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por Herman Faulstich
Esta é uma visão pessoal sobre o Sagrado Anjo Guardião. Ela deriva dos meus mais de 25 anos em Thelema, na A.·.A.·. e das experiências envolvendo a religiosidade afro-brasileira como o Candomblé Ketu e a Quimbanda de forma geral. Longe de restringir a visão sobre a figura do SAG o objetivo é expandi-la. Não detalharei aqui o Anjo, pois já está feito no meu livro “Thelema, Uma Introdução à Obra de Aleister Crowley”*.
A visão de Crowley foi refinando com o passar dos anos e, no final da vida, viu o SAG claramente como algo que já foi humano, ou seja, um morto, mas que, quando estava encarnado, alcançou um elevado grau de consciência. Porém, o SAG é um tipo específico de morto: é um de “complexa comunicação”, digamos assim. É necessário expandir a consciência para “ouvi-lo” corretamente, compreender a sua linguagem. Chegar até ele exige tempo e esforço — na verdade, é o SAG que vem ao seu tempo quando o “veículo” está preparado para compreendê-lo.
A prática mostra que está sempre em contato conosco, porém não o entendemos. A experiência do Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião, relacionada à esfera cabalística Tifaret, é um processo teúrgico de invocação. Lembrando que esse encontro é o meio do caminho, pois ele auxiliará na subida na Árvore da Vida, onde, nas três esferas superiores, essa comunicação será completa. Thelema enquanto método místico (A.·.A.·.) possui três marcos: SAG, descobrir a Verdadeira Vontade e chegar a Kether. Verdadeira Vontade é a órbita de cada astro pois “Todo homem e toda mulher é uma estrela”. A origem de Thelema relaciona-se com os mortos. Aiwass, o SAG de Crowley e a entidade que ditou Liber AL vel Legis para ele, era persa; Ank-f-n-Konshu, o nome de Crowley como escriba, foi um sacerdote egípcio e uma encarnação e a Estela da Revelação é uma lápide com trechos do Livro Egípcio dos Mortos. Um refere-se à volta do morto ao mundo dos vivos quando quisesse.

Mas por que isso não ficou mais claro? Por causa de certas limitações do humano Aleister Crowley. Sendo uma obra oriunda do transcendente, nem ele mesmo poderia enxergar todas as possibilidades de interpretação, como o próprio era ciente. “…tu, ó profeta, não contemplarás todos estes mistérios aqui escondidos”*. Uma delas é o seu distanciamento da necromancia. São três os motivos basicamente:
1–O exemplo prático que ele tinha era do movimento Espiritualista europeu, das mesas girantes e irmãs Fox e o Espiritismo de Kardec;
2–Ele não foi iniciado em cultos dos mortos africanos ou afro-americanos (ou de outro povo). Foi casado com uma tal “Rainha do Vodu*”, mas de um Vodu “para inglês ver”. Morou em Nova Orleans por dois meses, mas até hoje os cultos Vodus são fechados;
3–A linha de trabalho dele era Árvore da Vida, uma visão judaica e os judeus não lidam bem com os mortos. Essa linha, por mais que ele tenha enveredado por outras culturas, era alicerce cognitivo. Uma quarta razão seria semelhante a essa: o pensamento cristão e racional europeu moldou a sociedade em que ele viveu.
Ou seja: a abordagem dele era outra: não levava os mortos em conta. Porém, quando foi montar um ritual para o Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião, chamado “Liber Samekh”, ele não usou como modelo o Livro de Abramelin, obra judaica e que trouxe a ideia de SAG, mas sim um milenar ritual greco-mágico* chamado de “Ritual do Inascido”. Trata-se de um exorcismo que contém vários “Nomes Bárbaros de Invocação”*, invocação de deuses de panteões diversos e figuras religiosas e da magia. Porém, o ritual original refere-se a um “Acéfalo” (“aképhalos”) e não a um “Inascido”* que foi alteração feita pela Golden Dawn. A entidade Akephalos é desconhecida, porém academicamente* é relacionada com Osíris, deus egípcio que governa o reino do Duat, ou, pós-vida, que é referenciado no Livro Egípcio dos Mortos. A ausência de cabeça representa várias coisas, mas principalmente um ser não-humano, mas ainda que, de alguma forma, relacionado conosco. A cabeça é a sede da consciência podendo ser interpretada como a sede do “eu”.

A razão da escolha desse ritual não é conhecida, porém suspeito que Crowley quisesse algo mais antigo que o Abramelin (sec. XIV), pois antes montou o ritual do Rubi Estrela com palavras e nomes diferentes (mesopotâmicos e gregos) e anteriores aos hebraicos usados no Ritual Menor do Pentagrama do qual foi uma releitura; no próprio Liber Samekh há nomes bárbaros não judaicos. Ele mesmo colocou que Thelema era redescoberta da religião suméria. De alguma forma estava pensando em descolar-se do judaísmo regredindo a algo, de fato, anterior — “Aiwass” pode soar “I was”, “Eu era”.
Sendo o SAG um morto, pensar em cultos de ancestrais é uma derivação lógica. Crowley via Aiwass como uma consciência distinta que viveu na Mesopotâmia e, se fosse um antepassado, não seria incoerência. O que é o meu caso: comigo o Conhecimento e a Conversação aconteceu com um ancestral muito distante. Porém, a consciência de que é um antepassado deu-se muitos anos depois. Sem detalhar como foi, mas utilizei uma variação do Liber Samekh com “nomes bárbaros” que surgiram ao longo dos anos da minha jornada, inclusive relacionados a religiosidade afro-brasileira. O processo iniciático na A.·. A.·. é a expansão da consciência ou subida na Árvore da Vida. Em si não tem equivalência direta no pensamento ioruba, porém analogias são cabíveis via o resultado e certas semelhanças simbólicas: na linguagem nigeriana a ascensão na Árvore da Vida pode ser vista como um trabalho de “orí” (cabeça, mente, consciência, topo). Envolve alinhar a “cabeça” com o seu “odu”* baseado no acordo feito com Orumilá* e em quem a pessoa era no Egbé-Orun*; resumindo: “destino”. Isso pode resultar de forma parecida* com a “Verdadeira Vontade”. Ainda no Candomblé, o culto de “Babá Egum” trata de antepassados masculinos cuja manifestação física ocorre em trajes* que seguem um padrão de acefalia: a cabeça não existe, o formato é amenizado ou velado. A ausência do Orí-òde* é iconografia coerente de um morto. Na minha experiência, manifestou um “egun” quando no caminho da carta do tarô “A Lua”. É relativa à letra hebraica “koph”, parte traseira da cabeça que relaciona-se ao “inconsciente”, “vidas passadas”, “antepassados” e também ao signo de Peixes, o “oceano” que também simboliza o inconsciente e o mundo dos mortos (“kalunga”)*. O egun em questão abriu-me portas (de forma dolorosa ao ego) para, anos depois, compreender de fato o que era o meu SAG. Crowley escreveu sobre o Anjo:
“Ele é algo mais do que um humano, possivelmente um ser que já passou pelo estágio da humanidade e seu relacionamento peculiarmente íntimo com seu cliente é o de amizade, comunidade, fraternidade ou paternidade. Ele não é, deixe-me dizer com ênfase, uma mera abstração de você mesmo, por isso insisto bastante que o termo ‘Eu Superior’ implica ‘uma condenável heresia e uma perigosa ilusão”. *
“O Sagrado Anjo Guardião é um indivíduo como você e eu. Mas ele vive em quatro dimensões como nós vivemos em três (resumindo: é de uma Natureza diversa da nossa). Não confunda com o ‘Eu Maior’ que não passa de uma parte de nós mesmos.” *
E Kal Germer: “Esse SAG é uma entidade separada da sua própria Alma-Estrela. É quase como se nós tivéssemos uma Alma-Estrela gêmea (Dante:Beatrice e Goethe:Gretchen) que guia o seu gêmeo encarnado, amando-o, ensinando-o, cuidando para que não cometa erros grosseiros, sussurrando no ouvido e desesperando-se se o gêmeo manifestado não ouvir ou aprender a ouvir a voz que fala no fundo da alma. Todo o objetivo do nosso sistema é aprender a conhecer e depois entender a linguagem, e então intensificar a intimidade com o SAG, que é algo que realmente existe em uma quarta dimensão e pode estar encarnado, mas desconhecido para o seu gêmeo .” *
Em suma:
1-A Estela da Revelação é uma lápide. Nela há um trecho do Livro Egípcio dos Mortos onde a alma do falecido, Ank-f-n-Konshu, é permitida voltar a andar no mundo dos vivos (“sair à luz”) quando quiser;
2-A lápide é de Ank-f-n-Konshu e Crowley foi assim chamado em Liber AL. Aiwass viveu na Suméria, ou seja, ambas as figuras eram mortos;
3-Ser um morto explica o fato de Aiwass ter falado pela boca de Rose Kelly, esposa do mago inglês, posteriormente, para esclarecer palavras faltantes em Liber AL. Se fosse algo de todo interno não haveria necessidade de terceiros. Em certas linhas de teurgia* o processo de invocar um “daemon” pessoal em outra pessoa chama-se “desmos”. No Livro da Magia Sagrada de Abramelin uma criança aparece, e fora as simbologias de um infante, na própria teurgia usava-se uma como veículo de manifestação (“kátokhos”) do daemon para que não houvesse mistura de “personalidades” por conta da “pureza” (persona não formada). O que Crowley propôs é um “autodesmos”, onde o “theagôgós” (teurgo) e o kátokhos são o mesmo.
4-A iconografia ioruba representa mortos como sem cabeça relaciona-se com a do Acéfalo, do ritual base de Liber Samekh, figura que remete ao deus Osíris do reino dos mortos — no Liber, identificamo-nos com esse deus. Acéfalo-Egungun-Osíris-SAG.
Fora isso, a ausência de cabeça simboliza a superação do ego e da individualidade, a transcendência sendo “morte” no sentido iniciático, o topo (“ori”) do processo. A sefirá Kether, o último estágio na Árvore da Vida, tem como símbolo o “Macroprosopus”, “cabeça” e a sua contemplação é dissolução do ego, “morte”. Das “mortes” iniciáticas há renascimento em seguida remetendo, novamente, a Osíris, Acéfalo etc. Há uma coerência simbólica.
Então poderia dizer, em termos afro-brasileiros, que o Caminho da A.·. A.·. é uma mistura de trabalho do orí com um morto. Essa “entidade” é de uma natureza tal que quase deixou pra trás o que é ter sido humano. No final, trata-se de “uma questão de mera conjectura”* o que o SAG verdadeiramente é. O objetivo aqui foi fornecer novas perspectivas razoáveis e lembrar que os mortos vivem.

NOTAS:
- www.clubedeautores.com.br;
- Aiwass: de origem persa ou assíria, região da Babilônia se considerarmos posteriores associações de Thelema com a Suméria;
- AL, I:54;
- A nicaraguense Maria Teresa Ferrari de Miramar;
- Ver meus dois posts aqui “Culto aos Mortos” I e II;
- A Estela de Jeu, o Escritor de Hieróglifos em Sua Epístola ou PGM V.96–172, escrito entre os séculos III a IV d.C.;
- “Nomes Bárbaros de Invocação” — termos ou palavras utilizados em rituais mágicos que são considerados arcaicos, estrangeiros ou aparentemente sem significado racional;
- Inascido (não nascido) — o termo relacionado ao daemon grego que remete a um ser não humano, intermediário entre homens e deuses;
- Outras hipóteses são com Seth/Tifão e Bes;
- A imagem do Acéfalo — desenho do Papiro de Berlim ou PGM II, sendo um acéfalo com as sete vogais sagradas gregas escritas no peito;
- Odu — 16 signos do Oráculo de Ifá associados ao que poderíamos chamar de “destino”;
- Orumilá — orixá da sabedoria, do destino e da adivinhação no Candomblé Ketu;
- Um senso realizado de autoconhecimento ao identificar o Orixá ou Exu/Pomba-Gira;
- Egbé-Orun — mundo espiritual;
- Trajes de Babá Egum — eku ou opá;
- Orí-òde — cabeça física;
- Kalunga — mundo dos mortos na religiosidade afro-brasilera representado pelo cemitério e o oceano;
- Magick Withouth Tears, carta de 1943;
- Carta de Aleister Crowley para Karl Germer, 10 de abril de 1947. Karl Germer foi o herdeiro de Crowley;
- Carta de Germer para Roy Leffingwell , 21 de março de 1949;
- Macroprosopus — Arik Anpin, o “Grande Rosto”. Kether é representada como um rosto ou uma coroa.
- “Mas se Aiwass é um ser espiritual ou um homem conhecido por Fra. P., é uma questão de mera conjectura.”- Aleister Crowley , O Equinócio dos Deuses, 1938.
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