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Cultos Afro-americanos

Elementos Étnicos no Catimbo: Cachimbo, Instrumentos e Chave Simbólica

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Luis da Câmara Cascudo
trecho de Meleagro

Negros, indígenas, europeus fundiram-se no Catimbó. A concepção da magia, processos de encantamento, termos, orações, são da bruxaria ibérica, vinda e transmitida oralmente. A terapêutica vegetal é indígena pela abundância e proximidade além da tradição médica dos pajés. Na Europa a farmácia bruxa é sempre vegetal. Como todo tratamento primitivo, aproveitando a flora sugestiva, no empirismo dos simples e drogas. O bruxo europeu já trazia o hábito e encontrou no continente a fartura das raízes, vergônteas, folhas, frutos, cascas, flores e ainda uma ciência secular aborígine na mesma direção e horizonte. A convergência foi imediata. Com o negro africano houve o fenômeno idêntico. Apenas, quando arredado dos eitos da lavoura açucareira, velho, trêmulo e sempre amoroso, assumiu a percentagem mais decisiva como mestre orientador e dono de segredos. Pelo simples fato de viver muito, existe, espontaneamente, uma sugestão de sabedoria ao redor do macróbio. Quem muito vive, muito sabe. O Diabo não sabe por ser Diabo mas por ser muito velho. Velhice é sabedoria. Velho que não adivinha não vale uma sardinha, arrenegai do velho que não adivinha, do velho o conselho, etc., reza o adagiário. O Conselho dos Anciãos na Grécia, o presbítero para a Igreja e o Senador para a república têm origem comum do vocábulo velhice-velho. O saber, de experiências feito, mantém-se na memória popular como o melhor e lógico. Doutor novo, experimenta. Doutor velho, trata. O negro escravo, de carapinha mudando de cor, negro quando pinta tem três vezes trinta, era de indiscutido prestígio misterioso. O “negro-velho” era assombroso, “faz medo a menino”, curador, rastejador, vencendo o veneno da cobra, da faca fria e da bala quente.

Angolas, Benguelas, Cabindas foram os nossos Pais Pretos, Negro do Congo, Pai Angola, Negro de Luanda, vivos nas estórias populares, anedotários, feitiços. Bantos são os topônimos negros do Rio Grande do Norte, cafuca, cafundó, cafunga, cassangue, catunda, massagana, mucambo, zumbi, buíque, cabugá. Foram amados depressa, subindo na fama coletiva. Deram amas, mucamas, amas-de-leite, mães pretas, xodós dos senhores de engenho, dor de cabeça da senhora dona, fidalgas e preteridas. O Congo ou Angola criava festa, escondendo fetiche dentro da imagem católica, elegia o seu Rei, muchino riá Congo, levava o povo branco e mestiço para a rua e adro da igreja nas manhãs da sua coroação, com desfiles, tambores, bandeiras, “fogo do ar”, “palma de mão”, beijo, joelho em terra, como a um Rei mesmo, dos antigos, no tempo em que vintém era dinheiro grande. Rainha Ginga, Henrique Rei Cariongo, nas Congadas, Taieiras, Maracatus policolores, cortejo lindo com a um- pela senhorial, vieram marchando, no tempo velho, até nossos dias, impressionantes e poderosos em sua força humilde e misteriosa.

Os mais antigos “mestres” de Catimbó foram negros e ainda são, em maioria absoluta, mestiços e mulatos. Do cerimonial das macumbas dos bantos o Catimbó mantém as “linhas” significando a procedência dos encantados, nações, invocação dos antigos negros valorosos. O Pai Joaquim que “desceu” no Terreiro do Honorato, em Niterói (Artur Ramos, O Negro Brasileiro), costuma, “acostar” nos Catimbós natalenses e sei de cor a sua “linha” sacudida e alegre. O protocolo é mais democrático e acolhedor no Catimbó pobre e sem exigências de ritualística. O contagium psichicum é de menor intensidade. Nunca assisti a possessão em duas pessoas ou mais, como é relativamente comum nas Filhas-de-Santo, nas macumbas gegê-nagô, a mesma defumação propiciatória com arruda e incenso, mas os cantos de “licença” e “encerramento” têm maior tonalidade católica, despidos do elemento coreiforme, dos instrumentos de percussão cuja sonoridade monótona caracteriza o culto africano no Brasil, difuso e confuso em sua atraente mobilidade plástica.

Um elemento caracteristicamente ameríndio é o uso do cachimbo, da “marca”, com o tabaco, fumo, petum provocador do transe. Não conheço documento africano informando ação semelhante na África e registro de exploradores e naturalistas no século XIX.

O indígena empregava O sopro, peiuuá, a sucção, piterapáua, e a defumação, indicados pelo venerável Anchieta nos primeiros anos da colonização[1].

No fumo obtinha-se o transe, com inalações profundas. O pajé empregava o cigarrão de entrecasca do tauari, Curataria tavary, com o tabaco da região. Vezes reforçava o inebriamento aspirando o cheiro do pó do paricá, Mimosa acacioides. O paricá provocava sonhos indicadores do futuro, e era no sonho que a Kerpimanha ou Kerepiiua, Mãe-do-Sonho, orientava e dirigia. As relações sexuais foram ensinadas por ela aos Tarianas do rio Uaupés. Karl von den Steinen não explicava como as mulheres bororos previam o regresso dos maridos, vendo-os através dos sonhos. O paricá e o carajuru, Bignonia chica, davam forças divinatórias pela aspiração. O “Erem”, lenda dos indígenas Cubéua, diz-se que o “paié cheirou o carajuru, fumou o tavari, assoprou para fazer fugir os Maiuas, depois exclamou: — “Aí está Erem”! Ou, em nheengatu: Paié ocetuna iaci caraiurú opitera tauari, opeú omuiauáu Maia etá arama, ariré csacemo: Aicué ápe Eren![2]

A fumaça atirada como bênção, esconjuro poderoso, uma “permanente” do Catimbó, articula-se com a liturgia, indígena, observada nos séculos XVI e XVII.

Jean de Léry registra em 1557, numa cerimônia tupinambá reservada aos guerreiros: “Os caraíbas não se mantinham sempre no mesmo lugar como os outros as: sistentes: avançavam saltando ou recuando do mesmo modo e pude observar que, de quando em quando, tomavam uma vara de madeira de quatro a cinco pés de comprimento em cuja extremidade ardia um chumaço de petum e voltavam-na acesa para todos os lados soprando a fumaça contra os selvagens e dizendo: — “Para que vençais os vossos inimigos recebei o espírito da força! — E repetiam-na por várias vezes os astuciosos caraíbas.” (VIAGEM À TERRA DO BRASIL, 194, S. Paulo, 1941.)

Como Léry vira no Rio de Janeiro quinhentista, Frei Ivo d’Evreux anotou no Maranhão de 1613, Benziam Os pajés águas deitando também jumaças de Petum, podendo comunicar seu espírito aos outros, isto é, por meio da erva Petum introduzida numa caniço, de que eles puxam a fumaça, lançando-a sobre os circunstantes ou soprando-a mesmo da cana, exortando-os a receber seu espírito e sua virtude. (VIAGEM AO NORTE DO BRASIL, 8183, 3814-315, Rio de Janeiro, 1929.) O capuchinho adiantou: “Parece que este cauteloso dragão quer com tal cerimônia falsa imitar Jesus Cristo quando deu seu espírito aos Apóstolos, e o seu poder aos seus sucessores para transmiti-lo aos iniciados nas ordens sagradas. Assim se lê em São João: Insufflavit et dixit eis, accipite Spiritum Sanctum: soprou sobre eles, e lhes disse: Recebei o Espírito Santo”, idem, 315[3]

Gaffarel, anotando Léry, cita ainda o registro geral dessa tradição em Lubbock, Origines de la Civilisation, 235, e Besanier, que a dizia comum à Flórida, Histoire Notable de la Floride, 93, ed. Elzvir.

No velho tempo havia o maracá, redondo, feito sempre de cabaço, com grão de semente em número ímpar.

Jamais aparecia o maracá de folha-de-flandres. Ainda hoje nos Catimbós a “marca-mestra” é invariavelmente de origem vegetal, vareta com um cabacinho na ponta, como maracá.

O maracá de sementes vegetais não é exclusivo do continente americano, mas já o possuíamos quando do descobrimento. Há iguais no Sudão e na Guiné. O Sr. Artur Ramos notou haver um ritmo especial anunciador de cada “mestre” ou orixá que se incorporava nas Macumbas e Candomblés. Hans Dietschy, citando uma nota de Frobenius, informa que os Haussás do Sudão têm um processo de cura por meio de música, uma espécie de violino e o universal tambor, dedicando a cada um dos muitos espíritos a melodia que lhe pertence. Essa melodia é que se chama “Linha” no Catimbó.

O sincretismo religioso faz convergir objetos e atos católicos para o culto negro, de mistura com reminiscências indígenas. Nos Catimbós são vistos e empregados O Crucifixo, Cristo na posição da crucificação, mas sem a cruz, Santo Antônio, Santa Bárbara[4], incenso, velas acesas, persignações, orações populares como a Magnífica (Magnificat), Ofício-de-Nossa-Senhora, Forças-do-Credo, Santo Amâncio, Santo Sepulcro, Pedra, Cristalina, as in- vocações rituais a São José para abrir e fechar a “mesa”, iniciando e encerrando a sessão. A chave de aço, virgem de uso em fechadura, é empregadíssima. O Sr. Fernando Ortiz encontrou-a entre os descendentes dos iorubanos pruxos de Cuba e usam-na como mascote nos colares. Nos balangandãs baianos a chave aparece. No venerável LIVRO DE S. CIPRIANO a chave é indispensável para fechar o corpo do fiel, fazendo o “religioso” os gestos de quem está fechando uma porta, no peito do enfermo.

Essa chave, chavinha, facilmente encontrada nas orações-fortes, é figuradamente a chave do Sacrário, onde se guarda a Hóstia, a Santa Partícula. Usando-se qualquer, desde que não tenha emprego anterior, o ideal seria a própria, uma legítima chave de Sacrário, um dos amuletos de mais prestígio como afastador de perigos ocultos e forças contrárias. Na cerimônia de “fechar o corpo” a chave intervém cerrando as “entradas” e pontos fracos do corpo. Aparece frequentemente entre berloques e jóias baratas, pendendo de um cacho confuso de adornos de metal industrializados. A significação pode escapar a muitos, mas a utilidade simbólica é um dos elementos do Catimbó.

Notas:

[1] “Costumam esfregar, chupar e defumar os doentes nas partes que tem lesas e dizem que com isto os sarão e disto ha muito uso.” (Anchieta, INFORMAÇÃO DO BRASIL, 25, Cartas Avulsas, 807). Sobre o sopro entre os indígenas, Stradelli, 595, e os cronistas coloniais. É de universal uso, Frazer, Frobenius, Tylor, Gu- sinde, etc.

[2] Stradelli;, Vocabulários, ete. 765, Revista do Instituto Histó- rico Brasileiro, vol. 158, Rio de Janeiro, 1929.

[3] Numa confissão de Gonçalo Fernandes ao Santo Ofício, 13 de janeiro de 1592, reaparece o uso do fumo como processo religioso. Gonçalo Fernandes informava que os indígenas, para a banda do Jaguaribe, “fingiam trazer contas de rezar como que rezavam e falavam certa linguagem por elles inventada e defumavam-se com fumos de herva que chamam Erva Santa e bebiam o dito fumo até que cahiam bebados com elle dizendo que com aquelle fumo lhe entrava o espírito da santidade.” (CONFISSÕES DA BAHIA, 1951- 1592, 87, Rio de Janeiro, 1985.)

[4] Santa Bárbara, defensora durante as tempestades, trovões e raios, é identificada nos Candomblés a Xangô, orixá dos Raios, tem vasta devoção evocatória, nesses momentos de comoção, em Portugal e Brasil. São muitas as orações iniciadas pela frase “Bárbara a bendita”. Ocorre fregiientemente associada a São Jerônimo.


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