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Luis da Câmara Cascudo
trecho de Meleagro
Diz-se “Mesa” a uma sessão de Catimbó. “Fazer mesa” é abrir uma sessão. Empregam o mesmo termo para o Candomblé, quando de consultas com o Pai-de- Santo. O trabalho do “mestre” não se chama feitiço nem muamba, coisa-feita ou canjerê. O mestre que entende de Catimbó diz sempre “fumaça”. O trabalho para o Bem, tratamento médico, remédios e conselhos, orientações benéficas, dádivas de amuletos, é a fumaça às di reitas. Trabalho para o Mal, vinganças, dificultar negócios, obstar casamento, enfermar alguém, conquista de mulher casada, despertar paixão sem ser para bom fim, é a fumaça às esquerdas.
Há os dias recomendáveis, especiais e típicos para cada gênero de “fumaça”. Para a “fumaça às direitas” são indicadas as segundas, quartas e sextas-feiras. “Fumaça às esquerdas”, terças, quintas-feiras e sábados. Domingo não é bom dia para “fumaça”. Pode servir apenas de consulta, conversa, “maneira” de conselhos, receituário de pouca importância. Os “mestres do Além” têm seu dia de descanso e não é prudente incomodá-los. Os deuses não amam a insistência, dizia Petrônio. Nas Macumbas e Candomblés o domingo é o dia de todos os Orixás. No Catimbó é descanso dos invisíveis.
O arbítrio do “mestre” dirige a disposição e número de objetos necessários às sessões. Alguns são indispensáveis, outros dependem das simpatias do “mestre”.
Sobre uma mesa de pinho dispõem os “preparos”. No centro está a “princesa”, bacia de louça branca ou clara,[1] entre duas “pugias”, velas, acesas ao começo da “fumaça”. Dentro da “princesa” põem um pequenino Santo Antônio de madeira. Ao lado da “princesa” fica a “marca”, cachimbo grande, já sarrento, de cabo comprido. Certos “mestres” mais autorizados ensinam que O cachimbo é o verdadeiro Catimbó e seu segredo.[2] Chamam-no “marca-mestra”, reservando o nome simples de “marca” para uma vareta de madeira que tem à extremidade um cabacinho com caroços secos, espécie de maracá. Outros “mestres” invertem a denominação. Chamam “marca” ao cachimbo e “marca-mestra” ao mara- cazinho. Os caroços da “marca-mestra” são sempre em número ímpar, número deus impare gaudet, afirmava Virgílio. Sem uso em muitos Catimbós do meu conhecimento, a “marca-mestra” é infalível nos Catimbós mais fiéis à Pajelança amazônica, ritmador das cerimônias, anunciando a presença dos “mestres” reais, alegria, cólera, curiosidade ou malícia, mágoa ou afastamento, pelo aceleramento das batidas, do andante cum moto até um allegro cum fuoco.
O fumo para O cachimbo, “marca” ou “marca-mestra”, não é o comum. Misturam-no com incenso, penjoim, alecrim, plantas aromáticas. Em determinados “trabalhos” ou “fumaças”, O “mestre” opera com tabaco tendo composição diversa, mata-pasto, jurubeba, casco-de-burro, jurema. A primeira mistura é a ritual para a defumação propiciatória no início da “mesa”. Durante Os “trabalhos” pode-se fumar à vontade. Charuto diz-se mussuí.
A “princesa”, bacia de louça, não está colocada diretamente sobre a toalha da mesa € sim pousando numa rodilha de pano não servido, pano limpo, virgem e são. Diante do “mestre” está um crucifixo, à esquerda a chave de aço, virgem de qualquer uso, limpinha e reluzente, infalível e característico para abrir e fechar sessões, e simbolicamente o corpo dos consulentes. Recorda, na bruxaria européia, a santa chave do Sacrário, furtada para uso no feitiço.
Em cima da mesa estão vários papeizinhos enrolados em canudos. Servem para acender os cigarros ou charutos da assistência. Apanha-se um desses canudinhos de papel, faz-se O sinal da cruz com ele, no ar, antes de tocar na chama das velas. Com o papel aceso, acende-se o cigarrão ou charuto barato. Não se toca na chama das pugias antes do sinal da cruz.
O “mestre” só fuma o seu cachimbo às avessas, pondo a boca no fornilho e soprando a fumaça pelo canudo. Entre os mestiços Pancararus, do Brejo dos Padres, em Tacaratu, Pernambuco, O prof. Carlos Estêvão, então di- retor do Museu Goeldi em Belém do Pará, assistiu em janeiro de 1938 à festa secreta do Ajucá, preparação da Jurema para ser religiosamente bebida. O velho Serafim, que dirigia a cerimônia, repetiu o ritual catimbozeiro de que seria origem sua raça: “Acendeu um cachimbo tubular, feito de raiz de jurema e, colocando-o em sentido diverso, isto é, botando na poca a parte em que se Põe o fumo, soprou-o de encontro ao líquido que estava na vasilha, nele fazendo com a fumaça uma figura em forma de cruz e um ponto em cada um dos ângulos formados pelos braços da figura. ”[3]
No Catimbó o “mestre” acende o cachimbo e, com a boca no fornilho, sopra fumaça para os quatro pontos cardeais, “quatro cantos da casa”, e monologa, baixinho uma oração ininteligível mas perfeitamente católica, com invocações a Jesus Cristo e aos santos da Corte do Céu. Depois canta a “Linha da Abertura”:
Abre-te mesa,
Abre-te Ajucá!
Abre-te os portões
E varandas reais!
Abram-se os portões e varandas e cortinas reais!
Segue a “Linha da Licença”:
Senhores Mestres eu quero
Senhores Mestres vá,
Quero que me dê licença
Vamos trabalhar!
Com o poder de Jesus Cristo,
Vamos trabalhar!
Eu trago a chavinha
Do Vajucá,
Abrindo os portões
E varandas reais!
Eu trago a chavinha
Do Vangalô!
Abrindo os portões
E varandas eu vou!
Canta-se a “Linha da Licença das Velas”:
Meu São José
Acendei-me estas velas!
Santa Cecília
Varrei-me os caminhos!
Meu Sant’Antônio
Me ponde em guarda!
Santa Luzia
Daime a vidência!
Já vem chegando e já
Os bons saberes
Do Outro Mundo,
É o Rei! É o Rei! É o Rei!
Trunfei! Trunfá! Trunfa Real!…
Quando o “mestre” diz “abre-te” ou “fecha-te”, tem a chave na mão e faz os respectivos movimentos. Abre-se para a direita e fecha-se para a esquerda. Encerra-se à sessão cantando as mesmas cantigas, substituindo-se o “abre-te” pelo “fecha-te”. Apagam-se depois as duas velas e reza-se uma oração a Jesus Cristo Nosso Senhor agra- decendo os favores recebidos através dos bons espíritos dos “mestres curadores”. E uma oração de manual espírita.
Durante os “trabalhos” não se fala. Fuma-se e bebe-se muito. Bebe-se aguardente que tem o nome indígena de “cauim”. O “cauim” é servido em pequeninas cuités, cuias bem limpas, passando de mão em mão, com assiduidade mecânica. Homens e mulheres levantam a cuité com a mão direita e sorvem fechando os olhos. Não sei se há tradição no gesto. Bebi com os olhos abertos e ninguém me corrigiu.
O cauim ajuda os “mestres”. Não há “mestre” abs- têmio. O próprio “mestre do Além”, incorporado ao “mestre” material ou noutro fiel, bebe. Pede cauim e lhe dão a garrafa e não a cuité. O mestre emboca a garrafa mas não ingere o líquido. Bebe o “espírito”, a “sustança” do cauim. Devolvendo a garrafa, ainda cheia, o cauim
A sessão dura às vezes horas e horas. Na ordem tradicional não pode ultrapassar a meia-noite, mas com o poder de certos “mestres” há licença do Além e a “mesa” se prolonga entre a fumaçarada dos cigarros e O giro regular do cauim.
Notas
[1] A bacia é objeto da bruxaria européia. “A Bacia de Água era empregada para adivinhações, como na sorte do chumbo, ou na sorte das luzes.” (Teófilo Braga, O POVO PORTUGUÊS, ete., II, a É o alguidarinho, citado por Gil Vicente no Auto das Fadas,
[2] Um pai-de-terreiro pernambucano, José Claudino de Almeida, escrevia em março de 1935 ao Dr. Olício (Ulisses Pernambucano): “E eu antes de conhecer Changou já comia e já bebia e já vestia para isto eu tenho as minhas ouiras leis meu caximbo grande para me defender.” Esse caximbo grande é o Catimbó. O Babalorixá conhecia, além de Xangô, outras leis de viver à custa dos Encantados. O trecho citado é de documento publicado pelo Dr. Gon- calves Fernandes, XANGOS DO NORDESTE, 39, Rio de Janeiro, 1987. Nuns versos populares que registravam a missão do “Profeta de Tambaú” havia a proibição do cachimbo e da cachaça como características do Catimbó (Gonçalves Fernandes, O FOLCLORE MÁ- GICO DO NORDESTE, 158-9):
Podem fumar o cigarro
O cachimbo, este não.
Porque o cachimbo é
Da mandinga q oração.
Não vede os catimbozeiros
Andam de cachimbo à mão.
O aguardente também
Não devem nunca abusar.
Podem tomar a cerveja
Que mal não lhe vem causar.
Nas sessões de catimbó
Vê-se aguardente q fartar.
[14] FRONTEIRAS, janeiro-fevereiro de 1938, ano VII, 1-2, Re- cife. Semelhantemente o Sr. Gonçalves Fernandes registrou nos Ca- timbós da Paraíba: “A catimbozeira defuma soprando com a boca mo recipiente de fumo qo cachimbo, para que q fumaça saia pela doquilha” (FOLCLORE MÁGICO DO NORDESTE, 88.)
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