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As Doutrinas Esotéricas de Platão

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por Marcio Pugliesi e Norberto de Paula

Esta civilização estendia-se desde o golfo de Cádiz, além das Colunas de Hércules, por uma superfície aproximada de 6 milhões de estádios (cerca de 2 mil quilômetros quadrados) — e era constituída predominantemente por uma planície oblonga de cerca de 1890 quilômetros quadrados de área, cercada por um maciço montanhoso e por barreiras arrecíficas que a protegiam dos ventos do norte.

Todos os metais duros e maleáveis existiam em suas minas, entre eles o oreikalkos, o mais precioso dentre eles, depois do ouro. Sua natureza foi muito discutida, e muitos fizeram boas aproximações. A título de exemplo, citaremos Filopon, que em seus comentários às Analíticas de Aristóteles, identificou-o como cobre branco, isto é, latão. E muitos outros o fizeram, inclusive os autores de livros de alquimia, como atesta Marcellin Berthelot em seu livro ‘Química na Idade Média’. Todavia, todos se enganavam; o oreikalkos é apenas e tão somente o mercúrio filosófico em seu estado de fixidez, isto é, a docilidade metálica obtida pela ação de Vulcano lunático (o fogo sutil); o caráter metálico em seu aspecto feminino. Tenha-se em mente que o oreikalkos do Crítias não é uma liga; é metal simples, e não se parece com o latão, pois tem reflexos do fogo. Seus templos eram enriquecidos por todos os metais preciosos; nas montanhas, muitas vilas, ricas em habitantes, rios, lagos e prados, capazes de nutrir animais selvagens e domésticos, florestas de grande porte que propiciavam material abundante para todos os tipos de trabalho. Reis sábios governavam-na em dez Estados, criados por Poseidon, e mantinham a lei desse deus de acordo com o juramento prestado em seu templo, e de um ritual, repetido a cada cinco ou seis anos, de forma a alternar anos pares e ímpares, para alcançar um perfeito equilíbrio, que lançava os mais terríveis anátemas contra os perjuros. Um verdadeiro e notável culto solar.

Toda essa riqueza era defendida pela sabedoria e prudência e por forças imensas estimadas em cerca de um milhão e duzentos mil homens, bem como 10 mil carros e 1 200 navios.

Há 12 mil anos, este povo entrou em guerra com os habitantes do mar Mediterrâneo, onde possuía possessões, como, por exemplo, o Egito, e foi derrotado, pois sua força principal, que residia na virtude e no cumprimento das leis do deus, havia sido perdida, e Zeus desejou punir seu orgulho e prepotência.

As provas da Atlântida

Golfo de Cádiz

Esta narrativa, que resumimos do Crítias de Platão, parece ter como únicas precursoras as de Hecateu e de seu imitador, Heródoto, e verifica-se a existência de alguns textos derivados, como o de Proclo. Foi e é essa narrativa alvo de muita discussão. Mas, com certeza, a Atlântida existiu e podemos indicar com segurança alguns pontos em que a passagem de seus habitantes é atestada: nas ilhas Canárias, onde verificamos a presença de caracteres de uma língua pré-semítica e pré-indoeuropeia, onde, na chegada dos espanhóis, o povo dos guanches, que as habitava, assustou-se, pois acreditava-se o único remanescente da humanidade dizimada pelo dilúvio; nas ilhas da Madeira, Porto Santo, Formigas, Santa Maria, do delta do Nilo até Villa Cisneros e segundo tudo indica, por ocasião do grande cataclismo que fez com que a ilha desaparecesse e se transformasse num amontoado de lama, que impedia a navegação, há 9 mil anos, no grande mar, vieram ter, de alguma maneira, às Antilhas, e daí à América Central, pela região de Belize.

Pelas ilhas de Barlavento teriam chegado a Trinidad, e daí à América do Sul. Uma hipótese bastante sedutora, porém arriscada, pode ser levantada: teriam tido, aí, contato com as civilizações dos astecas, maias e incas. A interação com culturas heterogêneas é bastante evidente nesses povos. Poderíamos ainda dizer que a miscigenação com homens brancos já era fato notório quando os portugueses aqui chegaram; índios com olhos azuis eram comuns entre os guaranis, e a ciência de curar deste povo, e mesmo as narrativas de contos infantis atestam objetivamente a similaridade com a mitologia dos egípcios e dos gregos — a velha crença de todos os povos — com seus inúmeros dilúvios e deuses irados com os erros dos homens. E isto, todavia, apenas e ainda no domínio da hipótese pela descrença exacerbada que se arraiga em nosso insensato orgulho. Todavia, o essencial permanece.

Os segredos do Timeu

Escola de Atenas de Rafael

Rafael Sanzio, em seu afresco “Escola de Atenas”, figurou o velho sábio Platão portando o Timeu entre suas mãos, e os artistas bizantinos e iluministas o representavam de forma idêntica. Alexandrinos e ecléticos votavam a este livro um culto tão particular que nossa curiosidade foi despertada, e mais sobressaltada ficou quando soubemos que os sábios cristãos, árabes e judeus ativeram-se a esse livro com o mesmo ardor com que veneravam os livros canônicos. Evidentemente, não faremos a exposição de todo o Timeu, não seria adequado, e mais, apenas a leitura e meditação consciente desse obscuro livro da Antiguidade poderão levar ao conhecimento que o mesmo visa a propiciar. A escola de Chartres tentou durante muito tempo conciliar as indicações do Timeu relativamente ao nascimento do universo, com os textos do Gênesis. Os sábios medievais, pensando numa síntese definitiva, acreditaram ter como modelo o Timeu; os renascentistas procuraram descobrir o sentido oculto das passagens relativas à alma do mundo. Mais uma vez foram enganados. A alma do mundo atraiu a atenção de todos, agora, o realmente importante e principal é o que foi dito relativamente ao humano, tudo o que foi escrito introduz e anuncia este tema, o anterior a ele, o humano, é apenas uma grande ouverture.

Entretanto, que abertura! Uma doutrina em que se entrevê o esforço calmo (e desesperado, apesar disso) para atingir, além das aparências, a imutável realidade; descrever o mundo, para Platão, é descrever aquilo que muda, escapar ao domínio das verdades imutáveis e obrigar-se a considerar um princípio irredutível de confusão e desordem.

O Timeu é uma contínua aplicação da teoria das formas, não se tendo uma nítida visão da teoria das ideias que lhe é subjacente, como acontece na República e no Sofista.

Estes aspectos são tratados sobejamente nos manuais de filosofia, que deixam escapar pelas malhas de sua grosseira rede (o mesmo para as mais finas — e ainda assim grosseiras — dos especialistas) o aspecto nitidamente iniciático que esse livro contém.

Paira acima de qualquer dúvida, na Grécia clássica, possuir o estudo um caráter de iniciação, onde o versado, através de uma linguagem metafórica, e por vezes velada, comunicava aos iniciados as desvelações que obtivera, e as revelações que o conhecimento lhe proporcionava. Platão viajou pelo Egito, e isto é atestado pelo testemunho de Diógenes Laércio e pelas ideias que professa no Timeu, pois a matemática que nele apresenta, apesar do delineamento pitagórico, é nitidamente egípcia, como se pode constatar pela sua comparação com a estereometria do papiro de Rind (1100 a.C.).

A influência do culto solar de Heliópolis (cidade do Baixo Egito, hoje com ruínas, perto do Cairo, célebre pela mais antiga compilação do Livro dos Mortos: a recensão heliopolitana, pois foi composta pelos sacerdotes de On (Heliópolis)) é bastante marcada através da forma com que o sábio constrói a sua cosmologia; a sua teoria das ideias parece fazer parte da iniciação cabalística que se prende ao culto de Ísis em Heliópolis, e ao de Ra em Rere (centro religioso do antigo Egito. Também é o nome de um ser divino mencionado na recensão tebana do Livro dos Mortos.); mais ainda, Platão associa Ra com a Justiça, pois Radamante (juiz do Ocidente, que com Minos e Éaco, do Oriente, era encarregado de receber e julgar os mortos, segundo a tradição grega); pode ser transformado, pela cabala fonética, em Ra, Amentet Ra do outro mundo, julgador dos mortos.

A sua afirmação de que Deus, querendo criar a imitação móvel da eternidade, cria, segundo a lei dos números, aquilo a que chamamos tempo e mais, ao afirmar que “o futuro é o futuro, ou ainda: o não-ser é o não-ser; todas essas expressões nunca são exatas”, torna-se de surpreendente modernidade, aproximando-se muito dos nossos conceitos atuais. E se estivermos corretos, muitas de suas investigações possibilitam o surgimento de uma teoria física totalmente nova e em perfeita concordância com a hoje existente.

Conceito de espaço

Sólidos Platônicos

Algumas concepções platônicas aproximam-se, quanto ao aspecto formal, tão intensamente do nosso moderno conhecimento que, por vezes, aturdidos, acreditamos estar cometendo anacronismos gritantes na sua leitura, e entretanto é inegável que afirme a perturbação geométrica do espaço em torno de um objeto material; que o movimento se processa no espaço e sob a forma de turbilhão. Todavia, é conveniente explicitar que o conceito de espaço, de Platão, é o seguinte: “espaço é aquilo em que se desenvolve o que nasce”; mais precisamente: “a porção desta realidade que é inflamada e parece chama, a parte umidificada, parecendo e contendo elemento úmido, e parecendo terra ou ar, segundo a proporção na qual receba as imagens da terra ou do ar”. Desta forma, o mestre exclui o inexistente, o não-ser, afastando-se de Leucipo e Demócrito, e aproximando-se de Parmênides, isto todavia na aparência, pois em verdade atribui ao espaço as mesmas características do não-ser. E não se estabelece nenhuma confusão do Ser Absoluto com o espaço, pois o primeiro não é interpenetrado nem interpenetra nenhum outro corpo; enquanto o segundo tem a sua existência assegurada pela interpenetração, Aqui se estabelece um momento único da tradição e da cosmogonia alquímica.

Os corpúsculos de Platão (átomos) não são inalteráveis, se desgastam com suas arestas, contrariamente à teoria atômica de Demócrito, e são suscetíveis de mudar suas formas através de pertinentes mudanças do meio. Em Demócrito, objetiva-se uma visão quantitativa da matéria; em Platão, uma acepção qualitativa é renitentemente defendida.

A forma dos átomos determina a natureza da matéria; uma alteração da geometria da mesma obriga uma transmutação da matéria.
Todo o existente no mundo é formado por quatro elementos: terra, água, fogo e ar, que têm suas formas respectivamente asseguradas e determinadas: o tetraedro ou pirâmide é a figura elementar do fogo, o octaedro, a do ar; o icosaedro, da água, e o cubo, a da terra. A sua cosmogonia, em linguagem alquímica, poderia ser narrada da seguinte forma (em consonância com as adaptações ao Gênesis): Deus criara a matéria primeira, terrível obscuridade, função pontualmente determinada, caos potencialmente tudo. Água primitiva de que falam as escrituras. À luz emanada de Deus atingiu em forma de palavra essa “água” primitiva e conformou com ela o padrão potencial de tudo o que há no mundo.

O Verbo, atuando sobre este caos, separou o sutil do espesso; e assim, pelo calor e luz divinos, separou-se da massa, sutil e celeste substância que continha três partes de luz para uma de matéria, migrou e formou o corpo dos anjos, a esfera empírea, e depois o corpo do Sol e corpos celestes. Depois, outra parte sutil, porém menos, o “binarius”: duas partes de luz para três de matéria, que formou os corpos interestelares. Então surgiu o “ternarius”: meio onde o alquimista e o mago trabalham, onde o possível é antes de tudo real, constituído por uma parte de luz para três de matéria. Neste ar reside o segredo de todas as coisas ditas ocultas.

Após a extração desses corpos sutis, a massa residual restringia-se a terra e água, que continha cada uma delas um pouco de luz. A água, princípio de liquidez, de umidade mórbida e geradora, é mais sutil que a terra, pois pode elevar-se como vapor e depositar-se como orvalho, é o liame entre o espírito e a matéria, a terra, receptora de influências. O fogo não é tratado como fogo, mas sim como atividade, é o úmido fogo lumínico. Cada um dos quatro elementos é dividido em três, de forma a permitir a mudança e atendimento das variações dos corpos espirituais ativos. A determinação do que se irá gerar é função do demiurgo que tem o caráter de uma causa ativa.

As funções da alma

Prosérpia e Ceres

Esta cosmogonia é de autoria de um grupo de monofisitas, doutrina que reconhece apenas uma natureza em Jesus Cristo e, por conseguinte, a do universo. Fundada por Eutíquio em 451 d.C., foi condenada pelo Concílio de Calcedônia. Atualmente, é composta por três igrejas independentes: a Igreja Armênia, a Jacobita, da Síria, e a Copta, do Egito. Notamos sua perfeita consonância com as teorias platônicas, que parecem fundamentar essa doutrina, com a diferença de que a terra, nessas concepções, não possui subespécies, variando apenas as quantidades de fogo e água que contém.

Mas o fundamental refere-se ao ser humano, repetimos.

As funções que atribui à alma são essencialmente o princípio da vida, isto é, de movimentos ordenados rumo à coerência. O “Timeu” distingue quatro almas diferentes: a “alma imortal do animal mortal”, que determina inclusive a forma do corpo que lhe serve de veículo, que é, na alma humana, totalmente semelhante à alma do mundo, esférica como ela e comporta dois círculos do mesmo e um do outro (a igualdade e a diversidade), que têm suas revoluções, podendo ser perturbadas pela ação de objetos exteriores. A torrente da alimentação e dos sentidos afeta constantemente esse chakra, o sahasrara, a mente mais alta e intuitiva, que tem sua sede na cabeça e é responsável pela posição ereta do corpo humano. As outras almas distribuem-se abaixo do pescoço. A primeira situa-se na direção do tórax, o anahata, o chakra do vital superior, sede das emoções. Sob o diafragma, Platão localiza a alma responsável pela alimentação, que identificamos com o chakra nabhipadma, responsável pelas paixões e movimentos dos desejos. Finalmente, ainda mais abaixo, na região dos intestinos, onde nenhuma força psíquica parece agir, centraliza-se a quarta alma, “o amor da conjunção carnal”, o svadhisthana, que dirige também a avidez e a sensualidade.

Todavia, contrariamente ao que se acredita, o iniciado não condena o desenvolvimento das almas inferiores; pelo contrário, propugna pelo desenvolvimento coerente e harmônico de todas as almas, a fim de que não morramos de morte pela nossa preguiça.

As analogias com a ioga são gritantes. Se acreditamos que os fenícios, egípcios e hindus transmitiram parte de seu conhecimento astronômico aos gregos, podemos crer que os mistérios de Elêusis, bem como os Órficos, nos quais Prosérpina e Ceres orientais eram veneradas, e os mistérios transmitidos aos iniciados (Platão foi um dos maiores) tinham, como a ioga, a função de fazer com que a Caityapurusa (designação da alma como a personificação da consciência divina no homem) fosse tomada como tema por Platão para a concepção do brahmand (universo; o ovo de Brahma). Para Platão, todo o conhecimento é um caminho, toda aparência uma via para a essência, toda a vida uma ioga.

À ciência oculta

Caverna de Platão de Cornelis Cornelisz

Essas indicações concordam com todos os ensinamentos fornecidos pelo “Fedon” (que examinaremos mais detidamente), “Fedro” e a “República”, que, contrariamente ao “Timeu”, tratam tão somente da parte imortal da alma. Mas o décimo Livro das “Leis” admite, como o “Timeu”, que a alma é mais velha que o corpo e, portanto, implica-lhe nascimento. O “Fedon”, o “Fedro”, a “República” implicam a eternidade das almas para poderem justificar a reminiscência, e o “Fedro” acrescenta que sua encarnação é fruto da punição de uma falta. Concluímos que devemos separar decididamente a alma esférica que se aloja no cérebro e que congloba o sahasrara (a mente intuitiva) e o ajnacakra (centro da vontade), que é imortal, das demais que refletem apenas impulsos carnais.

Suas teorias relativas à metempsicose são ainda tão próximas das hindus que nem nos ocuparemos de tratá-las aqui.

Sua anatomia apresenta certas confusões que nos espantam, considerando que os sábios anteriores a Platão conheciam, muito melhor que ele, os mecanismos anatômicos. Entretanto, algumas de suas afirmações nada têm a ver com o que usualmente se entende por anatomia; sua teoria da respiração, por exemplo, explica, de modo sensivelmente melhor que as modernas, o fato de respirarmos por apenas uma narina em ciclos alternados.

Sua patologia e mesmo sua terapêutica parecem rudimentares, se comparadas aos textos hipocráticos. Se nos ativermos apenas ao sentido das palavras em sua atualidade, o fato é que esse conhecimento remonta a muitos anos antes de Hipócrates e mesmo de qualquer outro grego, sendo muito anterior à chegada dos jônios e dórios aos Bálcãs, remontando ao conhecimento curativo dos padres egípcios em sua sede de Rere, com o conhecimento perfeito e a posse de Schem-ha-mephohasch — a palavra perdida e reencontrada pelos seguidores da Kaballah.

Esta ciência oculta e mesmo interdita foi transmitida até nossos dias através de lendas, narrativas e livros como o “Timeu” e o Tarô, e permanece à espera de que alguém se lance à pesquisa e a desvele, esquecendo totalmente as tolas pretensões de rigor que são apenas um dos muitos frutos do irracional medo de perder a razão.

O “Fedon” está salpicado de elementos que, superficialmente fortuitos, têm tal imagem apenas para desviar a atenção dos que são desprovidos de ouvidos para ouvir.

A passagem pelos mistérios

“Orfeus e sua lira”

A curta dissertação de Sócrates relativamente à dor e ao prazer sugere a dissolução das dualidades, o alvo do espírito.

Os mistérios órficos, a exemplo do “Menon”, são invocados para justificar o fato de não se dever desejar a morte; sendo os homens submetidos ao céu, não cabe à humanidade o poder da vida e da morte, mas sim aos deuses. Pois quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto da palavra, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e estar morto.

No antigo Egito, na recensão dos sacerdotes de Heliópolis, o Livro dos Mortos prescreve um caminho preparatório da morte e um caminho seguro para Re-stau (corredores e passagens da tumba e do submundo, a porta para o verdadeiro mundo), a rota segura da dupla Maat (nome de uma localidade, a passagem pelos mistérios) e da transformação em Osíris. Curiosamente, a exemplo do “Fedon”, ou talvez de onde o “Fedon” toma exemplo, o livro leva em conta apenas os fatos da outra vida, considerando por pressuposto a grosseria e falta de objetividade deste mundo.

A autodisciplina órfica e mesmo do processo de Elêusis é mais uma vez lembrada ao se falar do aumento da concentração da alma e do corpo sutil através de um “refluxo vindo de todas as partes do corpo”.

O próprio pensamento como instrumento temporário do caminho de cada um, pois pensamos através do cérebro; num estágio posterior, o mesmo se consome, pois a velha ferramenta e sua emanação — o pensamento — são substituídos pelas expressões superiores do ser humano, porque “o divino se dá àqueles que se dão sem reservas e em todas as suas partes ao divino. Para eles, a calma, a luz, o poder, a alegria, a liberdade, a amplidão, as alturas do conhecimento, os mares de ananda (felicidade divina, ou espiritual), no dizer de Sri Aurobindo. Ou como se dizia: ‘Numerosos são os bacantes, mas poucos os portadores de tirso’; muitos se apinham para ver o jogo, mas poucos são os jogadores. No mito e no culto é que têm origem todas as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a ciência. Todas com suas raízes profundamente cravadas no jogo que só se torna pensável e possível quando a presença do espírito destrói o determinismo absoluto do cosmos. A própria presença do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da condição humana. E assim jogamos nosso destino num maniqueísmo fútil e involuntário, em que o tigre caça o tigre que tem uma lista a menos, e nos esquecemos de nossa verdadeira problemática. Restringimo-nos a perquirições abstrusas, sem nenhum sentido, uma vez que olvidam o humano, dissipamos nossos esforços em espera inútil e compungidamente olhamos nossos antepassados como meros homens com ciência e cultura insuficiente.

O problema do outro mundo

Télefo, rei da Mísia

“Tomemos o cuidado para que não venha a penetrar em nossas almas o pensamento de que nossos argumentos nada tenham de razoável. Suponhamos, ao contrário, que ainda não temos discernimento suficiente.”

O problema do outro mundo se reforça mais uma vez, e questões geográficas do outro lado da vida, ou da mente, são discutidas com naturalidade surpreendente: “Assim, dizem que o mesmo gênio, que acompanhava cada um de nós durante sua vida, é quem conduz cada morto a um determinado lugar; imposta a sentença, são levados ao Hades, conduzidos por um guia a quem foi dada a ordem de levá-los para lá. Depois de terem recebido o que mereciam, um outro os reconduz para cá, através de muitos e demorados períodos de tempo. O que quer dizer que o caminho não é tal como o pretende o ‘Téleto’, de Ésquilo (uma das obras de Ésquilo refere-se a Télefo, rei da Mísia, que, ferido pela lança de Aquiles, curou-se com a ferrugem da mesma. Utiliza-se esta circunstância para designar um mal que traga consigo o seu próprio antídoto): o caminho que conduz ao Hades não é único, nem simples, pois se assim fosse, não necessitaríamos de um guia para não errar a direção. Desta maneira, a alma ordenada e sábia acompanha obedientemente o guia, pois bem conhece a situação. Mas a alma que se agarra avidamente ao corpo e oferece resistência, uma vez chegada ao seu lugar, é evitada pelas outras almas e, em virtude de uma necessidade fatal, é levada a uma residência que lhe é conveniente.”

Desejamos ressaltar que a descrição aqui feita é muito semelhante à que se verifica no Bardo Todol, o livro tibetano dos mortos, pois apenas é necessário para o encontro com a clara luz primordial, o Dharmakaya, que se tenha sabido cultivar a verdadeira sabedoria neste mundo em que vivemos.

A descrição que Sócrates estabelece entre a terra e a verdadeira terra parece ter colaborado definitivamente para as teorias de uma terra oca, que foram desenvolvidas durante a vigência do III Reich.

Não obstante, o passado nos é sombra e mistério, e o poema “The Human Abstract”, de William Blake, reencontra sua essência. Relembremo-nos ainda do “Górgias” platônico: “Porque é vergonhoso que, estando na situação em que agora parecemos estar de uma forma evidente, tenhamos, embora com a pretensão de crer que somos algo, nós, que nunca temos certeza e a mesma opinião acerca das mesmas coisas e questões, e o que é pior, acerca de questões de suma importância: tal é o grau de ignorância em que nos encontramos”.


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