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por Silmara DeVane
Maria Navalha ocupa um dos lugares de maior respeito entre as pombagiras. Considerada uma das mais poderosas e temidas, é reverenciada por sua força, coragem e sensibilidade espiritual. Conhecida por muitos como a companheira espiritual de Zé Pelintra — figura mítica que representa o arquétipo do malandro —, é frequentemente procurada para proteção espiritual. No entanto, sua atuação vai além disso: Maria Navalha desempenha um papel fundamental na orientação daqueles que enfrentam dilemas emocionais, espirituais e existenciais. Ela não apenas protege seus filhos de fé, como também os ensina a enfrentar a vida com altivez, sem submissão e com respeito à própria história. Com sua presença intensa, ela inspira força, autocuidado e a busca por justiça, oferecendo amparo nos momentos mais difíceis da caminhada.
A imagem de Maria Navalha, no entanto, não corresponde a uma única trajetória ou biografia. Como ocorre com outras pombagiras, sua identidade é moldada por diversas histórias, lendas e experiências coletivas que encarnam um mesmo arquétipo feminino de força e resistência, especialmente nas camadas mais vulneráveis da sociedade. Trata-se de um espírito que reúne as dores, os enfrentamentos e as estratégias de sobrevivência de muitas mulheres boêmias que circularam pelos becos e cabarés da Lapa, tradicional bairro carioca conhecido por sua vida noturna intensa e por sua relevância histórica como espaço de resistência cultural e social.
Nos terreiros, são várias as entidades que incorporam sob esse nome, cada uma trazendo consigo um fragmento dessa figura mítica que transcende a individualidade. Maria Navalha, assim como outras pombagiras, não é uma “alma penada”, mas uma força arquetípica que, incorporada ritualmente, manifesta saberes ancestrais, femininos e de resistência.
O arquétipo de Maria Navalha se constrói a partir da síntese de figuras como a prostituta, a cafetina, a mulher independente, a justiceira e até a criminosa. Seu charme e sua astúcia são suas principais armas, além da navalha que, escondida debaixo da saia ou na cintura da calça, é acionada apenas quando necessário. Como acontece com muitas pombagiras, sua história é atravessada por dor, abandono e violência — elementos que, longe de a definirem como vítima, revelam a força bruta da sobrevivência e a necessidade de adaptação em um mundo hostil. Sedutora e perspicaz, ela manipula as fraquezas alheias com inteligência emocional e leitura precisa das intenções humanas, numa forma sofisticada de psicologia espontânea que desafia categorias formais de análise.
A malandragem, enquanto postura diante da vida, é a base do comportamento de Maria Navalha. O malandro, como se diz popularmente, “cai bonito porque sabe que vai cair” — quando antecipa a derrota, mas a transforma em performance. Essa lógica também rege os gestos dessa pombagira: sua fala é precisa, seu silêncio é estratégico e seu olhar penetra os labirintos da psique. Justamente por isso, é comum que médiuns e consulentes a procurem em busca de orientação espiritual, clareza emocional ou proteção contra traições e perigos ocultos. Sua sabedoria, forjada na rua e no sofrimento, transforma-se em conselhos certeiros, consolos duros e caminhos alternativos para lidar com os dilemas da vida.
Entre as muitas lendas que narram sua origem, uma das mais conhecidas conta a história de uma jovem abandonada pelos pais, que acabou se envolvendo com a prostituição ainda na adolescência. Já adulta, foi atacada brutalmente por um grupo de homens, mas foi salva por uma figura misteriosa vestida de branco — Zé Pelintra, que lhe entregou uma navalha para que pudesse se defender dali em diante. A partir desse encontro, surge o elo espiritual entre os dois, selando a parceria que é evocada nos terreiros até hoje. Maria Navalha passa então a ser vista como sua mulher espiritual, sua igual em coragem e esperteza.
Outras versões atribuem a Maria Navalha diferentes infâncias e trajetórias. Em uma delas, nasceu em um morro do Rio de Janeiro, sendo criada por um padrasto abusivo. Ao fugir de casa com a irmã mais nova, encontrou nas ruas da Lapa uma vida dura e sem garantias. Em outra narrativa, teria vindo da Bahia, fugindo de uma família opressora, e acabou encontrando a morte de forma trágica. Nessas versões, inclusive, variam as formas de seu falecimento: há quem diga que foi assassinada em briga de bar, esfaqueada por um amante ou degolada por rivais. Em comum, todas essas histórias destacam sua personalidade intensa e agressiva, marcada por um temperamento explosivo, comportamento provocador e uma energia que transita entre o caos e a beleza.
A construção simbólica de Maria Navalha sintetiza o paradoxo feminino de força e feminilidade num ambiente social que tende a oprimir ambos. Um famoso trecho que circula entre seus devotos afirma que ela “bebia como um marinheiro, fumava como um estivador e brigava como um leão de chácara, mas sem perder a feminilidade”. A frase, embora pareça carregada de exagero e teatralidade, revela o poder da figura feminina que resiste sem abrir mão de sua identidade, que luta com todas as armas disponíveis, sem renunciar ao brilho e à vaidade. É nessa complexidade que reside o fascínio por Maria Navalha — símbolo de uma espiritualidade que emerge da dor e se afirma na luta.
O Conceito de Malandragem
Originalmente associado à vadiagem, o termo ganhou destaque no contexto pós-abolicionista, quando o Estado passou a enquadrar como “vadio” todo indivíduo que, sem vínculo formal de trabalho, circulava pelas cidades — visando obviamente os negros e mestiços. Essa criminalização da liberdade, presente nos códigos penais do final do século XIX e início do século XX, tratava a vadiagem não apenas como ausência de ocupação, mas como ameaça à ordem pública. [Nota do Editor: O Código Penal de 1890, por exemplo, previa prisão para “vadiagem”, um resquício do controle social sobre a população negra liberta e empobrecida.]
Com o passar do tempo, práticas sociais associadas à boemia, ao samba e à vida noturna — particularmente no Rio de Janeiro — passaram a ser enquadradas sob o rótulo de “malandragem”. Essas formas de existir, marcadas pela astúcia, improviso e resistência, representavam uma resposta à rigidez de um sistema que não acolhia todas as subjetividades. Enquanto eram alvo de repressão por parte de políticas higienistas e moralistas, também foram romantizadas por músicos, escritores, jornalistas e dramaturgos que exaltavam o espírito livre e desafiador do malandro. Essa dualidade ajudou a construir o imaginário popular de um personagem que transita entre a marginalidade e a admiração, entre o perigo e o charme.
Dentro desse universo simbólico e espiritual que se desenvolve paralelamente às experiências materiais da população marginalizada, surge a figura de Maria Navalha, uma pombagira associada à linha da malandragem. Na tradição das religiões afro-brasileiras, especialmente na Umbanda, Maria Navalha é evocada como a companheira ou “mulher” de Zé Pelintra — entidade que representa o malandro arquetípico. Seu nome remete à navalha, instrumento frequentemente utilizado por indivíduos que viviam à margem da legalidade e que a utilizavam tanto como ferramenta de defesa quanto de ataque, valorizando sua discrição, rapidez e letalidade.
As narrativas sobre Maria Navalha são múltiplas e frequentemente contraditórias, o que reforça seu caráter mítico. O nome, é claro, não designa uma única pessoa, mas sim um arquétipo espiritual que abarca diversas mulheres que viveram vidas intensas e dolorosas, especialmente nos arredores da Lapa carioca — reduto histórico da boemia, da prostituição e da cultura popular urbana. Cada história atribuída a ela carrega elementos de sofrimento, luta e resistência: ora é uma criança abandonada levada à prostituição; ora uma mulher atacada por agressores, salva por Zé Pelintra; ora uma jovem que foge de abusos e encontra nas ruas e na navalha um meio de sobrevivência.
Apesar das variações entre as versões, um traço comum atravessa todas as histórias: o temperamento forte, explosivo e decidido de Maria Navalha. Ela é retratada como uma mulher que não teme o conflito e que sabe se impor, mesmo nos ambientes mais hostis. Um trecho famoso diz que ela “bebia como marinheiro, fumava como estivador e brigava como leão de chácara, mas sem perder a feminilidade” — uma síntese da transgressão de papéis de gênero e da recusa em se submeter aos padrões impostos.
A Filosofia da Navalha
Seu nome carrega em si a referência direta a um instrumento simbólico: a navalha. Essa lâmina pequena e afiada, popular entre os marginalizados urbanos do início do século XX, era usada tanto para defesa quanto para ataque. Sua eficiência e discrição tornaram-na objeto de uso recorrente por aqueles que, vivendo à margem da legalidade, precisavam de proteção constante. Assim, a navalha se tornou extensão do corpo e do espírito de quem a carregava — silenciosa, letal e oculta.
Nesse contexto simbólico, a navalha é muito mais do que uma arma: ela é o emblema de uma filosofia de vida baseada no silêncio, na neutralidade estratégica e na sabedoria de circular por diferentes ambientes sem se comprometer. A malandragem, nesse sentido, é uma forma de inteligência social e política — saber quando falar, quando se calar, quando agir e quando recuar. Maria Navalha encarna essa postura com maestria, mostrando que sobreviver, resistir e se proteger em um mundo hostil também são formas de espiritualidade e poder.
Segundo o autor Danilo Coppini:
“A navalha simboliza o código do silêncio, a Lei do ‘não sei e não vi’, pois, a malandragem é exatamente isso, saber andar em todos os territórios, sem se comprometer ou ‘amarrar’ palavra. É saber se comunicar com todo tipo de pessoa, mantendo a postura e evitando determinados tipos de contágio.”
“As mulheres costumam pedir sua intervenção nos casos em que os homens são infiéis, pois a navalha também pode cortar a libido. Outro aspecto interessante é que a Maria Navalha tem forte associação com espíritos conectados ao dinheiro, portanto, pode corroborar muito nesse aspecto.”
A mulher que porta a navalha sob a saia ou dentro da calça não é apenas uma guerreira pronta para o embate. Em Maria Navalha, a lâmina também é um instrumento de cura e transformação. A mesma mão que fere pode sarar, e é nesse paradoxo que reside sua força espiritual. A malandragem, quando aplicada ao universo espiritual, ensina que a violência não é fim, mas última instância. A sabedoria está em saber evitar o confronto, usar a astúcia e só sacar a navalha quando absolutamente necessário. Como entidade, Maria Navalha atua como guia e curadora, trazendo equilíbrio para quem a busca com sinceridade.
Também, Rafael Haddock-Lobo, em Maria Navalha e a Filosofia Popular Brasileira, escreve:
“A mulher navalhadora é, também, é certo, a que carrega a arma por debaixo de suas vestimentas – é bom lembrar que Maria Navalha pode usar tanto saia quanto calça. Em suas mãos, a navalha é tanto a arma da luta que só é acionada em última instância (pois a malandragem ensina a recuar o máximo que puder, deixar que o inimigo venha pra cima de você, e nunca partir direto ao ataque), mas também é a operadora do renascimento e feitora das curas que se escondem por detrás do efun, do waji e do ossun.”
Característicad de Mari Navalha
- Indumentária: Uma grande característica, elas usam chapéu.
Gostam de vermelho, preto e dourado. Utilizam jóias, principalmente na cor dourada ou ouro velho. Apreciam saias, também não conheço as que usam calças, não existe uma proibição quanto a isso, porém elas são mais femininas que qualquer outra face de Maria, são as que gostam de saias, maquiagens, os trejeitos de Pombagiras. - Fumo: Cigarros (cigarrilhas) de todos os tipos, principalmente filtro longo.
- Bebidas: Gostam de champanhe, licor de anis, cachaças. Apreciam taças.
- Comidas: Gostam de Padê com bastante dendê, pimentas, carnes, não tendo muita preferência por flores.
Pontos de Maria Navalha
Conclusão
Maria Navalha é mais do que uma entidade cultuada nos terreiros: ela é símbolo de uma espiritualidade insurgente, nascida nas margens e moldada pela dureza da sobrevivência. Sua figura complexa — ao mesmo tempo sedutora e perigosa, acolhedora e implacável — representa a encruzilhada entre gênero, classe, raça e religiosidade popular. Não se trata apenas de uma pombagira com fama de justiceira; trata-se da corporificação de uma epistemologia subterrânea, intuitiva e estratégica, que ensina, consola e corrige sem recorrer a dogmas nem moralismos.
Em tempos em que se exige das mulheres docilidade, silêncio e conformismo, Maria Navalha surge como grito ancestral, como lâmina espiritual e como memória viva de que a espiritualidade também pode ser feita de resistência, beleza e insubmissão. Ela não é exceção, mas espelho: espelho das muitas Marias que, feridas pela vida, decidiram afiar sua própria voz.
Bibliografia
- Quimbanda Fundamentos e Práticas Ocultas Volumes I e II
- Rafael Haddock-Lobo, em Maria Navalha e a Filosofia Popular Brasileira
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