realmente alguma coisa de maneira adequada. Aí é que está o problema. Eis por que o simples parar, o simples permitir uma lacuna, é o primeiro passo na prática da meditação.

P: Digamos que você tenha uma dificuldade, uma inibição, e está muito consciente dela. A inibição desapareceria pela simples razão de você ter consciência dela?

R: O fundamental é não tentar imaginar o modo pelo qual escaparemos do nosso dilema, mas, por ora, precisamos pensar em todas aquelas salas claustrofóbicas em que nos encontramos. Esse é o primeiro passo no aprendizado. Temos de nos identificar realmente conosco e sentir-nos de modo correto, o que nos proporcionará inspiração para estudos posteriores. Seria melhor não falar, ainda, em libertar-nos.

P: O sr. diria que essas salas claustrofóbicas eram construções intelectuais?

R: A intensidade da inteligência primordial nos provoca o tempo todo. Por conseguinte, todas essas atividades do macaco não devem ser consideradas como alguma coisa da qual devemos fugir, mas como um produto da inteligência primordial. Quanto mais tentarmos lutar, tanto mais descobriremos que as paredes são efetivamente sólidas. Quanto mais energia empregarmos na luta, tanto mais fortaleceremos as paredes, porque estas precisam da nossa atenção para se solidificarem. Toda vez que dermos mais atenção às pareces, mais sentiremos a desesperança da fuga.

P: O que o macaco percebe quando olha pelas cinco janelas da casa?

R: Percebe o Leste, o Oeste, o Sul e o Norte.

P: Como lhe parecem?

R: Como um mundo quadrado.

P: E fora da casa?

R: Ele continua a ver o mundo quadrado, pela simples razão de vê-lo através de janelas.

P: Não vê nada à distância?

R: Poderia ver, mas é também uma imagem quadrada; é como pendurar um quadro na parede, não é?

P: O que acontece ao macaco quando toma um pouco de LSD ou de peiote?

R: Ele já o tomou.

Os Seis Reinos

Quando deixamos o macaco, ele estava no Reino do Inferno, tentando abrir caminho com os pés, as garras e os braços através das paredes da casa As experiências do macaco no Reino do Inferno são aterradoras e horríveis. Ele se vê percorrendo campos gigantescos de ferro aquecido ao rubro, ou sendo acorrentado e marcado com linhas negras e esquartejado, ou assado em cubículos quentes de ferro, ou cozido em grandes caldeirões. Estas e outras alucinações do Inferno são geradas a partir de um ambiente de claustrofobia e agressão. Há uma sensação de estar preso num pequeno lugar sem ar para respirar e sem espaço para se mover. Preso, como ele está, o macaco não só tenta destruir as paredes da sua claustrofóbica prisão, mas até tenta matar-se, a fim de escapar ao seu doloroso e contínuo sofrimento. Entretanto, ele não pode se matar, e suas tentativas suicidas só prestam para intensificar-lhe a tortura. Quanto mais luta para destruir ou controlar as paredes, tanto mais sólidas e opressivas elas se tornam, até que, num determinado ponto, a intensidade da agressão se atenua um pouco e, em vez de lutar com as paredes, o macaco cessa de relacionar-se com elas, pára de comunicar-se com elas. Fica paralisado, congelado, envolvido na dor, sem brigar para fugir. Aqui, ele experimenta as diversas torturas provocadas pelo frio e pelo viver em áreas agrestes, nuas e desoladas.

Finalmente, porém, o macaco começa a sentir-se exausto de tanto lutar. Começa a diminuir a intensidade do Reino do Inferno, o macaco passa a relaxar-se e, subitamente, enxerga a possibilidade de um modo de ser mais aberto, mais espaçoso. Anseia pelo novo estado, que é o Reino dos Espectros Famintos ou Preta Loka: a sensação de empobrecimento e fome de algo que o alivie. No Reino do Inferno ele vivia tão ocupado na sua luta que não tinha tempo sequer para pensar na possibilidade de alívio. Agora experimenta uma grande fome de condições mais agradáveis, mais espaçosas, e fantasia um sem-número de maneiras de satisfazê-la. Pode imaginar estar enxergando, muito longe, um espaço aberto mas, quando dele se aproxima, encontra um vasto e terrível deserto. Ou pode ver, à distância, uma exuberante árvore frutífera mas, ao se achegar, descobre que ela não tem frutos ou que alguém a está guardando. Ou o macaco pode voar para um vale aparentemente viçoso e fértil, só para encontrá-lo cheio de insetos venenosos e de cheiros repulsivos da vegetação apodrecendo. Em cada uma das suas fantasias, vislumbra a possibi- lidade de satisfação, estende a mão para agarrá-la e, logo, se decepciona. Toda vez que parece prestes a lograr o prazer, é rudemente despertado do sonho idílico; mas a fome é tão exigente que ele não se deixa abater e, assim, continua a revolver e criar constantemente suas fantasias de futura satisfação. A dor do desaponto envolve o macaco numa relação de amor e ódio com os seus sonhos. Sente-se fascinado por eles, mas a decepção é tão dolorosa que também eles o repelem.

A tortura do Reino dos Espectros Famintos não é tanto o sofrimento de não encontrar o que deseja; é mais a própria fome insaciável que causa o sofrimento. Provavelmente se o macaco encontrasse grandes quantidades de alimentos, nem sequer tocaria neles; ou talvez comesse tudo e, em seguida, desejasse mais. Isso ocorre porque, fundamentalmente, o macaco se sente mais fascinado com o estar faminto do que com o saciar a fome. A rápida frustração das suas tentativas de satisfazer à fome permite-lhe ter fome outra vez. Assim, a dor e a fome do Preta Loka, como a agressão do Reino do Inferno e as preocupações dos outros reinos, proporcionam-lhe algo excitante com que se ocupar, algo sólido com que se relacionar, algo para fazê-lo sentir-se seguro de existir como pessoa real. Ele tem medo de abandonar a segurança e o entretenimento, medo de aventurar-se no mundo desconhecido do espaço aberto. Preferiria permanecer em sua prisão já familiar, não importando o quanto penosa e opressiva ela fosse.

No entanto, como o macaco se vê repetidamente frustrado nas tentativas de realizar suas fantasias, começa a ficar um tanto ressentido e, ao mesmo tempo, resignado. Começa a desistir da intensidade da fome e a ficar mais à vontade quanto a uma série determinada de respostas habituais ao mundo. Desconhece outro modo de lidar com as experiências de vida, e confia no mesmo conjunto de respostas e, dessa maneira, limita o próprio mundo: um cachorro tenta cheirar tudo aquilo com que entra em contato; um gato não se interessa por televisão. Tal é o Reino Animal, o reino da estupidez. O macaco se faz cego para o que existe à sua volta e recusa-se a explorar novos territórios, apegando-se às metas e irritações íntimas. Inebriado pelo seu mundo familiar, seguro e autônomo, fixa a atenção em metas bem conhecidas e persegue-as com firme e teimosa determinação. Por isso o reino animal é simbolizado pelo porco. Um porco limita-se a comer o que quer que lhe apareça diante do focinho. Não olha para a direita nem para a esquerda; segue em frente, faz exatamente isso. Não lhe importa se é preciso atravessar a nado um enorme tanque de lodo ou enfrentar outros obstáculos; limita-se a ir de uma extremidade à outra e a comer o que encontra. Finalmente, porém, o macaco começa a compreender que lhe é dado escolher prazeres e sofrimentos. Tornar-se um pouco mais inteligente, discriminando entre experiências agradáveis e penosas, num esforço para aumentar o prazer e diminuir a dor. Esse é o Reino Humano, o reino da paixão discriminativa. Aqui, o macaco se detém para pensar no que está procurando pegar. Torna-se mais discriminati-vo, avalia alternativas, raciocina mais e, portanto, espera e teme mais. Este é o Reino Humano, o reino da paixão e do intelecto. O macaco torna-se mais inteligente. Não agarra apenas; explora, sente as texturas, compara objetos. Se chega à conclusão de que deseja alguma coisa, tenta agarrá-la, puxa-a para si e a possui. Se, por exemplo, viesse a desejar uma bonita peça de seda, iria às diversas lojas e sentiria a textura dos tecidos para verificar se algum era exatamente o que ele desejava. Quando encontrasse o tecido precisamente ajustado ao que imaginara, ou que mais disso se aproximasse, apalpando-o diria: “Ah! Ótimo! Não é lindo? Creio que vale a pena comprá-lo.” Em seguida, pagaria o tecido, para levá-lo para casa, para mostrá-lo aos amigos e pedir-lhes que apalpassem e apreciassem a textura da bela peça. No Reino Humano, o macaco está sempre pensando em como possuir coisas que lhe dão prazer: “Talvez eu devesse comprar um ursinho de brinquedo para levar para a cama — alguma coisa que eu possa amar, aconchegar a mim, fofo, quente e peludo.”

O macaco descobre, porém, que, embora seja inteligente e possa manipular o seu mundo a fim de obter algum prazer, ainda assim não pode segurar o prazer nem ter sempre o que deseja. É atormentado pela doença, pela velhice, pela morte — por frustrações e problemas de todos os gêneros. A dor é a companheira constante dos seus prazeres.

Assim sendo, começa, muito logicamente, a inferir a possibilidade do céu, a completa eliminação da dor e a obtenção do prazer. A sua versão do céu talvez seja a aquisição de extrema riqueza ou do poder ou da fama — seja lá o que for que ele gostaria que fosse o seu mundo — e passa a se ocupar com a consecução e a competição. Este é o Reino dos Asuras, o Reino dos Deuses Invejosos. O macaco sonha com estados ideais, superiores aos prazeres e às dores do Reino Humano, e está sempre tentando alcançá-los, sempre tentando ser melhor do que qualquer outro. Nessa luta constante por atingir a perfeição de alguma espécie, sente-se obcecado com a avaliação do seu progresso, com a comparação de si mesmo com os outros. Desenvolvendo maior controle dos pensamentos e emoções e, portanto, maior concentração, é capaz de manipular o seu mundo com mais sucesso do que no Reino Humano. Mas a preocupação de

ser sempre o melhor, de ser sempre dono da situação, faz com que seja inseguro e ansioso. Cumpre-lhe lutar constantemente, para controlar o seu território, superando todas as ameaças às suas realizações. Está sempre lutando pelo domínio de seu mundo.

A ambição de lograr a vitória e o medo de perder uma batalha não só lhe proporcionam a sensação de estar vivo como também lhe causam irritação. Perde constantemente de vista a meta final, mas continua movido pela ambição de ser melhor. É obcecado pela competição e consecução. Procura situações agradáveis, atraentes, que parecem fora do seu alcance e tenta arrastá-las para o seu território. Quando o objetivo é demasiado difícil de ser atingido, afasta-se, assustado, da luta, e recrimina-se por não se haver disciplinado, por não trabalhar com mais afinco. Dessa maneira, vê- se cativo num mundo de ideais não realizados, de autocondenação e medo do fracasso.

Finalmente, pode atingir seu objetivo — ficar milionário, líder de uma país, artista famoso. De início, logo após havê-lo atingido, ainda se sentirá um tanto inseguro; mais cedo ou mais tarde, porém, começa a compreender que conseguiu vencer, que está lá, que está no céu. Começa, então, a relaxar-se, a demorar-se na contemplação dos seus feitos, a apreciá-los, afastando de si as coisas indesejáveis, num estado semelhante à hipnose, numa concentração natural. Esse estado de felicidade e orgulho é o Deva Loka ou Reino dos Deuses. Em sentido figurado, os corpos dos deuses são feitos de luz. Não precisam se preocupar com questões terrenas. Se quiserem fazer amor, um olhar e um sorriso correspondidos os satisfarão. Se quiserem comer, basta-lhes dirigir a mente para formosas visões, que os alimentam. É o mundo utópico que os seres humanos esperam que exista. Tudo acontece fácil, natural e automaticamente. O que quer que o macaco ouça é musical, o que quer que veja é colorido, o que quer que sinta é agradável. Ele realizou uma espécie de auto-hipnose, um estado natural de concentração que lhe expulsa da mente tudo o que possa parecer-lhe irritante ou indesejável.

Aí, então, o macaco descobre que pode ir além dos prazeres sensuais e belezas do Reino dos Deuses e entrar em dhyana, ou estado de concentração do Reino dos Deuses Sem Forma, último requinte dos Seis Reinos. Compreende que lhe é possível lograr o prazer puramente mental, o mais sutil e durável de todos, que lhe é dado manter continuamente o sentido de um eu sólido pela expansão das paredes da sua prisão até que está inclua, aparentemente, todo o cosmo, vencendo, assim, a mudança e a morte. A princípio, se absorve na idéia do espaço sem limites. Ele está aqui, e o espaço sem limites está ali e ele o observa. Impõe sua idéia preconcebida ao mundo, cria o espaço ilimitado e alimenta-se da experiência. A fase seguinte é a da concentração na idéia da consciência sem limites. Aqui não se absorve apenas no espaço sem limites, mas também na inteligência que o percebe. Assim sendo, o ego contempla o espaço e a consciência sem limites desde o seu quartel general. O império do ego se estendeu inteiramente e nem a autoridade central pode imaginar até onde chega o seu território. O ego se converte num animal imenso, gigantesco.

O ego estendeu-se por uma distância tão grande que começa a perder de vista os confins do próprio território. Onde quer que tente definir suas fronteiras, parece estar excluindo parte do território.

Finalmente, chega à conclusão de que não há meios de definir-lhe os limites. O tamanho do império não pode ser concebido nem imaginado. Visto que inclui tudo, não se define como isto ou como aquilo, de modo que o ego se concentra na idéia de não-isto e não-aquilo, na idéia de que não se pode conceber nem imaginar. Finalmente, porém, até esse estado de espírito é superado quando o ego compreende que a idéia de ser inconcebível e inimaginável é, em si mesma, uma concepção. Daí que se absorva no plano do não-não-isto e do não-não-aquilo. A idéia da impossibilidade de afirmar qualquer coisa é algo de que ele se alimenta, de que se orgulha, com a qual se identifica e que, portanto, utiliza para manter a própria continuidade. Este é o mais elevado nível de concentração e consecução que a confusa mente samsárica pode alcançar.

O macaco conseguiu atingir o derradeiro nível da consecução; não transcendeu, todavia, a lógica dualística da qual ela depende. As paredes da sua casa continuam sólidas, conservam ainda a qualidade do “outro” num sentido sutil. O macaco pode ter logrado harmonia, paz e felicidade temporárias através de uma união aparente com suas projeções; mas a coisa toda está sutilmente fixada, é um mundo fechado. Tornou-se tão sólido quanto as paredes, alcançou o estado de egoidade. Ocupa-se ainda com a segurança e o realce de si mesmo, ainda está preso a idéias e conceitos fixos a respeito do mundo e de si mesmo, ainda leva muito a sério as fantasias do quinto skandha. Uma vez que o seu estado de consciência se baseia na concentração, na fixação no outro, cumpre-lhe verificar e manter continuamente a sua realização. “Que alívio estar aqui no Reino dos Deuses. Finalmente o consegui. Realmente o consegui. Mas, espere aí… será, realmente, que consegui? Ah, lá está ele. Sim, eu o consegui. Eu o consegui.” O macaco supõe haver conseguido o nirvana mas, na realidade, conseguiu apenas uma condição temporária do Estado de Egoidade.

Mais cedo ou mais tarde a fixação se esgota e o macaco começa a entrar em pânico. Sente-se ameaçado, confuso, vulnerável e mergulha no Reino dos Deuses Invejosos. Mas a ansiedade e a inveja do Reino dos Deuses Invejosos são avassaladoras e o macaco fica preocupado pensando no que saiu errado. Por isso regressa ao Reino Humano. Mas o Reino Humano é também muito doloroso: o esforço contínuo para imaginar o que está acontecendo, o que não deu certo, só serve para aumentar a dor e a confusão. Eis por que o macaco foge da hesitação e da perspectiva crítica do intelecto humano e mergulha no reino animal, onde começa a mover-se pesadamente, ignorando o que está a seu lado,

fazendo-se surdo e mudo às mensagens que podem desafiar a segurança de seguir caminhos estreitos e familiares. Mas, mensagens do meio ambiente acabam por chegar a ele e se desenvolve a fome de consumir algo mais. A saudade do Reino dos Deuses toma-se muito forte e aumenta a intensidade da luta por voltar a ele. O macaco se imagina desfrutando os prazeres do Reino dos Deuses. Mas, é breve a satisfação decorrente da fantasia de saciar a fome e ele logo se sente faminto outra vez. A fome continua, indefinidamente, até que o macaco, afinal, esmagado pela frustração da fome recorrente, mergulha numa luta ainda mais intensa para satisfazer aos seus desejos. A sua agressão é tão intensa que o ambiente a sua volta responde com agressividade igual e desenvolve-se uma atmosfera de calor e claustrofobia. O macaco se vê de volta ao Inferno. Conseguiu traçar um círculo completo do inferno para o céu e vice-versa. Esse ciclo perpétuo de luta, consecução, desilusão e dor é o círculo de samsara, a reação kármica em cadeia da fixação dualística.

Como pode o macaco sair desse ciclo de aprisionamento que é auto-suficiente e aparentemente sem fim? É no Reino Humano que surge a possibilidade de quebrar a cadeia kármica ou o círculo de samsara. O intelecto do Reino Humano e a possibilidade de uma ação discriminatíva permitem que se questione todo o processo de luta. É possível ao macaco discutir a obsessão de relacionar-se com alguma coisa, de conseguir alguma coisa, de questionar a solidez dos mundos que experimenta. Para fazê-lo, precisa desenvolver a consciência panorâmica e o conhecimento transcendental. A consciência panorâmica faculta-lhe ver o espaço em que se trava a luta, de modo que ele pode começar a ver a sua qualidade irônica e humorística. Em vez de lutar simplesmente, começa a experimentar a luta e a ver sua futilidade. Ri em meio às alucinações. Descobre que, quando não está combatendo as paredes, elas não são repulsivas nem duras mas, ao contrário, quentes, macias e penetráveis. Descobre que não precisa saltar das cinco janelas, nem pôr abaixo as paredes, nem mesmo se fixar nelas; pode passar através delas em qualquer lugar. Eis aí por que se descreve a compaixão ou karuna como “suave e nobre coração”. Ê um processo de comunicação suave, aberto e quente. A clareza e a precisão do conhecimento transcendental permite-lhe ver as paredes de maneira diferente. Ele começa a compreender que o mundo nunca esteve fora dele, que o problema foi criado pela sua própria atitude dualista, pela separação entre o “eu” e o “outro” que criou o problema. Começa a compreender que ele mesmo empresta solidez às paredes, que ele mesmo se faz prisioneiro através da ambição. E, assim, compreende que, para livrar-se da prisão, é necessário abandonar a ambição de fugir, e é preciso aceitar as paredes tais e quais são.

P: E se, na verdade, nunca sentimos a necessidade de lutar, se nunca chegamos a desejar sair da casa? Talvez sintamos um pouco de medo do que existe do outro lado das paredes, de modo que as utilizamos à guisa de proteção.

R: De um modo ou de outro, se formos capazes de estabelecer um relacionamento amistoso com as paredes, estas deixarão de existir como tais. Por mais que as queiramos ter por proteção, elas já não estarão lá. É muito paradoxal o fato de que, quanto mais nos desagradamos da parede, tanto mais forte e grossa ela se torna, e quanto mais fazemos amizade com ela, tanto mais ela desaparece.

P: Eu gostaria de saber se a dor e o prazer estão em pé de igualdade com a discriminação intelectual entre o bom e o mau ou entre o certo e o errado. Essa discriminação deve-se a uma atitude subjetiva?

R: Sou de opinião que o prazer e a dor nasceram na mesma espécie de terreno. Por via de regra, as pessoas consideram a dor má e o prazer bom, de tal forma que o prazer é tido por alegria e bem-aventurança espiritual, e está ligado ao céu, ao passo que a dor se associa ao inferno. Nessas condições, se formos capazes de ver o absurdo e a ironia das nossas tentativas de alcançar o prazer pela rejeição da dor, temendo a dor extrema e, assim, esforçando-nos por seguir no rumo do prazer, veremos que tudo é muito engraçado. Falta às pessoas algum senso de humor nas suas atitudes para com o prazer e a dor.

P: O senhor declarou anteriormente que nós criamos desvairadamente o mundo fenomenal e desejamos fugir dele. Compreendo que o ensinamento budista afirme que o mundo fenomenal é simplesmente a manifestação do vazio, então, pergunto: de que estaríamos fugindo?

R: O fato é que, na percepção do ego, o mundo fenomenal é muito real, avassalador, sólido. Pode ser, com efeito, que ele seja alucina-tório, mas no que diz respeito ao macaco, a alucinação é inteiramente real e sólida. Do confuso ponto de vista do macaco, o próprio pensamento se torna muito sólido e tangível. Não basta dizer que tais alu-cinações não existem porque a forma é o vazio e o vazio é a forma. Procure convencer disso um macaco neurótico. Pelo que lhe diz respeito, a forma existe, sólida e pesada. É real para o macaco em razão de estar ele tão obcecado por ela que não permite nenhum distanciamento para vê-la de outra maneira. Demasiado ocupado com as suas contínuas tentativas de reforçar a própria existência, ele nunca permite uma brecha. Em tais condições, não há lugar para a inspiração, não há lugar para ver outros aspectos, ângulos diferentes da situação. Do ponto de vista do macaco, a confusão é real. Quando temos um pesadelo, este, no momento, é real, terrivelmente assustador. Por outro lado, quando voltamos a vista para trás e olhamos a experiência, esta não parece ter sido mais do que um sonho. Não podemos usar duas espécies de lógica simultaneamente. Temos de ver o aspecto confuso por inteiro com o fim de compreendê-lo claramente e ver o seu absurdo.

As Quatro Nobres Verdades

Tendo desenhado um colorido quadro do macaco com suas muitas qualidades — inquisitivo, apaixonado, agressivo, etc. —, poderíamos, agora, examinar em detalhes como ele poderia lidar com a sua difícil situação.

Chegamos a uma compreensão e transcendência do ego, usando a meditação para trabalhar de trás para frente, através dos Cinco Skandhas. Os padrões de pensamentos neuróticos e irregulares que esvoaçam constantemente através da mente são o derradeiro desenvolvimento do Quinto Skandha. Vários tipos de pensamento desenvolvem-se juntamente com a alucinação do macaco nos seis reinos: pensamentos discursivos, pensamentos que saltam como gafanhotos, pensamentos expositivos, pensamentos semelhantes a filmes cinematográficos, etc. É desse ponto de confusão que precisamos partir e, a fim de esclarecer a confusão, conviria examinar as idéias das Quatro Nobres Verdades que constituem o primeiro giro da “Roda do Dharma” pelo Buda.

As Quatro Nobres Verdades são: a verdade do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade da meta e a verdade do caminho. Iniciamos com a verdade do sofrimento, o que significa que temos de iniciar com a confusão e a insanidade do macaco.

É preciso começar vendo a realidade de duhkha, palavra sânscrita que significa “sofrimento”, “insatisfação” ou “dor”. Ocorre a insatisfação porque a mente gira de tal maneira que o seu movimento parece não ter princípio nem fim. Os processos do pensamento continuam indefinidamente: pensamentos do passado, pensamentos do futuro, pensamentos do presente. Isso gera irritação. Os pensamentos estimulados pela insatisfação são também idênticos a ela, duhkha, a sensação constantemente repetida de que alguma coisa está faltando, está incompleta em nossa vida. Seja como for, alguma coisa não está bem certa, não o bastante. Vivemos tentando preencher a lacuna, endireitar as coisas, encontrar aquela pontazinha extra de prazer ou segurança. A contínua ação da luta e da azáfama é exasperante e dolorosa. Finalmente, começa a irritar-nos o simples fato de sermos quem somos, de sermos “nós”.

Desse modo, compreender a verdade de duhkha é realmente compreender a neurose da mente. Somos impelidos para cá e para lá com muita energia. Quer comamos, quer durmamos, quer trabalhemos, quer joguemos, seja b que for que façamos, a vida contém duhkha, insatisfação, dor. Se nos agrada o prazer, receamos perdê-lo; esforçamo-nos por lograr mais e mais prazer ou tentamos retê-lo. Se sofremos dor, desejamos fugir dela. Experimentamos insatisfação o tempo todo. Todas as atividades encerram insatisfação ou dor, continuamente.

Seja como for, modelamos a vida de um modo que nunca nos dá tempo de provar-lhe o sabor. Há um contínuo estar ocupado, uma contínua busca do momento seguinte, uma contínua característica gananciosa de viver. Isso é duhkha, a Primeira Nobre Verdade. Compreender e enfrentar o sofrimento é o primeiro passo.

Tendo-nos tornado agudamente cônscios da nossa insatisfação, começamos a buscar uma razão para ela, a sua origem. Examinando nossos pensamentos e ações descobrimos que estamos sempre lutando para nos manter e destacar. Compreendemos que a luta é a raiz do sofrimento. Então, procuramos compreender o processo da luta: isto é, como o ego se desenvolve e opera. Esta é a Segunda Nobre Verdade, a verdade da origem do sofrimento.

Como já discutimos nos capítulos que versam sobre materialismo espiritual, muitas pessoas cometem o erro de supor que, por ser o ego a raiz do sofrimento, a meta da espiritualidade consiste em vencê-lo e destruí-lo. Elas se esforçam para eliminar a pesada mão opressiva do ego mas, como descobrimos antes, essa luta é apenas outra expressão dele. Giramos e giramos, tentando aprimorar-nos através da luta, até compreendermos que o problema reside na própria ambição de aprimorar-nos. O entendimento somente surge quando há brechas em nossa luta, quando paramos de tentar nos livrar do pensamento, quando deixamos de tomar o partido dos pensamentos bons e piedosos contra os pensamentos maus e impuros, quando nos permitimos simplesmente ver a natureza do pensamento.

Começamos a compreender que existe uma qualidade sã, desperta, dentro de nós, que, de fato, só se manifesta na ausência da luta. Assim, descobrimos a Terceira Nobre Verdade, a verdade da meta: isto é, a da não-luta. Basta-nos abandonar o esforço por garantir-nos e solidificar-nos para que apareça o estado desperto. Logo, porém, percebemos que o “deixar estar” só é possível em curtos períodos. Precisamos de alguma disciplina para levar-nos ao “deixar ser”. Precisamos palmilhar um caminho espiritual. O ego deve gastar-se como um sapato velho, caminhando do sofrimento para a libertação.

Examinemos, portanto, o caminho espiritual, a prática da meditação, a Quarta Nobre Verdade. A prática da meditação não é uma tentativa de entrar num estado mental semelhante a um transe, nem uma tentativa de ocupar-nos com determinado objeto. Desenvolveu-se, tanto na Índia quando no Tibete, um assim chamado sistema de meditação, que pode denominar-se “concentração”, ou seja, ele tem por base a focalização da atenção num ponto determinado, de modo que nos tornemos mais capazes de controlar a mente e concentrar-nos. Nessa prática, o discípulo escolhe um objeto para contemplar, pensar ou visualizar e depois focaliza nele toda a sua atenção. Ao fazê-lo, tende a desenvolver,

por força, certa espécie de calma mental. Chamo a esse tipo de prática “ginástica mental”, porque não tenta lidar com a totalidade de nenhuma situação de vida. Funda-se inteiramente nisso ou naquilo, sujeito e objeto, em vez de transcender a visão dualista da vida.

A prática do samadhi, por outro lado, não supõe concentração, o que é muito importante compreender. As práticas de concentração são principalmente reforçadoras do ego, se bem que, intencionalmente, não seja este o seu objetivo. Ainda assim, pratica-se a concentração com um alvo específico e um objetivo preconcebido, de modo que tendemos a centralizar-nos no “coração”. Planejamos concentrar-nos numa flor, numa pedra ou numa chama e fixamos o olhar no objeto mas, mentalmente, penetramos o máximo possível no coração. Estamos tentando intensificar o aspecto sólido da forma, as qualidades de estabilidade e quietude. A longo prazo, esse tipo de prática pode revelar-se perigoso. Segundo a intensidade da sua força de vontade, o meditador pode tornar-se introvertido de modo demasiado solene, fixo e rígido. Essa espécie de prática não conduz à abertura, nem à energia, nem ao senso de humor. É pesada demais, e pode facilmente tornar-se dogmática, uma vez que aqueles que se envolvem em tais práticas pensam em termos de impor disciplina a si próprios. Achamos necessário ser muito sérios e solenes, o que imprime uma atitude competitiva ao nosso modo de pensar — quanto mais cativa tornarmos a mente, tanto mais bem-sucedidos seremos — o que representa um enfoque dogmático, autoritário. Essa maneira de pensar, sempre focalizada no futuro, é habitual ao ego: “Eu gostaria de ver tais e tais resultados. Tenho uma teoria idealizada, ou sonho, que gostaria de pôr em prática.” Tendemos a viver no futuro, com a nossa visão da vida colorida pela expectativa de alcançar uma meta ideal. Por causa dessa expectativa perdemos a precisão, a abertura e a inteligência do presente. Somos fascinados, cegos e dominados pelo objetivo ideali- zado.

A qualidade competitiva do ego pode ser prontamente vista no mundo materialista em que vivemos. Se quisermos tornar-nos milionários, temos de tentar primeiro tornar-nos milionários psicologicamente. Começamos criando uma imagem de nós mesmos como milionários e depois trabalhamos com muito empenho no sentido do objetivo. Empurramo-nos nessa direção, independentemente de sermos ou não capazes de atingi-lo. Esse enfoque cria uma espécie de venda, que nos torna cegos, insensíveis ao momento presente, porque estamos vivendo demais no futuro. Podemos adotar o mesmo enfoque errôneo da prática da meditação.

Visto que a verdadeira prática da meditação é um modo de sair do ego, o primeiro ponto consiste em não focalizarmos demasiado a futura chegada ao estado desperto da mente. Toda a prática da meditação se baseia essencialmente na situação do momento presente, aqui e agora, e significa trabalhar com essa situação, com esse atual estado da mente. Qualquer prática de meditação que diga respeito à superação do ego está focalizada no momento presente. Eis por que é um modo de viver muito eficaz. Se estivermos completamente cônscios do nosso atual estado de ser e da situação à nossa volta, coisa alguma poderá nos escapar. Podemos usar várias técnicas de meditação para facilitar esse tipo de consciência, mas tais técnicas são simplesmente um modo de sair do ego. A técnica é como um brinquedo dado a uma criança. Quando a criança cresce, o brinquedo é posto de lado. Entretanto, a técnica se faz necessária para desenvolvermos a paciência e abstermo-nos de sonhar com a “experiência espiritual”. Toda a nossa prática deve basear-se na relação entre nós e o estado de agora.

Não precisamos nos empurrar para a prática da meditação, mas apenas deixar as coisas como estão. Se praticarmos dessa maneira, surgirá automaticamente uma sensação de espaço e arejamento, expressão da natureza do Buda ou da inteligência básica que abre caminho através da confusão. Iniciamos, então, o entendimento da “verdade do caminho”, a Quarta Nobre Verdade, a simplicidade, tal como a consciência do andar. Primeiro temos a consciência de que estamos em pé, depois nos conscientizamos de que a nossa perna direita está-se levantando, avançando, tocando, pressionando; em seguida, a perna esquerda se levanta, avança, toca, pressiona. Há um sem-número de minúcias da ação envolvidas na simplicidade e na agudeza de estarmos neste mesmo momento, aqui, agora.

E o mesmo acontece com a prática da consciência do respirar. Nós nos tornamos conscientes do ar que nos penetra as narinas, que sai e que, finalmente, se dissolve na atmosfera. É um processo muito gradual e pormenorizado e há uma aguda precisão em sua simplicidade. Quando um ato é simples, começamos a compreender-lhe a exatidão. Começamos a perceber que, seja o que for que façamos na vida diária, é belo e significativo.

Ao servirmos uma xícara de chá, temos consciência de estender o braço e tocar com a mão a chaleira, erguendo-a e despejando a água. Por fim, a água toca a nossa xícara, enche-a, nós paramos de vertê-la e depomos a chaleira com precisão, como na cerimônia japonesa do chá. Estamos cientes de que cada movimento preciso possui dignidade. Esquecemo-nos, há muito tempo, de que as atividades podem ser simples e precisas. Todo ato de nossa vida pode conter simplicidade e precisão e desse modo possuir enorme beleza e dignidade.

O processo de comunicação será belo se o virmos em termos de simplicidade e precisão. Cada pausa feita no processo de falar passa a ser uma espécie de pontuação. Falar, deixar espaço, falar, deixar espaço. Não tem de ser, por força, uma ocasião formal e solene, mas é bonito não ter pressa, não falarmos em uma tremenda velocidade, ruidosamente. Não precisamos esguichar informações, para depois parar de repente, com uma sensação de depressão, à espera da resposta da outra pessoa. Poderíamos fazer as coisas de modo digno e apropriado. Basta deixar espaço. O

espaço é tão importante na comunicação com outrem quanto o falar. Não precisamos sobrecarregar o interlocutor com palavras, idéias e sorrisos, tudo ao mesmo tempo. Podemos espaçar, sorrir, dizer alguma coisa, depois deixar uma lacuna, e depois falar, depois espaço, depois ponto. Imagine se escrevêssemos cartas sem nenhuma pontuação. A comu- nicação seria caótica. Não precisamos ser tímidos e rígidos no tocante ao pausar; basta-nos sentir-lhe o fluxo natural.

A prática de ver a precisão das situações a cada momento, através de métodos como a consciência do andar, chama-se meditação shamatha (em páli: samatha). A meditação shamatha está associada ao Caminho Hinayana ou ao “veículo menor”, o caminho disciplinado ou estreito. Shamatha significa “tranqüilidade”. Há uma história referente ao Buda em que se conta que ele ensinou uma aldeã a desenvolver essa plena atenção ao ato de tirar água do poço. Ensinou-a a estar consciente no preciso movimento das mãos e dos braços quando suspendia o balde de água. Tal prática é a tentativa de ver a qualidade do agora em ação, razão pela qual é conhecida como “shamatha”, o desenvolvimento da paz. Quando vemos a qualidade do agora no momento, não há lugar para mais nada além de abertura e paz.

P: O senhor não poderia dizer mais alguma coisa a respeito de deixar lacunas aparecerem? Compreendo o que quer dizer, mas não compreendo como elas acontecem, como alguém permite uma lacuna. Como “deixamos ser”?

R: Essa pergunta, na verdade, conduz ao tema seguinte, a discussão do Caminho do Bodhisattva, o Caminho Mahayana da compaixão e liberdade, o caminho largo. Para responder, todavia, à pergunta do ponto de vista Hinayana da simplicidade, devemos estar completamente satisfeitos com qualquer situação que surja e não buscar entretenimento de uma fonte externa. Em geral, quando falamos, não queremos simplesmente comunicar-nos com a outra pessoa, mas queremos uma resposta também. Queremos ser alimentados pela outra pessoa, o que é uma maneira muito egocêntrica de comunicação. Temos que abandonar o desejo de sermos alimentados e, então a pausa virá automaticamente. Não podemos produzir a pausa mediante esforço.

P: O senhor disse que temos de preparar-nos para ingressar no caminho. Não podemos precipitar-nos nele. Temos de fazer uma pausa. O senhor poderia falar um pouco mais a respeito dessa preparação? R: De início temos a sensação de que a busca espiritual é algo muito bonito, algo que responderá a todas as nossas perguntas. Precisamos ir além dessa espécie de esperança e expectativa. Podemos esperar que o nosso mestre resolva todos os nossos problemas, desfaça todas as nossas dúvidas. Quando, porém, o defrontamos, ele, na verdade, não responde a todas as perguntas. Deixa muita coisa para descobrirmos sozinhos, o que é uma tremenda decepção e desilusão para nós.

Temos muitas expectativas, mormente se estivermos à procura de um caminho espiritual e envolvidos com o materialismo espiritual. Temos a expectativa de que a espiritualidade nos trará felicidade e conforto, sabedoria e salvação. Esse modo egocêntrico, literal, de encarar a espiritualidade terá de ser virado completamente pelo avesso. Finalmente, se renunciarmos a toda esperança de atingir qualquer espécie de iluminação, então, nesse momento, o caminho começa a abrir-se. É como a situação de esperar a chegada de alguém. Estamos quase desistindo da esperança de vê-la chegar, já pensando que a idéia da sua chegada era simples fantasia de nossa parte, que ela, em primeiro lugar, não tinha sequer a intenção de aparecer. No momento, porém, em que dizemos adeus à esperança, a pessoa aparece. O caminho espiritual funciona dessa maneira. É uma questão de gastar toda a expectativa. A paciência é necessária. Não precisamos empurrar-nos com excessiva energia para o caminho; precisamos tão-somente esperar, deixar algum espaço, não nos ocuparmos demais tentando compreender a “realidade”. Faz-se necessário, primeiro, ver a motivação da nossa busca espiritual. A ambição não é necessária se pretendermos partir para a caminhada com a mente aberta, com um espírito que transcende tanto o “bom” como o “mau”.

Surge uma tremenda fome de conhecimentos quando principiamos a compreender a origem de duhkha. Haverá forte impulso para passar além dela. Se nos empurrarmos exageradamente, o caminho da espiritualidade se transformará no caminho da dor, da confusão, do samsara, porque estaremos ocupados demais tentando salvar-nos. Estamos por demais entusiasmados por apreender, tão atarefados cuidando da nossa ambição de progredir no caminho que não nos deixamos estar e não examinamos todo o processo antes de começar. É necessário não nos precipitarmos no caminho espiritual, mas preparar-nos adequada e completamente. Esperemos apenas. Esperemos e examinemos todo o processo da “busca espiritual”. Consintamos numa pausa.

O ponto principal é que possuímos a inteligência básica que cintila através da nossa confusão. Reflitamos na analogia inicial do macaco. Ele queria sair de casa e, portanto, ficou muito ocupado tentando fugir, examinando paredes e janelas, subindo e descendo. A tremenda energia que o move é a inteligência primeva que nos empurra para fora. Essa inteligência não é como uma semente que precisamos cuidar. É como o Sol que brilha através de espaços entre nuvens. Quando consentimos numa pausa, chega-nos, espontânea e intuitiva, a compreensão de como proceder no caminho. Súbita e automaticamente. Foi assim a experiência do Buda. Depois de haver estudado inúmeras disciplinas iogues sob a orientação de muitos mestres hindus, compreendeu que não poderia alcançar um estado completamente desperto com a simples aplicação dessas técnicas. Por isso se deteve e decidiu trabalhar em si mesmo, nele, como ele já era. Esse é o instinto básico que vem forçando o seu próprio caminho. É imprescindível reconhecê-lo, pois ele nos diz que não somos pessoas condenadas, que não somos fundamentalmente maus ou carentes.

P: Como lidamos com as situações práticas da vida enquanto tentamos ser simples e experimentar o espaço?

R: Veja bem, a fim de experimentar o espaço aberto precisamos também experimentar a solidez da terra, da forma. Eles são interdependentes. Muitas vezes damos um aspecto romântico ao espaço aberto e depois caímos em armadilhas. Contanto que não romantizemos o espaço aberto, imaginando-o um lugar maravilhoso, mas relacionando o espaço à Terra, evitaremos as armadilhas. O espaço não pode ser experimentado sem os contornos da terra para defini-lo. Se formos pintar um quadro do espaço aberto, teremos de expressá-lo em termos do horizonte da Terra. É preciso, portanto, voltarmos aos problemas da vida cotidiana, aos problemas banais. Essa é a razão de serem tão importantes a simplicidade e a precisão das atividades diárias. Se percebermos o espaço aberto, deveremos retornar às nossas velhas, familiares, claustrofóbicas situações de vida e examiná-las mais de perto, esquadrinhá-las, absorvermo-nos nelas, até que o absurdo de sua solidez nos chame a atenção e possamos ver-lhe também a qualidade de espaço.

P: Como nos relacionamos com a impaciência que acompanha o período de espera?

R: A impaciência significa que não temos uma compreensão completa do processo. Se virmos a totalidade de cada ação, deixaremos de ser impacientes.

P: Tenho pensamentos calmos assim como tenho pensamentos neuróticos. Os pensamentos calmos são alguma coisa que devo cultivar?

R: Na prática da meditação todos os pensamentos são iguais: pensamentos piedosos, pensamentos muito bonitos, pensamentos religiosos, pensamentos calmos — todos continuam a ser pensamentos. Não tentamos cultivar os pensamentos calmos e suprimir os chamados pensamentos neuróticos. Este é um ponto interessante. Quando falamos em percorrer o caminho do dharma, que é a Quarta Nobre Verdade, não queremos dizer que nos tornamos religiosos, calmos, bons. O tentarmos ser calmos, o tentarmos ser bons, é também um aspecto de esforço, de neuroticismo. Os pensamentos inclinados para a religiosidade são o observador, o juiz, e os pensamentos confusos, mundanos, são o ator, o agente. Se meditarmos, por exemplo, poderemos experimentar pensamentos domésticos vulgares, ao mesmo tempo que um observador nos adverte: “Você não deve fazer isto, não deve fazer aquilo, mas deve voltar à meditação”. Esses pensamentos piedosos ainda são pensamentos e não convém cultivá-los.

P: O senhor não poderia dizer mais alguma coisa a respeito do emprego das pausas e da fala em nossas comunicações, e como esse processo se relaciona com o ego?

R: Geralmente, quando nos comunicamos com outra pessoa, somos movidos por uma espécie de pressa neurótica. Precisamos começar a permitir que alguma espontaneidade invada essa pressa, a fim de não nos lançarmos sobre a pessoa com a qual nos estamos comunicando, não nos impormos a ela, não a sobrecarregarmos. Quando falamos de alguma coisa que nos interessa muito, não nos limitamos a falar, mas saltamos sobre o interlocutor. A espontaneidade existe, porém, encoberta pelo pensamento. Quando quer que haja uma brecha no bloco de nuvens do pensamento, ela brilha através da brecha. Estendamos a mão e reconheçamos a primeira abertura, pois através dela a inteligência básica principiará a funcionar.

P: Muitas pessoas têm consciência da verdade do sofrimento mas não passam para o segundo degrau, ou seja, para a consciência da origem do sofrimento. Por quê?

R: Penso que é uma questão de paranóia. Queremos escapar. Desejamos fugir da dor em vez de considerá-la fonte de inspiração. Achamos que o sofrimento já é suficientemente mau, daí, por que investigá-lo ainda mais? As pessoas que sofrem muito e compreendem que não podem escapar ao sofrimento começam realmente a compreendê-lo. Mas, em sua maioria, as pessoas estão ocupadas demais tentando livrar-se da irritação, estão atarefadas demais tentando distrair- se de si mesmas e não se dispõem a olhar para o material que já têm. É excessivamente constrangedor contemplá-lo. Essa é a atitude da paranóia: se o olharmos bem de perto, descobriremos alguma coisa terrível. Mas para sermos uma pessoa completamente inspirada, como Buda Gautama, precisamos ter a mente muito aberta, inteligente e in-quisitiva. Temos de desejar explorar tudo, ainda que o tudo seja feio, doloroso ou repulsivo. Essa espécie de mentalidade científica é importantíssima.

P: Na mente desperta, onde entra a motivação?

R: A motivação inspirada vem de alguma coisa além do pensamento, alguma coisa além das idéias conceptuais de “bom” e “mau”, de “desejável” e “indesejável”. Para além do pensamento há uma espécie de inteligência que é a nossa natureza básica, nosso terreno básico, uma inteligência primordial intuitiva, uma sensação de espaço, um modo aberto e criativo de lidar com situações. Esse tipo de motivação não é intelectual: é intuitivo, preciso.

P: Não podemos trabalhar com a mente controlando a situação física?

R: Seja o que for que façamos com as situações de vida, sempre se estabelece uma comunicação entre a mente e a matéria. Mas não podemos fiar-nos apenas na aparelhagem da matéria; não podemos enfrentar os problemas da mente manipulando coisas externas a ela. E é exatamente o que tenta fazer muita gente em nossa sociedade. Essa gente veste túnicas, renuncia ao mundo e passa a levar uma existência austera, abandonando todos os hábitos comuns do proceder humano. No fim das contas, porém, terá de lidar com suas mentes confusas. A confusão se origina da mente, de modo que temos de enfrentá-la diretamente em lugar de tentar contorná-la. Não creio que dê certo tentarmos contornar a confusão mental manipulando o mundo físico.

Na dança da vida, a matéria reflete o espírito e o espírito reage à matéria. Processa-se uma troca contínua. Se estivermos segurando um pedaço de rocha, deveremos sentir as sólidas qualidades terrenas da rocha. Temos de aprender a comunicar-nos com essa qualidade rochosa. Se estivermos segurando uma flor, a forma especial e a cor das pétalas se ligarão também à nossa psicologia. Não podemos ignorar completamente o simbolismo do mundo externo.

No princípio, contudo, ao tentarmos enfrentar nossas próprias neuroses, precisamos ser muito diretos e não pensar que podemos esquivar-nos dos problemas da mente brincando com a matéria. Se uma pessoa, por exemplo, for psicologicamente desequilibrada, completamente confusa, como o macaco que estivemos discutindo, e se a vestirmos com os mantos do Buda ou se a fizermos sentar-se numa postura de meditação, sua mente continuará girando do mesmo modo. Mais tarde, quando ela aprender a acomodar-se e tornar-se um simples macaco, então talvez valha a pena levá-la para um sítio sossegado ou para um retiro.

P: Quando vejo a feiúra em mim mesmo, não sei como aceitá-la. Prefiro tentar evitá-la ou mudá-la a aceitar isso.

R: Você não precisa escondê-la. Não precisa mudá-la. Investigue-a um pouco mais. Quando vemos a feiúra em nós mesmos, é apenas um preconceito. Vemos como feiúra, o que ainda está ligado às idéias de “bom” e “mau”. Mas temos de transcender até as palavras “bom” e “mau”. Temos de ir além das palavras e das idéias conceptuais e penetrar no que somos, cada vez mais profundamente. O primeiro vislumbre não chega a ser o bastante: há que examinar as minúcias sem julgar, sem usar palavras e conceitos. Abrir-nos plenamente para nós mesmos é abrir-nos para o mundo.

O Caminho do Bodhisattva

Discutimos a prática, simples e precisa, da meditação Hinayana. Permitindo uma brecha, um espaço em que as coisas possam ser como são, começamos a apreciar a clara simplicidade e precisão de nossas vidas. Esse é o início da prática da meditação. Começamos a penetrar o Quinto Skandha, cortando, através da atividade e pressa do pensamento discursivo, a nuvem de “tagarelices” que nos atulha a mente. O degrau seguinte é trabalhar com emoções.

O pensamento discursivo pode comparar-se à circulação do sangue, que alimenta constantemente, em nosso organismo, os músculos, neste caso, as emoções. Os pensamentos ligam e sustentam as emoções de modo que, enquanto nos ocupamos com a vida diária, experimentamos o fluxo contínuo da tagarelice mental, pontuado por irrupções, mais coloridas e intensas, de emoção. Os pensamentos e emoções expressam nossas atitudes básicas para com o mundo – como nos relacionamos com ele — e formam um ambiente, um reino de fantasia, em que vivemos. Tais “ambientes” são os Seis Reinos, e, embora determinado reino possa tipificar a psicologia de determinado indivíduo, ainda assim essa pessoa experimentará, também, constantemente, as emoções ligadas aos outros reinos.

Para trabalhar com esses reinos devemos começar a ver as situações de modo mais panorâmico, que é a meditação vipashyana (em páli: vipassana). Precisamos estar atentos não só aos pormenores precisos de uma atividade, mas também à situação como um todo. O Vipashyana envolve a consciência do espaço, da atmosfera em que ocorre a precisão. Se virmos os detalhes precisos de nossa atividade, essa consciência também criará certo espaço. O fato de termos consciência de uma situação em pequena escala também traz a consciência em escala maior. Disso se desenvolve a consciência panorâmica, a meditação mahavipashyana (em páli: mahavipassana): isto é, a consciência do padrão total de preferência à focalização da atenção em detalhes. Começamos a ver o padrão das nossas fantasias em vez de mergulharmos nelas. Descobrimos que não precisamos lutar com nossas projeções, que o muro que delas nos separa é criado por nós próprios. O discernimento intuitivo da natureza insubstancial do ego é prajna, conhecimento transcendental. Ao vislumbrarmos prajna, relaxamo-nos compreendendo que já não temos mais de manter a existência do ego. Podemos permitir-nos ser abertos e generosos. A descoberta de outra maneira de lidarmos com nossas projeções nos traz intensa alegria. Este é o primeiro nível de realização do Bodhisattva, o primeiro bhumi. Entramos no Caminho do Bodhisattva, o Caminho do Mahayana, a via aberta, o caminho da cordialidade e da abertura.

Na meditação mahavipashyana há uma vasta extensão de espaço entre nós e os objetos. Temos consciência do espaço entre a situação e nós mesmos e tudo nele pode acontecer. Nada está acontecendo aqui ou ali em termos de relacionamento ou batalha. Em outras palavras, não estamos impondo nossas idéias conceptuais, nomes e categorias na

experiência, mas sentimos a abertura do espaço em todas as situações. Dessa maneira a consciência se torna precisa e oni-abrangente.

A meditação mahavipashyana significa permitir às coisas serem como são. Começamos a compreender que isso não exige um esforço de nossa parte porque as coisas são como são. Não precisamos olhar para elas desse jeito: elas são desse jeito. E assim começamos a apreciar efetivamente a abertura e o espaço, pois temos espaço em que podemos mover-nos, pois não precisamos tentar ser conscientes porque já o somos. Assim, o Caminho do Mahayana é a via aberta, o caminho largo. Isso envolve a disposição de mente aberta permitindo-nos estar despertos, permitindo que o nosso instinto surja.

Previamente discutimos a concessão do espaço para podermos comunicar-nos, mas esse gênero de prática é muito intencional e consciente de si mesmo. Quando praticamos a meditação mahavipashyana, simplesmente não nos observamos comunicando-nos, permitindo eliberadamente uma brecha, esperando deliberadamente; porém, comunicamo-nos e, depois, por assim dizer, nos desligamos. Deixemos fluir e não nos preocupemos mais; não queiramos possuir o deixar ser como se ele nos pertencesse, como nossa criação. Abramo-nos, deixemos ser e renunciemos a posse. Então, a espontaneidade do estado desperto saltará fora.

As escrituras do Mahayana referem-se aos que estão completamente preparados para se abrirem, aos que estão quase preparados para abrir-se e aos que têm a possibilidade de abrir-se. Os que têm a possibilidade de abrir-se são intelectuais interessados no assunto, mas que não admitem espaço suficiente para que o instinto apareça. Os que estão quase preparados têm a mente aberta, mas se vigiam mais do que o necessário. Os que estão completamente preparados para abrir-se ouviram a palavra secreta, a senha de tathagata: alguém já o fez, alguém já passou para o outro lado, é o caminho aberto, é possível, é o caminho do tathagata. Por conseguinte, não fazendo caso do como, nem do quando, nem do porquê, simplesmente se abrem. É uma coisa bonita, já aconteceu a outra pessoa, por que não acontecerá a nós? Por que discriminamos entre “nós” e o resto dos tatha-gatas?

“Tathagata” significa “os que experimentaram o tathata”, que é “tal como é”: os que experimentaram “tal como é”. Em outras palavras, a idéia de tathagata é um modo de inspiração, um ponto de partida; diz-nos que outras pessoas já o atingiram, que outras pessoas já o vivenciaram. Esse instinto já inspirou alguém, o instinto de “despertar”, de abertura, de frieza no sentido de inteligência.

O Caminho do Bodhisattva destina-se aos corajosos e que estão convencidos da poderosa realidade da natureza de tathagata existente dentro deles. Os que foram realmente despertados por uma idéia como a de tathagata estão no Caminho do Bodhisattva, o caminho do bravo guerreiro que confia na possibilidade de completar a jornada, que confia na natureza búdica. A palavra “bodhisattva” significa: “aquele que é bastante corajoso para trilhar o caminho de bodhi”. Bodhi quer dizer “desperto”, “o estado desperto”. Com isto não estamos dizendo que o bodhisattva precisa estar inteiramente desperto; senão que está disposto a seguir o caminho dos despertos.

Esse caminho consiste em seis atividades transcendentais que ocorrem espontaneamente. São eles: a generosidade, a disciplina, a paciência, a energia, a meditação e o conhecimento transcendentais. Essas virtudes chamam-se “as seis paramitas”, porque param significa o “outro lado” ou “margem”, o “outro lado do rio”, e ita significa chegada. “Paramita”, portanto, quer dizer “chegando” ao outro lado, ou margem, o que indica que as atividades do bodhisattva devem ter a visão, a compreensão que transcende as noções centralizadas do ego. O bodhisattva não está tentando ser bom ou gentil, mas é espontaneamente compassivo.

Generosidade

A generosidade transcendental costuma ser mal-interpretada no estudo das escrituras budistas, como se significasse o sermos bondosos para com alguém inferior a nós. Alguém está sofrendo e nós, que nos encontramos numa posição superior, podemos salvá-lo — o que vem a ser um modo muito simplório de olhar sobranceiramente para alguém. Mas no caso do bodhisattva, a generosidade não é tão insensível. É algo muito forte e poderoso; é comunicação.

A comunicação deve transcender a irritação, caso contrário será como tentar arrumar uma cama confortável no meio de espinhei-ros. As qualidades penetrantes da cor, da energia e da luz externas virão ao nosso encontro, introduzindo-se em nossas tentativas de comunicação, como um espinho que nos picasse a pele. Haveremos de querer subjugar essa intensa irritação e, assim, bloquearemos a comunicação.

A comunicação precisa ser radiação, recepção e troca. Todas as vezes que nela estiver envolvida a irritação, não seremos capazes de ver adequada, plena e claramente a qualidade espaçosa do que está vindo ao nosso encontro, do que está se apresentando como comunicação. O mundo externo é imediatamente rejeitado pela nossa irritação, que diz: “Não, não, isso me irrita, vá embora.” Uma atitude como essa é diametralmente oposta à da generosidade transcendental.

De modo que o bodhisattva precisa experimentar a completa comunicação da generosidade, transcendendo a irritação e a defesa própria. Caso contrário, quando espinhos ameaçarem picar-nos, sentiremos que estamos sendo atacados e que devemos nos defender; fugiremos da enorme oportunidade para a comunicação que nos foi dada e não teremos tido sequer a coragem de olhar para a outra margem do rio. Olharemos para trás e tentaremos fugir.

A generosidade é uma disposição para dar, para nos abrirmos sem motivos filosóficos, piedosos ou religiosos, simplesmente fazendo o exigido a qualquer momento e em qualquer situação, sem medo de receber o que quer que seja. A abertura pode ocorrer no meio de uma rodovia. Não tememos que o nevoeiro, a fumaça e o pó, ou o ódio e as paixões das pessoas nos esmaguem; simplesmente nos abrimos, entregamo-nos de todo, damos. Isso significa que não julgamos, não avaliamos. Se tentarmos julgar ou avaliar a nossa experiência, se tentarmos decidir até que ponto devemos abrir- nos, até que ponto devemos permanecer fechados, a abertura não terá nenhuma significação e a idéia de paramita, de generosidade transcendental, será vã. Nossa ação não transcenderá coisa alguma, deixará de ser o ato de um bodhisattva.

A total conseqüência da idéia de transcendência é vermos através das noções limitadas, das concepções limitadas, da mentalidade de guerra disto em oposição àquilo. Geralmente, quando olhamos para um objeto, não nos permitimos vê-lo de forma apropriada. Vemos, automaticamente, a nossa versão do objeto em lugar de vê-lo realmente como é. Ficamos, então, satisfeitos porque fabricamos nossa própria versão da coisa dentro de nós mesmos. Em seguida, tecemos comentários, julgamos, pegamos ou rejeitamos; mas não há nisso nenhuma comunicação verdadeira.

Assim, generosidade transcendental é darmos o que tivermos. Nossa ação precisa ser completamente aberta, completamente despida. Não nos compete fazer julgamentos; aos que recebem compete fazer o gesto de receber. Se os que recebem não estiverem preparados para a nossa generosidade, não a receberão. Se estiverem preparados para ela, virão buscá-la. Esta é a ação desinteressada do Bodhisattva. Ele não se auto-refere: “Estarei cometendo algum engano?”; “Estarei sendo cuidadoso?”; “A quem devo abrir-me?”. Nunca toma partidos. Metaforicamente, o bodhisattva jazerá como um cadáver apenas. Deixemos que as pessoas olhem para nós e nos examinem. Estamos à sua disposição. Uma ação nobre, uma ação completa, uma ação que não contém nenhuma hipocrisia, nenhum julgamento filosófico ou religioso. Por isso é transcendental. Por isso é paramita. É bela.

Disciplina

E se seguirmos adiante e examinarmos a paramita da moralidade ou da “disciplina”, a paramita shila, verificaremos que se lhe aplicam os mesmos princípios. Isto é, shila ou disciplina não é uma questão de nos atarmos a um conjunto fixo de leis ou padrões. Pois se o bodhisattva é completamente desprendido, completamente aberto, agirá segundo a abertura, não tem que seguir regras; enquadra-se simplesmente nas circunstâncias. É impossível ao bodhisattva destruir ou prejudicar outras pessoas, porque ele encarna a generosidade transcendental. Abriu-se completamente e, assim, não discrimina entre este e aquele. Age de acordo com o que é. Do ponto de vista de outra pessoa — se alguém o observasse
— o Bodhisattva sempre pareceria agir corretamente, sempre pareceria fazer a coisa certa no momento certo. Mas, se tentássemos imitá-lo, seria impossível fazê-lo, porque sua mente é tão precisa, tão aguçada que ele nunca erra. Nunca se defronta com problemas inesperados, jamais cria confusão de maneira destrutiva. Enquadra-se simplesmente nas circunstâncias. Ainda que a vida pareça caótica, enquadra-se nela, participa do caos e, de certo modo, as coisas se ajeitam sozinhas. O bodhisattva é capaz de cruzar o rio, por assim dizer, sem cair em sua turbulência.

Desse modo, se. formos completamente abertos, se não nos vigiarmos de modo algum, sendo totalmente abertos, e nos comunicarmos com as situações tais como elas são, então a ação será pura, absoluta, superior. Se, todavia, tentarmos alcançar a conduta pura através do esforço, a ação será desajeitada. Por mais pura que seja, nela estarão envolvidas a inabilidade e a rigidez. No caso do bodhisattva, toda a sua ação flui, sem nenhuma rigidez. Tudo se ajusta aos seus lugares, como se alguém tivesse levado anos e anos a imaginar a situação total. O bodhisattva não age com premeditação; comunica-se apenas. Parte da generosidade da abertura para enquadrar-se na situação configurada. É uma metáfora freqüentemente usada que o procedimento do bodhisattva é semelhante à marcha de um elefante. Os elefantes não se apressam; caminham lenta e seguramente através da selva, dando um passo depois do outro. Apenas seguem majestosamente. Não caem nem cometem erros. Cada passo dado é sólido e definido.

Paciência

O ato seguinte do bodhisattva é a paciência. Na realidade, não se pode dividir as seis atividades do bodhisattva em práticas rigorosamente separadas. Uma conduz à outra e nela se incorpora. Assim, no caso da paramita da paciência, não se trata de nos controlarmos, tentando nos transformar num trabalhador incansável, tentando ser uma pessoa extremamente paciente, não fazendo caso da nossa fraqueza física ou mental, prosseguindo sempre até tombarmos mortos, pois a paciência também envolve meios hábeis, como acontece com a disciplina e a generosidade.

A paciência transcendental jamais espera. Como não esperamos coisa alguma, não ficamos impacientes. Entretanto, de um modo geral, esperamos muita coisa em nossa vida, esforçamo-nos, e esse tipo de ação baseia-se

muitíssimo no impulso. Encontramos alguma coisa emocionante e bela e nos lançamos com muita força na sua direção, sendo, mais cedo ou mais tarde, jogados de volta. Quanto mais nos atiramos para a frente, tanto mais seremos atirados para trás, porque o impulso é uma vigorosa força impulsora dirigida sem sabedoria. A ação impulsora é como a de uma pessoa que corre sem olhos para ver, como a do cego que procura alcançar o seu destino. Mas a ação do bodhisattva nunca provoca reação, pois ele se acomoda a qualquer situação, porque nunca deseja nada nem nada o fascina. A força existente por detrás da paciência transcendental não é compelida por impulso prematuro nem qualquer, outra coisa dessa natureza. É muito lenta, segura e contínua, semelhante à marcha do elefante.

A paciência também sente o espaço. Nunca teme novas situações, porque nada surpreende o bodhisattva — nada. Aconteça o que acontecer — seja destrutivo, caótico, criativo, bem-vindo ou atrativo — o bodhisattva nunca se perturba, nunca se choca, porque tem consciência do espaço existente entre a situação e ele próprio. Desde que tenhamos consciência do espaço existente entre nós e a situação, qualquer coisa pode ocorrer nesse espaço. O que quer que aconteça ocorre no meio do espaço. Nada sobrevém “aqui” ou “ali” em termos de relacionamento ou de batalha. Por conseguinte, a paciência transcendental significa que temos um relacionamento fluente com o mundo, que não combatemos coisa alguma.

Energia

E podemos seguir para a fase seguinte, a paramita da energia, virya, a espécie de energia que nos conduz imediatamente a situações de modo que nunca perdemos uma oportunidade, nunca perdemos uma ocasião. Em outras palavras, é alegria, alegre energia, como assinala Shantideva em seu Bodhisattva-charyavatara. Essa energia é a alegria e não aquela energia com a qual trabalhamos intensamente porque sentimos que devemos trabalhar. Ê energia alegre porque estamos inteiramente interessados nos padrões criativos de nossa vida. Toda nossa vida é aberta pela generosidade, ativada pela moralidade, fortalecida pela paciência. Agora chegamos à fase seguinte, a da alegria. Nunca vemos as situações como desinteressantes ou estagnadas, porque a visão da vida pelo bodhisattva é extremamente aberta, intensamente interessada. Ele nunca avalia, conquanto isso não signifique que se transforme num ser apático. Tampouco significa que esteja absorto numa “consciência mais elevada”, no “mais alto estado de samadhi”, de tal modo que não possa diferençar o dia da noite ou o desjejum do almoço. Também não significa que se torne vago ou confuso. Em vez disso, ele realmente vê os valores verbalizados e conceptuais como são. Então, vê além de conceitos e avaliações. Vê a igualdade das distinções piegas que fazemos. Vê as situações de um ponto de vista panorâmico e, portanto, tem um grande interesse pela vida tal e qual ela é. Conseqüentemente, o bodhisattva não força, limita-se a viver.

Quando ingressa no Caminho do Bodhisattva, faz voto de não atingir a iluminação enquanto não tiver ajudado todos os seres sencientes a atingirem, antes dele, o estado de espírito desperto, ou estado de Buda. Começando com esse nobre ato de dar, de abrir-se, de sacrificar-se, continua a seguir o caminho, interessando-se intensamente pelas situações de todos os dias, nunca se cansando de trabalhar com a vida. Isto é virya, trabalhar aplicadamente com alegria. Há imensa energia em compreender que desistimos de tornar-nos o Buda, que agora temos tempo de viver realmente a vida, que passamos além da pressa neurótica.

É interessante notar que, embora o bodhisattva tenha feito voto de não alcançar a iluminação, por ser tão preciso e exato, nunca perde um segundo. Vive sempre a vida, integral e plenamente, e o resultado é que, antes de perceber onde está, alcança a iluminação. Mas a relutância em atingir a iluminação continua, estranhamente, mesmo depois de haver chegado ao estado de Buda. Então, irrompem de fato a compaixão e a sabedoria, reforçando-lhe a energia e a convicção. Quando nunca nos cansamos de situações, nossa energia é alegre. Se estivermos completamente abertos, plenamente despertos para a vida, nunca teremos um momento enfadonho. Isto é virya.

Meditação

A paramita seguinte é dhyana ou meditação. Há dois tipos de dhyana. O primeiro é a do bodhisattva, onde ele, graças a sua compassiva energia, experimenta uma contínua percepção panorâmica. Literalmente, dhyana significa “consciência”, achar-se em estado de “desperto”. Mas isso não envolve apenas a prática da meditação em sentido formal. O bodhisattva nunca procura um estado de transe, de bem-aventurança ou de absorção. Está simplesmente desperto para as situações da vida como elas são, particularmente cônscio da continuidade da meditação com generosidade, moralidade, paciência e energia. É contínua a sensação de “desperto”.

O outro tipo de dhyana é a prática da concentração do reino dos deuses. A principal diferença entre esse tipo de meditação e a do bodhisattva é que este nunca se absorve em coisa alguma, embora lide com situações materiais da vida real. Não estabelece uma autoridade central em sua meditação, não se vigia agindo nem meditando, de modo que sua ação é sempre meditação e sua meditação é sempre ação.

Conhecimento

A paramita seguinte é prajna ou “conhecimento”. O prajna é tradicionalmente simbolizado por uma espada aguçada, de dois gu-mes, que corta toda confusão. Ainda que o bodhisattva tenha completado as outras cinco paramitas, na ausência de prajna as outras ações permanecerão incompletas. Diz-se nos sutras que as cinco paramitas são como cinco rios que fluem para o oceano de prajna. Diz-se também nos sutras que o chakravartin ou imperador universal vai à guerra à testa de quatro exércitos diferentes. Sem o imperador para dirigi-los, os exércitos não têm rumo. Em outras palavras, prajna é inteligência, o padrão básico para o qual todas as outras virtudes se encaminham e na qual se dissolvem. É isso que elimina os conceitos de ação do bodhisattva — generosidade, disciplina e tudo o mais. O bodhisattva executa suas ações metódica e apropriadamente mas, sem o conhecimento, sem a espada que corta a dúvida e a hesitação, sua ação deixa de ser realmente transcendental. Nessas circunstâncias, prajna é inteligência, o olho que tudo vê, o oposto do ego que se observa incessantemente enquanto age.

O bodhisattva transmuta o observador ou ego em conhecimento discriminativo, prajna paramita. Pra quer dizer “super”, jna quer dizer “conhecendo”: superconhecimento, conhecimento completo, preciso, que tudo vê. Rompeu-se a consciência fixa “nisto” e “naquilo”, e isso produz o conhecimento duplo, o prajna do conhecer e o prajna do ver.

O prajna do conhecer lida com as emoções. É a eliminação das emoções em conflito — as atitudes que temos para conosco — desse modo revelando o que somos. O prajna do ver é a transcendência das preconcepções primitivas do mundo. É ver as situações tais como são. Por conseguinte, o prajna do ver permite-nos lidar com as situações da maneira mais equilibrada possível. O prajna corta completamente qualquer tipo de percepção que tenha a mais ligeira tendência para separar “aquilo” “disto”. Daí a razão de ter a lâmina dois gumes. Ela não corta apenas nesta direção, mas naquela também. O bodhisattva já não experimenta a irritante característica decorrente da distinção entre isto e aquilo. Limita-se a passar pelas situações sem precisar verificá-las. De sorte que todas as seis paramitas são interdependentes.

P: O senhor definiria a meditação como o ato de apenas prestarmos atenção ao que estamos fazendo, o ato de estarmos atentos?

R: Dhyana, a quinta paramita, resume-se em sermos conscientes, em estarmos atentos. Mas nem dhyana nem qualquer outra paramita existe independentemente, sem o conhecimento transcendental, prajna. Prajna leva à prática da consciência, a uma luz totalmente diversa, transforma-a em algo mais do que a simples concentração, a prática unidirecional de manter a mente focalizada em determinado objeto ou coisa. Com prajna, a meditação torna-se consciência de todo o ambiente da situação específica em que estamos. Também redunda em precisão e abertura, de modo que temos consciência de cada momento, cada passo, cada movimento que fazemos. E essa precisão, essa simplicidade expande-se numa consciência total de toda a situação. A meditação, portanto, não é uma questão de nos demorarmos numa coisa, senão de estarmos despertos para toda a situação, assim como para experimentarmos a simplicidade dos acontecimentos. A meditação não é tão-só a prática da consciência, porque, se apenas praticarmos a consciência, não desenvolveremos o entendimento intuitivo necessário à expansão da nossa prática. Nesse caso teremos de transferir a consciência de um assunto para outro.

Desenvolver o prajna é como aprender a andar. Podemos ter de começar desenvolvendo a consciência de uma coisa só para depois desenvolvermos a consciência de duas, depois de três, quatro, cinco, seis, etc. Finalmente, porém, se quisermos caminhar corretamente, teremos de aprender a expandir a nossa consciência, a fim de incluir nela toda a situação em que nos achamos, de modo que haja uma consciência de tudo na mesma situação. Para fazê-lo é necessário não permanecermos em coisa alguma; assim teremos consciência de tudo.

P: Quando temos conflitos com outras pessoas, que dificultam o nosso relacionamento com elas, que devemos fazer?

R: Se o nosso desejo de comunicar-nos, o que é generosidade, for vigoroso, teremos de aplicar prajna, conhecimento, para descobrir por que somos incapazes de comunicar-nos. Talvez a nossa comunicação seja apenas unidirecional. Talvez não queiramos que a comunicação venha também da outra direção. Talvez o nosso desejo de comunicar-nos seja muito grande e coloquemos toda a energia na comunicação. Esta é uma abordagem muito intensa, avassaladora para a pessoa com quem nos estamos comunicando. Ela não tem espaço para se comunicar de volta conosco. Fazemo-lo com as melhores intenções, é claro, mas precisamos ter o cuidado de ver toda a situação, em lugar de nos interessarmos apenas por atirar alguma coisa à outra pessoa. Temos de aprender a olhar também do ponto de vista dos outros. Essencialmente, é preciso proporcionar alguma espécie de espaço e abertura. Ê muito difícil resistir ao impulso de converter a outra pessoa ao nosso modo de pensar; freqüentemente nós o experimentamos. Mas precisamos zelar para que a nossa comunicação não se torne demasiado opressiva. E a única maneira de fazê-lo consiste em aprender a proporcionar espaço e abertura.

P: O que é o que nos faz renunciar ao desejo?

R: O descobrimento da verdade, a dura realidade de só podermos vir a ser um bodhisattva abrindo mão do desejo de sermos alguma coisa. Não se trata de disputar jogos com nós mesmos. Temos simplesmente de entregar-nos. Temos realmente de abrir-nos e renunciar. Depois de termos vislumbrado uma idéia do que significaria entregar-nos, há a inspiração de ultrapassar isso, de ir mais além. Desde que experimentemos um minúsculo vislumbre do estado da mente desperta, ainda que seja por uma simples fração de segundo, sentiremos um tremendo desejo de prosseguir no caminho e faremos o esforço correspondente. E, então, compreenderemos também que, se quisermos prosseguir, precisaremos abrir mão completamente da idéia de fazê-lo. O Caminho do Bodhisattva divide-se em dez fases e cinco caminhos. No fim do derradeiro caminho, na décima fase, temos uma súbita percepção de que estamos prestes a dar origem ao estado de mente desperta, de que estamos prestes a nos ligar a ele e, nesse momento, alguma coisa nos puxa para trás. Compreendemos então que a única coisa que nos retém é precisarmos desistir de tentar. Esse é o samadhi semelhante ao vajra, a morte do desejo.

P: Na vida comum, o não nos importarmos com nada se associa ao tédio. Se, como acontece com o bodhisattva, não fizermos caso de nada, não nos transformaremos em vegetal?

R: O não nos importarmos com nada não significa que nos transformamos em pedra ou em água-viva; ainda há energia. Mas, do ponto de vista da pessoa que faz caso de alguma coisa, se experimentarmos desejo ou cólera, mas não os manifestarmos e, em vez disso, tentarmos conservar-nos frios, se não pusermos nossa energia em ação, sentir-nos- emos desapontados, frustrados, sufocados. Esta é a visão unilateral da energia.

A energia não se manifesta exclusivamente em termos de ser destrutiva ou possessiva. Há outras formas não associadas ao amor ou ao ódio, como as da precisão, da clareza, da visão através das situações. Há energias de inteligência que emergem continuamente e que não nos permitimos vivenciar apropriadamente. Sempre consideramos a energia em termos de ser destrutiva ou possessiva. Há algo mais do que isso. Nunca haverá um momento de monotonia se estivermos realmente em contato com a realidade como ela é. O tempo todo surge a faísca de energia que transcende a ignorância e a atitude simplória e unidirecional.

P: Mas como poderemos saber como e para onde dirigir a energia?

R: Porque vemos as situações claramente, muito mais claramente do que as víamos antes, porque as vemos como realmente são, sabemos como e para onde dirigir a energia. Anteriormente impúnhamos à vida a nossa versão da realidade, em lugar de ver as coisas como elas são. Nessas circunstâncias, removida essa espécie de véu, vemos a situação como ela é. Podemos comunicar-nos com ela de maneira apropriada e total. Não precisamos nos forçar a fazer o que quer que seja. Há uma troca contínua, uma contínua dança, semelhante ao Sol que brilha e às plantas que crescem. O Sol não tem nenhum desejo de criar a vegetação; as plantas, por sua vez, reagem à luz do Sol e a situação se desenvolve naturalmente.

P: Espontaneamente?

R: Espontaneamente. Por isso mesmo é exata, como no caso de fazer crescer os vegetais; isso é inteiramente científico, bem a propósito. Dessa maneira, nossos atos se tornam muito precisos porque são espontâneos.

P: As situações nunca requerem uma ação agressiva?

R: Não creio, porque a ação agressiva, em regra geral, está ligada a nossa necessidade de defesa. Se a situação tiver o atributo da momentaneidade, da precisão, ela nunca se descontrolará. Portanto, não haverá necessidade de controlá-la, de nos defendermos.

P: Estou pensando no Cristo ao escorraçar os vendilhões do templo.

R: Eu não diria que foi uma ação agressiva; foi uma ação verdadeira, muito bonita. Ocorreu porque ele viu a exatidão da situação sem se observar, sem tentar ser heróico. Precisamos de ações como essa.

P: Como operamos a transição de um estado de espírito calmo e passivo, que deixa entrar tudo, para um estado de espírito mais ativo, discriminativo?

R: Creio que o principal consiste em olhar para isso de maneira totalmente diversa. De fato, não creio que a nossa versão da vida diária seja tão precisa, exata e nítida quanto geralmente supomos. Realmente estamos completamente confusos, porque não realizamos uma coisa por vez. Fazemos uma coisa, e a nossa mente está ocupada com uma centena de outras, o que é sermos terrivelmente vagos. Devemos abordar a vida de todos os dias de maneira totalmente distinta. Isto é, devemos consentir no nascimento de um entendimento intuitivo, que realmente vê as coisas como elas são. No princípio, o entendimento pode ser um tanto vago, apenas um vislumbre do que é, um tremeluzir muito fraco em confronto com o negrume da confusão. À medida que, porém, essa espécie de inteligência se torna mais ativa e penetrante, a imprecisão começa a ser posta de lado e se dissolve.

P: A visão das coisas como elas são não requer uma compreensão do sujeito, daquele que percebe, assim como do objeto?

R: Sim, esse é um ponto interessante. De certo modo, temos de estar bem no meio da terra de ninguém para ver as coisas como são. A visão das coisas como são requer um salto, que só podemos dar não saltando de parte alguma. Se viermos de alguma parte, estaremos cônscios da distância e cônscios do observador também. Daí que só podemos ver as coisas como são no meio de lugar nenhum. Como não podemos sentir o gosto da nossa própria língua. Pense nisso.

P: O senhor afirma que só podemos ver as coisas como são do meio de lugar nenhum. As escrituras budistas, no entanto, falam em passar para o outro lado do rio. O. senhor pode explicá-lo?

R: E como um paradoxo, semelhante à idéia de saltar de lugar nenhum. As escrituras budistas falam, sem dúvida, em passar para a outra margem do rio. Mas só chegamos à outra margem quando finalmente compreendemos que não há outra margem. Ou melhor, fazemos uma viagem à “terra prometida”, à outra margem, e só chegamos lá ao compreender que lá estivemos o tempo todo. É muito paradoxal.

Shunyata

Ao traspassar nossas versões conceptuais do mundo com a espada de prajna, descobrimos shunyata — o nada, o vazio, a vacuidade, a ausência de dualidade e conceituação. O mais conhecido dos ensinamentos de Buda sobre o assunto é apresentado no Prajnaparamita-hridaya, também chamado Sutra do Coração; mas, curiosamente, nesse sutra, o Buda pronuncia tão-somente uma palavra. No fim do discurso apenas diz: “Bem dito, bem dito”, e sorri. Ele criou uma situação em que o ensino de shunyata é exposto por outros, em vez de ser ele mesmo o verdadeiro intérprete. Não impôs sua comunicação, mas criou a situação em que pôde ocorrer o ensino, em que os seus discípulos estavam inspirados a descobrir e experimentar shunyata. Existem doze estilos de apresentar o dharma e este é um deles.

Este sutra refere-se a Avalokiteshvara, o bodhisattva que representa a compaixão e os meios hábeis, e Shariputra, o grande arhat que representa prajna, conhecimento. Existem diferenças entre as traduções tibetana e japonesa e o sânscrito original, mas todas as versões insistem que Avalokiteshvara foi compelido a despertar para shunyata pela força avassaladora de prajna. Em seguida, Avalokiteshvara falou com Shariputra, que representa a pessoa de espírito científico ou conhecimento preciso. Os ensinamentos do Buda foram colocados sob o microscópio de Shariputra, o que quer dizer que esses ensinamentos não foram aceitos com fé cega, mas examinados, praticados, experimentados e postos à prova.

Disse Avalokiteshvara: “O, Shariputra, a forma é vazia, o vazio é forma; a forma não é mais do que o vazio, o vazio não é mais do que a forma.” Não precisamos descer aos pormenores do diálogo deles, mas podemos examinar essa afirmação a respeito da forma e do vazio, que é o ponto principal do sutra. E por isso precisamos ser muito claros e muito precisos acerca do significado do termo “forma”.

Forma é o que é antes de projetarmos nossos conceitos sobre ela. É o estado original do “que está aqui”, as qualidades coloridas, vividas, impressionantes, dramáticas, estéticas, que existem em todas as situações. Forma pode ser uma folha caindo de urna árvore e pousando num rio que desce de uma montanha; pode ser a plena claridade do luar, uma sarjeta na rua ou um monte de lixo. Essas coisas são “o que é”, e, num sentido, são todas idênticas: todas são formas, todas são objetos, todas são precisamente “o que é”. As avaliações que lhes dizem respeito são formadas mais tarde em nossa mente. Se efetivamente olharmos para as coisas como elas são, veremos que são apenas formas.

Portanto, a forma é vazia. Mas vazia do quê? A forma é vazia de nossas idéias preconcebidas, vazia dos nossos julgamentos. Se não avaliarmos e categorizarmos a folha da árvore que cai e pousa na corrente de água como oposta ao monte de lixo em Nova Iorque, então, ambos estarão ali, serão o que é. Eles são vazios de preconceitos. São precisamente o que são, naturalmente! O lixo é lixo, a folha da árvore é a folha da árvore, “o que é” é “o que é”. A forma será vazia se a virmos na ausência de nossas próprias interpretações dela.

Mas o vazio também é forma. Esta é uma observação muito chocante. Julgávamos haver conseguido classificar tudo, pensávamos haver conseguido ver que tudo é o “mesmo”, se de tudo tirarmos os nossos preconceitos. Isso compunha um bonito quadro: tudo o que vemos, mau ou bom, tudo é bom. Ótimo. Muito suave. Mas, o ponto seguinte é que o vazio também é forma, por isso, temos de reexaminar o assunto. O vazio da folha de árvore também é forma; não é realmente vazio. O vazio do monte de lixo também é forma. Tentar ver essas coisas como vazias é também vesti-las de conceito. A forma volta. Era fácil demais tirar todo o conceito e concluir que tudo simplesmente é o que é. Isso poderia ser uma saída, outra maneira de confortar-nos. Temos realmente de sentir as coisas como elas são, as características do estado de monte de lixo e as características do estado de folha de árvore, o estado de ser das coisas. Temos de senti-las ajustadamente, e não apenas cobri-las com o véu do vazio. Isso nada ajuda. Temos de ver o estado

de ser do que está ali, as qualidades cruas e rudes das coisas exatamente como são. Esta é uma maneira muito precisa de ver o mundo. Primeiro, portanto, extinguimos todos os nossos pesados preconceitos, e depois eliminamos até as sutilezas de palavras como “vazio”, o que nos deixa em lugar nenhum, completamente com o que é.

Por fim, chegamos à conclusão de que forma é apenas forma e o vazio é apenas o vazio, o que foi descrito no sutra como a visão de que a forma não é mais do que o vazio, que o vazio não é mais do que a forma; são inseparáveis. Vemos que a busca da beleza ou do significado filosófico da vida é apenas um modo de justificar-nos, dizendo que as coisas não são tão más quanto as supomos. As coisas são tão más quanto as supomos! Forma é forma, o vazio é vazio, as coisas são exatamente o que são e não precisamos vê-las à luz de qualquer raciocínio mais profundo. Finalmente descemos à Terra, vemos as coisas tais e quais são. Isso não significa ter uma inspirada visão mística com arcanjos, querubins e músicas suaves. As coisas são vistas como elas são, em suas próprias características. Neste caso, portanto, shunyata é a ausência total de conceitos ou véus de qualquer espécie, a ausência até da conceituação de “forma é vazio” e de “o vazio é forma”. É uma questão de ver o mundo de modo direto sem aspirar “maior” consciência ou significação ou profundidade. É perceber as coisas literalmente de maneira direta, como elas são por si mesmas.

Podemos perguntar como nos seria possível aplicar esse ensinamento à vida diária. Conta-se uma história segundo a qual, quando o Buda fez a primeira palestra sobre shunyata, alguns arhats sofreram ataques de coração e morreram vítimas do impacto do ensinamento. Meditando, sentados, esses arhats haviam experimentado a absorção no espaço, mas estavam ainda se fixando sobre o espaço. Visto que ainda estavam se fixando sobre alguma coisa, ainda havia uma experiência e um experimentador. O princípio de shunyata implica o não fixarmo-nos sobre coisa alguma, o não distinguirmos entre isto e aquilo, o estarmos suspensos em lugar nenhum.

Se virmos as coisas como são, já não precisaremos mais interpretá-las nem analisá-las; não precisaremos tentar compreendê-las por meio da imposição da experiência espiritual ou de idéias filosóficas. Como disse um famoso mestre zen: “Quando como, como; quando durmo, durmo.” Façamos simplesmente o que fazemos, de maneira completa, plena. Fazendo-o, seremos um rishi, uma pessoa honesta, verdadeira, uma pessoa sincera que nunca distingue entre isto e aquilo. Faz as coisas literal, diretamente, como elas são. Come quando deseja comer; dorme quando deseja dormir. Às vezes, o Buda é descrito como o Maharishi, o Grande Rishi, que não tentava ser verdadeiro, mas simplesmente o era em seu estado aberto.

A interpretação de shunyata que temos discutido até agora é a visão da escola filosófica Madhyamika ou do “Caminho do Meio”, fundada por Nagarjuna. Ê a descrição de uma realidade experiência! que nunca pode ser descrita precisamente porque as palavras não são a experiência. As palavras ou os conceitos apenas apontam para aspectos parciais da experiência. Com efeito, é duvidoso que se possa mesmo falar em “experimentar” a realidade, visto que isto implicaria uma separação entre o experimentador e a experiência. E, finalmente, é discutível que se possa falar em “realidade”, porque isso implicaria existência de algum conhecedor objetivo fora e separado dela, como se a realidade fosse uma coisa nomeável com divisas e limites fixos. Assim, a escola Madhyamika fala simplesmente do tathata, “como é”. Nagarjuna preferia abordar a verdade tomando os argumentos de outras escolas filosóficas em seus próprios termos e reduzindo-os logicamente ad absurdum, em lugar de oferecer pessoalmente quaisquer definições da realidade.

Existem vários outros enfoques filosóficos importantes dos problemas da verdade e da realidade que precederam e influenciaram o desenvolvimento da escola Madhayamika. Essas linhas de pensamento encontram sua expressão não só nas escolas filosóficas budistas antigas, mas também nos enfoques teístas do Hinduísmo, do Vedan-tismo, do Islamismo, do Cristianismo e da maioria das demais tradições religiosas e filosóficas. Do ponto de vista da escola Madhyamika, esses outros enfoques podem ser agrupados em três categorias: os eternalistas, os niilistas e os atomistas. Para os madhyamikas, as duas primeiras abordagens são erradas e a terceira é apenas parcialmente verdadeira.

A primeira e a mais óbvia dessas três “concepções errôneas da natureza da realidade”, o eternalismo, é, freqüentemente, uma das mais ingênuas versões do teísmo. As doutrinas eternalistas encaram os fenômenos como se estes contivessem alguma espécie de essência eterna. As coisas nascem e morrem, mas, apesar disso, contêm uma essência que não perece. A característica da existência eterna precisa estar ligada a alguma coisa, de modo que os seguidores dessa doutrina costumam endossar a crença em Deus, numa alma, num atman, num inefável si mesmo. Afirma, dessa maneira, o crente, que existe alguma coisa sólida, em marcha, eterna. É tranqüilizador ter alguma coisa sólida a que nos possamos agarrar, em que possamos nos absorver, um modo fixo de compreender o mundo e entender o nosso relacionamento com ele.

Finalmente, contudo, o adepto das doutrinas eternalistas pode desiludir-se com um Deus que nunca viu, uma alma ou essência que não consegue encontrar. Isto nos leva à seguinte, e algo mais sofisticada, concepção errônea da realidade: o niilismo. Essa opinião sustenta que tudo vem do nada, do mistério. Às vezes, esse enfoque aparece como afirmações teístas e ateístas de que o Ente Supremo é incognos-cível. O Sol brilha, projeta luz sobre a Terra, ajuda a vida a crescer, proporciona calor e claridade. Mas não atinamos com a origem da vida; não há um ponto de partida lógico para o início do universo. A vida e o mundo nada mais são do que a dança de maya, a ilusão. As coisas são simplesmente geradas de maneira espontânea, de lugar nenhum. O nada, assim, parece importante neste enfoque: uma

realidade incognoscível de certo modo além dos fenômenos aparentes. O universo acontece misteriosamente; sem nenhuma explicação real. É possível que um niilista dissesse que a mente humana não pode entender esse mistério. Portanto, nesta visão da realidade, o mistério é tratado como uma coisa. A idéia de que não há resposta é fixadamente tida e havida como resposta.

O enfoque niilista evoca a atitude psicológica do fatalismo. Compreendemos logicamente que, se fizermos algo, acontecerão coisas como reação à nossa ação. Vemos uma continuidade de causa e efeito, uma reação em cadeia sobre a qual não temos controle. Esse processo de reação em cadeia provém do mistério do “nada”. Por conseguinte, se assassinássemos alguém, seria nosso karma assassinar, e era inevitável, preordenado. A propósito, se praticarmos uma boa ação, esta não tem relação alguma com o fato de estarmos ou não despertos. Tudo provém do misterioso “nada”, que é a abordagem niilista da realidade.

É um ponto de vista muito ingênuo: deixamos tudo a cargo do mistério. Toda vez que não estivermos muito certos do que está além do âmbito de nossas idéias conceptuais, começamos a entrar em pânico. Temos medo da nossa própria incerteza e tentamos preencher tal brecha com alguma coisa diferente. Essa outra coisa é, geralmente, uma crença filosófica – neste caso, a crença no mistério. Ansiosa e avidamente buscamos o nada, esquadrinhando todos os cantos no intuito de encontrá-lo. Mas só encontramos migalhas. Nada mais do que isso. É muito misterioso. Enquanto continuarmos a buscar uma resposta conceptual, haverá sempre áreas de mistério, mistério esse que é, em si mesmo, outro conceito.

Sejamos nós eternalistas, niilistas ou atomistas, presumimos constantemente que existe um “mistério”, algo que não conhecemos: o significado da vida, a origem do universo, a chave da felicidade. Lutamos por alcançar esse mistério, tentando transformar-nos numa pessoa que o conhece ou possui, chamando-o “Deus”, “alma”, “atman”, “brahman”, “shunyata”, etc. Certamente esta não é a abordagem Madhyamika da realidade, conquanto as primeiras escolas Hinayanas de Budismo, até certo ponto, caíssem na armadilha, razão pela qual o seu enfoque é considerado apenas uma verdade parcial.

O enfoque hinayana da realidade vê a impermanência como o grande mistério: o que nasceu tem de mudar e morrer. Entretanto, não se pode ver a própria impermanência, mas apenas a sua manifestação na forma. Assim sendo, os hinayanistas descrevem o universo em termos de átomos existentes no espaço e momentos existentes no tempo. Como tais, são pluralistas atomísticos. O equivalente hinayana de shunyata é a compreensão da natureza transitória e insubstancial da forma, de modo que a prática da meditação hinayana é dupla: a análise dos vários aspectos da impermanência — os processos do nascimento, crescimento, decadência e morte e suas elaborações; e a prática da atenção plena que vê a impermanência dos acontecimentos mentais. O arhat vê os eventos mentais e os objetos materiais e começa a vê-los como acontecimentos momentâneos e atomistas. Assim descobre que não existe substância permanente nem coisa sólida como tal. Essa abordagem erra em conceituar a existência de entidades relativas umas às outras, a existência “deste” em relação “àquele”. Podemos ver os três elementos: o eternalismo, o niilismo e o pluralismo atomístico, em diferentes combinações em quase todas as principais filosofias e religiões do mundo. Do ponto de vista Madhyamika, essas três concepções errôneas da realidade são virtualmente inevitáveis, enquanto buscarmos uma resposta para uma pergunta hipotética, enquanto procurarmos investigar o chamado “mistério” da vida. A crença em alguma coisa é simplesmente um modo de rotular o mistério. Yogachara, uma escola filosófica Mahayana, tentou eliminar esse mistério encontrando uma união do mesmo com o mundo fenomenal.

O principal impulso da escola Yogachara é epistemológico. Para ela o mistério é inteligência, aquilo que conhece. Os yogacharianos resolveram o mistério postulando a união indivisível entre a inteligência e os fenômenos. Assim, não existe um conhecedor individual; tudo é “autoconhecido”. Existe apenas a “mente única”, que os yogacharianos denominaram “cognição autoluminosa”, e tanto os pensamentos quanto as emoções, as pessoas e as árvores são aspectos dela. Daí que essa escola seja também mencionada na literatura tradicional como a escola citta-matra ou “mente apenas”.

Yogachara foi a primeira escola de pensamento budista a transcender a divisão entre o conhecedor e o conhecido. Assim, os seus adeptos explicam a confusão e o sofrimento como nascidos da crença errônea num conhecedor individual. Se uma pessoa acredita conhecer o mundo, a mente única parece estar cindida, se bem que na realidade a sua superfície clara esteja apenas turva. A pessoa confusa sente que pensa e reage aos fenômenos externos e assim se vê presa numa constante situação de ação e reação. A pessoa iluminada compreende que os pensamentos e as emoções, de um lado, e o chamado mundo externo, do outro, são ambos o “jogo da mente”. Dessa maneira, a pessoa iluminada não se deixa prender no dualismo de sujeito e objeto, interno e externo, conhecedor e conhecido, eu e outro. Tudo é autoconhecido.

Nagarjuna, todavia, contestou a proposta yogachariana “mente apenas” e, na verdade, pôs em dúvida a própria existência da “mente”. Estudou os doze volumes das escrituras Prajnaparamita, surgidas do segundo giro da Roda da Doutrina pelo Buda, o ensino da parte média da sua vida. As conclusões de Nagarjuna estão resumidas no princípio da “não fixação”, o princípio essência da escola Madhyamika. Segundo ele, qualquer opinião filosófica pode ser refutada, e

não se deve fixar sobre nenhuma resposta ou descrição da realidade, seja ela extrema ou moderada, incluindo a noção de “mente única”. Até mesmo dizer que o não-fixar constitui resposta é ilusório, pois não se deve fixar sobre a não- fixação. O método de Nagarjuna era o da não-filosofia, o que não era, de modo algum, outra filosofia. Ele disse: “O sábio, tampouco, deve fixar-se em posição intermediária.”

A filosofia Madhyamika é uma visão crítica da teoria Yogachara de que tudo é um aspecto da mente. Afirma o argumento Madhyamika: “Para dizer que a mente existe ou que tudo é jogo da mente única, é preciso que haja alguém que observe a mente, o conhecedor da mente que dê testemunho da sua existência.” Portanto, a totalidade da Yogachara é, necessariamente, uma teoria da parte desse observador. De acordo, porém, com a própria filosofia Yogachara da cognição autoluminosa, os pensamentos subjetivos acerca de um objeto são ilusórios, não havendo sujeito nem objeto mas apenas a mente única, da qual o observador é uma parte. Por conseguinte, é impossível afirmar que a mente única existe. Como o olho físico, a cognição autoluminosa não pode ver-se, como a navalha não pode cortar-se. Conforme admitem os próprios yogacharianos, não há ninguém para saber que a mente única existe.

O que se pode dizer, então, a respeito da mente ou da realidade? Visto não haver ninguém para percebê-las, a noção de existência em termos de “coisas” e “forma” é ilusória; não há realidade, nem percebedor da realidade, nem pensamentos derivados da percepção da realidade. Uma vez que deixemos de lado o preconceito da existência da mente e da realidade, as circunstâncias emergirão claramente, tais como são. Não há ninguém para observar, ninguém para conhecer coisa alguma. A realidade simplesmente é, Q é isso o que significa a palavra “shunyata”. Através desta súbita percepção remove-se o observador que nos separa do mundo.

Como, então, começa a crença num “eu” e todo o processo neurótico? Em linhas gerais, conforme os Madhyamikas, toda vez que ocorre uma percepção de forma, verifica-se uma reação imediata de fascinação e incerteza da parte de um subentendido percebedor da forma. Essa reação é quase instantânea. Leva apenas uma fração de fração de segundo. E, assim que reconhecemos o que é a coisa, a nossa reação seguinte é dar-lhe um nome. Com o nome, naturalmente, vem o conceito. Tendemos a conceituar o objeto, o que quer dizer que, a essa altura, já não somos capazes de perceber as coisas como elas realmente são. Criamos uma espécie de acolchoamento, um filtro ou véu entre nós e o objeto. É isto que impede a manutenção da consciência contínua, durante e após a prática da meditação. Este véu nos afasta da consciência panorâmica e da presença do estado meditativo, porque, comumente, somos incapazes de ver as coisas como elas são. Sentimo-nos compelidos a nomear, a traduzir, a pensar discursivamente, e essa atividade nos afasta ainda mais da percepção direta e precisa. Assim, shunyata não é simplesmente consciência do que somos e de como somos em relação a tal e tal objeto, mas é antes a claridade, que transcende o acolchoamento conceptual e as confusões desnecessárias. Já não se está fascinado pelo objeto nem envolvido como sujeito. É liberdade disto e daquilo. O que persiste é espaço aberto, a ausência da dicotomia do isto-e-aquilo. Eis aí o significado do Caminho do Meio ou Madhyamika.

A experiência de shunyata não pode ser desenvolvida sem antes havermos trabalhado no caminho estreito da disciplina e da técnica. A técnica é necessária para começarmos, mas é também necessário que, numa determinada fase, a técnica desapareça. De um ponto de vista absoluto, todo o processo de aprendizado e prática é desnecessário. Poderíamos perceber a ausência do ego ao primeiro olhar. Mas não aceitaríamos uma verdade tão simples. Em outras palavras, temos de aprender com o fim de desaprender. Todo o processo consiste em desfazer o ego. Partimos aprendendo a lidar com pensamentos e emoções neuróticas. Os conceitos errados são, então, removidos através da compreensão do vazio, da abertura. Tal é a experiência de shunyata. Shunyata, em sânscrito, significa literalmente “vácuo” ou “vazio”, o que quer dizer, “espaço”, ausência de todas as atitudes conceptuais. Assim, diz Nagarjuna em seu Comentário sobre Madhyamika: “Assim como o Sol dissipa as trevas, o sábio perfeito vence os falsos hábitos da mente. Ele não vê a mente nem o pensamento dela originado.”

O Sutra do Coração termina com “a grande invocação” ou mantra. Diz ele, na versão tibetana: “Portanto, o mantra do conhecimento transcendente, o mantra da profunda percepção, o mantra insuperável, o mantra inigualável, o mantra que acalma todo o sofrimento, deve ser conhecido como verdade, pois não há ilusão.” A força desse mantra não vem de algum imaginado poder místico ou mágico das palavras, mas do seu significado. Ê interessante notar que, depois de discutir shunyata — a forma é vazia, o vazio é forma, a forma não é mais do que o vazio, o vazio é idêntico à forma, e assim por diante —, o sutra passa a discutir o mantra. No começo, fala em termos do estado meditativo e, no fim, fala do mantra ou palavras. Isso porque, no início, precisamos desenvolver a confiança em nosso entendimento, jogando fora todos os preconceitos: niilismo, eternalismo, todas as crenças têm de ser eliminadas, transcendidas. E quando uma pessoa está completamente exposta, totalmente despida, totalmente desmascarada, completamente nua, completamente aberta — nesse exato momento ela vê o poder da palavra. Quando a hipocrisia básica, total e derradeira, tiver sido desmascarada, então, começaremos realmente a ver a jóia brilhando em seu esplendor: a qualidade enérgica, viva, da abertura, a qualidade viva da entrega, a qualidade viva da renúncia.

A renúncia, neste caso, não é apenas atirar tudo fora mas, sim, tendo atirado tudo fora, começar a sentir a qualidade viva da paz. E essa paz específica não é a paz frágil, a frágil abertura, mas possui uma natureza forte, uma qualidade invencível, uma qualidade inabalável, porque não admite falhas hipócritas. É a paz completa em todas as direções, de

modo que não existe sequer um ponto obscuro para a dúvida e a hipocrisia. A abertura completa é a vitória completa porque não temos medo, não tentamos defender-nos de forma alguma. Conseqüentemente, esse é um grande mantra. Poder-se-ia imaginar que, em lugar de dizer: Om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha, o mantra dissesse algo sobre shunyata — Om shunyata mahashunyata — ou qualquer coisa desse tipo. Em vez disso, diz: Gate, gate — “ido, ido, ido além, ido completamente”. Isso é muito mais forte do que dizer “shunyata”, porque a palavra “shunyata” pode implicar uma interpretação filosófica. Em vez de formular algo filosófico, o mantra expõe o que jaz além da filosofia. Por conseguinte é gate gate — “ido, renunciado, desvencilhado, aberto”. O primeiro gate é “desembaraçado do véu das emoções conflitantes”. O segundo representa o véu das crenças primitivas acerca da realidade. Isto é, o primeiro gate representa a idéia de que “a forma é vazia”, ao passo que o segundo se refere a “o vazio é forma”. A palavra seguinte do mantra é paragate — “ido além, completamente exposto”. Agora, forma é forma — paragate — e não só forma é forma, mas, também, o vazio é o vazio, parasamgate — “ido completamente além”. Bodhi aqui significa “completamente desperto”. O sentido é: “renunciado, completamente desmascarado, nu, completamente aberto”. Svaha é um remate tradicional dos mantras, que quer dizer: Assim seja”. “Ido, ido, ido além, completamente exposto, desperto, assim seja”.

P: Como é que o desejo conduz ao nascimento?

R: Toda vez que há um desejo há outro nascimento. Semeamos carência, querendo fazer alguma coisa, querendo agarrar alguma coisa. Então, o desejo de posse também evoca algo mais. Nascimento aqui significa nascimento de mais confusão, de mais insatisfação, de mais carência. Por exemplo, se tivermos um grande desejo de dinheiro e conseguirmos ganhá-lo em quantidade, também haveremos de querer comprar alguma coisa com o dinheiro. Uma coisa leva à outra, uma reação em cadeia, de modo que o desejo se converte numa espécie de rede. Queremos alguma coisa, queremos trazer alguma coisa para nós, continuamente.

A experiência de shunyata, vendo precisa e claramente o que é, de qualquer modo rompe através dessa rede, dessa teia de aranha, porque a teia da aranha é tecida no espaço do desejo, no espaço do carecer. E quando o espaço de shunyata o substitui, por assim dizer, toda a formulação conceptual do desejo é completamente eliminada, como se tivéssemos chegado a outro planeta com ar diferente ou a algum lugar sem nenhum oxigênio. Nessas condições, shunyata proporciona nova atmosfera, novo ambiente, que não suportará o pegar nem o agarrar. Daí que a vivência de shunyata também impossibilita o plantio da semente do karma, razão pela qual se diz que shunyata é o que dá nascimento a todos os budas, a todos os despertos. “Desperto” significa não estar envolvido nas reações em cadeia e nas complicações do processo kármico.

P: Por que tantos dentre nós temos uma tendência tão forte para não ver as coisas como elas realmente são?

R: Penso que isso se deve, em grande parte, ao medo que sentimos de vê-las assim.

P: Por que sentimos medo de vê-las?

R: Porque desejamos um cordão umbilical ligado ao ego, por intermédio do qual possamos alimentá-lo o tempo todo.

P: Pode-se atingir a compreensão de “o vazio é forma” através da prática das técnicas de meditação ou é preciso que elas nos venham espontaneamente?

R: Não se atinge a percepção de shunyata praticando ginástica mental; é uma questão de vê-la realmente. Pode ser percebida quando praticamos a meditação, sentados, ou pode ser vista em situações da vida. Não há um padrão fixo para produzi-la. Naropa, o grande iogue indiano, viu shunyata quando o seu mestre descalçou a sandália e golpeou-lhe o rosto com ela. Nesse exato momento ele a viu. Tudo depende da situação individual.

P: Quer dizer que não se trata de alguma coisa atrás da qual possamos sair?

R: Quando estamos realmente interessados, realmente empenhados em achá-la, completamente empenhados em compreendê-la, devemos desistir de sair à sua procura.

P: Tenho alguma dificuldade para conciliar o conceito de shunyata com o que está acontecendo neste momento.

R: Termos uma experiência de shunyata não quer dizer deixarmos de perceber, deixarmos de viver na Terra. Continuamos a viver na Terra, mas vemos com mais precisão o que está aqui. Acreditamos conhecer as coisas como elas são. Mas vemos apenas a nossa versão, que não é de todo completa. Há muitas outras coisas para aprender referentes às verdadeiras sutilezas da vida. As coisas que vemos são uma versão muito grosseira do que é. A experiência de shunyata não significa a completa dissolução do mundo inteiro no espaço, mas que principiamos a notar o espaço, de modo que o mundo está um pouco menos atravancado. Se formos, por exemplo, comunicar-nos com outra pessoa,

poderemos preparar-nos para dizer isto ou aquilo, a fim de acalmá-la ou explicar-lhe as coisas. Mas ela, então, se sai com tantas complicações, mostra-se tão turbulenta que, antes de podermos saber onde estamos, já nos sentimos completamente confundidos por ela. E em vez de ter a clareza que tínhamos preparado de início, partilhamos da sua confusão. Fomos completamente absorvidos pela sua confusão. Por isso mesmo, shunyata significa ver através da con- fusão. Permanecemos claros e precisos durante todo o tempo.

P: E com essa experiência, ainda continuamos vivos neste mundo?

R: É claro que sim! Veja bem, iluminação não quer dizer morte. A ser assim, a iluminação eqüivaleria a uma espécie de suicídio, o que é ridículo. Esse é o enfoque niilista, a tentativa de escapar do mundo.

P: A pessoa iluminada é onisciente?

R: Receio que esta seja uma conclusão errônea tirada da teoria yogachariana da mente, única, teoria que também apareceu em outras tradições religiosas e filosóficas. A idéia é que a pessoa iluminada passou a ser a mente única e, portanto, conhece tudo o que já foi, é ou poderia ser. Encontramos sempre esse tipo de especulação maluca quando as pessoas se envolvem com o “mistério”, o incognoscível. Receio, porém, que realmente não exista a mente única.

P: Como começaremos a ver o que é?

R: Não começando, renunciando à idéia de começo. Se tentarmos afirmar determinado território — minha experiência — não veremos shunyata. Temos de abrir mão, inteiramente, da idéia de território. O que se pode fazer não é impossível. Não se trata de mera especulação filosófica. Podemos abrir mão da idéia de território, podemos não começar.

P: Faz parte do não começar o tentar tão demoradamente que se desiste por exaustão? Podemos desistir antes de tentar? Haverá algum atalho? Precisará o macaco passar por todo o processo de bater-se contra as paredes e ter alucinações?

R: Creio que precisamos. A iluminação súbita só aparece com a exaustão. A instantaneidade não supõe, necessariamente, a existência de um atalho. Em certos casos, podemos experimentar um súbito clarão de iluminação mas, se não abrirmos caminho através desse processo, nossos padrões habituais de pensamento voltarão à carga e nossas mentes voltarão a abarrotar-se. Precisamos fazer a viagem porque, como você mesmo disse, quando principiamos a ficar desapontados, nós o conseguimos.

P: Isso parece levar-nos de volta ao Caminho Hinayana da disciplina. Está certo? R: Está. A meditação é um trabalho pesado, um trabalho manual, por assim dizer. P: Tendo começado, parece que há alguma coisa por fazer.
R: Há alguma coisa por fazer mas, ao mesmo tempo, o que quer que estejamos fazendo só diz respeito ao momento, não diz respeito à consecução de alguma meta futura, e isso nos traz de volta à prática da meditação. A meditação não é só uma questão de começar a pôr o pé no caminho; é compreender que já estamos no caminho — estando plenamente na momentaneidade deste exato momento — agora, agora, agora. Na realidade não começamos porque nunca, realmente, deixamos o caminho.

P: O senhor disse que as pessoas iluminadas estão livres da cadeia kármica. Eu gostaria de saber o que o senhor entende por isso, porque me parece que elas criam uma nova cadeia kármica.

R: A palavra “karma” significa “criação” ou “ação” — reação em cadeia. Pensando no futuro, por exemplo, plantamos uma semente no presente. No caso das pessoas iluminadas, elas não planejam para o futuro porque não desejam prover a si mesmas de segurança. Já não têm necessidade de conhecer a configuração do futuro. Venceram o preconceito do “futuro”. Essas estão plenamente no agora. O agora tem em si o potencial do futuro, bem como o do passado. As pessoas iluminadas dominaram completamente as atividades inquietas e paranóicas da mente. Estão plena e completamente no momento; e, portanto, livres do plantio de mais sementes de karma. Quando chega o futuro, não o vêem como resultado das suas boas ações no passado: vêem-no como presente durante o tempo todo. Por isso não criam nenhuma nova reação em cadeia.

P: A “qualidade desperta” difere do estarmos simplesmente no agora?

R: Difere. A iluminação é estarmos despertos no estado de agora. Os animais, por exemplo, vivem no presente e uma criancinha vive no presente; mas isso é muito diferente de estarmos despertos ou iluminados.

P: Não compreendo muito bem o que o senhor quer dizer quando se refere a animais e criancinhas que vivem no presente. Qual é a diferença entre viver no presente com essa forma e ser uma pessoa iluminada?

R: Creio que é uma questão de diferença entre fixar-se sobre alguma coisa e estar realmente na momentaneidade, em termos de “despertar”. No caso da criancinha ou do animal, é estar no estado de agora, mas é também fixar-se sobre o estado de agora. Eles conseguem alguma espécie de realimentação por fixar-se assim; muito embora não o percebam conscientemente. No caso de um ser iluminado, ele não se fixa sobre a idéia – “Sou um ser iluminado” – porque transcendeu completamente a idéia de “eu sou”. Está apenas sendo plenamente. A divisão entre sujeito e objeto foi completamente superada.

P: Se a pessoa iluminada está sem ego e sente as dores e tristezas dos que a rodeiam, mas não sente necessariamente as suas, você chamaria “desejo” à sua disposição para ajudá-los a superarem suas dificuldades?

R: Acho que não. O desejo aparece quando queremos ver alguém feliz. Quando essa pessoa está feliz, nós nos sentimos felizes porque as atividades em que nos empenhamos para fazê-la feliz foram, em certo sentido, feitas mais por nós do que pela pessoa. Nós gostaríamos de vê-la feliz. Um ser iluminado não tem esse tipo de atitude. Quando alguém lhe solicita ajuda, simplesmente a dá; não há, envolvidas nisso, nem auto-satisfação, nem autocongratulação.

P: Por que o senhor deu ao seu Centro aqui o nome de Karma Dzong?

R: Karma significa “ação” bem como “atividade de Buda”, e Dzong é a palavra tibetana que designa “fortaleza”. As situações não são deliberadamente premeditadas, apresentam-se apenas. Estão-se desenvolvendo perpetuamente, acontecendo de maneira toda espontânea. Parece, também, haver tremenda quantidade de energia no Centro, o que também se poderia dizer de Karma. É energia que não está sendo mal-conduzida por ninguém, energia que reside na fortaleza. O que está acontecendo tinha de acontecer. Assume mais a forma de relações kármicas espontâneas do que a do trabalho missionário ou da conversão das pessoas ao Budismo.

P: Como o senhor relacionaria o samadhi ou o nirvana com o conceito de shunyata?

R: Há aqui um problema com palavras. Não é uma questão de diferenças; é uma questão de ênfases diferentes. O samadhi é o completo envolvimento e o nirvana liberdade, e ambos estão ligados a shunyata. Quando experimentamos shunyata, estamos completamente envolvidos, sem a divisão da dualidade sujeito-objeto. Estamos também livres da confusão.

Prajna e Compaixão

Ao discutir shunyata, chegamos à conclusão de que impomos nossos preconceitos, nossas idéias e nossa versão das coisas aos fenômenos em vez de ver as coisas como elas são. Depois que nos tornamos capazes de ver através do nosso véu de idéias preconcebidas, compreendemos que é uma maneira, desnecessária e confusa, de acrescentar conceitos para manejar as experiências, sem considerar primeiro se eles se ajustam ou não. Em outras palavras, essas idéias são uma forma de segurança. Quando vemos alguma coisa, de imediato lhe damos um nome e uma categoria. Mas a forma é vazia; dispensa a nossa categorização para expressar toda a sua natureza, para ser o que é. A forma, em si mesma, é destituída de preconceitos.

Mas o vazio é forma. Isso significa que, nesse nível de entendimento, damos um valor demasiado grande à visão da forma despida de preconceitos. Gostaríamos de experimentar essa espécie de percepção intuitiva, como se a visão da forma vazia fosse um estado que pudéssemos obrigar nossa mente a alcançar. Buscamos o vazio de tal modo que ele também se torna uma coisa, uma forma, em vez de vazio verdadeiro. É um problema de ambição exagerada.

Nessas condições, a fase seguinte para nós consiste em abrir mão da ambição de ver a forma como vazia. Neste ponto, a forma realmente emerge por detrás do véu dos nossos preconceitos. A forma é a forma, a forma nua sem qualquer implicação filosófica por detrás dela. E o vazio é o vazio; não há nada a que possamos nos agarrar. Descobrimos a experiência da não-dualidade.

Não obstante, tendo compreendido que forma é forma e vazio é vazio, ainda apreciamos nossa percepção intuitiva da não-dualidade. Existe ainda um senso do conhecedor, do experimentador da súbita intuição. Há uma consciência de que alguma coisa foi tirada, de que alguma coisa está faltando. Sutilmente, nos absorvemos na não-dualidade. Entramos aqui numa fase de transição entre o Caminho do Mahayana e do Tantra, em que prajna é uma experiência contínua e a compaixão já não é deliberada. Mas existe ainda alguma autoconsciência, algum sentido de percebermos o nosso próprio prajna e a nossa própria compaixão, algum senso de verificação e apreciação das nossas ações.

Como tivemos ocasião de discutir na palestra sobre a ação do bodhisattva, prajna é um estado muito claro, preciso e inteligente de ser. Possui uma qualidade aguçada, a capacidade de penetrar e revelar situações. A compaixão é a atmosfera aberta na qual prajna enxerga. É uma aberta consciência de situações, que, instruída pelo olho de prajna, desencadeia a ação. A compaixão é muito poderosa; precisa, porém, ser dirigida pela inteligência de prajna, assim como a inteligência precisa da atmosfera da abertura básica da compaixão. As duas precisam ocorrer simultaneamente.

A compaixão contém a intrepidez fundamental, a intrepidez sem hesitação. Essa intrepidez é marcada por enorme generosidade, em contraste com a intrepidez em exercer o nosso poder sobre outros. Essa “intrepidez generosa” é a natureza fundamental da compaixão e transcende o instinto animal do ego. O ego gostaria de estabelecer o seu território, ao passo que a compaixão, completamente aberta e acolhedora, é um gesto de generosidade que não exclui ninguém.

A compaixão começa a desempenhar uma parte na prática da meditação, quando experimentamos não só a calma e a paz, mas também a cordialidade. Há uma grande sensação de cordialidade que dá origem a uma atitude de abertura e acolhimento. Quando surge esta sensação, já não há mais ansiedade nem medo de que agentes externos atuem como obstáculos à nossa prática da meditação.

Essa cordialidade instintiva, que se desenvolve na prática da meditação, também se estende à experiência da consciência ampla, posterior à meditação. Com essa espécie de consciência verdadeira não podemos nos divorciar da nossa atividade. Seria impossível fazê-lo. Se tentarmos concentrar-nos em nossa ação — preparando uma xícara de chá ou qualquer outra atividade da vida cotidiana — e, ao mesmo tempo, tentarmos ser conscientes, estaremos vivendo num estado de sonho. Como disse um grande mestre tibetano: “Tentar combinar a consciência e a ação de maneira inábil é como tentar misturar óleo com água.” A verdadeira consciência precisa ser aberta em vez de cautelosa ou protetora. É o estado de mente aberta que experimenta o espaço aberto dentro de uma situação. Podemos estar trabalhando, mas a consciência também pode operar no contexto de nosso trabalho, que então será a prática da compaixão e da meditação.

A consciência plena geralmente está ausente de nossa vida; estamos completamente absortos no que quer que façamos e esquecemos o restante do meio, erguendo uma barreira e deixando-o fora. Mas a força positiva da compaixão e prajna, aberta a inteligente, aguçada e penetrante, dá-nos uma visão panorâmica da vida, que revela não só ações e acontecimentos específicos mas também todo o seu ambiente. Isso cria a situação certa para a comunicação com outras pessoas. Ao lidar com outras pessoas precisamos não só estar atentos ao que estão dizendo, mas precisamos também abrir-nos para o seu tom, as suas características globais. As palavras e o sorriso objetivos de uma pessoa representam apenas uma fração pequena da sua comunicação. Igualmente importante é a qualidade da sua presença, o modo com que ela se nos apresenta. Isto comunica muito mais do que as simples palavras.

Quando uma pessoa é, ao mesmo tempo, sábia e compassiva, suas ações são muito hábeis e irradiam enorme energia. Esta ação habilidosa denomina-se upaya, “meios hábeis”. Aqui “hábil” não significa tortuoso nem diplomático. Upaya apenas acontece em resposta a uma situação. Se uma pessoa for totalmente aberta, sua resposta à vida será muito direta, talvez até ousada do ponto de vista convencional, porque upaya não permite nenhuma tolice. Revela e lida com as situações como elas são: é uma energia extremamente hábil e precisa. Se as proteções e as máscaras que usamos fossem, subitamente, arrancadas por essa energia, seria extremamente doloroso. Seria embaraçoso, porque nos veríamos despidos, nus. Em momentos assim, esta espécie de abertura e objetividade, a natureza abrupta de prajna e compaixão, pode parecer sumamente fria e impessoal.

Para o padrão convencional de pensar, a compaixão simplesmente significa ser bondoso e caloroso. Essa espécie de compaixão é descrita nas escrituras como “amor de avó”. Espera-se que o seu praticante seja sumamente bondoso e gentil e incapaz de fazer mal a uma mosca. Se precisarmos de outra máscara, de outro cobertor para aquecer-nos, ele o proverá. Do ponto de vista do ego, a verdadeira compaixão, entretanto, é implacável porque não leva em consideração o impulso do ego para manter-se. É “louca sabedoria”, totalmente sábia, mas também louca, porque não se liga às tentativas literais e simplórias do ego para assegurar o próprio conforto.

A voz lógica do ego nos aconselha a sermos bondosos para com as demais pessoas, a sermos bons meninos e boas meninas e a levarmos inocentes vidinhas. Trabalhamos em nossos empregos habituais e alugamos um quarto ou um apartamento aconchegante para nós; gostaríamos de continuar dessa maneira mas, de repente, alguma coisa nos arranca do nosso ninhozinho seguro. Ficamos extremamente deprimidos ou algo chocantemente doloroso acontece. Começamos a perguntar-nos por que o céu se mostra tão impiedoso. “Por que Deus haveria de castigar-me? Tenho sido uma boa pessoa, nunca fiz mal a ninguém.” Mas há na vida algo mais do que isso.

O que estamos tentando defender? Por que estamos tão preocupados em proteger-nos? A súbita energia da compaixão implacável nos arranca de nosso conforto e segurança Se nunca experimentássemos esse tipo de choque, não seríamos capazes de crescer. Temos de ser sacudidos, atirados para fora dos nossos modos regulares, repetitivos e confortáveis de viver. O fundamental da meditação não é sermos apenas honestos ou bons no sentido convencional, preocupados somente em manter a nossa segurança. Precisamos começar a tornar-nos compassivos e sábios no sentido básico, abertos e nos relacionarmos com o mundo como ele é.

P: O senhor não poderia discutir a diferença básica entre o amor e a compaixão e a relação existente entre ambos?

R: Amor e compaixão são termos vagos; podemos interpretá-los de várias maneiras. Adotamos geralmente em nossa vida um enfoque ganancioso, procurando ligar-nos a diferentes situações a fim de conseguir segurança. Talvez consideremos alguém como nosso bebê ou, por outro lado, talvez nos consideremos criancinhas indefesas e saltemos para o colo de alguém. Esse colo pode pertencer a uma pessoa, a uma organização, a uma comunidade, a um mestre, a qual quer figura paternal. As chamadas relações de “amor” costumam seguir um desses dois modelos: ou somos alimentados por alguém ou alimentamos alguém. Estas são formas falsas e distorcidas de amor ou compaixão. O impulso de comprometer-nos — que gostaríamos de “pertencer”, de ser filhos de alguém, ou gostaríamos de que os outros fossem nossos filhos — é aparentemente poderoso. Uma pessoa, uma organização, uma instituição ou qualquer outra coisa poderia tornar-se nosso bebê; nós o alimentaríamos, amamentaríamos, estimularíamos o seu crescimento. Ou a organização é a grande mãe que nos alimenta continuamente. Sem a nossa “mãe” não podemos existir, não podemos sobreviver. Esses dois padrões se aplicam a toda energia de vida capaz de sustentar-nos. Essa energia pode ser tão simples quanto uma amizade casual ou uma atividade emocionante que gostaríamos de empreender, ou tão complicada quanto um casamento ou a escolha de uma carreira. Nós gostaríamos de controlar a emoção ou de fazer parte dela.

Entretanto, há outra espécie de amor e compaixão, um terceiro modo. Sejamos apenas o que somos. Não nos reduzamos ao nível de uma criança nem exijamos que outra pessoa nos salte ao colo. Sejamos simplesmente o que somos no mundo, na vida. Se pudermos ser o que somos, as situações externas serão o que são, automaticamente. Poderemos, então, comunicar-nos objetiva e precisamente, não nos entregando a nenhuma espécie de tolice, a nenhuma espécie de interpretação emocional, filosófica ou psicológica. Esse terceiro modo é um modo equilibrado de abertura e comunicação que propicia, automaticamente, um espaço enorme, um lugar para o desenvolvimento criativo, espaço em que poderemos dançar e permutar.

Compaixão significa não jogarmos o jogo da hipocrisia ou da auto-ilusão. Se, por exemplo, quisermos alguma coisa de alguém e lhe dissermos: “eu te amo”, muitas vezes estaremos esperando ser capazes de atraí-lo a vir para o nosso território, a passar para o nosso lado. Essa espécie de amor proselitista é extremamente limitada. “Você devia me amar, mesmo que me odeie, porque estou cheio de amor, bêbedo de amor, completamente embriagado!” Que significa isso? Simplesmente que a outra pessoa deve entrar em nosso território porque dizemos amá-la e prometemos não lhe fazer mal. É muito suspeito. Nenhuma pessoa inteligente se deixará seduzir por esse artifício. “Se realmente me ama como sou, por que quer que eu entre no seu território? Por que essa questão de território e essas exigências? O que você quer de mim? Como saberei se, ao entrar no seu território amoroso, você não irá me dominar, que não criará uma situação claustrofóbica com pesadas exigências de amor?” Enquanto houver território envolvido com o amor de uma pessoa, os outros desconfiarão da atitude “amorosa” e “compassiva”. Se nos oferecerem um banquete, como nos certificaremos de que a comida não foi envenenada? Essa abertura vem de uma pessoa centralizada em si mesma, ou significa total abertura?

A característica fundamental da verdadeira compaixão é a abertura pura e destemida, sem limitações territoriais. Não há necessidade de sermos amorosos e bondosos com nossos vizinhos, não há necessidade de falarmos agradavelmente com as pessoas e dirigir-lhes um bonito sorriso. Esse joguinho não se aplica aqui. Na verdade, é constrangedor. A verdadeira abertura existe em escala muito maior, em escala revolucionariamente ampla e aberta, em escala universal. A compaixão significa, para nós, sermos tão adultos quanto somos, se bem que ainda conservando uma característica infantil. Nos ensinamentos budistas o símbolo da compaixão, como eu já disse, é uma lua que brilha no céu enquanto sua imagem se reflete numa centena de tigelas de água. A Lua não exige: “Se abrir-se para mim, eu lhe farei um favor e brilharei sobre você.” Limita-se a brilhar. O ponto está em não querer beneficiar ninguém, nem fazer ninguém feliz. Não há nenhum público envolvido, não há “eu”, nem “eles”. Trata-se de um presente aberto, completa generosidade sem as noções relativas de dar e receber. Essa é a abertura básica da compaixão: abrir-se sem exigências. Simplesmente ser o que somos, sermos senhores da situação. Se quisermos apenas “ser”, a vida fluirá à nossa volta e através de nós. Isso nos levará a trabalhar e a nos comunicar com alguém, o que, naturalmente, exige enorme cordialidade e abertura. Se nos permitirmos ser o que somos, não precisaremos da “apólice de seguro” de tentarmos ser uma pessoa boa, piedosa e compassiva.

P: Essa compaixão implacável parece cruel.

R: O enfoque convencional do amor parece o de um pai extremamente ingênuo, que gostaria de ajudar os filhos a satisfazer todos os seus desejos. Ele pode dar-lhes tudo: dinheiro, bebidas, armas, alimentos, qualquer coisa para fazê- los felizes. Entretanto, há de haver outra espécie de pai que, além de tentar fazer os filhos felizes, trabalhará pela saúde fundamental deles.

P: Por que uma pessoa realmente compassiva teria preocupação com dar alguma coisa?

R: Não se trata exatamente de dar, mas de abrir-se, de relacionar-se com outras pessoas. É uma questão de reconhecer a existência de outras pessoas tais como são, em lugar de relacionar-se com elas em função de uma idéia preconcebida e fixa de conforto ou desconforto.

P: Não existe um perigo considerável de auto-ilusão envolvido na idéia de compaixão implacável? Uma pessoa pode achar que está sendo implacavelmente compassiva quando, na realidade, está apenas liberando suas agressões.

R: Decididamente, sim. Foi por se tratar de uma idéia tão perigosa que esperei até agora para apresentá-la, depois de havermos discutido o materialismo espiritual e o caminho budista em geral, e estabelecido os fundamentos da compreensão intelectual. Na fase a que me refiro, para que um discípulo venha a praticar realmente a compaixão impla- cável, já deverá ter-se sujeitado a enorme quantidade de trabalho: meditação, estudo, rompimento, descobrimento da auto-ilusão e do senso de humor, etc. Depois de haver vivenciado esse processo, depois de haver levado a efeito esta longa e difícil jornada, então, a descoberta seguinte é a da compaixão e de prajna. Enquanto uma pessoa não tiver estudado e meditado muito, será extremamente perigoso praticar a compaixão implacável.

P: Talvez uma pessoa possa crescer até chegar a determinado tipo de abertura, de compaixão em relação aos outros. Nesse ponto, porém, descobre que até a compaixão é limitada, ainda é um padrão. Podemos confiar sempre em nossa abertura para ajudar a prosseguir? Há um meio de nos certificarmos de que não nos estamos enganando?

R: Isso é muito simples. Se nos enganamos no princípio, faremos automaticamente algum tipo de acordo conosco. Todos, sem dúvida, passaram por essa experiência. Se estivermos, por exemplo, falando com alguém e exagerando a nossa história, antes mesmo de abrirmos a boca diremos a nós mesmos: “Sei que estou exagerando, mas gostaria de convencer essa pessoa.” É um joguinho que fazemos durante todo o tempo. Trata-se, portanto, de chegarmos ao essencial, que consiste em sermos honestos e plenamente abertos conosco. A questão não é a abertura para com outras pessoas. Quanto mais nos abrirmos, completa e totalmente, tanto mais a abertura se irradiará para os outros. Sabemos, com efeito, quando nos estamos enganando, mas procuramos brincar de surdos-mudos com nossa própria auto-ilusão.

Tantra

Depois de haver rompido com a espada de prajna, através dos conceitos fixos, o Bodhisattva chega à compreensão de que “forma é forma, o vazio é o vazio”. Nesse ponto ele é capaz de manejar situações com grande clareza e habilidade. À proporção que prosseguir em sua jornada pelo Caminho do Bodhisattva, prajna e compaixão se aprofundarão e ele experimentará maior consciência da inteligência e do espaço e maior consciência da paz. Nesse sentido, a paz é indestrutível, tremendamente poderosa. Não podemos ser verdadeiramente pacíficos sem ter a qualidade invencível da paz dentro de nós; uma tranqüilidade frágil ou temporária sempre poderá ser perturbada. Se tentarmos ser bondosos e pacíficos de um modo ingênuo, o confrontar-nos com uma situação diferente ou inesperada pode interferir em nossa consciência da paz, porque essa paz não tem força em si mesma, não tem qualidade. Portanto, a paz precisa ser estável, profundamente arraigada e sólida. Ela deve ter a qualidade da terra. Se tivermos poder no sentido do ego, tenderemos a exercê-lo e usá-lo como um instrumento para solapar os outros. Como bodhisattvas, porém, não empregamos o poder para prejudicar as pessoas; simplesmente permanecemos em paz.

Chegamos, finalmente, à décima e derradeira fase do Caminho do Bodhisattva: a morte de shunyata e o nascimento na “luminosidade”. Shunyata, como uma experiência, desaparece, expondo a qualidade luminosa da forma. Prajna transmuta-se em jnana ou “sabedoria”. Mas a sabedoria ainda é experimentada como uma descoberta externa. O poderoso choque do samadhi semelhante ao vajra é necessário para levar o bodhisattva ao estado de ser sabedoria mais do que ao de conhecer sabedoria. Este é o momento de bodhi ou “despertar”, o ingresso no Tantra. No estado desperto, as características das energias luminosas e coloridas tornam-se ainda mais vividas.

Se virmos uma flor vermelha, não a veremos apenas na ausência da complexidade do ego, na ausência de nomes e formas preconcebidas, mas, também, veremos o brilho dessa flor. Se for removido de repente o véu da confusão entre nós e a flor, o ar se tornará automaticamente claro e a visão será muito precisa e vívida.

Enquanto o ensinamento básico do Budismo Mahayana refere-se ao desenvolvimento de prajna, o conhecimento transcendental, os ensinamentos básicos do Tantra estão ligados ao trabalho com a energia. A energia é descrita no Kriyayoga Tantra de Vajramala como “aquilo que habita no coração de todos os seres, a simplicidade que existe por si mesma, o que sustem a sabedoria. Essa essência indestrutível é a energia da grande alegria; é onipenetrante, como o espaço. Este é o corpo dhármico da não-fixação”. De acordo com esse Tantra, “Esta energia é o sustentáculo da inteligência primordial que percebe o mundo fenomenal; é a energia que impulsiona tanto os estados iluminados como os estados confusos da mente. É indestrutível no sentido de estar constantemente em marcha. Ê a força motriz da emoção e do pensamento no estado confuso, e da compaixão e sabedoria no estado iluminado”.

Para poder trabalhar com essa energia, o iogue precisa começar com o processo de entrega e depois trabalhar sobre o princípio de shunyata de ver além da conceituação. Precisa ultrapassar a confusão, vendo que “forma é forma e vazio é vazio”, até finalmente romper a absorção na experiência de shunyata e começar a ver a luminosidade da forma, o aspecto vivido, preciso e colorido das coisas. Nesse ponto, o que quer que seja experimentado na vida diária por meio da percepção sensorial é uma experiência nua, porque é direta. Não há véu algum entre ele e “aquilo”. Se o iogue trabalhar com a energia sem ter passado pela experiência de shunyata, isso poderá ser perigoso e destrutivo. A prática, por exemplo, de alguns exercícios físicos de ioga, que nos estimulam a energia, poderá despertar as energias da paixão, do ódio, do orgulho e de outras emoções, a ponto de já não sabermos como expressá-las. As escrituras descrevem um iogue que está completamente embriagado com sua energia como um elefante bêbedo que corre, desenfreado, sem saber aonde vai.

A atitude transcendental de que forma é forma tem uma tendência de “olhar além”, a qual é ultrapassada pelo ensinamento tântrico. Quando falamos de transcendência na tradição Mahayana, referimo-nos à superação do ego. Na tradição tântrica não se fala absolutamente em ir além do ego: essa é uma atitude demasiado dualista. O Tantra é muito mais preciso do que isso; não se trata de “chegar lá” ou de “estar lá”; a tradição tântrica fala em estar aqui. Fala em transmutação e usa muito a analogia da prática alquímica. A existência do chumbo, por exemplo, não é rejeitada, mas este é transmutado em ouro. Não precisamos mudar-lhe a qualidade metálica; precisamos simplesmente transmutá-lo.

Tantra é sinônimo de dharma, o caminho. A função da prática tântrica é transmutar o ego, permitindo à inteligência primordial brilhar através dela. A palavra tantra significa “continuidade”. É como o fio que liga contas umas às outras. O fio é o caminho. As contas são a base operacional da prática tântrica: isto é, os Cinco Skandhas ou cinco constituintes do ego, bem como a potencialidade primordial do Buda dentro de nós, a inteligência primordial.

A sabedoria tântrica traz o nirvana ao samsara. Isso pode parecer um pouco chocante. Antes de alcançar o nível de Tantra, tentamos abandonar o samsara e nos esforçamos para alcançar o nirvana. Mas, por fim, temos de compreender a futilidade de esforçar-nos e, então, tornar-nos completamente “um” com o nirvana. A fim de captar realmente a energia do nirvana e nos tomarmos um com ele, precisamos de uma parceria com o mundo comum. Por conseguinte, a expressão “sabedoria comum”, thamal-gyi-shepa, é muito usada na tradição tântrica. É a versão inteiramente corriqueira de “forma é forma, vazio é vazio”; é o que é. Não podemos rejeitar a existência física do mundo como sendo algo mau e associado ao samsara. Só podemos compreender a essência do nirvana olhando para a essência do samsara. Desse modo, o caminho envolve algo mais do que ir simplesmente além da dualidade, algo mais do que a mera compreensão não-dualista. Somos capazes de ver a “não-dualisticidade”, por assim dizer, o estado de ser característico da não- dualidade. Vemos, além do aspecto de negação de shunyata, a negação da dualidade. Por esse motivo, o termo shunyata não é muito usado em Tantra. Na tradição tântrica usa-se mais tathata, “o que é”, do que shunyata ou “vazio”. A palavra ösel (tibetana) ou prabhasvara (sânscrito), que significa “luminosidade”, é também muito mais usada que shunyata. Encontramos essa referência à tradição tântrica, na última volta da Roda do Dharma, pelo Buda: em vez de dizer “A forma é vazia, o vazio é forma” etc., ele diz que a forma é luminosa. A luminosidade ou prabhasvara está ligada a mahasukha, a “grande alegria” ou “bem-aventurança”, a plena compreensão de que “o vazio é o vazio”. Não é vazio simplesmente porque a forma também é forma.

A qualidade dinâmica da energia não está suficientemente expressa na doutrina de shunyata porque a descoberta total de shunyata extrai seu significado relativamente à mente samsárica. Shunyata oferece uma alternativa para o samsara e, desse modo, o seu ensinamento se dirige à mentalidade samsárica. Ainda que esse ensinamento vá além de dizer que “a forma é vazia e o vazio é forma”, dizer que “o vazio não é mais do que a forma” e que “a forma não é mais do que o vazio”, não vai tão longe quanto dizer que a forma tem essa energia e o vazio tem essa energia. No Vajrayana ou ensinamento tântrico, o princípio da energia representa um papel muito importante.

O ensinamento precisa ligar-se às vidas cotidianas dos seus praticantes. Enfrentamos os pensamentos, as emoções e as energias de nossas relações com outras pessoas e com o mundo. Como relacionaremos nossa compreensão de shunyata aos acontecimentos cotidianos a não ser que reconheçamos o aspecto de energia da vida? Se não pudermos dançar com as energias da vida, não seremos capazes de usar nossa experiência de shunyata para unir o samsara ao nirvana. O Tantra nos ensina a não suprimirmos nem destruirmos a energia, mas a transmutá-la; em outras palavras, a acompanharmos o padrão de energia. Quando descobrimos nosso equilíbrio acompanhando a energia, começamos a familiarizar-nos com ela. Começamos a descobrir o caminho certo com a direção certa. Isso não significa que uma pessoa precise tornar-se um elefante bêbedo, um iogue doido, no sentido pejorativo.

Um perfeito exemplo de acompanhar a energia da qualidade positiva do iogue doido foi a transmissão real da iluminação de Tilopa para Naropa. Tilopa descalçou a sandália e, com ela, golpeou o rosto de Naropa. Usou a situação do momento, a energia da curiosidade e da busca de Naropa, transmutando-a no estado desperto. Naropa possuía enorme energia e inteligência, mas sua energia não estava relacionada com a compreensão de Tilopa, com a abertura de sua mente, que era outra espécie de energia. A fim de penetrar essa barreira, era necessário em tranco súbito, um choque genuíno. Como um edifício torto que se acha na iminência de cair mas é, súbita e acidentalmente, endireitado por um

terremoto. Usam-se circunstâncias naturais para restaurar o estado original de abertura. Quando acompanhamos o padrão de energia, a experiência torna-se muito criativa. A energia da sabedoria e da compaixão opera continuamente de modo preciso e exato.

À proporção que se torna mais sensível aos padrões e qualidades da energia, o iogue vê com maior clareza o significado ou simbolismo das experiências da vida. A primeira metade da prática tântrica, o Tantra Inferior, chama-se Mahamudra, que quer dizer “Grande Símbolo”. Símbolo, nesse sentido, não é um “sinal” que representa algum princípio filosófico ou religioso; é a demonstração das qualidades vivas do que é. Por exemplo, na percepção direta de uma flor, na percepção do discernimento nu, despido e desmascarado, a cor da flor transmite uma mensagem acima e além da simples percepção da cor. Há grande significação nessa cor, comunicada de maneira poderosa, quase avassaladora. A mente conceptual não está envolvida na percepção e, portanto, podemos ver com grande precisão, como se um véu tivesse sido afastado da frente dos nossos olhos.

Se segurarmos uma pedra nas mãos com a clareza de percepção que é o contato direto do discernimento nu, não apenas lhe sentiremos a solidez, mas também começaremos a perceber-lhe as implicações espirituais; nós a experimentamos como expressão absoluta da solidez e majestade da terra. Com efeito, no que diz respeito ao reco- nhecimento da solidez fundamental, poderíamos estar segurando o Monte Everest em nossas mãos. Aquela pedrazinha representa todos os aspectos da solidez. Não digo isso apenas no sentido físico; mas falo da solidez no sentido espiritual, a solidez da paz e da energia, da energia indestrutível. O iogue sente a solidez e a paciência da terra — quer se plante nela alguma coisa, quer nela se enterre alguma coisa, ela nunca reage. Na pedra ele tem a consciência da iluminada Sabedoria da Equanimidade bem como da qualidade samsárica do orgulho do ego, que quer construir uma alta pirâmide ou um monumento à própria existência. Toda situação que encontramos apresenta essa vivida conexão com o nosso estado de ser. É interessante notar que na iconografia tântrica vêem-se algumas figuras simbólicas segu- rando uma montanha numa das mãos, o que reproduz exatamente o que estivemos discutindo: a sólida paz, a sólida compaixão, a sólida sabedoria que não pode ser influenciada pela frivolidade do ego.

Toda textura que percebemos tem, automaticamente, alguma implicação espiritual, e começamos a compreender a tremenda energia contida nesse descobrimento e nessa compreensão. O meditador desenvolve novas profundezas de discriminação através da comunicação direta com a realidade do mundo fenomenal. Ele é capaz de ver não só a ausência de complexidade, a ausência de dualidade, mas também a qualidade pétrea da pedra e a qualidade aquosa da água. Vê as coisas precisamente como são, não só no sentido físico, mas com a consciência de seu significado espiritual, Tudo o que enxerga é uma expressão de descoberta espiritual. Há uma vasta compreensão de simbolismo e uma vasta compreensão de energia. Seja qual for a situação, ele não tem mais que forçar resultados. A vida flui à sua volta. Este é o princípio básico do mandala. O mandala é geralmente representado como um círculo que gira ao redor de um centro, o que significa que tudo à nossa volta se torna parte da nossa consciência, toda a esfera expressando a vivida realidade da vida. O único meio de vivenciar as coisas verdadeiramente, plena e apropriadamente, é através da prática da meditação, criando um elo direto com a natureza, com a vida, com todas as situações. Quando falamos de ser altamente desenvolvidos no plano espiritual, isso não significa que flutuemos no ar. De fato, quanto mais subirmos, mais desceremos à Terra.

É importante lembrar que a prática da meditação começa com o traspasse do padrão de pensamente neurótico que é a fímbria do ego. Á medida que seguimos adiante, vemos através não só da complexidade dos processos de pensamento, mas também da pesada “significatividade” dos conceitos expressos nos nomes e teorias. Então, afinal, criamos algum espaço entre isto e aquilo, o que nos libera tremendamente. Criado o espaço, partimos para a prática Vajrayana de criar um elo direto com a experiência de vida. Esses três pássos são, em essência, os Três Yanas: o Hinayana, o veículo do método; o Mahayana, o veículo de shunyata ou espaço; e o Vajrayana ou Tantra, o veículo da energia direta.

Na tradição tântrica a energia é categorizada em cinco qualidades básicas ou Famílias de Buda: Vajra, Ratna, Padma, Karma e Buda. Cada Família Búdica tem uma emoção que lhe é associada e que é transmutada em uma “sabedoria” específica ou aspecto do estado de mente desperta. As Famílias Búdicas estão também associadas a cores, elementos, paisagens, direções, estações e a qualquer outro aspecto do mundo fenomenal.

Vajra é associado à cólera, a qual é transmutada em Sabedoria semelhante ao Espelho. Percebemos alguma coisa além das qualidades nebulosas, possessivas e agressivas da cólera, e este discernimento intuitivo nos habilita a transmutar automaticamente a essência da cólera em precisão e abertura mais do que mudá-la deliberadamente.

Vajra é associado também ao elemento da água. A água turva, turbulenta, simboliza a natureza defensiva e agressiva da cólera, ao passo que a água clara sugere a reflexibilidade nítida, precisa e clara da Sabedoria semelhante ao Espelho.

Vajra é a cor branca. A cólera é a experiência muito rude e direta da autodefesa; por conseguinte, é como uma folha de papel branca, muito Usa e opaca. Mas tem também o potencial da luminosidade, do fulgor do reflexo que é a Sabedoria semelhante ao Espelho.

Vajra está ligado ao Leste, à aurora, ao inverno. É uma manhã de inverno, com a clareza do cristal e sincelos agudos e cintilantes. A paisagem não é vazia e desolada, mas cheia de toda a sorte de agudezas, que estimulam o pensamento. Há nela muitas coisas intrigantes para o observador. O solo, as árvores, as plantas, por exemplo, todas têm seu próprio modo de congelar-se. Árvores diferentes têm maneiras diferentes de sustentar a neve e maneiras diferentes de relacionar-se com a temperatura.

Vajra lida com objetos em função das suas texturas e relações recíprocas. Tudo é analisado em seus próprios termos. A inteligência de Vajra nunca deixa áreas inexploradas nem cantos escondidos. É como a água que flui sobre uma superfície plana, cobrindo completamente a superfície mas continuando transparente.

Ratna é associado ao orgulho e à terra — solidez, montanhas, colinas, pirâmides, edifícios. “Estou completamente seguro. Sou o que sou”. É um modo muito orgulhoso de olharmos para nós mesmos. Isso quer dizer que temos medo de afrouxar, que estamos continuamente erguendo defesas, construindo uma fortaleza. Ratna é, igualmente, a Sabedoria da Equanimidade, onipenetrante. Quer construamos edifícios de terra, quer deixemos simplesmente a terra como está, é a mesma coisa. A terra permanece como é. De modo algum nos sentimos derrotados ou ameaçados. Se formos orgulhosos, vamos sentir-nos constantemente desafiados pela possibilidade de falha e derrota. Na mente iluminada a ansiedade por nos mantermos transmuta-se em equanimidade. Há ainda consciência da solidez e da estabilidade da terra, mas já não há medo de perdê-la. Tudo é aberto, seguro e digno; não há o que temer.

Ratna relaciona-se com o Sul e o outono, a fertilidade, a riqueza no sentido de generosidade contínua. Quando está maduro, o fruto cai ao chão automaticamente, pedindo para ser comido. Ratna possui essa característica de doação. Suculenta e aberta com a qualidade da entremanhã. É amarela, e está ligada aos raios do Sol. Onde Vajra se associa ao cristal, Ratna é ouro, âmbar, açafrão. Tem mais sentido de profundidade, de qualidade terrena, do que textura, ao passo que Vajra é puramente textura, é mais uma qualidade quebradiça do que uma profundidade fundamental. Ratna é muito madura e terrena, como árvore gigantesca que cai ao chão e começa a apodrecer, cobrindo-se inteiramente de cogumelos, enriquecida pelas ervas daninhas que crescem em seu redor. É um tronco em que os animais podem nidificar. Sua cor começa a amarelar e sua casca a desprender-se, revelando um interior muito rico e muito sólido. Se nos sentíssemos tentados a remover esse tronco, a fim de usá-lo como parte de um arranjo de jardim, verificaríamos que isso é impossível, pois ele se esfacelaria e cairia aos pedaços. E, de qualquer modo, seria pesado demais para se carregar.

Padma está ligada à paixão, a uma qualidade gananciosa, ao desejo de possuir. Nos fundamentos da paixão há o instinto para a união, o desejo de ser inteiramente “um” com alguma coisa. Mas a paixão tem uma qualidade histérica, uma qualidade neurótica, que ignora a verdadeira condição de estar unido e prefere possuir a fim de tornar-se unido. A paixão derrota automaticamente o seu próprio objetivo. No caso da Consciência Discriminativa, que é o aspecto sábio da paixão, vê-se com precisão e agudeza a qualidade “disto” e “daquilo”. Em outras palavras, ocorre a comunicação. Mas, se buscarmos comunicar-nos com alguém, precisamos respeitar a existência da outra pessoa bem como o nosso processo de comunicação. A Sabedoria da Percepção Discriminativa reconhece o fato da união muito diferente do separar-se dualisticamente “aquilo” de “isto”, com a finalidade de autopreservação. A qualidade consumptiva do fogo e do desejo ardentes é transmutada na sabedoria da união através da comunicação. Podemos estar inteiramente envolvidos com a ganância num sentido espiritual ou material. Podemos querer algo mais do que podemos ter. Podemos ficar tão fascinados pelas qualidades exóticas do objeto de nosso desejo que ficamos cegos para o mundo que nos rodeia. Estamos totalmente envoltos em desejo, o que produz uma espécie automática de estupidez e ignorância. Essa ignorância do desejo é transcendida na Sabedoria da Percepção Discriminativa.

Padma liga-se ao Oeste e à cor vermelha. O vermelho é muito provocativo, destaca-se de qualquer outra cor e arrasta-nos para si. Está também ligado ao elemento do fogo. No estado confuso, o fogo não discrimina entre as coisas que agarra, queima e destrói. No estado desperto, o ardor da paixão é transmutado no calor da compaixão.

Padma relaciona-se com o início da primavera. A aspereza do inverno está prestes a atenuar-se com a promessa do verão. O gelo começa a se derreter, encharcam-se os flocos de neve. Padma está muito ligado à fachada; não dá sensação de solidez nem de textura; é relacionado tão-somente às cores, às qualidades fascinantes, ao pôr-do-sol. A qualidade visual da superfície é mais importante do que o seu ser. Assim, Padma está mais ligado à arte do que à ciência ou às coisas práticas.

Padma é uma localização razoável, um lugar onde crescem flores silvestres, um lugar perfeito para haver animais ali perambulando, como um planalto de terras altas. É um local de prados, com rochas esparsas e arredondadas, entre as quais filhotes de animais podem brincar.

Karma é associado à emoção da inveja, do ciúme e ao elemento do vento. As palavras “inveja” e “ciúme”, entretanto, não são suficientemente poderosas e precisas para descrever a qualidade de Karma. Uma boa expressão talvez seja “paranóia absoluta”. Sentimos que não iremos atingir nenhuma das nossas metas. Irritam-nos as realizações

dos outros. Sentimos que ficamos para trás e não suportamos ver que nos ultrapassam. Esse medo, essa falta de confiança em nós mesmos, está ligado ao elemento do vento. O vento nunca sopra em todas as direções, mas numa direção de cada vez. Essa é a visão unidirecional da paranóia ou da inveja.

Karma está ligado à Sabedoria da Ação Oni-realizante. A qualidade da paranóia desaparece mas subsistem as qualidades da energia, entusiasmo para a ação e abertura. Em outras palavras, o aspecto ativo do vento é retido de modo que a nossa atividade toque tudo em seu caminho. A nossa ação é apropriada porque não envolve mais o pânico nem a paranóia autopunitivos. Vê as possibilidades inerentes às situações e, automaticamente, segue o curso adequado. Cumpre o objetivo.

Karma sugere verão do Norte. É a sua eficiência que o liga a essa estação, pois é um verão em que todas as coisas são ativas, crescem, executam suas funções. Milhões de ações interligadas ocorrem: crescem as coisas vivas, plantas, insetos, animais. Há temporais com raios e trovões e há tempestades de granizo. Há o senso de que nunca pudemos desfrutar o verão, porque alguma coisa está sempre em movimento a fim de manter-se. É mais ou menos como o final da primavera; é, porém, mais fértil, porque se percebe que todas as coisas se realizam no momento certo. A cor de Karma é o verde dos vegetais e das relvas, da energia crescente. Enquanto o Karma do verão ainda está competindo, tentando gerar, o Ratna do outono tem uma confiança tremenda, pois tudo já foi realizado. O temperamento de Karma é como o do depois do pôr-do-sol, do crepúsculo, do fim do dia e do princípio da noite.

Buda está associado ao torpor e tem uma característica onipenetrante porque contém e acompanha todo o resto das emoções. O fator ativo nesse embotamento é a ação de ignorar. O ignorar não quer ver. Apenas ignora e superlota-se. Estamos completamente relaxados, completamente descuidados. Preferimos conservar o nosso estupor a buscar ou lutar por alguma coisa, e uma qualidade de preguiça, de estupidez é levada a todas as outras emoções.

A sabedoria ligada a Buda é a do Espaço Oniabrangente. A qualidade do embotamento, que tudo impregna, mantém-se como a base, mas o tremeluzir da dúvida e da preguiça nesse embotamento é transformado em sabedoria. Essa sabedoria contém tremenda energia e inteligência, a qual permeia todos os outros elementos, cores e emoções que ativam o resto das Cinco Sabedorias.

Buda é a base ou “solo básico”. É o meio ou o oxigênio que faculta o funcionamento dos outros princípios. Possui uma qualidade calma, sólida. Ratna é muito sólido e terreno também, mas é menos terreno do que Buda, que é tediosamente terreno, desinteressantemente terreno. Buda é um tanto deserto, espaçoso demais, um local de acampamento onde só ficaram as pedras das fogueiras. O lugar dá a impressão de ter sido habitado por muito tempo mas, onde, agora, não há ninguém. Os habitantes não foram mortos nem obrigados a mudar pela violência; simplesmente saíram de lá. O ambiente é como o das cavernas em que costumavam viver os índios americanos. Elas dão a impressão do passado mas, ao mesmo tempo, não têm características fora do comum. O tom é muito monótono, possivelmente, nas planícies, muito igual. Buda está ligado à cor azul, a fresca e espaçosa qualidade do céu.

P: Como se ajustam as imagens de budas, yidams, deuses coléricos e outros símbolos, ao caminho espiritual tibetano?

R: Há grande quantidade de opiniões errôneas em relação à iconografia tibetana. Talvez devêssemos examinar rapidamente a estrutura da iconografia e do simbolismo no Tantra. Há o que se chama “a iconografia do guru”, ligada ao padrão do caminho, ao fato de que, antes de começarmos a receber qualquer ensinamento, temos de entregar-nos voluntariamente, temos de abrir-nos. A fim de nos entregarmos, precisamos de algum modo identificar-nos completamente com a plenitude e a riqueza da vida. Neste ponto, a entrega não consiste em esvaziar-nos no sentido do vazio de shunyata, que é uma experiência mais avançada. Mas nas primeiras fases do caminho a entrega significa transformar-nos em vaso vazio. Significa também identificação com a plenitude, com a riqueza do ensinamento. Assim, simbolicamente, os gurus da linhagem envergam mantos muito ornamentados, chapéus e cetros, e seguram nas mãos outros adornos.

Outro ponto é a iconografia dos yidams, ligada à prática tântrica. Os yidams são os aspectos diferentes dos cinco princípios búdicos da energia, retratados como masculinos, herukas, ou femininos, dakinis, e podem ser coléricos ou pacíficos. O aspecto colérico está associado à transmutação pela força, saltando para sabedoria e transmutação sem alternativa. Ê o ato de romper, associado à louca sabedoria. Os yidams pacíficos estão associados à transmutação por “processo”, isto é, a confusão é pacificada e gradativamente se desgasta.

Os yidams trajam as roupas dos rakshasas, os quais, na mitologia indiana, são vampiros ligados a Rudra, Rei dos Maras, os maus. O simbolismo, neste caso, é que quando a ignorância, representada por Rudra, cria o seu império, surge a sabedoria, que destrói o império e fica com as roupas do imperador e da sua corte. Os trajes dos yidams simbolizam o fato deles haverem transmutado o ego em sabedoria. As coroas de cinco crânios que usam representam as cinco emoções, transformadas nas Cinco Sabedorias. Essas emoções, em vez de serem jogadas fora, são usadas como ornamentos. Além disso, três cabeças enfeitam o tridente ou trishula que os yidams carregam: uma cabeça recém-

cortada, uma cabeça mumificada e seca e uma caveira. A cabeça recém-cortada representa a paixão ardente. A cabeça seca representa a cólera fria e a rijeza, como a da carne dura. A cabeça esquelética representa a estupidez. O trishula é um ornamento que simboliza a transcendência desses três impulsos. Além disso, o tridente tem três pontos que representam os três princípios básicos do ser: shunyata, energia e a qualidade da manifestação, são os três “corpos” do Buda, os Três Kayas: Dharmakaya, Sambhogakaya e Nirmanakaya. Todos os ornamentos usados pelos yidams — os ornamentos de osso, as cobras e outros — estão relacionados a diferentes aspectos do caminho. Eles usam, por exemplo, uma grinalda de cinqüenta e um crânios, que representa a superação dos cinqüenta e um tipos de padrões de pensamento discutidos na doutrina hinayana do Abhidharma.

Na prática tântrica nós nos identificamos com um yidam de determinada Família Búdica correspondente à nossa natureza. Assim, se um yidam, por exemplo, estiver ligado à família de Ratna, será amarelo e terá o simbolismo característico de Ratna. Os tipos de mandalas que nos são dados pelo nosso mestre dependem da família a que pertencemos, seja à família da paixão ou à família do orgulho, quer tenhamos em nós a qualidade do ar ou da água. Geralmente, podemos sentir que certas pessoas possuem a qualidade da terra e da solidez, que outras têm a qualidade do ar, correndo para cá e para lá, e que outras ainda têm a qualidade do calor e uma presença ligada ao fogo. Os mandalas nos são dados para podermos identificar-nos com nossas emoções particulares, que têm a possibilidade de transmutar-se em sabedoria. Às vezes, praticamos a visualização dos yidams. Quando principiamos a trabalhar com eles, todavia, não os visualizamos de pronto. Começamos com uma consciência de shunyata e, a seguir, desenvolvemos a sensação da presença daquela imagem ou forma. Depois, recitamos um mantra que tem uma ligação com essa sensação. A fim de enfraquecer a força do ego, precisamos estabelecer um elo entre a presença imaginária e o observador de si mesmo, o ego. O mantra é o elo. Após a prática do mantra, dissolvemos a imagem ou a forma em certa cor de luz apropriada ao yidam específico. Finalmente, terminamos a visualização com nova conscientização de shunyata. A idéia toda é que esses yidams não devem ser encarados como deuses externos que nos salvarão, porém, como expressões da nossa verdadeira natureza. Nós nos identificamos com os atributos e as cores de determinados yidams e ouvimos o som que vem do mantra, somente então começamos a compreender que a nossa verdadeira natureza é invencível. Nós nos identificamos completamente com o yidam.

Em Maha Ati, o tantra mais elevado, o sentido de identificação se desvanece e nos unimos com a nossa própria natureza. Só permanecem as energias e as cores. Anteriormente víamos, através das formas, imagens e sons, sua qualidade vazia. Agora, vemos as formas, imagens e sons em sua verdadeira qualidade. É a idéia da volta ao samsara que se expressa na tradição zen pelas imagens do pastoreio de bois: não temos nenhum homem e nenhum boi e, no fim, voltamos ao mundo.

Em terceiro lugar, há a iconografia das “divindades protetoras”. Na prática da nossa identificação com determinado yidam, temos de desenvolver uma consciência que nos ativa de volta à nossa verdadeira natureza, partindo da nossa natureza confusa Precisamos de choques súbitos, lembretes constantes, uma qualidade desperta. Essa percepção é representada pelas divindades protetoras que se mostram em forma irada. Uma sacudidela repentina que nos aviva a memória É uma consciência colérica porque envolve o salto. Este salto necessita de certa espécie de energia para romper através da confusão. Precisamos realmente tomar a iniciativa de saltar, sem nenhuma hesitação, dos limites da confusão para a abertura. Precisamos efetivamente destruir a hesitação. Precisamos destruir todos os obstáculos que encontramos no caminho. Por isso, a divindade se denomina protetora. “Proteção” não significa garantir a nossa segurança, mas significa um ponto de referência, uma diretriz que nos aviva a memória, que nos mantém no lugar, no aberto. Existe, por exemplo, uma divindade protetora chamada Mahakala de seis braços, que é de cor preta, e se situa sobre Ganesha, o deus com cabeça de elefante, que aqui simboliza os pensamentos subconscientes. A tagarelice subconsciente é um aspecto da preguiça que nos desvia, automaticamente, de ser conscientes e nos convida a voltar ao fascínio dos pensamentos e emoções. Atua especialmente sobre a natureza vistoriadora dos nossos pensamentos — intelectuais, corriqueiros, emocionais, sejam eles quais forem. O Mahakala leva-nos de volta à abertura. A intenção do simbolismo é mostrar que o Mahakala sobrepuja a tagarelice subconsciente colocando sobre ela. O Mahakala representa o salto na consciência penetrante.

De modo geral, toda a iconografia tântrica budista está incluída nas três categorias seguintes: o guru, os yidams e as divindades protetoras. A iconografia do guru expressa a riqueza da linhagem. Os yidams nos permitem a identificação com nossa natureza específica. A seguir há as divindades protetoras que agem como lembretes nossos. Os yidams e as divindades protetoras são mostrados geralmente em várias intensidades de cólera, dependendo da intensidade de consciência necessária para vermos nossa verdadeira natureza.

Os yidams coléricos são sempre associados ao que se conhece em termos tântricos como a cólera vajra, a cólera que tem a qualidade tathata; em outras palavras, a cólera sem ódio, energia dinâmica. Essa energia, seja qual for a Sabedoria a que pertence, é invencível. É completamente indestrutível, imperturbável, porque não é criada, mas descoberta como qualidade original. Não está, portanto, sujeita ao nascimento nem à morte. É sempre retratada como energia colérica, furiosa e belicosa.

P: Como se verifica a transmutação?

R: A transmutação ocorre com a compreensão de shunyata e, em seguida, com o súbito descobrimento da energia. Compreendemos que já não nos é preciso abandonar coisa alguma. Começamos a enxergar as qualidades subjacentes da sabedoria em nossa situação de vida, o que quer dizer que ocorre uma espécie de salto. Se estivermos fortemente envolvidos numa emoção como a cólera, se tivermos um súbito vislumbre da abertura, que é shunyata, começamos a ver que não precisamos suprimir nossa energia. Não precisamos manter-nos calmos e suprimir a energia da cólera, mas podemos transformar a nossa agressividade em energia dinâmica. É uma questão de quanto abertos estamos, de quanto realmente estamos dispostos a fazê-lo. Se houver menos fascínio e satisfação com a explosão e liberação da nossa energia, haverá, então, maior probabilidade de transmutá-la. Entretanto, se nos deixarmos envolver pelo fascínio e satisfação da energia, seremos incapazes de transmutá-la. Não nos será preciso mudar completamente, mas podemos usar parte da nossa energia num estado desperto.

P: Qual é a diferença entre jnana e prajna?

R: Não podemos considerar a sabedoria como experiência externa. Essa é a diferença entre sabedoria e conhecimento, jnana e prajna. Prajna é conhecimento em função da relatividade, jnana é sabedoria além de qualquer espécie de relatividade. Somos inteiramente “um” com a sabedoria; não a encaramos como algo educacional nem como algo experiencial.

P: Como transmutamos a emoção? Como lidamos com ela?

R: Bem, esta é uma pergunta muito mais pessoal do que intelectual. Na realidade, não experimentamos nossas emoções, embora julguemos havê-las experimentado. Só experimentamos emoções em função de mim e da minha cólera, de mim e do meu desejo. Esse “mim” é uma espécie de estrutura governante central. As emoções desempenham o papel de mensageiros, burocratas e soldados. Em vez de experimentarmos emoções como se fossem separadas de nós, como se fossem nossos empregados indisciplinados, por assim dizer, precisamos realmente sentir a textura e a qualidade viva das emoções. Expressar ou representar o ódio ou o desejo no plano físico é outra maneira de tentarmos escapar das nossas emoções, exatamente como fazemos quando tentamos reprimi-las. Se sentirmos, de fato, a qualidade viva, a textura das emoções como elas são em seu estado despido, então a experiência também conterá a verdade final. E, automaticamente, principia-se a ver os aspectos ao mesmo tempo irônicos e profundos das emoções, como elas são. Nesse ponto, o processo de transmutação, isto é, a transmutação das emoções em sabedoria, ocorre automaticamente. Mas, como eu já disse, essa é uma questão pessoal; temos de levá-la a cabo. Enquanto não o fizermos realmente, não haverá palavras capazes de descrevê-la. Temos de ser suficientemente corajosos para enfrentar nossas emoções, trabalhar com elas num sentido real, sentir-lhes a textura, a verdadeira qualidade das emoções tais como são. Poderíamos descobrir que a emoção, na realidade, não existe como parece, mas encerra muita sabedoria e espaço aberto. O problema é que nunca experimentamos as emoções adequadamente. Pensamos que o lutar e o matar expressam a cólera, mas este é outro tipo de escape, mais um modo de desabafar do que de experimentar realmente a emoção como ela é. A natureza fundamental das emoções não foi sentida adequadamente.

P: Quando as emoções se transmutam, isso quer dizer que desaparecem?

R: Não necessariamente, mas elas se transmutam em outras formas de energia. Se estivermos tentando ser bons ou tranqüilos, tentando suprimir ou subjugar nossas emoções, isto é a deformação básica do ego em operação. Estamos sendo agressivos contra as nossas emoções, procurando alcançar a paz ou a bondade à força. Quando deixamos de ser agressivos contra as emoções, quando deixamos de tentar mudá-las, quando as experimentamos adequadamente, então, pode ocorrer a transmutação. A qualidade irritante das emoções transmuta-se quando as experimentamos como são. A transmutação não significa que a qualidade energética das emoções seja eliminada; na verdade, é transformada em sabedoria, a qual é muito necessária.

P: E o tantra sexual? É esse o processo de transformar a energia sexual em outra coisa?

R: É a mesma coisa. Quando a qualidade gananciosa da paixão ou desejo se converte em comunicação aberta, numa dança, o relacionamento entre duas pessoas começa a se desenvolver mais criativamente do que a ser estagnado ou irritante para elas.

P: O princípio da transmutação aplica-se à energia sátvica, rajásica e tamásica, como é descrita na tradição hindu? Não queremos pegar a energia tamásica e convertê-la em energia rajásica, mas na realidade nós a tomamos e usamos.

R: Certamente, sim. De fato, isso é muito prático. Geralmente, tendemos a exagerar na preparação. Dizemos: “Depois que eu tiver ganhado muito dinheiro, irei para algum lugar a fim de estudar, meditar e fazer-me um sacerdote”, ou seja lá o que for que gostaríamos de ser. Nunca, porém, o fazemos no momento. Sempre falamos em termos de “Quando eu fizer alguma coisa, então…” Sempre planejamos demais. Queremos mais mudar nossas vidas do que usá- las, no momento presente, como parte da prática, e essa hesitação de nossa parte cria uma infinidade de contratempos na

prática espiritual. Quase todos nós alimentamos idéias fantasiosas: “Hoje sou mau, mas um dia, quando mudar, serei bom.”

P: O princípio da transmutação expressa-se em arte?

R: Sim. Como todos sabemos, pessoas diferentes, de culturas diferentes, em momentos diferentes, têm criado combinações similares de cores e padrões. A arte espontânea, expressiva, tem automaticamente uma característica universal. Esse é o motivo por que não devemos ir além de coisa alguma. Se virmos plena e diretamente, isso fala, isso traz alguma compreensão. A escolha da luz verde para indicar via livre no tráfego e da luz vermelha para parar, para indicar perigo, sugere certa universalidade no efeito da cor.

P: E que dizer da dança e do teatro?

R: É a mesma coisa. A dificuldade reside em que, se nos tornarmos demasiado conscientes de nós mesmos ao criar uma obra de arte, ela deixará de ser obra de arte. Quando grandes artistas se acham totalmente absortos no trabalho, produzem obras-primas, não porque têm consciência dos seus mestres, mas porque ficam inteiramente absortos no trabalho. Não contestam, limitam-se a executá-lo. Produzem a coisa certa acidentalmente.

P: Como é que o medo ou a paranóia que interfere na espontaneidade é transmutado em ação?

R: Não existem truques especiais envolvidos no subjugar isto ou aquilo no intento de conseguir certo estado de ser. É uma questão de saltar. Quando uma pessoa compreende realmente que se encontra em estado de paranóia, então isso pressupõe implícita e profunda compreensão subconsciente do outro lado, a sensação do outro aspecto disso em sua mente. Essa pessoa precisa, portanto, dar o salto. O modo de saltar é algo muito difícil de explicar com palavras; temos simplesmente de fazê-lo. É como sermos, de repente, empurrados de um convés para o meio do rio e descobrirmos que sabemos nadar; simplesmente nadamos atravessando o rio. Se tivéssemos, no entanto, de voltar àquele rio tentando praticar, provavelmente nem estaríamos aptos a nadar. É uma questão de espontaneidade, de usar a inteligência do momento. Não podemos explicar o salto por meio de palavras: está além das palavras. Mas é algo que seremos capazes de fazer se estivermos verdadeiramente inclinados a fazê-lo, se nos colocarmos na situação de saltar e, de certo modo, entregar-nos.

P: Se estamos amedrontados e reagimos com vigor ao medo, temos a consciência da reação, mas não queremos perder-nos nela, queremos permanecer conscientes. Como fazer isso?

R: É uma questão de reconhecer primeiro que a energia está ali, a qual é também a energia para saltar. Em outras palavras, em lugar de fugir do medo, precisamos deixar-nos envolver completamente por ele e começar a sentir a qualidade tosca e áspera da emoção.

P: Tornarmo-nos guerreiros?

R: Exatamente. No início podemos ficar satisfeitos em ver o absurdo da emoção, o que a dispersará. Mas isso ainda não é o bastante para produzir o princípio de transmutação do Vajrayana. Precisamos ver a qualidade “forma é forma” das emoções. Quando estivermos prontos para olhar para as emoções adequadamente, do ponto de vista de “forma é forma, emoção é emoção”, preconceitos anexados, depois de vermos a característica nua das emoções tais como são, então estaremos preparados para saltar. Isso não demanda muito esforço. Já estamos liberados para o salto, por assim dizer. O que não significa, naturalmente, que, se estivermos coléricos, saiamos e realizemos um assassinato.

P: Em outras palavras, devemos ver a emoção como ela é em vez de deixar-nos envolver por uma reação difusa e penetrante à situação.

R: Sim. Na verdade, não vemos a emoção de maneira apropriada, embora estejamos completamente cheios dela. Se acompanharmos nossas emoções e delas escaparmos fazendo alguma coisa, isso não é experimentá-las adequadamente. Tentamos fugir-lhes ou reprimi-las porque não suportamos ver-nos em semelhante estado. Mas o Vajrayana fala em olhar de modo adequado, diretamente para a emoção e, em senti-la, sentir-lhe a qualidade despida. Não precisamos, com efeito, transmutar. De fato, vemos a já transmutada qualidade nas emoções: “forma é forma”. É algo muito sutil e é muito perigoso largá-lo por aí.

P: Como se enquadra a vida de Milarepa no padrão de Tantra? Ele parece praticar menos a transmutação do que a renúncia.

R: De fato, em seu modo de vida, Milarepa é um exemplo clássico da tradição de renúncia dos iogues. Geralmente, porém, quando pensamos em alguém que renunciou, temos em mente alguém que está tentando escapar do “mal” da vida “mundana”. Este não é, de maneira alguma, o caso de Milarepa. Ele não estava tentando suprimir suas “más”

inclinações meditando sozinho no deserto. Tampouco se trancou num retiro. Nem procurava punir-se. O ascetismo simplesmente era uma expressão do seu caráter, assim como cada um dos nossos estilos de vida é a expressão do que somos, determinada pelas nossas psicologias e histórias vividas. Milarepa desejava ser simples e levou uma vida muito simples.

É verdade que existe, da parte das pessoas que seguem um caminho religioso, a tendência para se tornarem espiritualistas por algum tempo, e Milarepa não escapou à regra. Mas as pessoas podem fazê-lo no meio de uma cidade. Os ricos têm condições de gastar grande quantidade de dinheiro fazendo uma “excursão” religiosa. Mais cedo ou mais tarde, porém, se alguém vai entrar realmente em contato com os ensinamentos, deverá retornar ao mundo. Enquanto Milarepa meditava em seu retiro, vivendo com muita austeridade, surgiram por acaso uns caçadores e presentearam-no com um pouco de caça fresca. Ele a comeu e sua meditação imediatamente melhorou. E, mais tarde, quando hesitava em descer às cidades, alguns aldeões se apresentaram em sua caverna em busca de ensinamentos. Ele era continuamente arrancado do isolamento pelo jogo aparentemente acidental das situações de vida que, podemos dizer, é a ação do guru, a universalidade do guru, que sempre se nos apresenta naturalmente. Podemos estar sentados, meditando, em nosso apartamento de Nova Iorque, sentindo-nos “numa boa” e eufóricos, muito “espirituais”. Depois, porém, nos levantamos, caminhamos pelas ruas, alguém nos pisa no pé e precisamos lidar com esse fato, o que nos traz de volta à Terra, de volta ao mundo.

Milarepa foi intensamente envolvido pelo processo de transmutação de energias e emoções. De fato, quando lemos As cem mil canções de Milarepa, toda a primeira parte do livro trata da experiência desse processo vivida por Milarepa. No “Conto do Vale da Jóia da Pedra Vermelha”, Milarepa deixara Marpa há pouco para meditar sozinho. Essa pode ser chamada a sua “fase adolescente”, porque ele ainda estava dependente da confiança num guru pessoal. Marpa era ainda seu “papai”. Tendo-se aberto e entregue a Marpa, Milarepa ainda precisava aprender a transmutar as emoções. Ainda se achava apegado às noções de “bom” e “mau” e, portanto, o mundo ainda se lhe apresentava sob aparência de deuses e demônios.

No “Conto do Vale da Jóia da Pedra Vermelha”, quando Milarepa voltou à caverna depois de ter tido uma visão confortadora de Marpa, viu-se diante de um bando de demônios. Ele tentou todos os meios imagináveis, todas as espécies de táticas para livrar-se deles. Ameaçou-os, lisonjeou-os, chegou até a pregar-lhes o dharma. Mas eles só o deixaram quando ele cessou de considerá-los “maus”, abriu-se para eles e os viu tais e quais eram. Esse foi o princípio do período em que Milarepa aprendeu a subjugar demônios, o que é o mesmo que transmutar emoções, É com nossas emoções que criamos demônios e deuses: as coisas que não queremos na vida e no mundo são demônios; as coisas que gostaríamos de atrair para nós são deuses e deusas. O resto é apenas o cenário.

Por sua disposição de aceitar os demônios e os deuses e deusas tais como são, Milarepa transmutou-os. Eles se tornaram dakinis, ou energias da vida. Toda a primeira parte de As cem mil canções trata do domínio da transmutação alcançado por Milarepa, sua crescente capacidade de abrir-se para o mundo como ele é, até que, finalmente, venceu todos os demônios no capítulo “O Ataque da Deusa Tserinma”. Nesse capítulo, milhares de demônios se reúnem para apavorá-lo e atacá-lo, enquanto ele estava meditando, mas Milarepa se põe a ensinar, mostra-se aberto e receptivo, disposto a oferecer-lhes todo o seu ser, e eles são subjugados. À certa altura, começando a compreender que não são capazes de amedrontá-lo, cinco demônias cantam para ele:

Se o pensar em demônios Nunca surge em sua mente,
Você não precisa temer as hostes demoníacas ao seu redor. É mais importante domar sua mente dentro de si…
No escarpado caminho do medo e da esperança Emboscados eles esperam…

E, mais tarde, diz o próprio Milarepa: “Na medida em que está envolvido o absoluto, ou a verdadeira natureza do ser, não existem Budas nem demônios. Aquele que se liberta do medo e da esperança, do mal e da virtude, compreenderá a natureza insubstancial e infundada da confusão. Samsara parecerá ser, então, o próprio Mahamudra…”

O resto de As cem mil canções trata do desenvolvimento de Milarepa como mestre e suas relações com os discípulos. No fim da vida, ele aperfeiçoara de maneira tão completa o processo de transmutação que poderia ser denominado o Vidyadhara ou “Portador da Louca Sabedoria”. Já não podia ser abalado pelos ventos da esperança e do medo. Os deuses, as deusas e os demônios, suas paixões e as projeções externas delas, tinham sido completamente subjugados e transformados. Sua vida, agora, era uma dança contínua com as dakinis.
Finalmente, Milarepa chegou à fase do “cachorro velho”, sua mais alta realização. As pessoas poderiam andar sobre ele, usá-lo como estrada, como terra; ele estaria sempre lá. Transcendeu a própria existência individual de maneira que, nos seus derradeiros ensinamentos, há um sentido da universalidade de Milarepa, o exemplo da iluminação.

Posfácio

Será que precisamos deste livro no Brasil? – Aqui, onde até mesmo bancas de jornal oferecem em capas com cores chamativas toda espécie de absurdo e de sabedoria psico-espiritual? Será que nossa terra emotiva e de cores perfumadas está apta à mensagem clara e franca de um mestre vindo de uma vastidão montanhosa varrida pela neve, que é o Tibete; mensagem esta agora adaptada à agitação e à agressividade dos EUA?

Aqueles que são sensíveis à vivência do Brasil, hoje percebem que estão sendo jogados de um lado para outro entre extremos conflitantes. Assim, embora o otimismo brasileiro continue a enfatizar o progresso alcançado, tal otimismo não pode ocultar o pânico de uma sociedade aflita por esquivar-se da sua própria confusão. A colorida dança de prazeres intelectuais e sensuais fascina aqueles economicamente privilegiados e lhes permite ignorar o contrastante sofrimento da massa brasileira. Sucessivas ondas de emoções intensas inundam o coração brasileiro, encobrindo a falta de comunicação mais profunda entre pessoas e entre grupos. Hipnotizados pela eloqüência de nossos políticos, nossos poetas e nossos gurus do momento, guardamos, todavia, ao tecer comentários sobre a malícia e a falta de conteúdo daqueles, um esconderijo de cinismo autoprotetor.

Na tentativa de conciliar estes extremos conflitantes, somos levados a uma peregrinação por diversas tendências. Tais tendências podem ser espirituais, psicológicas, políticas ou simples consumismo: não importa. Entretemo-nos em deslocar nossa lealdade por uma sucessão de coisas julgadas como nosso ideal naquele momento, esperando, de alguma maneira, cultivar o lado bom e eliminar o lado ignóbil que existe em nós e na sociedade brasileira.

A mensagem simples de Trungpa é de que existe um meio para sairmos deste círculo vicioso de esperança e medo, desta interminável busca de uma fortifícação, de um lugar seguro, de paz e de prazer. Mas, antes de falarmos em acabar com nossa desgastante luta, devemos ver o mundo e nós mesmos da maneira que somos, sem tentar avaliar ou melhorar o que está aí. O modo de levar isto a efeito começa com a prática de meditação shamatha.

Àqueles que estão dispostos a domar suas mentes, convidamos a juntarem-se a nós para instruções sobre meditação, estudo de Budismo tibetano, e para uma exploração da liberdade através da disciplina. Quer você esteja lendo isto no Amazonas, no Rio Grande do Sul, na Bahia — ou até mesmo em Lisboa ou Lourenço Marques — sinta-se livre para nos contatar no:

Grupo de Estudos do Dharma Caixa Postal 8312
01051 São Paulo – SP

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Ao revisarmos a tradução profissional feita por Octavio Mendes Cajado, inclinamo-nos mais para uma versão literal do que para um estilo livre; disto decorre o emprego de neologismos e palavras com significado incomum. A árdua tarefa de fazer esta revisão mostrou-se gratificante, uma fonte contínua de rupturas conceituais que nos permitiram penetrar descobertas de entrega ao processo de trabalhar um com o outro, e ao processo de lidar com a nossa tendência de não abrir concessões em relação ao texto escolhido.

Vários colegas contribuíram para polir a revisão. Ao sr. Manoel Vidal, nosso irmão da Escola Antiga (linhagem Nyingma), expressamos nossa estima por sua perspicácia aguda e sua honestidade crítica. Ao dr. Aguinaldo de Almeida Prado, nossa admiração por sua energia infindável e por sua dedicação ao aperfeiçoamento. Agradecemos à srta. Helena Stylianos Patsis, tanto dakini quanto mamo, pelo exemplo inspirador de seu envolvimento ardente. À sra. Anna Lia de Almeida Prado, nossa gratidão pela atenção erudita prestada aos retoques. Aos srs. Diaulas Riedel, Frederico de Barros, Sílvio Neves Ferreira e sra. Eidi Gomes, da Editora Pensamento, estendemos nossa apreciação pelo profissionalismo paciente e pelos conselhos amistosos. Foram imprescindíveis o encorajamento e a confiança de Mrs. Carolyn Rose Gimian e Mr. Michael Chender, o kalyanamitra do Brasil.

Ao Dorje Chang ofertamos nosso anelo e veneração. Que sirvam nosso corpo, fala e mente para espalhar a mensagem do Vidhyadhara, Chögyam Trungpa, Rinpoche.

São Paulo abril de 1986
Grupo de Estudos do Dharma Lincoln Berkley, coordenador


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