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Shirlei Massapust
Escultura de rosto humano achada em Hazor.
Quase nunca se fala na hipótese da existência de um “Lúcifer” histórico. Ele não é um anjo, óbvio, mas sim o homem que deu origem ao mito. Eu sou filósofa e comecei pesquisando a mitologia tradicional, mas ao longo dos anos tive a oportunidade de ler certos trabalhos que me fizeram mudar de opinião. Um deles foi um artigo publicado no número 118 do periódico The Zeitschrift für die Alttestamentliche Wissenschaft (ZAW) onde o professor Saul M. Olyan, que leciona História na Brown University, demonstra que o sujeito da oração do versículo 19 de Isaías 14 não pode ser nenhum rei conhecido e que este protagonista fora inequivocamente sepultado; ao passo que a tradição rabínica afirma ser ele o rei Nabucodonozor, cujo cadáver teria apodrecido ao relento.
Saul M. Olyan não traduziu, mas delatou incorreções e eu decidi tentar traduzir Isaías 14 porque um sepultamento digno não muda só a tradução de uma frase. Isto muda o contexto por inteiro. O vilão se torna mocinho. A guerra vira paz. Deixa de existir fundamento bíblico para o mito do anjo diabólico. Consultei cada palavra em mais de três dicionários, comprei livros específicos e imprimi tudo que veio na busca do Google Acadêmico.
Foram encontradas vinte e cinco cópias do Livro de Isaías em Ḫirbet Qumrân e outra no Wadi Murabba‘at. Todos datam por volta do ano 100 a.C., mas infelizmente apenas três copias (1Q Isaa, 4Q Isac e 4Q Isae) contém o capítulo 14 no todo ou em partes. Eugene Ultrich publicou fotos coloridas nos volumes X e XXXII do periódico Discoveries in the Judaean Desert (DJD), editado pela Universidade de Oxford. Fotos legíveis em preto e branco de IQ Isaª também foram publicadas por Millar Burrows e John Trever na coletânea The Dead Sea Scrolls of St. Mark’s Monastery.
Estes manuscritos possuem um sistema ortográfico e morfológico muito diferente do códice Firkovich B 19 (1008 d.C.)[1], mas é possível regredir o texto corrente para preencher as lacunas deixadas por uma costura no couro do manuscrito 1Q Isaa quando as palavras deformadas pela textura irregular parecem equivalentes. Somente uma palavra na décima quinta linha da coluna XII não pôde ser reconstituída com base em fontes posteriores porque ela é um termo de três consoantes, iniciado por alef (א) – possivelmente אבל no sentido de “rito funerário[2]” – que inexiste nas versões mil anos mais novas. Esta é minha reconstituição do documento enviado de presente para o Rei de Babel:
Descobri que realmente 1Q Isaª, o manuscrito completo mais antigo que existe, descreve uma modalidade de sepultamento quando o ministro religioso fala para um cadáver anônimo:
יורדי אל אבני בור כפגר מובס
— “Seque [e] seja descido para a cisterna pedregosa, múmia liofilizada” (Col. XII: 23).
E também no momento onde Hylyl Ben Šaḥar descobre que irá morrer e afirma:
ארים כסאי
— “Eu construirei meu trono” (Col. XII: 15), ao que os repāim confirmam:
אך אל שאול תורד אל ירכתי בור
— “Então para a cova foi descido, para o fundo do orifício da cisterna” (Col. XII: 16-17).
הורד שאול גאונך
— “Seu luxo desceu à cova” (Col. XII: 12-13). Antes de morrer Hylyl Ben Šaḥar caminhou a pé subindo até Tel Dan. Logo, ele provavelmente partiu da cidade mais próxima, ao sul, que é Hazor, onde Yigael Yadin achou cisternas funerárias.
Esqueleto de uma jovem mulher encontrado entre as camadas de terra duma cisterna (9027), em Hazor, pelo arqueólogo Yigael Yadin e sua equipe.
A profissão de Hylyl Ben Šaḥar foi rasurada no hebraico moderno onde ele deixou de ser um “mestre de obras” (נוגש) para se tornar um “cobrador de impostos” (נגש). É por isso que hoje confundem o falecido com o Rei de Babel.
Os antigos assentamentos israelitas possuíam cisternas edificadas sobre pedreiras compostas de calcário intercaladas com giz e outras variedades que não precisavam de massa impermeabilizante, mas onde não existiam pedreiras impermeáveis as cisternas eram revestidas com cimento de pedra calcária. Todas eram escavadas na forma de orifícios largos com profundidade de oito a nove metros. O topo tinha a forma de abóbada ou sino com um buraco no centro protegido por uma tampa de pedra. A residência do clã ficava acima e ao redor da cisterna subterrânea.
Yigael Yadin encontrou tantos esqueletos dentro de cisternas em Hazor que seria impossível duvidarmos da existência de cisternas funerárias no Vale Huleh. Na do lote nº 9024 havia grande quantidade de esqueletos acompanhados por abundantes oferendas mortuárias e amuletos da era do bronze. Numa cisterna vizinha (9027) encontraram o esqueleto duma mulher deitada numa profundidade de cinco metros abaixo do topo[3]. Por causa da idade nenhuma destas poderia ser exatamente a cisterna mencionada em 1Q Isaª, mas certamente seguiam as regras do mesmo costume. Cisternas funerárias foram mencionadas até em textos próximos da era cristã, apesar da difusão dos cemitérios fora das cidades a partir do início da Idade do Ferro.
Definição de Elyōn no contexto narrativo
Os teólogos ensinam que Isaías 14:14 descreve um homem eivado do ambicioso desejoso de reivindicar para si a posse de um atributo divino. Desde o momento em que este documento foi definido como um māšāl (משל), o clímax deveria ocorrer com o uso da forma passiva נמשל quando os repāim avaliam os trajes do novo rāphā. Quando a palavra ocorre na forma do verbo “parafrasear”, isto efetivamente se refere ao ato de citar ou se espelhar nos atos de outrem (neste caso, os repāim). A mesmíssima definição é dada ao verbo ʾedĕmeh, com ênfase na intenção de se equiparar a alguém, agir como alguém, imitar alguém. Logo, a expressão ʾedĕmeh ʿelyōn (עֶלְיֽוֹן אֶדַּמֶּה), lida a esmo, deveria sugerir a ideia supracitada.[4]
O defeito na tese teológica está na possibilidade de interpretar Isaías 14:14 duma forma diferente, por meio de homônimos homógrafos. O próprio verbo ʾedĕmeh (אדמה) deriva do substantivo ădāmâ (אדמה) que descreve o solo donde se extrai o material usado pelos oleiros na confecção de artesanato, máscaras mortuárias, etc. Portanto, lendo ădāmâ ʿelyōn (אדמה לעלוין) ao invés de ʾedĕmeh ʿelyōn (אדמה לעליון), o protagonista Hylyl Ben Šaḥar teria agido bem durante a vida, subindo aos altares em Elyōn[5] para louvar YHWH.
Tronos simbólicos
Depois que Hylyl construíu seu trono (כסא) os espíritos de todos os repāîm levantaram dos seus tronos (מכסאותם); ou seja, as almas levantaram dos seus caixões de madeira. Compare com esta oração egípcia:
Fórmula para impedir que seja roubado a N. o seu lugar que é o seu trono, no reino dos mortos. – Que ele diga: “O meu lugar é o meu trono! Vinde, fazei círculo à minha volta! Eu sou o vosso senhor, deuses; vinde, depois de mim! Eu sou o filho do vosso senhor; vós pertenceis-me, (pois) foi o meu pai que vos criou”.[6]
Em 1Q Isaª o termo hebraico “trono” (כסא) é o mesmo usado para designar qualquer assento (cadeira, poltrona, bancos, etc.), mas creio que isso deve ser uma metáfora para o caixão onde o corpo jaz deitado porque existiam caixões em Hazor. Não existiam sarcófagos de pedra iguais aos extraídos dos túmulos de Tiro, nem de ouro e prata iguais aos de alguns faraós egípcios. Neste momento os repāim (רפאים) – que são os fantasmas dos antepassados – recebem Hylyl Ben Šaḥar na “necrópole” (שאול) e conversam sobre a avaliação do de cujo. Cada um dos mortos convocados para a assembleia está falando com e sobre todos os outros, pois no início está escrito: “Todos se cumprimentam, questionando mutuamente” (כלם יענו ויאמדו אליך).
Para preparar seu “trono” numa cisterna funerária preexistente, que será seu lugar no reino dos mortos, seria necessário usar o espaço físico acima de outra camada inferior preenchida com terra e pedras. Dentro deste contexto “elevar o nível de profundidade Kôchevêi ʾĒl”
(אעלה ממעלה לכוכבי אל)
significa alojar seu caixão e demais pertenças na camada acima de outra onde estão enterradas pessoas pré-mortas. Não seria preciso exumar ninguém porque cisternas funerárias tinham em média quatro metros de diâmetro, variando entre oito e nove de profundidade. Ou seja, havia espaço suficiente para enterrar comodamente um monte de caixões.
Provavelmente Kôchevêi ʾĒl (כוכבי אל) era o nome de um clã do qual a família de Hylyl Ben Šaḥar era agregada ou afim. Noutra hipótese a cisterna funerária alheia poderia estar abandonada por motivo de mudança do clã para outro país ou de falta de descendentes vivos. Hylyl Ben Šaḥar achou-a, tomou posse e reformou-a, sem se incomodar em dividir espaço com os despojos de alguns heróis nacionais cujo pai hipônimo fora transformado em lenda urbana.
Polêmica sobre o vizinho do andar de baixo
O historiador Matthew Black foi o primeiro a constatar que כוכבאל é insofismavelmente o singular compacto da expressão כוכבי אל que aparece na Bíblia hebraica (Isaías 14:13) e no manuscrito 1Q Isaª (Col. XII, linha 15)[7]. Matthew Black, Józef Milik e Florentino García Martínez, concordaram em reconstituir a frase
כוכבאל אלף נ] חֺשי כוכין]
do manuscrito 4Q202 (Col III:3) com base em Syncellus 8.3[8], no sentido de informar que Kôkabʾel “ensinou os sinais dos planetas de órbita interior[9]” aos habitantes de Tel Dan[10]. Adicionalmente foi sujerida relação de causalidade com outra passagem do livro astronômico:
[ וכוכ[בין ] נזחו ב[תרעי] שמיאֺ קד[מיא [באדין
— “E os planetas de órbita interior adentraram as primeiras portas do firmamento” (4Q211, frag 1, col II:4).[11]
Em bom português, entendemos que Kôkabʾel fixou o horário de trabalho dos madeireiros, e de toda a gente, entre as 6h da manhã e 6h da tarde. De acordo com a biografia não autorizada – parcialmente produzida ou copiada por escribas do clã Bnei Šaḥar, donos da gruta 4Q –, era um “vigilante” que exercia sua função social no Monte Hermon, possivelmente vigiando quem estava trabalhando. No início Kôkabʾel (כוכבאל) era o quarto colocado numa lista de vinte chefes de clãs subordinados a Šemîḥazah (שמיחזה)[12], mas a liderança local parecia ser breve ou rotativa, pois Šemîḥazah, Aśael e Kôkabʾel foram todos referidos como líderes comunitários no espaço de uma geração. A menção ao último chefe, preservada apenas em siríaco, diz o seguinte:
Sobre Kôkabʾel, que era líder de duzentos, é dito que ensinou astronomia aos filhos dos homens, concernente ao movimento de translação, contando 360 dias.
Siam Bhayro foi enfático ao afirmar que “eles não são anjos” e que um vigilante (עיר) talvez fosse um intérprete de sonhos semelhante ao bārû babilônio[13]. Os fragmentos gregos de 1 Enoch 6:7 no comentário de Syncellus e no Codex Panopolitanus os descrevem como αρχοντων αυτων[14]. Ou seja, eram patriarcas (αυτων), chefes de clãs, que se reuniam em assembleia de forma análoga aos arcontes (αρχοντες) da Grécia. Portanto se, e somente se, כוכבי אל for o clã de כוכבאל, esse é o tipo de vizinho[15] que Hylyl Ben Šaḥar encontrou em sua morada para a eternidade.
Panos de seda
No contexto de 1Q Isaª tanto o protagonista quanto os repāim são enterrados em cisternas funerárias. Talvez todos estejam dentro da mesma cisterna, ocupando diferentes níveis[16]. À primeira vista parece que lá existia todo tipo de defunto, variando desde a múmia liofilizada (הרגתה עמך) até o mais maltratado, mas eu desconfio da ilegitimidade da prosopopeia onde pupas e larvas forram a cama dum defunto nas traduções das bíblias modernas.
Repare que em Êxodo 25:4 o bicho da seda (Bombyx arrindia)[17] fazedor de panos tomou emprestado o nome hebraico do Kermes vermilio (תולעה), cujas fêmeas produzem corante carmesim, porque ambos são úteis ao ofício do tecelão. Portanto nada impede que o casulo (רמה) de towla (תולעה) citado em Isaías 14:11 se refira à matéria prima usada para produzir tecidos de seda. Assim podemos interpretar a frase תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעה imaginando um caixão forrado de seda, com o ocupante coberto (ומכסיך) do mesmo pano.
Não está claro se Hylyl Ben Šaḥar ostentava ataduras ou mortalha de seda ou ambas as coisas. No Egito e suas áreas de influência o padrão iconográfico das imagens de Osíris, vestido e embalado em seda, servia de modelo para as vestes de todos os mortos. Neste mundo os símbolos da nobreza só podiam ser ostentados pelos faraós e similares; porém na morte o par de cetros (khereb e heqa) eram adereços de domínio público. Na tumba do arquiteto Ihmotep, por exemplo, foi achada uma figura shabit devidamente paramentada com os cetros reais e a coroa branca para permitir ao espírito que reinasse numa realidade alternativa, num reino de faz de conta.[18]
Este padrão iconográfico era comprovadamente conhecido em Israel e se manteve estável durante cinco séculos. Foram extraídas duas estatuetas de bronze de Osíris de um depósito (favissa) do complexo religioso de Tel Dan soterradas numa camada datada entre os séculos 5 e 4 a.C.
Rosto duma estátua de Osíris esculpida em faiança (séc. 9 ou 10 a.C.) e estátua de bronze de Osíris (séc. 4. ou 5 a.C.) cujos pés e a serpente decorativa da coroa (uraeus) foram danificados. Ambas foram encontradas em Tel Dan.
Outras peças depositadas num jarro na Área T incluíam restos de três estatuetas de faiança representando alguém segurando uma flor de lotos, uma pessoa ou divindade com um macaco no colo e uma cabeça de Osíris ornado com sua coroa branca e olhos pintados com o tradicional delineador preto[19]. Tudo isso indica que os israelitas conheciam o costume funerário egípcio onde os devotos seguravam flores de lótus, o deus Thot comparecia na forma de um primata babuíno e, após invocar o Deus dos Mortos e os quarenta e dois juízes do tribunal divino, o espírito declarava merecer a vida eterna por não haver cometido pecados[20].
Proteção do caixão
1Q Isaª menciona algo que parece o nome dum óleo inseticida. Fora de Isaías 14:4 existem somente duas outras menções a madhēbāh (מרהבה), nas linhas 3.25 e 12.18 do manuscrito 1QHª, ambas com sentido incerto, em paralelo a palavras que costumam ser traduzidas como “tumulto” e “ruína”[21].
A comunidade acadêmica não sabe o que isto é, mas é óbvio que madhēbāh estava revestindo o caixão dum instrutor de madeireiros que tinha a obrigação de saber que o óleo das sementes de Madhuca longifolia é bom para tratar madeira contra cupins. Esta árvore é chamada mādhaba (মাধব) no idioma bengali e mādhava (माध्व) em sânscrito, sendo cultivada no Egito e talvez numa cidadela rural não muito distante de Hazor, chamada Mādabā (מהדבא), citada na oitava linha da Estela de Mesha. Considerando que o óleo das sementes era algo útil e barato – que com certeza existia no armazém de Enlil Ben Šaḥar –, é possível que a palavra מרהבה seja a transliteração dum termo extrangeiro.
Resina laca
A décima linha da coluna XII de IQ Isaª menciona duas vezes o termo לכה referente à resina laca secretada por algumas espécies de insetos dos gêneros Metatachardia, Laccifer, Tachordiella, Austrotacharidia, Afrotachardina, e Tachardina, entre eles o Kerria lacca que se reúne aos milhares em certas árvores e é comumente cultivado para produzir resina em escala industrial. Na primeira referência a resina laca foi processada para produzir goma laca e usada no clareamento da cavidade da cisterna funerária.
Na última referência a resina foi usada na produção de cosmético para passar na pele ( עורה לכה). A mesma substância é utilizada em cosméticos até hoje, além de servir para tingir lã e seda.
Considerando que a goma laca é um verniz vermelho transparente, para clarear algo e/ou alguém com tinta e/ou cosmético seria necessário adicionar pigmentos claros e outros ingredientes.
Luzes acesas
Embora não esteja descrito em detalhes o que foi feito quando Hylyl Ben Šaḥar “pediu para iluminar” (אמרתה בלבבכה ) uma cavidade cujo fundo poderia estar a oito ou nove metros de profundidade, sabemos com certeza que seus assistentes acenderam lâmpadas de óleo de sementes de rícino (Ricinus communis) enquanto trabalhavam nivelando o solo e pintando o ambiente.
Durante séculos nada mudou na técnica ou estética deste tipo de lâmpadas, achado em abundância nos sítios arqueológicos de Tel Dan e Hazor. Por exemplo, na tumba duma família de metalúrgicos do fim da Idade do Bronze (Tomb 387) havia sete iguais.[22] Veja três fotos abaixo:
A iluminação artificial era necessária para enxergar o que se fazia no interior da cisterna funerária. Acender fogueiras ou tochas produtoras de fuligem prejudicaria o trabalho de pintura do chão. Lâmpadas de óleo fariam menos fumaça sem produzir lixo.
Joias masculinas
A primeira pergunta deve ter sido dirigida ao anfitrião da solenidade, recém falecido, que estava vestido de forma tão perfeitamente adequada que os repāim exclamam admirados: “Até vossas joias são como as nossas, para nos imitar!” (גם אתה חליתה כמונו אלינו נמשלת ). O termo que descreve as joias de Hylyl Ben Šaḥar integrava o jargão específico do culto nos bāmoṯê, designando qualquer peça diferente de brincos que fosse composta por filamentos (compare חליתה com o feminino וְחֶלְיָתָהּ em Oséias 2:13).
As joias tradicionais de ocorrência mais frequente em Tel Dan e Hazor eram compostas de contas de cornalina e faiança branca. Pedras brutas ou lapidadas de ágata, cristal, ametista, lapis lazuli e vidro existiam em menor quantidade. A prata e o ouro eram raríssimos. Os repāim concluíram que o imitador parecia bom o bastante para habitar entre eles.
“Seu luxo desceu à cova” (הורד שאול גאונך) tal como um aristocrata de ʿElyōn (לעליון).
Oferenda de sacrifício ritual
O livro dos sacrifícios das sombras (spr.dbḥ.ẓlm) de Niqmaddu (KTU 1.161) diz que um sacrifício pacificador (šlm) foi realizado no cemitério (rpi.arṣ) de Ugarit para honrar os repāim (rpi) quando Niqmaddu faleceu. Considerando que o māšāl ou epitáfio móvel compilado em 1Q Isaa, coluna XII, linhas 6 a 23, descreve o mesmíssimo padrão de ritual funerário, é sensato supor que o mestre de obras e instrutor de madeireiros Hylyl Ben Šaḥar também recebeu um sacrifício pacificador ou expiatório. O trecho onde afirmam que “todos os bodes deste chão” (כול עתודי ארץ) pertencem aos repāim sugere a preferência pelo sacrifício do bode (Capra hircus) e usa sentido figurado, como em Ezequiel 34:17 onde as diferentes castas israelitas são comparadas a ovelhas, carneiros e bodes. Ou seja, metaforicamente o bode substitui o morto[23].
A arqueologia comprova o costume de enterrar famílias importantes em covas coletivas onde depositavam oferendas, a exemplo da Tumba 1025 de Tel Dan, onde foram encontrados ossos de dois bodes ou ovelhas, um gamo (Dama dama), uma adaga e restos de outras oferendas[24].
No texto em análise, de 1Q Isaa, a carniça (נבלתך) assediada por insetos que zumbem (המית) é o animal sacrificado para convocar as almas dos repāim e conquistar a simpatia dos jurados que absolvem o morto. Horas depois da realização do despacho da oferenda, a carniça zune ( המית נבלתך ) ou parece zunir por causa da reunião de insetos voadores. Quanto mais oferendas, mais moscas eram atraídas. É por isso que em II Reis 1:13 o clero israelita chama o deus de um bem sucedido templo de Ekon de “Senhor das Moscas”.
1) Estatueta de bode mais ou menos contemporânea, achada em Hazor dentro duma bolsa junto com uma estatueta de macaco, guizos, contas e pedras brutas[25]. 2) Pingente de ouro achado no túmulo egípcio da Rainha Ahhotep, que morreu entre 1550 e 1525 a.C. (Museu do Cairo, JE 4694 = CG 52671).[26].
Moscas não sobrevivem em áreas situadas quatro a mil metros acima do nível do mar, mas elas conseguem chegar ao Monte Hermon (cujo pico tem menos de três mil metros). As cisternas funerárias tinham que ser lacradas com camadas de terra e pedra. Senão, além de assediar as oferendas, as moscas poriam ovos nas múmias. No Egito as moscas eram representadas em joias, murais, etc. É preciso ter sensibilidade artística para reconhecer a beleza das formas e sons de um inseto tão perigoso para a saúde humana.
Localização do sítio arqueológico
Analisando criticamente o māšāl nós percebemos que ʿelyōn (לעליון) se refere à altitude de Tel Dan, pois tal cidade (hoje em ruínas) está situada numa área da Galiléia chamada de Galil ʿElyōn (ןוילע לילג) desde sempre. Ou seja, o que lemos nas versões em hebraico de Isaías 14:14 é uma expressão onde o falante promete se comportar conforme os usos e costumes dos cidadãos que viviam na Alta Galiléia, notadamente em Tel Dan.
Tudo indica que a expressão bāmoṯê ʿāḇ ( במתי עב ) lida em Isaías 14:14 e 1Q Isaª, Col. XII, linha 16, diz respeito ao caminho nebuloso, ou seja, cheio de neblina (עב), que da acesso aos altares (במתי). Definitivamente bāmoṯê (במתי) não é o verbo subir. E eu não seria a primeira pessoa a imaginar que todos os tradutores “podem ter optado pela omissão de uma palavra incompreensível[27]”. O fato do plural bāmoṯê anteceder ao singular ʿāḇ (עב) demonstra tratar-se dum conjunto de coisas menores dentro de algo maior. Ou seja, o sítio arqueológico pode ser reconhecido pela existência de mais de um bāmāh.
O bāmāh era um altar ao ar livre[28] numa cidade rodeada por uma reserva ecológica[29]. A raiz bāmâ se refere aos órgãos internos, lombo ou parte do corpo de um vertebrado que tenha bastante carne, preferencialmente localizada na parte inferior do corpo, mais preferencialmente ainda na parte traseira. Os altares de YHWH (único deus mencionado neste texto) foram chamados de bāmoṯê porque funcionavam como uma espécie de churrasqueira e eram neles que os sacerdotes sacrificavam e coziam os animais. Somente o sacrifício expiatório não era comido pelos ministros religiosos e suas famílias.
Está escrito que o lugar frequentado por Hylyl Ben Šaḥar ficava na pedreira ao norte ( בירכתי צפון) da montanha da congregação (מועד בהר). No Salmo 48:3 a expressão yarkethê ṣāpôn ( ירכתי צפון ) se repete, provavelmente se referindo ao mesmo sítio arqueológico. Diante do exposto parece seguro afirmar que este local seja Tel Dan: Única cidade fortificada israelita possuidora de altares (bāmoṯê), escondida na floresta, no sopé do Monte Hermon.[30] Nela tudo foi construído com pedregulhos empilhados. Talvez seja por isso que em 1Q Isaª existe um contraste vertical entre as expressões “pedras ao norte” ( ירכתי צפון) e “pedras da cisterna” (ירכתי־בוד)[31]. Mais que isso: Antes do andarilho subir a pé na direção norte ele deveria estar na cidade situada mais abaixo e ao sul, chamada Hazor, onde possivelmente residia.
Datação da narrativa
Embora a datação do couro do manuscrito disponível (150-100 a.C.) ultrapasse em demasia a data presumível dos fatos narrados, o epitáfio de Hylyl Ben Šaḥar obviamente provém de uma época em que ainda se fazia juízo de valor positivo dos bāmoṯê “que causavam tanto nojo aos últimos profetas[32]” e era permitido sepultar os mortos descidos pelo orifício da cisterna ( ירכתי בור) até o fundo seco de uma cisterna na pedreira ( אבני בור).
Considerando o conteúdo do prólogo nós poderemos supor que o Rei de Babel não recebeu o segundo documento (relativo a fato ainda não acontecido) e que Hylyl Ben Šaḥar morreu depois do início da reforma de Tel Dan, começada por volta de 789 a.C., e antes do mês de setembro de 745 porque foi nesta data que Nabonasar rompeu a aliança da Babilônia com a jurisdição de Israel[33]. Sem um pacto de aliança não haveria razão para um israelita peticionar ao Rei de Babel solicitando parecer jurídico sobre o tópico da alforria de escravos, cujo pedido acompanhava o documento em anexo[34].
A referência a um grande abalo sísmico ( המרגיז הארץ) no documento em anexo remete à época do reinado de Jeroboam II em Israel (789-748) e Uzziah em Judá (785-733), quando um terremoto de magnitude estimada por volta de 8.2 na escala Richter despedaçou as casas das pessoas em Hazor[35] e Tel Dan[36], entre outros sítios arqueológicos. Se o registro constante numa das fontes de Flávio Josefo estiver correto, aquele tremor de terra específico aconteceu no ano 733, quando causou a queda de uma pedra do teto de um templo sobre a cabeça de Uzziah e incapacitou o antigo rei de Judá para o exercício do governo. (Antiguidade Judaica, Livro 9, capítulo 10: 225-226)[37].
Causa da morte
O parágrafo que expõe a causa da morte de Hylyl Ben Šaḥar informa que ele “teve a vida encurtada” (נגדע) ao machucar (חולש) as “costas” (גוי) num acidente de trabalho. De acordo com Raymond Leeuwen, o verbo ḥlš (חלש) é o antônimo de gbr (גבר) e ambos representam respectivamente a perda ou aumento do vigor de alguém em qualquer situação[38]. Somos informados que Hylyl Ben Šaḥar estava “prestando serviço” (השמיש) quando “caiu prostrado” (נפל), bateu no “chão” (ארץ) e morreu. Provavelmente o madeireiro subiu num cedro gigante para cortar um galho bom para artesanato, com formato pequeno e reto. Esse tipo de planta atinge até 40 metros de altura e 14 metros de diâmetro no tronco. Ele subiu bem alto para mostrar que não tinha medo e rir dos companheiros preocupados que esperavam lá embaixo, tiritando de frio.
Estava ventando muito. Talvez o vento tenha se tornado forte o bastante para causar hipotermia. Desorientado, ele escorregou enquanto se esticava em poses inconvenientes tentando alcançar um galho afastado com um dos pés. Caiu sentado no solo e fraturou a parte traseira dos ossos da bacia, rompendo os ligamentos na junção do sacro com os ilíacos, etc. A proximidade dos verbos nafalta (נפלתה) e ḥlš (חלש) sugere uma morte rápida. Foi uma cena terrível. Ele morreu cercado pelos colegas de trabalho que choravam e rasgavam roupas enquanto a poça de sangue crescia no chão, tingindo a neve. Seu último desejo foi um sepultamento digno numa cisterna funerária nivelada, pintada, mobiliada com caixão, etc. De fato, eles acharam um lugar excelente.
Significado do nome de Hylyl Ben Šaḥar
Em hebraico o imperativo היליל é uma forma relacionada (hiph’il) do verbo chorar[39]. Naquela época o cuneiforme illil, comumente aportuguesado para Enlil, era o nome de um monte de pessoas, fantasmas, deuses, etc.[40], assim como hoje Maria é nome de um monte de portuguesas, beatas, santas, etc. Por isso creio que Hylyl Ben Šaḥar seja um nome próprio masculino singular que não deve ser traduzido nem interpretado, mas sim transliterado.
Para todos os israelitas era prática normal alguém ser conhecido como o filho de seu pai. A inclusão de um patronímico geralmente indica ou insinua que a pessoa seja de alto status social[41]. Logo, certamente Hylyl é intitulado Ben Šaḥar por ser filho legítimo de um homem chamado Šaḥar[42].
A propósito, a análise filológica comprovou que o escriba de 1Q Isaª pertencia ao clã Bnei Šaḥar[43], não sendo impossível que Hylyl fosse ancestral (talvez tataravô do tataravô do pai) do seu último biógrafo.
Cetro quebrado
O māšāl inicia com uma figura de linguagem somente compreendida por quem viveu naquela época e lugar:
שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים
— “Quebrou YHWH, o cetro dos condenados, báculo da pacificação”.
YHWH é o deus da guerra, Senhor dos Exércitos, mas deuses são entes abstratos incapazes de quebrar coisas fora do mundo das ideias. Portanto suspeito que a haste de um cetro, um objeto de culto a YHWH, quebrou e os restos foram enterrados com honras. Em Ugarit os paramentos do Príncipe da Morte eram chamados por adjetivos análogos, conforme inscrição no tablete CTA 23:8.
mt.wšr.ytb.
bdh.ḫṭ.tkl. bdh ḫṭ.ủlmn. |
Mot e Šar quedaram.
Numa mão o cetro do luto. Noutra mão o cetro do véu de viúva[44]. |
Pode não ser inútil mencionar que, no Hindustão, o “cetro da morte” é “adornado com um crânio no topo”.[45] No folclore este apetrecho é portado por deuses responsáveis pelo sucesso das campanhas militares, mas na arte devocional às vezes o cetro é o próprio deus. O modelo iconográfico ideal reúne cabeças de homens ou animais olhando para todas as direções.
Num de seus artigos, Avraham Biran (1909-2008) confessou acreditar ter descoberto o topo de um cetro danificado análogo àquele cetro quebrado citado em “Isaías 14:5”.[46] Este cetro tem quatro cabeças de leão esculpidas em bronze. Em 1989 a expedição arqueológica de Avraham Biran descobriu a sala 2844, na Área T, em Tel Dan, soterrada sobre extratos de terra de diferentes épocas. Na camada que preservou resquícios da época pertinente ao nosso tema foi descoberto um jarro cheio de cinzas de incenso e restos de ossos, três pazinhas de ferro usadas para mexer oferendas no fogo e depositar as cinzas naquele jarro, mais um altar composto de cinco pedras. Quando o altar foi removido para exibição no Skirball Museum eles viram uma peça de bronze dum antigo cetro de madeira cujo cabo já não existia quando o objeto foi enterrado. Era como se tivessem enterrado aquilo debaixo dum altar para que o objeto fosse perenemente adorado e recebesse oferendas.
Peça oca de bronze achada sob o altar na sala 2844.
(Fotos © Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion).
Intrigado, Avraham Biran pesquisou exaustivamente e constatou que os governantes humanos não usavam cetros com topos neste formato. Também percebeu a semelhança entre isto o topo dum cetro portado por uma deusa anônima representada numa imagem produzida pelo rolamento de um sinete cilíndrico datado por volta de 2360-2180 a.C. (New York, Pierpont Morgan Library. Corpus, 245). Ele declarou:
When we removed the stones of the altar for exhibition in the Skirball Museum in Jerusalem, the head of a scepter was discovered on the floor below. Made of bronze and hollow in the center, it is 9 cm. high and 3.7 cm. wide. Four badly corroded figures, possibly representing lion heads, jut out from the top of the artifact. Below the figures, three circular grooves from four veins, or rings, a motif that appears three more times on the scepter head. The middle section consists of a protruding bronze ring with silver leaves, and the base is a protruding flange. The discovery of the scepter head caused much excitement, for here was the head or top of a scepter similar to those held by kings and priests — and in the least one case, by a goddess[47].
Scepter heads have been found in a number of excavations. (…) Some especially significant scepter tops were discovered by Henry Layard in 1850 in the northwest palace of Nimrud in Mesopotamia. These scepter tops were also made of bronze, sometimes inlaid with iron. Inscribed names appeared on four of them. It is possible that a name — or something else — is inscribed on our scepter head. We will know for sure only after experts remove the corrosion on the scepter head and complete their laboratory analysis.
Scepters appear most commonly in ancient texts and glyptic art as symbols of earthly rules, but in at least one case a cylinder seal displays a scepter in the hand of a goddess. Because our scepter head was found beneath an altar we can speculate that it may have belonged to a priest at Dan. Perhaps future finds will substantiate this conjecture[48].
Suponho que isto já estava quebrado e enterrado quando Hylyl Ben Šaḥar chegou neste lugar e escutou a história contada pelo sacerdote local.
Altar dentro da sala 2844 na Área T ao norte de Tel Dan. A fotografia foi tirada por Avraham Biran, antes da alteração do aspecto do sítio arqueológico pela remoção do altar e seus utensílios. (Fotos © Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion).
Conclusão
Os antigos egípcios acreditavam que o espírito humano é composto de três partes chamadas ka, ba e akh. Quando morremos o akh vai a julgamento na corte celeste enquanto os dois outros elementos permanecem na terra. O ba era representado por um homem pássaro. “Ele podia esvoaçar à vontade, mas sempre retornava ao cadáver, seu perpétuo poleiro”[49].
Em Ugarit e Israel existia um esquema idêntico onde o morto era chamado de rāphā (plural repāim). J. N. Ford compilou e publicou um vasto material sobre o chamamento dos repāim no estimado periódico acadêmico Ugarit-Forschungen[50]. R. Mark Shipp transliterou e traduziu o Livro do Sacrifício das Sombras (RS 34.126/KTU 1.1161) do Rei Niqmaddu, que é um exemplar mais completo do ritual descrito em 1Q Isaª (Col XII, linha 6-17)[51].
Assim como os egípcios escreviam livros dos mortos, em Ugarit redigia-se um texto convidando os residentes veteranos da “cidade dos repāim” (rpi arṣ) – cemitério, necrópole ou cisterna funerária – a recepcionar o novato. O titulo hebraico que 1Q Isaa deu a este tipo de documento foi māšāl (המשל), mas o nome da congregação dos repāim permaneceu inalterado. Primeiro o ministro religioso fala com quem irá depositar o recém falecido na cisterna funerária e recolocar a pedra que serve de tampa sobre a cisterna:
ואמרת איכה שב נוגש שבתה מרהבה — Entoai lamentações [pelo falecimento do ente querido durante seu funeral], feche [a tampa da cisterna onde] o mestre de obras jaz deitado sobre [um caixão de madeira dedetizado com] óleo de sementes de Madhuca longifólia [e] ore [desta maneira]:
שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים
— Quebrou YHWH, o cetro dos condenados, báculo da pacificação.
מכה עמים בעברה מכת בלתי סרה רודה באף גואים מרדף בלי חשך
— Uma ventania furiosa e incessante castigava aquela equipe inabalável. [Hylyl Ben Šaḥar não se intimidou com o perigo e] perseguiu os companheiros com firmeza, sem arroxear [de frio]!שקטה נחה כול הארץ פצחו רינה — Toda área estava silenciosa. Rinnah[52] podou [um cipreste pensando que fosse um cedro e o instrutor fez mofa ironizando a situação. Daí a prosopopéia:]
מאז שבתה ולוא יעלה הכורת עלינו
גם ברושים שמחו לך ארזי הלבנון
— Até seus Cedros do Líbano (Cedrus libani) se alegraram pelo cipreste (Cupressus sempervirens). [As árvores favorecidas pelo erro deveriam estar a falar com as desfavorecidas]: “Desde quando desabaste nenhum lenhador subiu para nos cortar!”
Algum parente ou conhecido narrou um episódio que revela a coragem, resistência física, perícia técnica e o bom humor do falecido diante de tarefas perigosas, estafantes e dificílimas. O mestre de obras (נוגש) instruiu um grupo de companheiros (גואים) sobre como escolher, identificar e coletar madeira para a construção civil. Pode-se dizer que eles eram estagiários aprendendo um ofício sob a supervisão do instrutor. Os jovens madeireiros tinham um medo justificável do vento que uiva. Nas partes mais importantes da cordilheira do Líbano (לבנון) a ventania é mais perigosa do que a neve e pode congelar alpinistas ineptos em poucos minutos. Estudos demonstram que ventos de cinquenta quilômetros por hora são comuns quando o tempo está bom, ao passo que as geadas atingem velocidades particularmente destrutivas que vão de cem a cento e cinquenta quilômetros por hora[53].
Isso é o bastante para erodir pedras, mas os obreiros itureus e israelitas aprenderam a domar o vento para explorar recursos naturais nas montanhas. Eles estudavam as direções onde venta mais e projetavam paredes reforçadas em assentamentos temporários que sobem até acima dos 2.000 metros. Hylyl Ben Šaḥar era um dos homens que andavam por ali tranquilos e fazendo piadas sobre ineptos que confundem cipreste barato, vulgarmente conhecido como “cedro bastardo”, com o cedro verdadeiro que ele saberia identificar… Nada poderia ser mais heroico que a atitude deste trabalhador destemido!
O problema é quem vive essa viva pode morrer de mil causas diferentes e de alguma coisa ele morreu. Então escreveram o chamamento dos repāim (mortos antigos) para recepcionar o mais novo rāphā (recém falecido). Ainda deve existir uma cópia do modelo original deste texto escrito em proto-hebraico perto do caixão de Hylyl Ben Šaḥar, se a erosão não houver destruído:
שאול מתחת רגזה לכה
— O subsolo da necrópole foi clareado com verniz de goma laca.
עורה לכה
— A pele foi pintada com cosmético feito à base de resina laca.
לקרת בואך
— A cidade te recepciona[54].
רפאים
— Repāim!
כול עתודי ארץ
— Todos os bodes da região!
הקימה מכסאותם כול מלכי גואים
— Todos os grandes reis levantaram dos seus tronos!
כלם יענו ויאמדו אליך
— Todos se cumprimentam, questionando mutuamente:
גם אתה חליתה אלינו נמשלת
— “Até vossas jóias são como as nossas, para nos imitar?”
הורד שאול גאונך
— “Seu luxo desceu à necrópole!”
המית נבלתך
— Sua [oferenda de] carne zune [pela reunião de insetos voadores].
תחתיך צע רמה ומכסיך תולעה
— Abaixo [tecidos feitos de] casulos [de bicho da seda] forram sua cama, um cobertor de seda!
היך נפלתה מהשמיש היליל בן שחר
— “Tu sofreste um acidente de trabalho, Hylyl Ben Šaḥar?”
נגדעתה לארץ חולש על גוי
— “Caí prostrado no solo e fraturei a bacia”.
אתה אמרתה בלבבכה
— Você pediu para iluminarem [o interior da cisterna funerária].
השמים אעלה ממעלה לכוכבי אל
— Informou a subida do nível de terra acima [daquele onde jazem] os astrônomos (Kôchevêi ʾĒl).
ארים כסאי אבל בהר מועד בירכתי צפון
— “Fiz meu jazigo e preparei meu funeral na montanha da solenidade, na pedreira ao norte.
אעלה על במתי עב אדמה לעליון
— Subi aos altares (bāmoṯê), dentro da neblina, na área de extração de argila para olaria em ʿElyōn”.
אך אל שאול תורד אל ירכתי בור
— Então para a necrópole foi descido, para o fundo do orifício da cisterna.
A meu ver a narrativa do funeral de Hylyl Ben Šaḥar termina neste ponto, pois o documento descreve a morte de um cidadão conjugada com um funeral bem sucedido, perfeito e completo, com direito a leitura do tradicional texto do chamamento dos repāim e avaliação favorável. Pois assim como os egípcios escreviam livros dos mortos, muito cedo, em Ugarit, as famílias dos finados já escreviam “Livros do Sacrifício das Sombras”[55], invocando os repāim para um banquete de oferendas durante o qual era julgada a aptidão dos recém falecidos para unir-se a eles[56]. O narrador assegura a Hylyl Ben Šaḥar que os repāim o recebem na congregação dos mortos ou contestam em seu favor. Ou seja, os outros mortos peticionam perante YHWH assegurando a integridade moral do recém falecido durante seu julgamento da mesma forma que os quarenta e dois juízes do tribunal divino egípcio faziam perante Osíris.
Epílogo
Em 733 a.C., num prazo variável de doze a cinquenta e seis anos depois da morte de Hylyl Ben Šaḥar, a cidade combaliu durante um grande abalo sísmico (המרגיז הארץ ) e tal ocorrência foi anotada logo abaixo da narrativa do funeral de Hylyl, no Livro de Isaías, por causa da pertinência temática (ambos os documentos falam sobre repāim e cisternas funerárias).
É impossível que Hylyl Ben Šaḥar tenha participado do evento, salvo na qualidade de ente espiritual (personagem mitológico). Afinal os espíritos são eternos e, em 733 a.C., todos os repāîm pré-mortos foram advertidos por um vidente ou profeta a nunca mais revelar o nome da semente que fraciona as pedras (הרגתה לוא יקראו לעולם זרע מרעים). De acordo com um conto folclórico a função do Rei dos Mortos[57], construtor de cisternas, era revelar o nome aramaico da espiga shamir (שמירא) e ensinar como o pássaro Duchifat (Upupa epops) a usava:”
ומנקיט מײתי ביורני מאילני ושדי התם
— Ele a leva para as montanhas onde não há vegetação,
ומנח לה אשינא דטורא
— a deixa sobre o cume da montanha,
ופקע טורא
— até abrir rachaduras na pedreira.
ומנקיט מײתי ביזרני מאילני ושדי התם
— Então ele coleta sementes das árvores, joga-as ali e elas brotam.
והוי ישוב
— [A montanha] se torna verdejante.
והײנו דמתר גמינן נגר טורא
— É por isto que o chamamos de quebrador de montanhas”[58].
Era crença geral que os mortos podiam se comunicar com os vivos em sonhos ou pela arte dum médium. Uma das funções dos repāim era ensinar técnicas que permitem aos vivos realizar milagres científicos; ou, neste caso particular, revelar um método de redução do esforço humano na extração de pedras para a construção civil. Plantar cereais com espigas, como o trigo (Triticum) e a cevada (Hordeum vulgare), em rachaduras naturais ou fendas artificiais abertas com cuias de madeira molhada faz com que as raízes germinem na pedra desprendendo os blocos da montanha. A arqueologia comprova que tal método era largamente usado no mundo antigo. No caso de 1Q Isaa o ministro religioso tomou a precaução de proibir a revelação do nome da semente destruidora ou semente esmigalhadora (זרע מרעים) por ignorar a verdadeira causa do pior terremoto da história de Israel, temendo que o uso da técnica fragilizasse a pedreira e fizesse os pedregulhos caírem nos lugares errados. Na parábola do Talmude o furto da espiga pelos humanos fez a estória terminar tragicamente, com o suicídio de Duchifat envergonhado pela impossibilidade de cumprir a promessa de dar a espiga ao Mestre do Mar.
Notas:
[1] BROYLES, Craig C. & EVANS, Craig A. Writing & Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an Interpretative Tradition. New York, Brill, 1997, Vol 2, p 502.
[2] KIRST, Nelson e outros. Dicionário Hebraico – Português & Aramaico – Português. Petrópolis, Vozes, 1994, p 2.
[3] YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld and Nicolson, 1975, p 123-125.
[4] AMZALLAG, Nissim & AVRIEL, Mikhal. The Cryptic Meaning of the Isaiah 14 Māšāl. Em: JBL 131, no. 4 (2012), p 644 e 657.
[5] A dupla referência a um reservatório de água canalizada na localidade Elyōn (בתעלת הברכה העליונה ), em Isaías 7:3 e 36:2, demonstra que existia uma região com este nome (1Q Isaª, Col. 6, linha 16 e Col. 28, linha 31). – Inclusive, até hoje a Alta Galiléia é chamada de Galil Elyōn (וילע לילגן). – Textos fragmentados indicam que Elyōn (עליון) repartia nações e fixava fronteiras entre os Filhos de Elohim ( םיהלא ינב), identificados como Filhos de Israel (ינב ישראל) nas bíblias modernas (4QDeutj e Deut. 32:8). Em tempos de conflito os dois lados da fronteira se uniam e outorgavam poder ao Juiz de Israel que, por isso, se tornava Filho de Elyōn ( ובר עליון) e Filho de El (ברה די אל) ao mesmo tempo. (4Q246, col II, linha 1).
[6] O Livro dos Mortos do Antigo Egipto. Trad. Maria Helena Lopes. Lisboa, Assírio & Alvim, p 1991, p 80.
[7] BLACK, Matthew. The Book of Enoch or I Enoch: A New English Edition. Boston, Brill, 1997, p 120.
[8] Syncellus 8.3 fala do ensinamento dos sinais (σημειωτικά) da astrologia (άστρολογία). Siam Bhayro comentou que se “poderia esperar que כוכבאל fosse listado como professor de astrologia”, mas existem controvérsias porque no Codex Panopolitanus o suposto astrólogo preferiu ensinar semiótica (τά σημειωτικά) enquanto Baraqʾel (ברקאל), um suposto lapidário, passou a ensinar astrologia (άστρολογίας). Nas versões etíopes Kôkabʾel e Baraqʾel também trocam de papéis. (BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11. Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 75 e 154). A tradição popular afirma que essas pessoas se tornaram anjos após a morte. Numa versão Kôkabʾel se mudou para as terras do sul onde se tornou um dos Príncipes dos Magistrados (Shariem Shetoriem). Baraqʾel preencheu o cargo vago passando a representar Mercúrio (Kôkab) uma vez por ano. (SAVEDOW, Steve. The Book of Angel Rezial. San Francisco, Weiser Books, 2001, p 15, 25 e 99). No Sepher Há-Razim V:10-14 outros dezenove príncipes continuam revezando porque Baraqʾel (ברכיאל) só faz este trabalho no complicado mês de Adar, décimo terceiro do calendário judaico: “Se você quer saber qual o mês de sua morte, ou o que acontecerá em qualquer mês, ou em que mês choverá, ou quando o grão germinará, ou quando a oliveira frutificará, ou em qual mês os reis sairão para a guerra, ou em qual mês haverá epidemia entre os homens ou doença no rebanho, (…) ou qualquer outra coisa que você queira saber; pergunte a eles”. (Sepher Há-Razim V:15-19. Em: MORGAN, Michael A. Sepher Há-Razim: The Book of the Mysteries. California, Scholars Press, 1983, p 74).
[9] Era costume entre os trabalhadores sair de casa quando os planetas de órbita interior, Mercúrio e Vênus, apareciam no horizonte antes do Sol. Mas o complemento ʾĒl (אל) faz com que Kôchevêi ʾĒl (לכוכבי אל) e Kôkabʾel (לאבכוכ) se tornem adjetivos especialíssimos não aplicáveis a planetas ou estrelas. O Targum de Isaías 14:12 cita ḵoḵāḇ noǥhāʾ (נגהא ככוכב) na frase em que o Rei da Babilônia (novo protagonista da estória alterada) afirma ser “Vênus entre os planetas de órbita interior”
(ככוכב נגהא בין כוכביא).
A equiparação poética do observador com o astro observado veio daí. (STENNING. J. F. The Targum of Isaiah. London, Oxford, 1953, p 48-49). Antigamente Mercúrio era chamado de Ḵoḵāḇ e Vênus de Ḵoḵāḇ Noǥhāʾ. O Talmude Bavli (Shabbos 156a) compilou um horóscopo onde “quem nasce na hora de Mercúrio” (רבכוכב מאן האי) está predestinado a ser um homem sábio. Por outro lado, “aquele que nasce na hora do planeta Vênus” (רבכוכב מאן האי נוגה) será um homem varonil e promíscuo porque a chama da paixão queima dentro de si. (STIEGLITZ, Robert R. The Hebrew Names of the Seven Planets. Em: Journal of Near Eastern Studies, Vol. 40, No. 2. EUA, The University of Chicago Press, Apr., 1981, p 135; GOLDWURM, R’ Hersh. Talmud Bavli: The Schottenstein daf Yomi Edition – Tractate Shabbos. Brooklin, Artscroll, 2004, 156a3).
[10] MILIK, J.T. The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4. Oxford University, 1976, p 20, 158 e 159.
[11] MILIK, J.T. Obra citada, p 296.
[12] BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11: Introduction, text, translation and commentary with reference to Ancient Near Eastern and Biblical Antecedents. Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 132.
[13] BHAYRO, Siam. Obra citada, p 23.
[14] BHAYRO, Siam. Obra citada, p 61.
[15] Quando um fantasma é transformado em anjo pela tradição popular às vezes ele ganha a partícula ʾĒl (אל) no fim do nome. Então não é impossível que o nome Hylyʾel (חיליאל) que aparece no Sepher Há-Razim III:47, junto com Baraqʾel e outros vigilantes conhecidos em Qunran, tenha resultado do truncamento de Hylyl (היליל) com El (אל). (MORGAN, Michael A. Sepher Há-Razim: The Book of the Mysteries. California, Scholars Press, 1983, p 64 e 89).
[16] Se todos fossem parentes de Kôkabʾel, isso explicaria por que um tópico da tradição oral da cultura yazīdī, compilado por Isya Joseph em 1919, afirma que o ferreiro Aśael era um humano descendente em linha paterna de “Šehar Ben Jebr”. (JOSEPH, Isya. Devil Workship: The Sacred Books and Traditions of the Yezids. Boston, R. G. Badger, 1919, p 37-38).
[17] Acredito que o bicho da seda (תולעה) bíblico, citado em Êxodo 25:4 e Isaías 14:11, não seja a espécie chinesa Bombyx mori, como afirmam os dicionários, mas sim outra espécie migrada da Índia, a Bombyx arrindia, que habita a folhagem do rícino (Ricinus communis); planta cultivada no Egito e áreas mais próximas para a extração de óleo das sementes que era usado para iluminação. As folhas de rícino contêm um corante azul-turquesa.
[18] TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo. Trad. Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 122.
[19] BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 177 e 214.
[20] TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo. Trad. Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 301.
[21] SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 130, nota 1.
[22] BIRAN, Avraham & BEM-DOV, Rachel. Dan II: A Chronicle of the Excavations and the Late Bronze Age “Mycenaean” Tomb. Jerusalem. Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion, 2002, p 78-79.
[23] Figurativamente o bode era o chefe do clã ou da nação, mesmo que fosse um conquistador estrangeiro. Por exemplo, o Livro de Daniel narra um sonho profético sobre um gigantesco bode (צפיר) que chifra as estrelas (הכוכבים) do exército do céu (צבא השמים) para derrubá-las (Daniel: 8:8-10). O anjo Gabriel explica que aquele bode estrangeiro representa a Grécia e as estrelas são todos os povos que os gregos chamavam de bárbaros (Israel incluso). Hyan Maccoby levantou a hipótese do sorteio do bode-expiatório e da pomba no rito de purificação do leproso substituir o sacrifício humano. (MACCOBY, Hyan. The Sacred Executioner. New York, Thames and Hudson, 1982, p 35-36). Noutro episódio bíblico os irmãos de José sepultaram-no vivo numa cisterna seca e executaram um bode (שעיר עזים) para representá-lo na morte, mas José conseguiu sair do buraco e sobreviveu (Gênese 37: 22-31).
[24] BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994, p 57.
[25] YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld and Nicolson, 1975, p 225.
[26] No Egito pingentes de mosca eram dados como condecoração militar da “ordem das moscas douradas” oferecida pelo rei aos soldados que se destacavam em batalha, inclusive contra os hicsos que supostamente ocuparam Israel. (LUCA, Araldo de; TIRADRITI, Francesco e outros. Tesouros do Egito. Trad. Maria de Lourdes Gianni. São Paulo, Manole, 1998, p 286).
[27] VAUGHAN, Patrick H. The Meaning of ‘Bāmâ’ in the Old Testament: A study of etymological, textual and archeological evidence. London, Cambridge University Press, 1974, p 89, nota 2.
[28] LWRY, Samuel. Maṣṣēbāh and Bāmāh in 1Q IsaiahA 6:13. Em: Journal of Biblical Literature, vol. 76, nº 3 (setembro de 1957), p 225-232.
[29] FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trad. Gerardo Novas. México, Fondo de Cultura Econômica, 1981, p 452-459.
[30] O Bamah B, na Área T, ao norte de Tel Dan, foi erigido durante o reinado de Ahab, por volta de 860-850 a.C. Este templo foi atacado durante a guerra contra os arameus, no início do séc. 8 a.C., e reformado a mando do rei Jeroboam II, que subiu ao trono em 785 a.C.
[31] JENSEN, Joseph. Helel Ben Shaḥar (Isaiah 14:12-15) in Bible and Tradition. Em: BROYLES, Craig C. & EVANS, Craig A. Writing and Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an interpretative tradition. New York, Brill, 1997, p 341.
[32] FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trad. Gerardo Novas. México, Fondo de Cultura Econômica, 1981, p 458.
[33] A antiguidade do estreito relacionamento entre Babilônia e Israel é atestada pelo obelisco de Kalah, exposto no Museu Britânico, que retrata Jeú (842-815), rei de Israel, prostrado diante de Salmanasar III, pagando-lhe tributo. (SAMPAIO, Fernando G. A História do Demônio. Porto Alegre, Garatuja, 1976, p 28).
[34] O texto hebraico moderno não contém o verbo ultrajar (מקומם) em Isaías 14:3, embora tal verbo exista em 1Q Isaª. O termo והתנחלום é o verbo mendigar (יחלוה) no tempo perfeito, reflexivo, com sufixo. De acordo com o prólogo, a Casa de Jacó ( בית יעקוב) costumeiramente escravizava o ḫapiru (עברי): Obreiro ultrajado e reduzido à mendicância. O remetente israelita desejava que o Rei de Babel atuasse como árbitro na solução do conflito, mantendo o direito dos pais que pagassem o resgate das mães de filhos comuns.
A referência וררים בנוגשיהם (1Q Isaa) ou וררו בנוגשיהם (4Q Isac) diz respeito aos filhos das escravas, futuros mestres de obras (נוֹגֵשׂ). R. Ḥiyya comentou sobre Isaías 14:2 indicando que era permitido manter relacionamento sexual com uma escrava após o terceiro mês de cativeiro. (PISKA 12:17. Em: BRAUDE, William G. Pĕsiḳta dĕ-Raḇ Kahăna. Philadelphia, The Jewish Publication Society, 2002, p 322).
[35] YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld and Nicolson, 1975, p 149-150.
[36] BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalém, The Israel Exploration Society, 1994, p 254.
[37] JOSEPHUS, Flavius. The Works of Josephus. Trad. William Whiston. USA, Hendrickson, 1987, p 260-261.
[38] LEEUWEN, Raymond C. Van. Isa 14:12, Ḥôlēš ‘al gwym and Gilgamesh XI, 6. Em: Journal of Biblical Literature, Vol. 99, Nº 2 (Jun., 1980), p 176-177.
[39] GESENIUS, Wilhelm. Commentar über den Jesaia. Leipzig, Friedr. Christ. Wilh. Vogel, 1821, p 480.
[40] GALLAGHER, Willian R. On the Identity of Helel ben Sahar of Is. 14:12-15. Em: Ugarit-forschungen, nº 26. Alemanha, Verlag Butzon & Bercker Kevelaer, 1994, p 145.
[41] GOODMAN, Martin. A Classe Dirigente da Judéia: As origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C. Trad. Alexandre Lissovsky e Elisabeth Lissovsky. Imago, p 124.
[42] Este nome próprio masculino singular deriva do substantivo šaḥar (שחר), referente à coloração multifacetada que o céu assume durante o crepúsculo e a aurora. No idioma dos índios tupi o mesmo fenômeno era chamado de “céu vermelho” (ibiporanga). Gibson se equivocou ao associar o ser humano chamado Šaḥar, pai de Enlil, com o semideus Šaḥar, meio-irmão de Šalem, mencionado nas placas CTA 23 e KTU 1.23 de Ugarit. (GIBSON, J. C. L. Canaanite Myths and Legends. London, T & T Clark, 2004, p 29, nota 1). Pelo abismo temporal que separa tais fontes aquele ente mitológico pode ser, na melhor das hipóteses, somente o pai hipônimo do clã Bnei Šaḥar.
[43] Em Ḫirbet Qumrân existe uma montanha cheia de cavernas que funcionava como um shopping de manuscritos. Nós sabemos que a livraria-editora (אוצר בינות) da quarta caverna pertencia ao clã dos Bnei Šaḥar (בני שחר), emigrado de Israel, pois eles guardaram uma missiva criptografada, notóriamente de caráter privado, contendo “palavras do Maskīl para todos os Bnei Šaḥar”(י[דבר] משכיל אשר דבר לכול בני שחר ). (4Q298. Em: MARTÍNEZ, Florentino García & TIGCHELAAR, Eibert J. C. The Dead Sea Scroll Study Edition: Volume 1. New York, Brill, 1997, p 656-657). A análise filológica determinou que os manuscritos catalogados como 1Q Isaa e 1QS, achados na 1ª caverna, foram escritos em ortografia idêntica à da fonte donde foi copiado 4Q Enc, produzido para o comércio na 4ª caverna. (MILIK, J.T. The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4. Oxford University Press, 1976, p 23). Portanto é provável que a narrativa do funeral de Enlil Ben Šaḥar tenha sido preservada, copiada e vendida pelo próprio clã dos Bnei Šaḥar. Eles também são autores de todas as cópias dos livros de Enoch (somente descobertos naquela loja).
[44] CTA 23:8. Em: Gibson, J. C. L. Canaanite Myths and Legends. Londres, T & T Clark, 2004, p 123.
[45] Devῑ-Mᾱhᾱtmya 2.22 e 7.6. Em: COBURN, Thomas B. Encontering the Goddess: A translation of the Devῑ-Mᾱhᾱtmya and a study of its interpretation. Ney York, State University of New York, 1991, p 41 e 61.
[46] BIRAN, Avraham. Tel Dan Scepter Head. Em: BIBLICAL ARCHAEOLOGY REVIEW. January/February 1989, p 29.
[47] BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 198.
[48] BIRAN, Avraham. Tel Dan Scepter Head. Em: BIBLICAL ARCHAEOLOGY REVIEW. January/February 1989, p 31.
[49] A Era dos Reis Divinos: 3000-1500 a.C. Trad. Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Abril, 1991, p 74.
[50] FORD, J. N. The “Living Rephaim” of Ugarit: Quick or Defunct? Em: Ugarit-Forschungen, Band 24 (1992), p 73-101.
[51] RS 34.126/KTU 1.1161, linha 18. Em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 57.
[52] Estou em dúvida se Rinnah é o nome do discípulo inepto que confundiu madeira de cedro com cipreste de baixo valor ou se o mestre chamou-o de “palhaço”. Nos tempos bíblicos Rinnah (רינה) era um nome masculino proveniente do radical רִנָּה (alegria) e indica um “cantor alegre”. Um dos descendentes de Judá tinha este nome (I Crônicas 4:20).
[53] DAR, Shimon. Settlements and Cult Sites on Mount Hermon, Israel: Ituraean culture in the Hellenistic and Roman periods. Trad. M. Erez. (BAR International Series 589). Oxford, Tempus Repartvm, 1993, p 7.
[54] No códice Firkovich B19A verifica-se a substituição de עורה por עוֹרֵר que, em sentido jurídico, indica o ato de apresentar uma contestação como defesa processual.
[55] Este Livro do Sacrifício das Sombras (RS 34.126/KTU 1.1161) foi transliterado e traduzido em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 54-60.
[56] RS 34.126/KTU 1.1161, linha 18. Em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 57.
[57] O tratado Gittin passou a constar no Talmude a partir do Codex Munich 95, escrito entre 1340 e 1370, inexistindo no Codex Florence datado de 1177. Mas é provável que a estória tenha migrado do folclore persa para a tradição rabínica um pouco antes, pois Mawlānā Rūmī (1207-1273) narrou-a parcialmente nos mesmos detalhes, exceto pelo fato do rei dos shedim ser alcunhado de Sahar ao invés de Ashmodai. (NICHOLSON, Reynold A. The Mathnawí of Jalálu’ddin Rúmí: Translation of Books III and IV. Cambridge, Gibb Memorial Trust, 1930, p 343; RUMI, Jalaluddin. Masnavi. Trad. Mônica Cromberg e Ana Sarda. Rio de Janeiro, Edições Dervish, 1992, p 219).
[58] GOLDWURM, R’ Hersh (ed.) Talmud Bavli: Tractate Gittin. Brooklin, Mesorah Publications (Artscroll), 2001, p 68b1.
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