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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
A pesquisa que fizemos do costume de expulsar publicamente os males acumulados de uma aldeia, cidade ou país sugere algumas observações de ordem geral.
Em primeiro lugar, não há dúvida de que a expulsão imediata e a expulsão mediata do mal têm a mesma intenção, ou seja, quer sejam os males considerados como invisíveis, quer estejam materializados numa forma física, essa é uma circunstância totalmente subordinada ao objetivo principal da cerimónia, que é simplesmente obter a eliminação total de todos os males que assolam um povo. Se faltava algum elo para ligar os dois tipos de expulsão, ele nos seria proporcionado por práticas como a de mandar os males embora numa carroça ou num barco. Nesse caso, os males são invisíveis e intangíveis, e, por outro lado, há um veículo visível e concreto para levá-los para longe. O bode expiatório nada mais é do que esse veículo.
Em segundo lugar, quando se realiza perio- dicamente uma eliminação geral dos males, o intervalo entre as celebrações das cerimónias é, habitualmente, de um ano, e a época do ano em que elas são feitas coincide em geral com uma mudança nítida de estação, como o início ou fim do inverno nas zonas árticas e temperadas e o início ou fim da estação das chuvas nos trópicos. A maior mortalidade que essas modificações climáticas podem provocar, especialmente entre os selvagens mal-alimentados, malvestidos e mal- abrigados, é atribuída por eles à ação dos demônios, que por isso devem ser expulsos. Por essa razão, nas regiões tropicais da Nova Bretanha e do Peru, os demônios são, ou eram, expulsos ao início da temporada chuvosa; no litoral desolado da Terra de Baffin, eles são expulsos à aproximação do violento inverno ártico. Quando a tribo adotou a agricultura, a época da expulsão geral dos demônios coincide, naturalmente, com uma das épocas do ano agrícola, a semeadura ou a colheita. Mas como essas épocas naturalmente coincidem com as mudanças de estação, não se segue que a transição da caça ou da vida pastoril para a vida agrícola implique qualquer modificação na época da celebração desse grande rito anual. Certas comunidades agrícolas da índia e os kooshs hindus realizam sua eliminação geral dos diabos na colheita, outros povos o fazem por ocasião da semeadura. Mas qualquer que seja a estação do ano em que se realiza, a expulsão geral dos demônios marca habitualmente o início do novo ano. Antes de entrar num novo ano, as pessoas se preocupam em eliminar os problemas que foram motivo de preocupação no passado; é por isso que em tantas comunidades o início do novo ano é marcado por uma expulsão solene e pública dos espíritos malignos.
Em terceiro lugar, devemos observar que a expulsão pública e periódica dos demônios é habitualmente antecedida, ou então seguida, de um período de liberalização dos costumes, durante o qual as restrições comuns da sociedade são postas de lado, e tudo, com exceção dos crimes mais graves, é permitido. Na Guiné e em Tonquim, esse período antecede a expulsão pública dos demônios, e a suspensão do governo ordinário de Lassa antes da expulsão do bode expiatório é talvez um resquício de um período semelhante de licenciosidade generalizada. Entre os hos da Índia, tal período segue-se à expulsão dos demônios. Há poucas indicações quanto a se precedia ou sucedia à expulsão dos males entre os iroqueses. De qualquer modo, o extraordinário relaxamento de todas as regras comuns de comportamento nessas ocasiões é explicado, sem dúvida, pela eliminação geral dos males que a precede ou antecede. De um lado, quando uma eliminação geral dos males e uma absolvição de todos os pecados está na iminência de ser realizada, os homens se sentem estimulados a dar rédeas às suas paixões, confiantes em que a próxima cerimônia eliminará os pontos negativos que estão se acumulando tão rapidamente.
Por outro lado, quando a cerimônia acabou de ser realizada, a mente dos homens se sente livre da sensação opressiva, sob a qual opera geralmente, de uma atmosfera carregada de demônios. Na primeira reação de alegria, ultrapassam os limites comumente impostos pelos costumes e pela moral. Quando a solenidade é realizada na época da colheita, o sentimento de satisfação que provoca é reforçado pelo estado de bem-estar físico proporcionado por uma reserva abundante de alimentos.
Em quarto lugar, o uso de um homem ou animal divino como bode expiatório deve ser registrado em especial; na realidade, temos nesse caso, diretamente, o costume de expulsar os males apenas na medida em que se acredita serem eles transferidos para um deus que é posteriormente imolado. Há boas razões para supor que o costume de empregar um homem ou animal divino como bode expiatório público é muito mais difundido do que se poderia pensar pelos exemplos citados. Como já observamos, o costume de imolar um deus data de um período tão remoto da história humana que, em épocas posteriores, mesmo quando o costume continua a ser praticado, é passível de interpretação errônea. O caráter divino do animal ou homem é esquecido, e ele passa a ser considerado apenas como uma vítima comum. Isso tende a ocorrer especialmente quando é o homem divino o sacrificado. Quando uma nação se torna civilizada, se não abandona totalmente os sacrifícios humanos, pelo menos escolhe como vítimas apenas aqueles que, de qualquer modo, seriam condenados à morte. Assim, a imolação de um deus pode, por vezes, ser confundida com a execução de um criminoso.
Se perguntarmos por que um deus que morre deve ser escolhido para tomar sobre si e levar consigo os pecados e sofrimentos do povo, poderíamos responder que, na prática de usar a divindade como bode expiatório, temos uma combinação de dois costumes que foram, numa determinada época, distintos e independentes. Vimos, de um lado, que era hábito imolar o deus humano ou animal com o fito de salvar sua vida divina do enfraquecimento resultante da velhice. Por outro lado, vimos que também era hábito proceder à expulsão geral dos males e pecados uma vez por ano. Ora, se ocorresse às pessoas combinarem esses dois costumes, o resultado seria a utilização do deus que morre como bode expiatório. Originalmente, ele não era morto para eliminar o pecado, mas para salvar a vida divina da degeneração da idade. Mas, já que ele tinha de ser morto de qualquer modo, pode ter surgido a idéia de aproveitar a oportunidade para lançar sobre ele o peso dos sofrimentos e dos pecados do povo para que ele os pudesse levar consigo para o mundo desconhecido de além-túmulo.
O uso da divindade como bode expiatório elimina a ambigüidade que, como já vimos, parece pairar sobre o costume folclórico europeu de “levar embora a Morte”. Mostramos haver razão para acreditar que, nessa solenidade, a chamada “Morte” fosse originalmente o espírito da vegetação, que era morto anualmente na primavera para que pudesse renascer com todo o vigor da juventude. Mas, como dissemos, há certos aspectos da cerimônia que não são explicáveis apenas por essa hipótese: referimo-nos às manifestações de alegria com que a efígie da Morte é levada para ser enterrada ou queimada e ao medo e à repugnância que por ela manifestam os que a levam. Esses aspectos, porém, tornam-se imediatamente compreensíveis se supusermos que a Morte não era apenas o deus da vegetação que morre, mas também um bode expiatório público, sobre o qual foram lançados todos os males que haviam afligido o povo no último ano. A alegria, nessa ocasião, é natural e adequada; e, se o deus que morre aparentar ser o objeto de um temor e de uma aversão que são devidos não a ele, mas aos pecados e infelicidades de que está carregado, isso surge apenas da dificuldade de distinguir ou, pelo menos, de marcar bem a distinção entre o carregador e sua carga. Quando a carga é de caráter daninho, o seu portador será temido e evitado como se ele próprio estivesse imbuído dessas propriedades perigosas das quais é, por assim dizer, apenas o veículo. Da mesma forma, vimos que os barcos carregados de enfermidades e pecados são temidos e evitados pelos povos das índias holandesas. Mais uma vez, a concepção de que, nesses costumes populares, a Morte é tanto um bode expiatório quanto o representante do espírito divino da vegetação é apoiada pela circunstância de que a sua expulsão é sempre celebrada na primavera e principalmente pelos povos eslavônios. Isso porque o ano eslavônio começa na primavera e, dessa forma, num de seus aspectos, a cerimônia de “levar embora a Morte” seria um exemplo do costume generalizado de expulsar os males acumulados durante o ano velho quando se inicia um novo ano.
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