Leia em 21 minutos.
Este texto foi lambido por 70 almas esse mês
excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
A mãe dos grãos na Europa
Tivemos razões para identificar Demetér como a mãe dos grãos, e, das duas espécies de cereais a ela associados na religião grega, ou seja, a cevada e o trigo, a primeira tem talvez maior direito de ser considerada como o seu elemento original, pois não só parece ter sido a base da dieta dos gregos do período homérico, como também porque há razões para se acreditar que é um dos mais antigos, talvez o mais antigo mesmo, dos cereais cultivados pela raça ariana. Sem dúvida, o uso da cevada tanto no ritual religioso dos antigos hindus como no dos gregos da Antiguidade, representa um ponderável argumento em favor da grande ancianidade de seu cultivo, que sabemos ter sido praticado pelos habitantes das proximidades dos lagos da Idade da Pedra na Europa.
Analogias com a mãe dos grãos, ou mãe da cevada, da Grécia antiga foram recolhidas no folclore da Europa moderna. As que mencio- namos a seguir podem servir de exemplos.
Na Alemanha, o cereal é comumente perso- nificado sob o nome da mãe dos grãos, que tem um papel importante nos costumes relacionados com a colheita. Acredita-se que ela esteja presente no último punhado de cereal que fica de pé no campo; e, ao ser este ceifado, ela é colhida, ou expulsa, ou morta. No primeiro caso, o último feixe é levado alegremente para casa e recebe honras de ser divino. É colocado no celeiro, e na debulha o espírito dos grãos volta a aparecer.
Na Rússia, como em outros lugares, o último feixe é, com freqüência, modelado na forma de uma mulher, vestido com roupas femininas e levado para a fazenda ao som de cantos e danças. Com o último feixe, os búlgaros fazem uma boneca que chamam de “rainha dos grãos”, ou “mãe dos grãos”, a qual é vestida de mulher, levada em procissão pela aldeia e, em seguida, lançada ao rio para assegurar abundância de chuvas e de orvalho para as próximas plantações. Ou então é queimada, sendo as cinzas espalhadas pelos campos, sem dúvida para fertilizá-los. O nome de rainha, aplicado ao último feixe, encontra analogias na Europa central e setentrional. Milton deve ter conhecido o costume da rainha da colheita, pois no Paradise lost ele diz:
“Adam the while Waiting desirous her return, had wove Of choicest flow’rs a garland to adorn Her tresses, and her rural labours crown, As reapers oft are wont their harvest-queen”.
Os costumes desse tipo são muitas vezes praticados não no campo onde se realiza a colheita, mas na eira. O espírito dos grãos, que foge dos ceifadores à medida em que estes vão cortando os grãos maduros, deixa o cereal colhido e se refugia no celeiro, onde aparece no último feixe debulhado, seja para perecer sob os golpes do mangual, ou para fugir dali para o cereal ainda não malhado de uma fazenda próxima. Assim, o último cereal a ser malhado é chamado “mãe dos grãos” ou “a velha”. Por vezes, a pessoa que dá o último golpe com o mangual é chamada “a velha” e é enrolada nas palhas do último feixe, ou então amarram-lhe às costas um feixe de palhas.
Em certos locais da Suécia, quando uma mulher estranha aparece na eira, o mangual é posto em torno de seu corpo, palhas lhe são atadas em torno do pescoço, uma coroa de espigas enfeita- lhe a cabeça, e os camponeses gritam: “Olhem a mulher dos grãos!” A estranha que aparece subitamente é considerada como o espírito dos grãos que acabou de ser expulso das espigas pelos manguais. Em outros casos, a mulher do fazendeiro representa o espírito dos grãos. Assim, na comuna de Saligné, no cantão francês de Poiret (Vendéia), a mulher do fazendeiro, juntamente com o último feixe, é embrulhada num lençol, colocada numa maca e levada até a máquina de debulhar, sob a qual é colocada. Em seguida, retiram-na dali e malha-se só o cereal, mas a mulher é jogada para o alto no lençol como se estivesse sendo peneirada. Seria impossível expressar mais claramente a identificação da mulher com o cereal do que por essa imitação literal dos atos de malhar e peneirar.
Em geral, o espírito dos grãos maduro é considerado velho ou, pelo menos, de idade madura. Daí os nomes “mãe”, “avó”, “a velha”, etc. Em outros casos, porém, o espírito dos grãos é considerado jovem. Assim em Saldem, perto de Wolfenbuttel, depois de colhido o centeio, três feixes são atados juntos com uma corda de modo a parecerem uma boneca, cuja cabeça é formada pelas espigas. Essa boneca é chamada “a virgem” ou “virgem dos grãos” (Kornjungfer). Por vezes, o espírito do cereal é concebido como uma criança separada da mãe pelo golpe da foice. Essa última interpretação é evidente no costume polonês de dizer ao homem que corta o último feixe: “Cortaste o cordão do umbigo”. Em certos distritos da Prússia Ocidental, a figura feita do último feixe é chamada de “o bastardo”, e com ele enrolam um rapaz. À mulher que amarra o último feixe e representa a mãe dos grãos dizem que ela vá para a cama, e ela responde gritando como se experimentasse as dores do parto. Uma mulher mais velha, como uma avó, representa a parteira. Finalmente, proclama-se nascida a criança, e o rapaz que estava enrolado no feixe chora como se fosse um recém-nascido. A avó o envolve num saco, que imita o cueiro, e a pretensa criança é levada alegremente para o celeiro, para que não apanhe um resfriado ao ar livre. Em outras partes do norte da Alemanha, o último feixe, ou o boneco dele feito, é chamado de “a criança”, “criança da colheita”, e assim por diante, e à mulher que o amarra dizem: “Você fica com a criança”.
Uma idade um pouco mais madura, mas ainda jovem, é atribuída ao espírito dos grãos pelos nomes de “a noiva”, “noiva da aveia” e “noiva do trigo” que, na Alemanha, são, por vezes, dados tanto ao último feixe como à mulher que o amarra. Nos trigais das cercanias de Müglitz, na Morávia, uma pequena parte do trigo fica sem ser colhido depois de concluídos os trabalhos da colheita. Mais tarde é cortado, em meio à alegria dos ceifadores, por uma moça que usa uma grinalda de espigas de trigo na cabeça e atende pelo nome de “noiva do trigo”. Acredita-se que, ainda naquele ano, ela será uma noiva de verdade.
Por vezes a idéia que existe implícita sob o nome de “noiva” é desenvolvida melhor repre- sentando-se a força produtiva da vegetação como noiva e noivo. Na Silésia austríaca, a cerimônia da “noiva do trigo” é celebrada pelos jovens ao final da colheita. A mulher que amarrou o último feixe faz o papel de noiva, usando uma coroa de espigas de trigo e flores na cabeça. Assim enfeitada, ela vai, sentada ao lado do seu noivo e cercada das damas de honra, numa carroça puxada por uma parelha de bois — trata-se de uma imitação completa da procissão matrimonial — até a taverna, onde se dança até o amanhecer. Quando a estação está um pouco mais avançada, celebra-se o casamento da noiva da aveia com a mesma pompa rústica. Em Neisse, na Silésia, um rei e uma rainha da aveia, vestidos como para um casamento, sentam-se numa grade de arado e são puxados por bois até a aldeia.
Os costumes relacionados com a colheita que descrevemos acima apresentam uma analogia notável com os costumes relativos à primavera, que examinamos na primeira parte deste trabalho. Nos costumes da primavera, o espírito da árvore é representado tanto pela árvore como por uma pessoa, ao passo que, nos costumes da colheita, o espírito dos grãos é representado tanto pelo último feixe como pela pessoa que o corta ou amarra, ou ainda pela que o debulha. A equivalência entre feixe e pessoa evidencia-se pelo fato de ser dado a ambos o mesmo nome, de ser a pessoa enrolada no feixe, e pela regra observada em certos lugares, segundo a qual, quando o último feixe é chamado de “mãe”, uma forma humana lhe deve ser dada pela mulher casada mais velha, mas, se for chamado de “virgem”, os talos de que é feito devem ser cortados pela moça mais jovem. No caso, a idade do representante pessoal do espírito do cereal corresponde à suposta idade do espírito, tal como as vítimas oferecidas pelos mexicanos para promover o crescimento do milho variavam com a idade deste. No costume mexicano, como no europeu, os seres humanos eram provavelmente representantes do espírito dos grãos e não vítimas a ele oferecidas. A mesma influência fertilizadora que se supõe ser exercida pelo espírito da árvore sobre a vegetação, sobre o gado e até mesmo sobre as mulheres é também atribuída ao espírito dos grãos. Essa suposta influência sobre a vegetação evidencia-se pela prática de pegar uma parte dos grãos do último feixe (no qual se supõe habitualmente que o espírito dos grãos esteja presente) e espalhá-los entre os novos grãos, na primavera, ou misturá- los com as sementes. A influência sobre os animais fica evidenciada pelo fato de um punhado dos grãos do último feixe serem dados a uma égua ou a uma vaca com crias e aos cavalos usados na primeira aradura. Finalmente, a influência sobre as mulheres é indicada pelo costume de entregar o feixe-mãe, modelado à semelhança de uma mulher grávida, à esposa do fazendeiro, acreditando-se que a mulher que amarra o último feixe terá um filho dentro de um ano, e talvez também pela idéia de que a pessoa a quem esse feixe cabe estará casada em breve. É evidente, portanto, que esses costumes re- lacionados à primavera e à colheita baseiam-se nos mesmos modos de pensar antigos, e fazem parte do mesmo paganismo primitivo, praticado certamente pelos nossos ancestrais muito antes do alvorecer da história. Nenhuma classe de pessoas e nenhum lugar especial são reservados exclusivamente à sua observação: podem ser praticados por qualquer pessoa, senhor ou servo, senhora ou serva, rapaz ou moça; celebram-se não em templos ou igrejas, mas nas florestas e campos, ao lado de regatos, em celeiros, em plantações e em cabanas. Os seres sobrenaturais, cuja existência é tida como certa por esses costumes, são antes espíritos do que divindades. Suas funções limitam-se a certos setores da natureza bem definidos: em geral seus nomes, como “mãe da cevada”, “a velha”, “a virgem”, não são nomes próprios, como Demetér, Perséfone, Dioniso. Seus atributos genéricos são conhecidos, mas suas histórias e personalidades individuais não são motivo para mitos. Existem mais como classe do que como indivíduos, e os membros de cada classe são indistinguíveis. Por exemplo, toda fazenda tem a sua mãe dos grãos, a sua velha, ou a sua virgem, mas todas elas se assemelham entre si. Finalmente, nesses costumes das colheitas, como nos da primavera, o ritual é antes mágico do que propiciatório. Isso se evidencia por atos como jogar no rio a mãe dos grãos para com isso assegurar chuvas e orvalho para as plantações; fazer bem pesada a velha para que se tenha uma colheita pesada no ano seguinte; espalhar grãos das espigas do último feixe entre as novas plantações na primavera; e dar os grãos do último feixe ao gado, para que se desenvolva.
A mãe dos grãos em várias terras
Os povos europeus, antigos e modernos, não foram os únicos a personificar o cereal como uma deusa-mãe. A mesma idéia simples ocorreu a outras raças agrícolas nas mais distantes partes do mundo e foi por elas aplicada a outros cereais indígenas que não a cevada e o trigo.
Se a Europa tem a sua mãe do trigo e sua mãe da cevada, a América tem a sua mãe do milho e as Índias Orientais, a sua mãe do arroz. Vamos agora ilustrar essas personificações, começando com a personificação americana do milho.
A mãe do milho peruana, feita de milho vestido de ricas roupagens, era guardada durante um ano para que, por seu intermédio, o milho pudesse crescer e multiplicar-se. Temendo, porém, que suas forças não fossem suficientes para durar até a colheita seguinte, perguntavam-lhe, no meio do ano, como se sentia, e, se dissesse que se sentia fraca, era queimada e uma nova mãe do milho era feita, “para que a semente do milho não perecesse”. Temos nesse caso, como se pode observar, uma vigorosa confirmação da explicação já dada para o costume de eliminar o deus, fanto periódica como ocasionalmente. A mãe do milho podia, em geral, viver todo o ano, sendo esse o período durante o qual se podia supor, razoavelmente, que suas forças não decairiam; mas, se qualquer sintoma de fraqueza se mani- festasse, ela era eliminada, e uma nova e vigo- rosa mãe do milho tomava seu lugar para que o milho, que dela dependia para sua existência, não adoecesse e morresse.
Uma descrição do antigo culto do milho entre os mexicanos foi feita pelo monge franciscano Bernardino de Sahagun, que chegou ao México em 1529, apenas oito anos depois da conquista pelos espanhóis, e dedicou os restantes sessenta e um anos de sua longa vida ao trabalho entre os índios para o seu bem moral e espiritual. Ficamos sabendo, por ele, de certos detalhes valiosos sobre o culto da deusa do milho e as cerimônias observadas pelos mexicanos com o objetivo de assegurar boas colheitas. A festa era a quarta do ano asteca e tinha o nome de “grande vigília”. Caía numa data que corresponde a 7 de abril. O nome da deusa do milho era Chicomecóatl, e os mexicanos a concebiam e representavam sob a forma de uma mulher de rosto, braços e pernas vermelhos, com uma coroa de papel pintado de vermelhão, e vestida com roupas da cor da cereja madura. Sem dúvida, as cores vermelhas da deusa e de suas roupas referiam-se ao tom laranja-escuro do milho maduro; era como o cabelo amarelo de Demetér, a deusa grega do cereal. Acreditava-se que ela era capaz de fazer crescer todos os tipos de milho, vagens e legumes. No dia de sua festa os mexicanos mandavam buscar, em cada campo plantado, um pé de milho, que levavam para casa e saudavam como seus deuses do milho, instalando-os em juas moradas, vestin-do-os com suas roupas e colocando comida à sua frente. Depois do poente, levavam-nos para o templo da deusa do milho, onde, lutando entre si, arrancavam os pés de milho, uns das mãos dos outros, e golpeavam-se mutuamente com eles. Além disso, nessa festa levavam também para o templo da deusa do milho as espigas que seriam usadas na semeadura. As espigas eram levadas, em grupos de sete e embrulhadas em papel vermelho, por três virgens. Uma das moças era pequena e usava cabelo curto, outra era mais velha com cabelos longos, e a terceira já era adulta e tinha o cabelo preso em volta da cabeça. Penas vermelhas eram coladas aos braços e pernas das três, e seus rostos eram pintados, provavelmente para se assemelharem à deusa vermelha do milho, a quem deveriam personificar nas várias fases do crescimento do cereal. As espi- gas de milho que levavam para o templo da divindade do milho, c. 500 da nossa era. British Museum, Londres.
Os índios do leste da América do Norte, que subsistiam em grande parte graças ao cultivo do milho, concebiam em geral o espírito do milho como uma mulher e acreditavam que a própria planta havia surgido originalmente das gotas de sangue ou do cadáver da mulher dos grãos. Nas fórmulas sagradas dos cheroquis, o cereal é por vezes invocado como a “mulher velha”, e um dos seus mitos conta como um caçador viu uma bela mulher sair de um pé de milho isolado no campo. Os iroqueses acreditavam que o espírito dos grãos, o espírito das vagens e o espírito das abóboras eram três irmãs vestidas das folhas de suas respectivas plantas, que se amavam muito e gostavam de viver juntas. Essa trindade divina é conhecida pelo nome de De-o-ha-ko, ou seja, “nossa vida” ou “nossos sustentos”. As três pessoas da trindade não têm nomes individuais e não são mencionadas nunca separadamente, exceto quando são descritas. Os índios contam uma lenda segundo a qual antigamente o milho era cultivado com facilidade, sua produção era abundante, e o grão muito rico em óleo, até que o Maligno, invejoso desse útil dom concedido ao homem pelo grande espírito, lançou sobre os campos uma praga.
E ainda hoje, quando o vento faz farfalhar o milho, o índio crédulo julga ouvir o espírito do milho lamentando sua fecundidade perdida. Os índios huichols, do México, consideram o milho como uma menina que se pode, às vezes, ouvir chorando nos campos, tanto medo tem ela dos animais selvagens que comem o milho.
Acreditando que o arroz é animado por uma alma como a do homem, os indonésios naturalmente tratam-no com a deferência e a consideração que têm para com seus semelhantes. Assim, eles se comportam para com o arroz em floração tal como se comportam para com uma mulher grávida; abstêm-se de disparar armas ou fazer barulho nos campos para não assustar a alma do arroz, que poderia abortar e não produzir nenhum grão. Pela mesma razão, não falam de cadáveres ou de demônios nos arrozais. Além disso, alimentam o arroz em flor com comidas de vários tipos, que acreditam serem boas para as mulheres grávidas. Mas, quando as espiguetas estão começando a se formar, são consideradas como crianças, e as mulheres saem pelos campos a alimentá-las com papas como se tratassem de crianças de verdade. Nessas comparações naturais e óbvias da planta em processo de reprodução com a mulher grávida e do grão novo com a criança, devemos buscar a origem da concepção grega, que lhe é próxima, da mãe dos grãos e da filha dos grãos, Demetér e Perséfone, e não precisamos ir mais longe para localizá-la numa divisão primitiva do trabalho entre os sexos. Mas, se a timorata alma feminina do arroz pode ser atemorizada a ponto de ter um aborto até mesmo pelo barulho, é fácil imaginar quais não seriam os seus sentimentos quando chega a colheita, ocasião em que se impõe a triste necessidade de cortar o arroz com faca. Numa estação tão crítica são necessárias todas as precauções para tornar a operação cirúrgica da colheita a mais discreta e menos dolorosa possível. Por isso, a colheita do arroz é feita com facas de um formato peculiar, em que as lâminas ficam ocultas pela mão do ceifador para não assustarem o espírito do arroz até o último momento, quando sua cabeça é cortada quase sem que tenha conhecimento. É pela mesma razão delicada que os segadores que trabalham nos campos empregam uma linguagem que o espírito do arroz não pode compreender, para que ele não se dê conta do que está acontecendo até que as espiguetas estejam a salvo, depositadas no cesto. O costume europeu de representar o espírito dos grãos sob a dupla forma de noiva e noivo tem seu paralelo numa cerimônia observada na colheita do arroz em Java. Antes que os ceifadores comecem seu trabalho, o sacerdote ou feiticeiro colhe um certo número de espiguetas, que são atadas, aspergidas de óleo e adornadas de flores. Assim enfeitadas, são chamadas de padi-pengantèn, isto é, a “noiva do arroz” e o “noivo do arroz”; sua festa de casamento é celebrada, e o corte do arroz co- meça imediatamente depois. Mais tarde, quando o arroz já está sendo armazenado, é preparada, num canto do celeiro, uma câmara nupcial, adornada com uma esteira nova, uma lâmpada e todos os tipos de artigos de toalete. Feixes de arroz são colocados ao lado do noivo do arroz e da noiva do arroz, representando os convidados. Enquanto isso não se faz, a totalidade da colheita não pode ser armazenada no celeiro. E, nos primeiros quarenta dias depois de armazenado o arroz, ninguém pode entrar no celeiro, para não perturbar os recém- casados.
Assim, a teoria que reconhece na mãe dos grãos, na virgem dos grãos, etc, da Europa a personificação, sob forma vegetal, do princípio que anima as plantações confirma-se amplamente pelas evidências recolhidas entre povos de outras partes do mundo, que, por se terem atrasado, no que diz respeito ao seu desenvolvimento mental, em relação às raças européias, conservam um senso mais profundo dos motivos originais bastante propício à observação desses ritos rústicos que, entre nós, desceram ao nível de resquícios sem significação. Contudo, nos paralelos até aqui estabelecidos com costumes de povos não-europeus, o espírito das plantações só aparece sob forma vegetal. Resta, portanto, mostrar que outras raças além dos camponeses europeus conceberam aquele espírito como incorporado ou representado por homens e mulheres vivos. Devo lembrar ao leitor que esse tópico é pertinente ao tema deste livro, pois quanto mais numerosos os exemplos de seres humanos cuja própria pessoa representa a vida ou o espírito animador das plantas, menos difícil se tornará classificar entre eles o rei do bosque de Nemi.
Os mandans e os minnatarres da América do Norte realizavam na primavera uma festa a que chamavam de “festa feminina do tratamento do cereal”. Acreditavam eles que uma certa mulher velha que nunca morre fazia as plantas crescerem e que, vivendo em algum lugar do sul, ela mandava as aves aquáticas migratórias na primavera como seus representantes. Cada tipo de ave representava um tipo especial de planta cultivado pelos índios: o ganso selvagem representava o milho, o cisne selvagem representava as cabaças, o pato selvagem re- presentava as vagens. Dessa forma, quando os alados mensageiros da mulher velha que nunca morre começavam a chegar na primavera, os índios celebravam a festa do remédio do cereal das mulheres. Erguiam-se palanques nos quais se penduravam carne-seca e outras coisas como oferendas à velha, e em certo dia, as mulheres velhas da tribo, como representantes da mulher velha que nunca morre, reuniam-se nos palanques, cada qual levando uma espiga de milho amarrada numa vara. Primeiro, plantavam as varas no chão, em seguida dançavam em torno dos palanques e, finalmente, pegavam novamente as varas em suas mãos. Enquanto isso, velhos tocavam tambores e chocalhos, como acompanhamento musical da dança das velhas, e moças vinham colocar carne-seca na boca das velhas, em troca do que recebiam um grão do milho consagrado para comer. Três ou quatro grãos do milho sagrado eram também colocados nos pratos das moças para ser depois cuidadosamente misturados com as sementes de milho, que deveriam fertilizar. A carne-seca pendurada no palanque como oferenda pertencia às velhas porque estas representavam a mulher velha que nunca morre.
Uma festa semelhante, de tratamento do cereal, era realizada no outono, com o objetivo de atrair as manadas de búfalos e assegurar o abastecimento de carne. Nessa ocasião, toda mulher levava nos braços um pé de milho. O nome de mulher velha que nunca morre era dado pelos índios tanto ao milho como aos pássaros, que acreditavam serem símbolos dos frutos da terra, e a eles eram feitas, no outono, orações que diziam: “Mãe, tem piedade de nós! Não nos mandes o frio acerbo demasiado cedo, pois assim não teremos carne suficiente! Não deixes que a caça fuja, para que possamos ter alguma coisa para o inverno!” No outono, quando as aves voavam para o sul, os índios achavam que estavam indo para casa, para a mulher velha que nunca morre, e levando as oferendas que haviam sido penduradas nos pa- lanques, especialmente a carne-seca, que ela co- mia. Nesse caso, o espírito ou a divindade dos grãos era concebida como uma velha, e representada de forma material por velhas que, em sua qualidade de representantes, recebiam pelo menos parte das oferendas a ela destinadas.
Comparadas a personagens como a mãe dos grãos e a virgem dos grãos dos primórdios da Europa moderna, as gregas Demetér e Perséfone são produtos posteriores da evolução religiosa. Não obstante, como membros da família ariana, os gregos devem, em alguma época, ter observado costumes de colheita semelhantes aos que são praticados ainda pelos celtas, teutões e eslavos, e que, muito além dos limites do mundo ariano, foram praticados pelos índios do Peru, pelos daiaques de Bornéu e por muitos outros nativos das índias holandesas — prova suficiente de que as idéias em que tais costumes se baseiam não se limitam a uma raça, mas se apresentam naturalmente a todos os povos não-instruídos que se dedicam à agricultura. É possível, portanto, que Demetér e Perséfone, essas imponentes e belas figuras da mitologia grega, tenham surgido das mesmas crenças e práticas simples que ainda predominam entre nossos camponeses modernos e que tenham sido representadas por grosseiras bonecas feitas da palha amarela de muitos cam- pos muito antes que suas imagens vivas fossem criadas em bronze e mármore pelas mãos geniais de Fídias e de Praxíteles. Uma reminiscência daquela época mais antiga — um perfume, por assim dizer, da colheita — perdurou até o fim no título de virgem (kore) pelo qual Perséfone era habitualmente conhecida. Assim, se o protótipo de Demetér é a mãe dos grãos da Alemanha, o protótipo de Perséfone é a virgem da colheita que, outono após outono, ainda é feita com o último feixe nas escarpas de Balquhidder. Na verdade, se soubéssemos mais sobre os camponeses da Grécia antiga, provavelmente veríamos que, mesmo nos tempos clássicos, eles continuaram a fazer anualmente as suas mães dos grãos (Deméters) e suas virgens (Perséfones) com o trigo maduro das colheitas.
Infelizmente, porém, a Demetér e a Perséfone que conhecemos são habitantes das cidades, majestosas moradoras de templos senhoriais; e foi só para essas divindades que os refinados escritores da Antiguidade tiveram olhos — os rústicos rituais dos simples camponeses em meio aos cereais eram alheios ao seu interesse. Mesmo que os tivessem observado, provavelmente jamais sonharam com a possibilidade de qualquer conexão entre a boneca de talos de trigo no meio de um ensolarado campo de restolhos e a divindade de mármore no frescor sombreado do templo. Ainda assim, até mesmo os escritos desses indivíduos urbanos e cultos nos proporcionam uma visão ocasional de uma Demetér tão rústica quanto as mais rústicas que uma remota aldeia alemã pode mostrar.
Assim, a história de que Iásion gerou Pluto (“riqueza”, “abundância”) com Demetér, num campo três vezes arado, pode ser comparada com o costume da Prússia Ocidental de simular o nascimento de uma criança num campo arado. Nesse costume prussiano, a pretensa mãe representa a mãe dos grãos (zytniamatka), isto é, o grão maduro; a pretensa criança representa o cereal-criança, isto é, o cereal do ano, e toda a cerimônia é um sortilégio para assegurar a colheita do ano seguinte. Tanto o costume como a lenda apontam para práticas mais antigas segundo as quais se realiza, entre os brotos das plantações na primavera ou entre os restolhos do outono, a representação de um desses atos reais ou simulados de procriação pelos quais, como já vimos, os homens primitivos buscavam tantas vezes infundir a sua própria vida vigorosa nas lânguidas ou decadentes energias da natureza.
A grega Demetér seria, então, a colheita madura do ano; Perséfone seria a semente tomada a essa colheita e semeada no outono para reaparecer na primavera. A descida de Perséfone ao mundo inferior seria, dessa forma, uma expressão mítica da semeadura, e o seu reaparecimento na primavera significaria o despontar do cereal novo. Assim, a Perséfone de um ano se transforma na Demetér do ano seguinte, e essa bem pode ter sido a forma original do mito.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.