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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Temos ainda de examinar um aspecto da grande festa do Solsticio de Verão que talvez nos ajude a esclarecer as dúvidas quanto ao significado das cerimônias dos fogos e sua relação com o druidismo. Na França e na Inglaterra, países onde a influencia dos druidas foi sabidamente mais profunda, a véspera do solstício de verão ainda é a época para colher certas plantas mágicas cuja virtude evanescente só pode ser assegurada por essa mística estação. Na verdade, em toda a Europa, fantasias antigas do mesmo tipo perduraram em relação ao solsticio de verão, impregnando-o com uma fragrância do passado, como as folhas murchas de rosa que, encontradas por acaso entre as páginas de um velho volume, ainda cheiram a verões passados. Assim, em Saintonge e em Aunis, duas das antigas províncias do oeste da França, lemos que, “de todas as festas para as quais tocam os sinos alegres, nenhuma deu maior origem a práticas supersticiosas do que a festa de São João Batista. A véspera de São João era o grande dia para a coleta das ervas mágicas que proporcionavam meios de combater a febre e de curar muitas enfermidades e proteção contra feiticeiros e seus sortilégios. Mas, para alcançar esses resultados, era preciso observar duas condições. Primeiro, era necessário estar jejuando no momento de colher as ervas; segundo, era preciso cortá-las antes do nascer do sol. Se tais condições não fossem respeitadas, as plantam perdiam suas virtudes especiais”. Na verdade, era tão generalizada na França a fé na virtude mágica das ervas colhidas naquele dia que há um provérbio francês, “empregar todas as ervas de São João”, que significa envidar todos os esforços possíveis.
Os alemães do oeste da Boêmia colhem ervas na noite de São João porque acreditam que a virtude curativa das plantas é especialmente poderosa nessa época. A teoria e a prática dos huzuls dos montes Cárpatos são semelhantes: imaginam que as plantas colhidas naquela noite não só são medicinais, como possuem o poder de proteger contra as feiticeiras, e alguns deles acham que devem ser colhidas em doze canteiros ou em doze prados. Entre as ervas que os tchecos e morávios da Silesia colhem nessa estação incluem-se o dente-de-leão, a tanchagem e as flores da tília. Os estonianos da ilha de Oesel colhem as ervas de São João (Jani rohhud) no dia do santo, atam-nas em feixes e penduram-nas pela casa para impedir que nela entrem os espíritos malignos. Um uso subsidiário das plantas é a cura de enfermidades; se colhidas naquele dia, têm maior valor medicinal do que se fossem apanhadas em qualquer outra época. Nem todos escolhem exatamente as mesmas plantas; há quem colha mais, ou menos, mas não deverá faltar nunca o hipericão ou erva-de-são- joão (Jani rohhi, Hypericum perjoratum).
Na Bulgária, o dia de São João é a época especial para colher ervas. Também nesse dia as moças búlgaras colhem ramalhetes de uma certa flor branca, lançam-nos numa vasilha com água e a colocam sob uma roseira em flor, onde fica toda a noite. Na manhã seguinte, levam-na para o pátio e dançam e cantam à sua volta. Uma velha retira em seguida as flores da vasilha, e as moças se lavam na água, rezando para que Deus lhes dê saúde durante todo o ano. Depois disso, a velha devolve os ramalhetes a cada uma das moças e lhes promete um marido rico.
Essa superstição não se limita à Europa e aos povos de origem européia. Também no Marrocos, os muçulmanos são de opinião de que certas plantas, como o poejo, a manjerona e o loendro, adquirem uma virtude mágica especial (baraka) quando colhidas pouco ante¿ do solsticio de verão. Por isso, as pessoas colhem tais plantas nessa estação e preservam-nas para finalidades mágicas ou medicinais. Na verdade, os árabes atribuem poderes tão maravilhosos às plantas colhidas nessa época mística que uma mulher estéril se dispõe a caminhar nua em meio a elas, na noite da véspera do solstício de verão, na esperança de conceber graças à sua influência fertilizante.
Das flores colhidas habitualmente com objetivos mágicos ou divinatórios no solstício de verão, nenhuma talvez seja tão popular quanto a erva- de-são-joão ou hipericão (Hypericum per- joratum). A razão da associação dessa planta com a grande festa do verão talvez não seja difícil de encontrar, pois a flor desponta apro- ximadamente no dia do solstício e, com suas pétalas de um amarelo vivo e seus inúmeros estames dourados, poderia passar perfeitamente por uma pequena reprodução, na terra, do grande sol que nessa época atinge seu ponto culminante no céu.
Outra planta que, segundo se acredita, produz o sangue de São João é a pilosela-das-boti-cas (Hieracium pilosella), que cresce habitualmente em lugares secos e abertos, como margens cascalhosas, gramados ensolarados e no alto dos muros dos parques. Mais comumente, na Alemanha, o nome de flores-de-são-joão (Johannisblumen) parece ser dado à arnica-da- montanha. Em Voigtland, a arnica-da-montanha, se colhida na véspera de São João e colocada nos campos, sob o teto ou pendurada na parede, protege a casa e os campos dos raios e do granizo.
Outra planta dotada de virtudes maravilhosas, se colhida na véspera ou no dia de São João, é a artemísia (Artemísia vulgaris). Por isso, na França ela é conhecida como erva-de-são-joão. O costume de usar cintas de artemísias no dia de São João tornou a planta popular na Alemanha e na Boêmia sob o nome de cinta-de-são-joão. Na Boêmia, acredita-se que tais cintas protejam quem as usa durante todo o ano contra fantasmas, magias, infelicidade e doença. Outra planta que a superstição popular associa com freqüência ao solstício de verão é a verbena. Em certos locais da Espanha, as pessoas colhem verbenas depois do poente, na véspera do solstício de verão, e lavam o rosto, no dia seguinte, com a água em que as plantas passaram a noite. Na Bélgica, a verbena é colhida no dia de São João e usada como proteção contra hérnias.
Em Kirchvers, no Hesse, as pessoas correm para os campos ao meio-dia do dia do Solstício de Verão para colher a camomila, cujas flores, se cortadas no momento em que o sol está no mais alto ponto de seu curso, possuem as qualidades medicinais da planta em grau mais acentuado. Em épocas pagãs, a flor da camomila, com suas qualidades medicinais, seu cálice amarelo e seus estames brancos, teria sido consagrada ao bondoso e brilhante Bálder, de quem trazia o nome. Era chamada de Bal-dersbrâ, isto é, cílios de Bálder.
Mais famosas do que essas, porém, são as propriedades que a superstição popular em muitas regiões da Europa atribuiu ao feto, nessa estação. À meia-noite, na véspera do solstício, a planta, ao que se acredita, floresce e pouco depois dá sementes; quem apanhar a inflorescência ou a semente fica dotado de conhecimentos sobrenaturais e de poderes miraculosos, particularmente o de prever onde estão escondidos os tesouros no chão e o de poder tornar-se invisível colocando a semente de feto no sapato. Mas devem ser tomadas grandes precauções ao se procurar a inflorescência ou a semente miraculosas, que desaparecem rapidamente como o orvalho na areia ou a névoa no ar.
Algumas plantas têm qualidades medicinais autênticas, embora a ligação entre a causa e o efeito possa ser desconhecida. Para serem eficazes, as flores mágicas do solstício de verão tinham de ser colhidas na véspera ou no próprio dia do solstício, que, no calendário da Igreja Católica, é o dia de São João.
não se deve tocá-las com a mão nem deixar que toquem o chão; é necessário abrir um pano branco sob a planta para que a inflorescencia ou a semente nele caiam. Crenças desse tipo relacionadas com a semente do feto foram muito difundidas. Com pequenas variações de detalhe, na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Áustria, na Itália e na Rússia. Igualmente, as pessoas imaginam que, se cortarem um ramo de aveleira na véspera do solstício, ele lhes servirá como um bastão divinatório para descobrir tesouros ou água. Essa crença existe na Morávia, Mecklenburg e, ao que parece, na Escócia e também na Suécia.
Diríamos que as flores, como as fogueiras do verão, são dotadas, na imaginação popular, da virtude de transferirem para a humanidade um pouco dos eflúvios da luz e do calor do sol, que lhes dá, por algum tempo, poderes acima dos normais para curar enfermidades e desmascarar e confundir todos os males que ameaçam a vida do homem.
Essa consideração nos leva de volta à pers- pectiva de que, embora o aspecto puramente destrutivo do fogo seja, em geral, o mais des- tacado e, aparentemente, o mais importante nessas festas, não devemos esquecer a força adicional que, em virtude da magia homeopática ou imitativa, as fogueiras podem obter do sol, ou a ele transmitir, em especial no momento do solsticio de verão, quando sua força a um só tempo é máxima e começa a declinar, e quando O sol pode ao mesmo tempo dar e receber ajuda com a maior vantagem.
O leitor talvez se lembre de que a descrição que fizemos das festas populares dos fogos na Europa foi sugerida pelo mito do deus escan- dinavo Bálder, que teria sido morto por um ramo de visco e queimado numa grande fogueira. Temos, agora, de indagar até que ponto os costumes que examinamos contribuem para esclarecer o mito. Nesta pesquisa, será con- veniente começar com o visco, o instrumento da morte de Bálder.
Desde os tempos imemoriais, o visco era objeto de veneração supersticiosa na Europa. Foi cultuado pelos druidas, como nos diz um trecho de Plínio. Depois de enumerar os diferentes tipos de visco, ele prossegue: “Ao tratar o assunto, a admiração que se tem pelo visco em toda a Gália não deve passar despercebida. Os druidas, pois é assim que os gauleses chamam seus magos, não consideram nada mais sagrado do que o visco e a árvore na qual ele cresce, desde que essa árvore seja um carvalho. Mas, à parte isso, eles sempre escolhem bosques de carvalhos para seus bosques sagrados e não realizam nenhum rito sagrado sem as folhas dessa árvore; de modo que o próprio nome de druidas pode ser considerado como um nome grego derivado de seu culto do carvalho. Eles acreditam que tudo o que cresce nessas árvores é proveniente do céu e constitui sinal de que a árvore foi escolhida pelo próprio deus. O visco é encontrado raramente; mas quando o encontram, colhem-no com solenidade. E o fazem sobretudo no sexto dia da lua, do qual datam o início de seus meses, de seus anos e de seu ciclo de trinta anos, por- que, no sexto dia, a lua tem muito vigor e não percorreu ainda metade de seu curso. Depois dos devidos preparativos para um sacrifício e uma festa sob a árvore, eles a saúdam como um remédio universal e levam ao local dois touros brancos cujos chifres nunca foram aparados. Um sacerdote vestido de branco sobe na árvore e, com uma foice de ouro, corta o visco, que é colhido numa toalha branca. Em seguida sacrificam as vítimas, orando para que Deus possa fazer prosperar seus escolhidos. Acreditam que uma poção preparada com o visco fará com que os animais estéreis reproduzam e que a planta é remédio que vale contra todos os venenos. Uma parte tão grande da religião dos homens é habitualmente dedicada a essas insignificâncias”.
Num outro trecho, Plínio nos diz que o visco que cresce num carvalho era considerado o mais eficaz na medicina e que sua eficácia era tida, por pessoas supersticiosas, como maior se a planta fosse colhida no primeiro dia da lua sem o uso de ferro e se, ao ser colhida, não tocasse a terra. O visco do carvalho assim obtido era considerado como um remédio para a epilepsia; se fosse sempre levado pelas mulheres, ajudava- as a conceber; curava ulcerações com grande eficiência, se o enfermo mastigasse um pedaço da planta e colocasse outro sobre a ferida. Plínio diz ainda que o visco era considerado, como o vinagre e o ovo, um meio excelente para extinguir o fogo.
Se nesses trechos Plínio se refere, como tudo indica que faz, às crenças predominantes entre seus contemporâneos na Itália, segue-se que os druidas e os italianos concordavam, até certo ponto, quanto às valiosas propriedades do visco do carvalho. Ambos o tinham como um remédio eficiente para vários males, e ambos lhe atribuíam uma virtude estimulante: os druidas achavam que uma poção com ele preparada fertilizaria o gado estéril, e os italianos, que um pedaço do visco levado por uma mulher contribuía para que ela concebesse um filho. Além disso, na visão de ambos, para que a planta exercesse suas propriedades medicinais tinha de ser colhida de uma certa maneira e num determinado momento. Não podia ser cortada com ferro, e por isso os druidas a cortavam com ouro; e não podia tocar a terra, e por isso eles a recolhiam numa toalha branca. Ao escolher o momento de colher a planta, tanto os druidas como os italianos orientavam-se pela observação da lua; diferiam apenas quanto ao dia específico da lua, preferindo os italianos o primeiro dia, e os druidas, o sexto.
Em relação às propriedades curativas do visco, a opinião dos camponeses da Europa moderna, e mesmo das pessoas instruídas, coincide até certo ponto com a dos antigos. Os druidas parecem tê- la chamado, ou ao carvalho onde crescia, de “cura-tudo”, que é ainda o nome do visco nas linguagens celtas modernas da Bretanha, do País de Gales, da Irlanda e da Escócia. Na manhã do dia de São João (manhã do solstício de verão), os camponeses do Piemonte e da Lombardia saem em busca de folhas de carvalho para o “óleo de São João”, que, segundo se acredita, cura todos os ferimentos provocados por instrumentos de corte. Originalmente, talvez, o “óleo de São João” fosse simplesmente o visco ou um cozimento dele.
Afirma-se também que o visco é capaz de abrir todas as fechaduras. No Tirol, porém, essa propriedade só pode ser exercida “em certas circunstâncias”, que não são especificadas. Mas talvez a mais preciosa das virtudes do visco seja a de permitir uma proteção eficiente contra a feitiçaria e a bruxaria. É essa, sem dúvida, a razão pela qual, na Áustria, um raminho de visco é colocado na soleira para evitar pesadelos; e essa bem pode ser a razão pela qual, no norte da Inglaterra, se diz que quem desejar que a produção de laticínios aumente deve dar um ramo de visco à primeira vaca que der cria depois do Ano-Novo, pois sabe-se que nada é tão fatal para o leite e a manteiga como a feitiçaria.
Em relação à época em que o visco deve ser colhido, as opiniões variam. Os druidas o colhiam principalmente no sexto dia da lua, e os italianos, ao que tudo indica, no primeiro. Nos tempos modernos, a lua cheia de março tem sido preferida, e outros escolhem a lua minguante do inverno, quando o sol está em Sagitário. A época favorita, porém, parece ser a véspera do solstício de verão ou o próprio dia do solstício. Tanto na França como na Suécia, virtudes especiais são atribuídas ao visco recolhido no solstício de verão. Na Suécia, a regra é a de que “o visco deve ser colhido na noite da véspera do solstício de verão, quando o sol e a lua estão no signo de seu poder”. No País de Gales, acreditava-se que um ramalhete de visco colhido na véspera de São João (véspera do solstício de verão), ou em qualquer momento antes de surgirem as pequenas frutas, propiciaria sonhos pressagos, bons e maus, se fosse colocado sob o traves- seiro. Assim, o visco é uma das muitas plantas cujas virtudes mágicas ou medicinais aumentam com a culminação do sol no dia mais longo do ano. Parece lógico supor, portanto, que, também aos olhos dos druidas, que tinham a planta em tão alta conta, o visco sagrado duplicaria a força de suas qualidades místicas no solsticio de junho, e que, assim sendo, cortavam-no regularmente com solenidade na véspera desse dia.
Seja como for, o certo é que o visco, o ins- trumento da morte de Bálder, era colhido re- gularmente em função de suas qualidades mís- ticas na véspera do solsticio de verão na Escandinávia, que é o berço de Bálder. A planta cresce habitualmente nas pereiras, carvalhos e outras árvores das florestas densas e úmidas, em toda a área mais temperada da Suécia. Assim, um dos dois principais incidentes do mito de Bálder é reproduzido na grande festa do Solsticio de Verão da Escandinávia. Mas o outro incidente importante do mito, a queima do corpo de Bálder numa pira, tem também sua contrapartida nas fogueiras que ainda ardem, ou ardiam até recentemente, na Dinamarca, na Noruega e na Suécia, na véspera desse mesmo solsticio. E verdade que não há indícios de que, nessas fogueiras, sejam queimadas efígies, mas tal queima é um aspecto que poderia desaparecer facilmente depois de esquecido o seu significado. E o nome de fogueiras de Bálder (Balder’s Balar), pelas quais eram antigamente conhecidas na Suécia essas fogueiras do solsticio, torna fora de dúvida a sua ligação com Bálder e bastante provável que, em tempos mais remotos, um representante vivo ou uma efígie de Bálder fosse queimado anualmente nelas. O solsticio de verão era a época do ano consagrada a Bálder, e o poeta sueco Tegner, ao situar nessa época a queima de Bálder, bem pode ter seguido alguma velha tradição segundo a qual o solstício de verão teria sido o período do ano em que o bondoso deus encontrara seu fim prematuro.
Mostramos, assim, que os principais incidentes do mito de Bálder têm suas contrapartidas nas festas dos fogos dos camponeses europeus, que datam, sem dúvida, de época muito anterior ao cristianismo. A simulação que se fazia de lançar ao fogo a vítima escolhida pela sorte durante a festa de Beltane na Escócia e o tratamento semelhante do futuro Lobo Verde na fogueira do solsticio de verão da Normandia podem ser naturalmente interpretados como vestígios do costume mais antigo de efetivamente queimar vivos seres humanos naquelas ocasiões. E a roupa verde do Lobo Verde, bem como o envoltório de folhas do jovem que apagava com os pés a fogueira de verão em Moosheim, parecem indicar que as pessoas que pereciam nessas festas o faziam como espíritos das árvores ou divindades da vegetação. De tudo isso podemos deduzir, razoavelmente, que no mito de Bálder, de um lado, e nas festas dos fogos e no costume de colher o visco, do outro, temos como que as duas metades separadas de um todo original. Em outras palavras, podemos supor, com um certo grau de probabilidade, que o mito da morte de Bálder não era simplesmente um mito, isto é, uma descrição de fenômenos físicos com imagens tomadas de empréstimo à vida humana, mas que era, ao mesmo tempo, a história que as pessoas contavam para explicar por que queimavam anualmente um repre- sentante humano do deus e cortavam o visco com solenidade. Se estamos certos, a história do fim trágico de Bálder constituía, por assim dizer, o texto do drama sagrado que era representado todos os anos como um rito mágico para fazer com que o sol brilhasse, as árvores crescessem e as plantações vicejassem e para proteger os homens e os animais contra as artes insidiosas de fadas e duendes, de bruxas e feiticeiros. Em suma, a história pertencia àquela classe de mitos da natureza que se destinam a ser suplementados pelo ritual. No caso, como ocorre com tanta freqüência, o mito estava para a mágica assim como a teoria está para a prática.
Mas, se as vítimas — os Balders humanos — que morreram pelo fogo, na primavera ou no verão, foram mortas como personificações vivas de espíritos das árvores ou de divindades da vegetação, tudo indica, então, que o próprio Bálder deve ter sido um desses espíritos das árvores ou divindades da vegetação.
Ora, examinando o caráter primitivo e a semelhança notável das festas dos fogos obser- vadas por todos os ramos da raça ariana na Europa, podemos inferir que essas festas formam parte do fundo comum de preceitos religiosos que os vários povos levaram consigo em suas andanças a partir de seu berço natal. Mas, se estamos certos, uma característica essencial dessas primitivas festas dos fogos era a queima de um homem que representava o espírito da árvore. E, tendo em vista o lugar ocupado pelo carvalho na religião dos árias, a suposição é de que a árvore assim representada nas festas dos fogos deve ter sido, originalmente, o carvalho. A conclusão assim estabelecida em relação aos árias europeus em geral é confirmada em sua aplicação especial aos escandinavos pela relação que, para eles, parece ter havido entre o visco e a queima da vítima na fogueira do verão. Vimos que, entre os escandinavos, era costume colher o visco no solstício de verão. Mas, pelo que esse costume parece indicar, não há nada para rela- cioná-lo com as fogueiras do solstício de verão nas quais as vítimas humanas, ou suas efígies, eram queimadas. Mesmo que a fogueira, como parece provável, tenha sido originalmente sem- pre feita de carvalhos, por que teria sido ne- cessário arrancar o visco? O último elo entre os costumes de verão de colher o visco e fazer fogueiras é proporcionado pelo mito de Bálder, que dificilmente pode ser separado dos costumes em questão. O mito sugere que uma conexão vital pode ter subsistido entre o visco e o representante humano do carvalho que era queimado na fogueira. De acordo com o mito, Bálder não poderia ter sido morto por nada que existisse no céu e na terra que não fosse o visco, e, enquanto este permanecesse no carvalho, o deus seria não só imortal, mas também invulnerável. Ora, se supusermos que Bálder era o carvalho, a origem do mito se torna inteligível. O visco era encarado como a sede da vida do carvalho, e, enquanto estivesse ileso, nada poderia matar ou mesmo ferir a árvore. A concepção do visco como sede da vida do carvalho seria naturalmente sugerida aos povos primitivos pela observação de que o carvalho é decíduo, mas o visco que nele cresce é perene. No inverno, a visão de suas folhas sempre frescas entre os ramos desnudos do carvalho deve ter sido saudada pelos adoradores da árvore como um sinal de que a vida divina que deixara de animar aqueles ramos continuava sobrevivendo no visco como o coração de uma pessoa adormecida, que bate enquanto seu corpo está imóvel. Assim, quando o deus tinha de ser morto — quando a árvore sagrada tinha de ser queimada — era necessário começar arrancando o visco. Enquanto este permanecesse intacto, o carvalho era invulnerável; todos os golpes das facas e machados deslizariam pela sua superfície sem lhe fazer mal. Mas, uma vez arrancado o coração sagrado do carvalho — o visco —, a árvore estava pronta para ser tombada. E quando, em épocas posteriores, o espírito do carvalho passou a ser representado por um homem vivo, era logicamente necessário supor que, do mesmo modo que a árvore por ele personificada, ele não poderia ser morto nem ferido enquanto o visco continuasse ileso. Arrancar o visco era assim, ao mesmo tempo, o sinal e a causa de sua morte.
Mas, como a idéia de um ser cuja vida está, de certa maneira, fora dele mesmo, deve ser estranha a muitos leitores, e ainda não foi, na realidade, reconhecida toda a sua influência sobre a superstição primitiva, vale a pena ilus- trarmos tal idéia com exemplos colhidos tanto na lenda como no costume. O resultado será mostrarmos que, ao tomar essa idéia como a explicação da relação entre Bálder e o visco, estamos recorrendo a um princípio profunda- mente gravado no espírito do homem primitivo.
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