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Segredos e Conspirações

Alguns Anos no “Algures” Absoluto (Despertar dos Mágicos)

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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier

Durante a ocupação alemã vivia em Paris, no Bairro Latino, um velho original que se vestia como um burguês do século xvII, só lia Saint-Simon[l], comia à luz de velas e tocava espineta. Apenas saía para ir ao merceeiro e ao padeiro, com um capuz sobre a cabeleira empoada, e uma grande capa que deixava ver as meias pretas e os sapatos com fivelas. O tumulto da Libertação, os tiros e os movimentos populares perturbaram-no. Sem nada compreender, mas agitado pelo medo e pelo furor, precipitou-se um dia para a sacada da sua casa, com a pena de pato na mão, peitilho de rendas ao vento, e gritou, numa vibrante e estranha voz de solitário:

“Viva Coblença!”[2]

Não compreendendo e estranhando a atitude insólita, os vizinhos excitados sentiram instintivamente que o homenzinho vivia noutro mundo e devia estar em relações com o mal. O grito pareceu alemão, subiram as escadas, arrombaram a porta, atacaram-no e ele morreu.

Nessa mesma manhã, um capitão resistente muito jovem, que acabava de conquistar a Prefeitura, mandava colocar palha sobre os tapetes do enorme gabinete e dispor as espingardas em forma de feixe, a fim de ter a ilusão de viver de acordo com um boneco do seu primeiro livro de história.

Nessa mesma hora descobriam nos Inválidos a mesa, os treze cadeirões, os estandartes, as túnicas e as cruzes da última assembleia dos Cavaleiros da Ordem teutónica, bruscamente interrompida.

E o primeiro tanque do exército de Leclerc transpunha a Porte d’Orléans[3], sinal humilhante da derrota alemã. Era conduzido por Henri Rathenau, cujo tio Walther fora a primeira vítima do nazismo.

Como um homem vítima da maior emoção, assim uma civilização vê, num momento histórico, reviver mil instantes do seu passado, segundo uma escolha e numa sucessão aparentemente incompreensível.

Giraudoux contava que, tendo adormecido um segundo na ameia de uma trincheira enquanto aguardava a hora de ir render um camarada, morto em reconhecimento, fora acordado por picadas no rosto: o vento acabava de despir o morto, de lhe abrir a carteira e fazer voar cartões de visita, cujos cantos fustigavam a face do poeta. Naquela manhã da Libertação de Paris, os cartões de visita dos emigrados de Coblença, dos estudantes revolucionários de 1830, dos grandes pensadores judeus alemães
e dos Irmãos Cavaleiros das Cruzadas esvoaçavam juntamente com muitos outros, sem dúvida, no meio do vento que levava até muito longe os gemidos e as Nlarselhesas.

*

Se agitarmos o cesto, todas as bolas vêm à superfície em desordem, ou antes, segundo uma ordem e atritos cujo “controlo”
seria infinitamente complicado, mas onde poderíamos descobrir uma infinidade desses encontros singularmente elucidativos a que Jung chama coincidências significativas. A admirável frase de Jacques Rivière aplica-se às civilizações e seus momentos históricos: “Acontece a um homem não o que ele merece, mas o que se lhe assemelha.” Um caderno escolar de Napoleão termina com estas palavras: “Santa Helena, pequena ilha”.

É lamentável que o historiador ache indigno da sua ciência o recenseamento e o exame dessas coincidências significativas, desses encontros que têm um sentido e entreabrem bruscamente uma porta sobre outra face do Universo, onde o tempo já não é linear. A sua ciência está em atraso sobre a ciência em geral, que, tanto no estudo do homem como no da matéria, mostranos cada vez mais reduzidas as distâncias entre o passado, o presente e o futuro. Separam-nos sebes cada vez mais estreitas no jardim do destino, de um passado conservado por inteiro e de um amanhã inteiramente formado. A nossa vida, como diz Alain, “está aberta sobre grandes espaços”.

*

Existe uma flor extremamente frágil e bela que se chama a saxífraga umbrosa. Também lhe chamam “o desespero do pintor”. Já não desespera nenhum artista, desde que a fotografia e muitas outras descobertas libertaram a pintura da preocupação da semelhança exterior. O pintor menos jovem de espírito não se senta hoje diante de um ramo de flores como o teria feito outrora. Os seus olhos vêem mais qualquer coisa além do ramo, ou antes, o modelo serve-lhe de pretexto para exprimir por meio da superfície colorida uma realidade escondida para o olhar profano. Ele tenta arrancar um segredo à criação. Outrora contentar-se-ia em reproduzir o que o profano vê quando passeia sobre as coisas um olhar descuidado, ausente. Ter-se-ia contentado em reproduzir as aparências tranquilizantes e, de certa maneira, em participar da fraude geral sobre os sinais exteriores da realidade. “Ah, isto está escarrado!” Mas quem escarra está doente. Não parece que o historiador tenha evoluído como o pintor, no decurso deste meio século, e a nossa história é falsa como o eram um seio de mulher, um gatinho ou um ramo de flores sob o pincel petrificante de um pintor conformista de 1890.

Use a nossa geração, diz um jovem historiador, pretende examinar lucidamente o passado, terá em primeiro lugar de arrancar as máscaras sob as quais os artífices da nossa História se mantêm desconhecidos. . . O esforço desinteressado realizado por uma falange de historiadores em favor da simples verdade é relativamente recente.”

O pintor de 1890 tinha os seus “desesperos”. Que dizer do historiador do presente! A maior parte dos factos contemporâneos tornaram-se semelhantes à saxífraga umbrosa: desesperos do historiador.

Um autodidacta delirante, rodeado de alguns megalómanos, recusa Descartes, despreza a Cultura humanista, destrói a razão, invoca Lúcifer e conquista a Europa, perdendo por pouco a conquista do Mundo. O marxismo enraíza-se no único país que Marx achava infecundo. Londres arrisca-se a soçobrar sob uma chuva de foguetões destinados a atingir a Lua. Reflexões sobre o espaço e o tempo conjugam-se na fabricação de uma bomba que destrói duzentos mil homens em três segundos e ameaça destruir a própria história. Saxífragas umbrosas!

O historiador começa a inquietar-se e a duvidar de que a sua arte seja praticável. Perde o seu talento lamentando já não o poder exercer. É o que se vê nas artes e nas ciências nos períodos de sufocação: um escritor trata em dez volumes da impossibilidade da linguagem, um médico dá aulas durante cinco anos para explicar que as doenças se curam por si próprias. A história atravessa um desses momentos.

Raymond Aron, desprezando com enfado Tucídides e Marx, constata que nem as paixões humanas, nem a economia dos
factos chegam para explicar a aventura das sociedades. “A totalidade das causas que determinam a totalidade dos efeitos ultrapassa, diz ele desolado, o entendimento humano.”

O sr. Baudin, do Instituto, confessa: “a história é uma página em branco que os homens têm a liberdade de preencher à sua vontade.”

E René Grousset dirige ao céu vazio este cântico quase desesperado, mas belo:

“Aquilo a que nós chamamos a história, quero dizer, este desenrolar de impérios, de batalhas, de revoluções políticas, de datas, sangrentas a maior parte, será realmente a história? Confesso que não o creio, e que me acontece, ao ver os manuais escolares, riscar em pensamento uma grande parte. . .

“A verdadeira história não é aquela do movimento das fronteiras. É a das civilizações. E a civilização é, por um lado, o progresso das técnicas e, por outro, o progresso da espiritualidade. Podemos perguntar a nós próprios se a história política não é, em grande parte, uma história parasita.

“A verdadeira história é, sob o ponto de vista material, a das técnicas, disfarçada sob a história política que a oprime, que lhe usurpa o lugar e até mesmo o nome.

“Mas, mais ainda, a verdadeira história é a do progresso do homem na espiritualidade. A função da humanidade é auxiliar o homem espiritual a libertar-se, a realizar-se, a auxiliar o homem, como dizem os indus numa fórmula admirável, a ser aquilo que é. É certo que a história aparente, a história visível, a história da superfície não passa de um ossário. Se a história fosse apenas isso, não havia mais nada a fazer senão fechar o livro e desejar a extinção no nirvana… Mas quero crer que o budismo mentiu e que a história não é isso.”

*

O físico, o químico, o biólogo, o psicólogo sofreram, nestes últimos cinquenta anos, grandes choques e tropeçaram, por sua vez, em saxífragas umbrosas. Mas hoje não manifestam a mesma inquietação. Trabalham, avançam. Muito pelo contrário, há na suas ciências extraordinária vitalidade. Comparem-se as construções acrobáticas de Spengler ou de Toynbee ao movimento torrencial da física nuclear. A história está num beco sem saída.

As razões, sem dúvida, são múltiplas, mas esta impressionou-nos:

Ao passo que o físico ou o psicanalista abandonou resolutamente a ideia de que a realidade era necessariamente satisfatória para a razão e optou pela realidade do fantástico, o historiador manteve-se encerrado no cartesianismo. Uma certa pusilanimidade muito política nem sempre é alheia ao facto.

Diz-se que os povos felizes não têm história. Mas os povos que não têm historiadores franco-atiradores e poetas são mais que infelizes: asfixiados, traídos.

Voltando as costas ao fantástico, por vezes o historiador é levado a erros extraordinários. Marxista, prevê o desmoronamento da economia americana no momento em que os Estados Unidos atingem o mais alto nível de estabilidade e de poder. Capitalista, determina no Oeste a expansão do comunismo no momento em que a Hungria se revolta. No entanto, noutras ciências, a previsão do futuro, a partir dos dados do presente, tem cada vez mais êxito.

A partir de um milionésimo de grama de plutónio, o físico nuclear faz o projecto de uma fábrica gigantesca que funcionará de acordo com o que foi previsto. A partir de alguns sonhos, Freud desvenda a alma humana como nunca foi feito. É que Freud e Einstein realizaram, no início, um colossal esforço de imaginação. Imaginaram um real completamente diferente dos dados racionais admitidos. A partir dessa projecção imaginativa estabeleceram conjuntos de factos que a experiência verificou

“No domínio da ciência aprendemos quão vasta é a estranheza do mundo”, diz Oppenheimer.

Que esta aceitação da estranheza possa enriquecer a história, é do que estamos persuadidos.

Não pretendemos de forma alguma produzir no método histórico as alterações que lhe desejamos. Mas pensamos que o pequeno esboço que vão ler pode prestar algum serviço aos futuros historiadores. Seja estímulo, seja repulsão. Pretendemos, ao tomar como objecto de estudo um aspecto da Alemanha hitleriana, indicar vagamente uma direcção de pesquisas válida para outros assuntos. Traçámos flechas sobre as árvores ao nosso alcance. Mas não pretendemos ter tornado praticável toda a floresta.

*

Procurámos reunir factos que um historiador “normal” repudiaria com cólera ou horror. Transformámo-nos por algum tempo, segundo a bela frase de Maurice Renard, em “amadores do insólito e escribas de milagres”. Este género de trabalho nem sempre é confortável para o espírito. Por vezes tranquilizávamo-nos pensando que a teratologia, ou estudo dos monstros, com que se distinguiu o professor Wolff a despeito da desconfiança dos sábios “razoáveis”, esclareceu muitos aspectos da biologia. Serviu-nos de apoio outro exemplo: o de Charles Fort, esse americano malicioso de que já falámos.

Foi dentro do espírito “fortiano” que orientámos as nossas investigações sobre acontecimentos da história recente. Portanto, não nos pareceu indigno de atenção o facto de o fundador do nacional-socialismo ter realmente acreditado na vinda do super-homem.

A 23 de Fevereiro de 1957, um homem-rã procurava o corpo de um estudante afogado no Lago do Diabo, na Boémia. Regressou à superfície, pálido de pavor, incapaz de articular um som. Quando recuperou o uso da palavra revelou que acabava de ver, sob as águas frias e densas do lago, um alinhamento fantasmagórico de soldados alemães de uniforme, e uma caravana de carros atrelados, com os cavalos em pé.

“Ó Noite, o que significam esses guerreiros lívidos?…”

De certa maneira, também nós mergulhámos no Lago do Diabo. Nos anais do processo de Nuremberga, em milhares de livros e de revistas e nos testemunhos pessoais, reunimos uma colecção de singularidades. Organizámos o nosso material em função de uma hipótese de trabalho que talvez não fôssemos capazes de elevar à dignidade de uma teoria, mas que um grande escritor inglês desconhecido, Arthur Machen, brilhantemente exprimiu :

“Existem à nossa volta sacramentos do mal, da mesma forma que existem sacramentos do bem, e a nossa vida e os nossos actos desenrolam-se, segundo creio, num mundo insuspeitado, cheio de cavernas, sombras e habitantes crepusculares.”

A alma humana ama o dia. Acontece-lhe também amar a noite, com igual ardor, e esse amor pode conduzir os homens, como as sociedades, a acções criminosas e desastrosas que aparentemente desafiam a razão, mas que, no entanto, se revelam explicáveis se nos colocarmos numa determinada óptica. Precisaremos o caso um pouco adiante ao dar de novo a palavra a Arthur Machen.

*

Nesta parte do nosso trabalho pretendemos fornecer a matéria-prima de uma história invisível. Não somos os primeiros. John Buchan já assinalara estranhas correntes subterrâneas sob os acontecimentos históricos. Uma entomologista alemã, Margaret Boveri, tratando dos homens com a frieza objectiva que utiliza na observação dos insectos, escreveu uma História da TraiÇão no Século Vinte, cujo primeiro volume tem por título História Visível e o segundo História Invisível.

Mas de que história invisível se trata? O termo é cheio de armadilhas. O visível é tão rico e, no fim de contas, ainda tão pouco explorado, que se lhe pode sempre descobrir factos que justificam não importa que espécie de teoria, e conhecem-se inúmeras explicações da história devido à acção oculta dos Judeus, dos Franco-Mações, dos Jesuítas ou do Banco Internacional. Essas explicações parecem-nos primárias. Aliás, constantemente evitámos confundir aquilo a que chamamos o realismo fantástico com o ocultismo, e as molas secretas da realidade com o folhetim. (No entanto notámos muitas vezes que a realidade era falha de dignidade: ela não escapa ao romanesco e não se podem eliminar factos sob o pretexto de que parecem sair, justamente, de um folhetim.)

Acolhemos portanto os factos mais bizarros sob a reserva de os podermos autenticar. Por vezes preferimos dar a impressão de procurar o sensacional ou de nos deixarmos arrastar pelo gosto do estranho, a descurar tal aspecto aparentemente demencial. O resultado em nada se assemelha aos retratos da Alemanha nazi geralmente admitidos. A culpa não é nossa. Tínhamos por objecto de estudo uma série de acontecimentos fantásticos. Não é habitual, mas é lógico pensar que, atrás desses acontecimentos, podem esconder-se realidades extraordinárias. Por que motivo teria a história o privilégio sobre as outras ciências modernas de poder explicar todos os fenómenos de maneira satisfatória para a razão?

Seguramente o nosso retrato não está de acordo com as ideias aceites, e é fragmentário. Nada quisemos sacrificar à coerência. Esta recusa de sacrificar à coerência é aliás uma tendência muito recente em história, assim como a tendência para a verdade:

“Aqui e além aparecerão lacunas: o leitor deverá pensar que o historiador de hoje abandonou a antiga concepção segundo a qual a verdade era atingida assim que estivessem aplicadas, sem espaços vazios nem excedentes, todas as peças de um puzzle a recompor. O ideal da obra histórica deixou de ser para ele um belo mosaico muito acabado e muito liso: é como um campo de pesquisas que ele a concebe, com o seu caos aparente onde se justapõem as escavações vagas, as colecções de pequenos objectos evocadores e, aqui e além, as belas ressurreições de conjunto e as obras de arte.”

O físico sabe que são pulsações de energia anormais, excepcionais, que revelaram a fissão do urânio e portanto abriram espaços infinitos para o estado da radioactividade. Foram a pulsações do extraordinário que nós procurámos.

*

Um livro de lord Russell de Liverpool: Rápida História dos Crimes de Guerra Nazis, publicado onze anos depois da vitória dos Aliados, surpreendeu os leitores franceses pelo seu tom de extrema sobriedade. Vulgarmente, nesta matéria, a indignação substitui a explicação. Neste livro falam por si factos horríveis, e os leitores verificaram que continuavam sem nada perceber de tanta atrocidade. Exprimindo esse sentimento, um especialista eminente escrevia no jornal Le Monde:

“A questão que se põe é a de saber como é que tudo isto foi possível em pleno século ” e em regiões que passam por ser as mais civilizadas do Universo.”

É estranho que tal pergunta, essencial, primordial, se ponha aos historiadores doze anos depois da abertura de todos os arquivos possíveis. Mas será que ela se apresenta realmente aos historiadores? Não é muito certo. Pelo menos tudo se passa como se eles pretendessem esquecê-la, logo depois de ser evocada, obedecendo assim ao movimento da opinião estabelecida que tal pergunta incomoda. Deste modo, acontece que o historiador seja testemunha da sua época, recusando-se a fazer história. Mal escreveu: “A questão que se põe é saber se…”, apressa-se a continuar para que ela se não possa pôr:

“Eis, acrescenta imediatamente, o que o homem faz quando é abandonado ao livre impulso dos seus instintos, a um tempo desenfreados e sistematicamente pervertidos.”

Estranha explicação histórica, a dessa evocação do mistério nazi por meio dos tópicos gastos da moral vulgar! No entanto foi a única explicação que nos deram, como se houvesse uma vasta conspiração das inteligências para fazer das páginas mais fantásticas da história contemporânea qualquer coisa de redutível a uma lição de história primária sobre os maus instintos. Dir-se-ia que uma pressão considerável incide sobre a história a fim de que esta seja reduzida às minúsculas proporções do
pensamento racionalista convencional.

Entre as duas guerras, observa um jovem filósofo, “por não terem denunciado qual o furor pagão que enfunava as bandeiras inimigas, os antifascistas não souberam profetizar o odioso futuro da vitória hitleriana”.

Eram raras e pouco escutadas as vozes que anunciavam no céu alemão “a substituição da Cruz Gamada em vez da de Cristo, negação pura e simples dos Evangelhos”.

Não é inteiramente nossa esta visão de Hitler anticristo. Achamos que ela não é suficiente para esclarecer totalmente os factos. Mas situa-se, pelo menos, ao nível conveniente para julgar este extraordinário momento da história.

É esse o problema. Não estaremos ao abrigo do nazismo, ou antes de certas formas do espírito luciferino de que o nazismo projectou a sombra sobre o Mundo, senão quando percebermos e afrontarmos na nossa consciência os aspectos mais fantásticos da sua aventura.

Entre a ambição luciferina de que o hitlerismo foi uma trágica caricatura, e o angelismo cristão que também tem a sua caricatura em fórmulas sociais; entre a tentação de atingir o sobre-humano, de conquistar o céu de assalto, e a tentação de se entregar a uma ideia ou a um Deus para que a condição humana seja transcendida; entre a recusa e a aceitação de uma transcendência, entre a vocação do mal e a do bem, ambos poderosos, profundos e secretos; – entre imensos movimentos contraditórios da alma humana e sem dúvida do inconsciente colectivo, representam-se tragédias de que a história convencional não se apercebe inteiramente, como que por receio de introduzir, com certos documentos e certas interpretações,
impedimentos graves demais que a impeçam de descansar no âmago das sociedades.

O historiador que se ocupa da Alemanha nazi parece querer ignorar o que era o inimigo que foi abatido. É auxiliado nesse desejo pela opinião geral. É que ter abatido semelhante inimigo em conhecimento de causa exigiria uma concepção do mundo e do destino humano à medida da vitória. Vale mais pensar que acabámos por impedir que nos prejudicassem velhacos e loucos e que, no fim de contas, as pessoas de bem têm sempre razão. Eram velhacos e loucos, é certo. Mas não no sentido, mas não no grau em que o entendem as pessoas de bem. O antifascismo convencional parece ter sido inventado por vencedores que necessitavam de dissimular o seu vazio. Mas o vazio aspira.

*

O doutor Antony Laughton, do Instituto Oceanográfico de Londres, fez mergulhar uma máquina de filmar a 4500 metros de profundidade, ao largo das costas da Irlanda. Sobre as fotografias distinguem-se muito nitidamente marcas de pés pertencentes a uma criatura desconhecida. Após o abominável homem das neves, eis que se insinua na imaginação e na curiosidade dos homens este irmão da criatura dos píncaros, o abominável homem dos mares, o desconhecido dos abismos. Num certo sentido, a história, para os observadores do nosso género, é semelhante ao “velho oceano que a sonda amedronta”.

Esquadrinhar a história invisível é um exercício muito são para o espírito. Desembaraçamo-nos da repugnância pelo inverosímil que é natural, mas que muitas vezes paralisou o conhecimento.

Esforçámo-nos, em todos os domínios, por resistir a essa repugnância pelo inverosímil, quer se trate das forças de acção dos homens, das suas crenças, ou das suas realizações. Assim, estudámos certos trabalhos da secção clandestina dos serviços de informação alemães. Essa secção elaborou, por exemplo, um longo relatório sobre as propriedades mágicas dos campanários de Oxford, que, segundo os seus cálculos, impedem que as bombas caiam sobre essa cidade. Que haja nisso uma aberração não é discutível, mas que essa aberração tenha grassado entre homens inteligentes e responsáveis, e que esse facto elucida diversos pontos da história visível e da história invisível, também não é discutível.

*

Para nós, os acontecimentos têm muitas vezes razões de ser que a razão ignora, e as linhas de força da história podem ser tão invisíveis e no entanto tão reais como as linhas de força de um campo magnético.

É possível ir mais longe. Aventurámo-nos até onde esperamos que se aventurem os historiadores do futuro com meios superiores aos nossos. Aconteceu-nos tentar aplicar à história o princípio das “ligações não causais” que o físico Wolfgang Pauli e o psicólogo Jung recentemente propuseram. Era a este princípio que eu há pouco aludia ao falar de coincidências. Para Pauli e Jung, acontecimentos independentes entre si poderiam ter relações sem causa, mas no entanto significativas à escala humana. São as “coincidências significativas”, “as linhas” onde os dois sábios vêem um fenómeno de “sincronicidade” que revela ligações insólitas entre o homem, o tempo e o espaço, e a que Claudel magnificamente chamava “a jubilação dos acasos”.

Uma doente está estendida no divã do psicanalista Jung. Oprimem-na perturbações nervosas muito graves, mas a análise não progride. A paciente, prisioneira de um espírito estremamente realista, agarrada a uma espécie de ultralógica, torna-se impenetrável aos argumentos do médico.

Uma vez mais, Jung ordena, propõe, suplica:

– Abandone-se, não procure compreender, e conte-me simplesmente os sonhos que tem.

– Sonhei com um escaravelho – responde finalmente a dama, entre dentes.

Nesse momento ouvem-se pequenas pancadas contra a vidraça. Jung abre a janela e um belo escaravelho dourado entra na sala fazendo ressoar os seus élitros. Perturbada, a paciente abandona-se por fim e a análise pode realmente começar, e prosseguirá até à cura.

Jung cita muitas vezes este incidente verídico que tem a forma de um conto árabe. Na história de um homem, como na história propriamente dita, na sua opinião, há muitos escaravelhos de ouro.

*

A complexa doutrina da “sincronicidade”, em parte motivada pela observação de tais coincidências, seria talvez de natureza a modificar totalmente a concepção da história. A nossa ambição não vai tão longe nem tão alto. O que pretendemos é chamar a atenção para os aspectos fantásticos da realidade. Nesta parte do nosso trabalho dedicámo-nos à pesquisa e interpretação de certas coincidências, a nossos olhos significativas. Podem não o ser para outros.

Aplicando a nossa concepção “realista fantástica” à história, entregámo-nos a um trabalho de selecção. Por vezes escolhemos factos de pouca importância, mas aberrantes, porque, em certa medida, era à aberração que pedíamos a luz. Uma irregularidade de alguns segundos no movimento do planeta Mercúrio basta para abalar o edifício de Newton e justificar Einstein. Da mesma forma, parece-nos que alguns dos factos que pusemos em realce podem tornar necessária a revisão das estruturas da história cartesiana.

Poder-se-á utilizar este método para prever o futuro? Acontece-nos também sonhar com isso. Em O Chamado “Quinta-Feira”, Chesterton descreve uma brigada de polícia política especializada na poesia. Evitou-se um atentado porque um polícia compreendeu o sentido de um soneto. Há grandes verdades atrás dos gracejos de Chesterton. Correntes de ideias que passam despercebidas ao observador oficial, escritos, obras às quais o sociólogo não está atento, factos sociais demasiado pequenos e demasiado aberrantes a seus olhos, anunciam talvez com mais certeza os acontecimentos futuros do que os factos visíveis e os grandes movimentos aparentes do pensamento com os quais ele se preocupa.

O clima de terror do nazismo, que ninguém pôde prever, estava anunciado nas horríveis narrativas do escritor alemão Hans Heinz Ewers: A Mandrágora e No Terror. Ele viria a ser o poeta oficial do regime e escreveria o Horst wessel Láed. Não é impossível que certos romances, certos poemas, quadros ou estátuas, desprezados até pela crítica especializada, nos indiquem as figuras exactas do mundo de amanhã.

Dante, em A Divina Comédia, descreve com precisão a Cruz do Sul, constelação invisível no hemisfério norte e que nenhum viajante do seu tempo pode ter descoberto. Swift, em A Viagem a Laputa, descreve as distâncias e os períodos de rotação dos dois satélites de Marte, desconhecidos na época. Quando o astrónomo americano Asaph Hall os descobre em 1877 e se apercebe de que as suas medidas correspondem às indicações de Swift, invadido por uma espécie de pânico chama-lhes Phobos e Deimos: medo e terror[4]. Em 1896, um escritor inglês, M. P. Schiel, publica um conto onde se vê um bando de criminosos horríveis destruindo a Europa, matando famílias que supõem prejudiciais ao progresso da humanidade e queimando os cadáveres. Intitula o seu conto: Os S.S.

Goethe dizia: “Os acontecimentos futuros projectam a sua sombra em frente”, e pode ser que se encontre, longe do que mobiliza a atenção geral, em obras e actividades humanas estranhas ao que nós chamamos “o movimento da história”, a verdadeira detecção e a expressão dessas ressacas do futuro.

*

Existe um fantástico evidente que o historiador encobre com pudor de explicações frias e mecânicas. A Alemanha, no momento em que nasce o nazismo, é a pátria das ciências exactas. O método alemão, a lógica alemã, o rigor e a probidade científica alemã são universalmente considerados. O Herr Professor incita por vezes à caricatura, mas está rodeado de consideração. Ora é neste ambiente, de um cartesianismo de chumbo, que uma doutrina incoerente e em parte demencial se propaga rápida, irresistivelmente, a partir de um foco minúsculo. No país de Einstein e de Planck começa a ser professada uma “física ariana”. No país de Humboldt e de Haeckel começa-se a falar de raças. Pensamos que não é possível explicar tais fenómenos pela inflação económica. Não é este o cenário de fundo para semelhante bailado. Pareceu-nos muito mais eficaz ir procurar junto de certos cultos estranhos e certas cosmogonias aberrantes, até agora desprezadas pelos historiadores. Essa desatenção é muito singular. As cosmogonias e os cultos de que vamos falar gozaram na Alemanha de protecção e encorajamentos oficiais. Desempenharam um papel espiritual, científico, social e político relativamente importante. Com esse cenário de fundo compreende-se melhor o bailado.

Limitámo-nos a um momento da história alemã. Poderíamos igualmente mostrar, por exemplo, para apreender o fantástico na história contemporânea, a invasão das ideias asiáticas na Europa no momento em que as ideias europeias provocam o despertar dos povos da Ásia. Aí está um fenómeno tão desmoralizante como o espaço não euclidiano ou os paradoxos do núcleo atómico. O historiador convencional, o sociólogo “comprometido” não vêem, ou recusam ver, esses movimentos profundos que não se adaptam àquilo a que eles chamam os “movimentos da história”. Eles prosseguem imperturbavelmente a análise e a predição de uma aventura dos homens que não se assemelha nem aos próprios homens, nem aos sinais misteriosos mas visíveis que estes trocam com o tempo, o espaço e o destino.

“O amor, diz Jacques Chardonne, é muito mais do que o amor.” No decorrer das nossas investigações adquirimos a certeza de que a história é muito mais do que a história. Essa certeza é tónica. A despeito do crescente peso dos factos sociais e das crescentes ameaças dirigidas contra a pessoa humana, nós vemos o espírito e a alma da humanidade continuar a acender aqui e além as suas fogueiras, que não são cada vez mais pequenas. Apesar de os corredores da história, aparentemente, serem mais estreitos, temos a certeza de que o homem não perde ao percorrê-los o fio que o liga á imensidade. Estas imagens são à Vítor Hugo, mas exprimem bem a nossa visão. Adquirimos essa certeza penetrando no real: é no mais íntimo que o real é fantástico e em certo sentido, misericordioso.

Ainda que as sombrias máquinas estejam a funcionar Não se atemorize demasiado, amigo. . .

Quando os pedantes chamaram a nossa atenção Para a fria mecânica com que os acontecimentos Se viriam a desenrolar, as nossas almas disseram em surdina: É possível, mas existem outras coisas. . . [5]

1 Cronista da corte de Luís XIV. (N. da T.)

2 Nesta cidade reuniram-se em 1792, os nobres franceses que fugiam da Revolução, para solicitarem o auxílio alemão. (N. da T.)

3 Nome de uma das entradas de Paris. (N. da T.)

4 Aterrado também pelo facto de que esses satélites aparecem bruscamente. Telescópios mais importantes que o seu não os tinham avistado na véspera. Parece, muito simplesmente, que ele foi o primeiro a examinar Marte nessa noite. Hoje, depois do lançamento do Spoutnik, os astrónomos começam a escrever que talvez se trate de satélites artificiais, lançados no dia da observação de Hall. (Robert S. Richardson, do observatório do monte Palomar. Comunicação a propósito da posição de Marte, 1954).

5 Prefácio ao Napoleão de Notting Hill, de Chesterton, 1898.

 

Num artigo da Tribune des Nations, um historiador francês exprime claramente o conjunto das insuficiências intelectuais usadas desde que se trate do hitlerismo. Analisando a obra Hitler Desmascarado, publicada pelo doutor Otto Dietrich, que foi durante doze anos chefe do serviço de imprensa do Führer, Pierre Cazenave escreve:

“Todavia, o doutor Dietrich contenta-se facilmente demais com uma frase que repete muitas vezes e que, num século positivista, não permite explicar Hitler. “Hitler, diz ele, era um homem demoníaco, vítima de ideias nacionalistas delirantes”. Que quer dizer demoníaco? E que quer dizer delirante? Na Idade Média ter-se-ia dito que Hitler estava “possesso”. Mas hoje? Ou a palavra “demoníaco” nada significa ou significa possesso do demónio. Mas o que é o demónio? Acredita o doutor Dietrich na existência do Diabo? Precisamos de nos entender. A mim, a palavra “demoníaco” não me satisfaz.

“E a palavra “delirante” também não. Quem diz delírio diz doença mental. Delírio maníaco. Delírio melancólico. Delírio de perseguição. E que Hitler tinha sido um psicopata e até um paranóico ninguém duvida, mas os psicopatas e mesmo os paranóicos andam pelas ruas. Daí a um delírio mais ou menos sistematizado, e cuja observação e diagnóstico deveriam ter determinado o internamento do seu possuidor, vai uma distância. Por outras palavras: Hitler será responsável? A meu ver, sim. E eis porque ponho de parte a palavra delírio como ponho de parte a palavra demoníaco, não tendo a demonologia, a nossos olhos, mais que um valor histórico.”

Nós não nos contentamos com a explicação do doutor Dietrich. O destino de Hitler e a aventura de um grande povo moderno sob a sua conduta não poderiam ser inteiramente descritos a partir do delírio e da possessão demoníaca. Mas também não nos podemos contentar com as críticas do historiador da Tribune des Nations. Hitler, afirma ele, não era clinicamente louco. E o Demónio não existe. Portanto é preciso não deitar fora a noção de responsabilidade. Isso é verdade. Mas o nosso historiador parece atribuir a essa noção de responsabilidade virtudes mágicas. Mal a evocou, a história fantástica do hitlerismo parece-lhe clara e reduzida às proporções do século positivista em que ele pretende que nós vivemos. Esta operação escapa à razão, assim como a operação de Otto Dietrich. É que, de facto, o termo “responsabilidade” é, na nossa linguagem, uma transposição daquilo que era a “possessão demoníaca” para os tribunais da Idade Média, como demonstram os grandes processos político modernos.

Se Hitler não era louco, nem possesso, o que é possível, a história do nazismo continuaria no entanto inexplicável à luz de um “século positivista”. A psicologia das profundezas revela-nos que certas acções aparentemente racionais do homem, na realidade são governadas por forças que ele próprio ignora ou que têm ligações com um simbolismo completamente estranho a lógica vulgar. Por outro lado sabemos, não que o Demónio não existe, mas que é diferente da visão da Idade Média. Na história do hitlerismo, ou antes em certos aspectos dessa história, tudo se passa como se as ideias-força escapassem à crítica histórica habitual, e como se precisássemos, para compreender, de abandonar a nossa visão positiva das coisas e fazer o esforço de entrar num universo no qual deixaram de se confundir a razão cartesiana e a realidade.

Empenhamo-nos em descrever estes aspectos do hitlerismo porque, como viu muito bem Marcel Ray em 1939, a guerra que Hitler impôs ao mundo foi “uma guerra maniqueísta[1], ou, como disse a Escritura, uma luta dos deuses”. Não se trata, bem entendido, de uma luta entre fascismo e democracia, entre uma concepção liberal e uma concepção autoritária das sociedades. Isto é o exoterismo da batalha. Há ali um esoterismo[2]. Essa luta dos deuses, que se desenrolou atrás dos acontecimentos aparentes, não terminou no planeta, mas os formidáveis progressos da ciência humana, dentro de alguns anos, estarão aptos a dar-lhes outras formas. Agora que as portas do conhecimento começam a abrir-se sobre o infinito, importa apreender o sentido
dessa luta. Se queremos ser conscientemente homens de hoje, quer dizer, contemporâneos do futuro, precisamos de ter uma visão exacta e profunda do momento em que o fantástico se começou a insinuar na realidade. É esse momento que nós vamos estudar.

*

“No fundo, dizia Rauschning, todo o alemão tem um pé na Atlântida, onde procura uma pátria melhor e um melhor património. Esta dupla natureza dos alemães, esta faculdade de desdobramento que lhes permite simultaneamente viver no mundo real e projectar-se num mundo imaginário, revela-se muito especialmente em Hitler e fornece a chave do seu socialismo mágico.”

E Rauschning, tentando explicar a subida ao poder desse “grande sacerdote da religião secreta”, tentava persuadir-se de que, por diversas vezes na história, “nações inteiras caíram numa inexplicável agitação. Elas empreendem marchas de flagelantes. São agitadas pela dança de São Vito”.

“O nacional-socialismo, concluía ele, é a dança de São Vito do século xx. ”

Mas de onde provém essa estranha doença? Não encontrava em parte alguma uma resposta satisfatória. “As suas raízes mais
profundas mantêm-se em regiões secretas.

São essas regiões secretas que nos parece útil explorar. E não é um historiador, mas um poeta que nos servirá de guia.

1 O maniqueísmo, que surgiu no século III, baseia-se na luta eterna entre as forças adversas do Universo: a luz e as trevas, o bem e o mal. (N. da T.)

2 C. S. Lewis, professor de teologia em Oxford, tinha, em 1937, anunciado num dos seus romances simbólicos, O Silêncio da Terra, o início de uma guerra pela possessão da alma humana, de que uma terrível guerra material não seria mais do que a forma exterior. Voltou a esta ideia em duas outras obras: Perelandra e Esta Força Hedionda (não traduzidos).

O último livro de Lewis intitula-se Até Que Tenhamos Rostos. É nesta grande narrativa poética e profética que se encontra a frase admirável que a seguir transcrevemos: “Os deuses só nos falarão frente a frente quando nós próprios tivermos um rosto”.

“Dois homens que leram Jean-Paul Toulet e que se encontram (geralmente num bar) imaginam que isso constitui um aristocratismo”, escrevia o próprio Toulet. Acontece que grandes coisas residem em cabeças sem importância. Foi através deste escritor menor e encantador, ignorado apesar do esforço de alguns entusiastas, que chegou até nós o nome de Arthur Machen, o qual não é familiar a duzentas pessoas em França.

Ao investigarmos a obra de Machen apercebemo-nos de que compreende mais de trinta volumes[1]. É de um interesse espiritual sem dúvida superior à obra de H. G. Wells[2].

Prosseguindo as nossas investigações a respeito de Machen, descobrimos uma sociedade iniciática inglesa composta por espíritos superiores. Essa sociedade, à qual Machen deve uma experiência íntima determinante e o melhor da sua inspiração, é desconhecida dos próprios especialistas. Por último, certos textos de Machen, e especialmente este que vamos apresentar, ilustram de forma definitiva uma noção pouco vulgar do Mal, absolutamente indispensável para a compreensão dos aspectos da história contemporânea que estudamos nesta parte do nosso livro.

Portanto, se no-lo permitem, antes de entrarmos a fundo no nosso assunto, vamos falar deste curioso homem. Começará como uma pequena história literária à volta de um ínfimo escritor parisiense: Toulet. Terminará com a abertura de uma grande porta subterrânea atrás da qual ainda ardem os restos dos mártires e as ruínas da tragédia nazi, que perturbou o Mundo inteiro.

Os caminhos do realismo fantástico, como mais uma vez se verifica, não se parecem com os caminhos vulgares do conhecimento.

*

Em Novembro de 1897, um amigo, “bastante inclinado para as ciências ocultas”, deu a ler a Paul jean Toulet o romance de um escritor de trinta e quatro anos completamente desconhecido: the Great God Pan. Esse livro, que evoca o mundo pagão das origens. O próprio Machen tinha consciência disso: “O Wells de que fala é com certeza um homem muito hábil. Em dado momento cheguei mesmo a supor que era qualquer coisa mais”. (Carta a P.J. Toulet, 1899). Não completamente submerso, mas sobrevivendo com prudência e, por vezes, soltando junto de nós o seu Deus do Mal e seus anjos com pés de cabra, impressionou Toulet e decidiu-o estrear-se na literatura. Começou a traduzir the Great God Pan e pedindo emprestado a Machen o seu cenário de pesadelo, os seus recantos onde o Grande Pã se esconde, escreveu o seu primeiro romance: Monsieur du Paur, hommepublic.

Monsieur du Paur foi publicado no fim do ano de 1898, nas edições Simonis Empis, e não obteve o menor sucesso. E nós nada saberíamos se Henri Martineau, grande admirador de Stendhal e amigo de Toulet, não tivesse resolvido, vinte anos mais tarde, publicar novamente esse romance à sua custa, nas edições Divan. Historiador minucioso e amigo dedicado, o Henri Martineau empenhava-se em demonstrar que Monsieur du Paur era um livro inspirado na leitura de Machen, mas no entanto original. Foi portanto ele que chamou a atenção de alguns raros letrados para Arthur Machen e para o seu Great God Pan, exumando a exígua correspondência entre Toulet e Machen[3]. Para Machen e o seu imenso génio as coisas ficaram por ali: uma das camaradagens literárias dos começos de Toulet.

Em Fevereiro de 1899, Paul jean Toulet, que há um ano tentava publicar a sua tradução de The Great God Pan, recebeu do autor a seguinte carta, em francês:

“Caro confrade,

“Nada há portanto a fazer com The Great God Pan em Paris? Se assim é, estou verdadeiramente cuitado, quanto ao caso do livro, evidentemente, mas sobretudo porque tinha esperanças em relação aos leitores franceses; supunha que no caso de apreciarem The Great God Pan nas suas roupagens francesas e de o acharem bom, talvez eu encontrasse aí o meu público! Aqui, nada posso fazer. Escrevo, escrevo sempre, mas é absolutamente como se escrevesse num scriptorium monástico da Idade Média; quer dizer que as minhas obras se mantêm sempre no inferno das coisas inéditas. Tenho na minha gaveta um volumezinho de contos muito pequenos, a que chamo Ornaments án Jade. “Encantador o seu livrinho, diz o editor, mas “é completamente impossível.” Há também um romance, the Garden ofAvallonius, qualquer coisa como 65 000 palavras É uma arte sine peccato, diz o bom do editor, mas chocaria o nosso público inglês”. E neste momento trabalho num livro que permanecerá, estou certo disso, na mesma ilha do Diabo! Enfim, meu caro confrade, encontrará qualquer coisa de bastante trágico (ou antes tragicómico) nestas aventuras de um escritor inglês; mas, como já disse, tinha esperanças na sua tradução do meu primeiro livro.”

Le Grand Dieu Pan apareceu finalmente na revista La Plume, em 1901, e depois foi editado ao cuidado dessa mesma revista[4]. Passou despercebido.

Só Maeterlinck se impressionou: “os meus melhores agradecimentos pela revelação desta bela e singular obra. É, segundo creio, a primeira vez que foi tentada a mistura do fantástico tradicional ou diabólico com o fantástico moderno e científico e que dessa mistura nasceu a obra mais impressionante que conheço, pois atinge simultaneamente as nossas recordações e
as nossas esperanças”

*

Arthur Machen nasceu em 1863 no país de Gales, em Caerlson-Usk, minúscula aldeia que foi a sede do rei Artur e de onde os Cavaleiros da Távola Redonda partiram em busca do Graal. Quando se sabe que Himmler, em plena guerra, organizou uma expedição com o fim de procurar o vaso sagrado (falaremos nisso mais adiante) e quando, para esclarecer a história nazi secreta, se depara com um texto de Machen, descobrindo em seguida que este escritor nasceu nessa aldeia, berço dos temas wagnerianos, pensa-se uma vez mais que, para quem sabe ler, as coincidências usam trajos de luz.

Machen instalou-se em Londres ainda jovem e aí viveu assustado, como Lovecraft em Nova Iorque. Caxeiro de livraria durante alguns meses, depois preceptor, chegou à conclusão de que era incapaz de ganhar a vida em sociedade. Começou a escrever numa penúria material extrema e total cansaço. Durante um longo período, viveu de traduções: As Memórias de Casanova, em doze volumes, por trinta shillings por semana durante dois anos.

Recebeu uma pequena herança por morte de seu pai, clergyman, e, com a subsistência garantida durante algum tempo, prosseguiu a sua obra com o sentimento crescente de que “um imenso golfo espiritual o separava dos outros homens”, e que era necessário aceitar cada vez mais profundamente aquela vida de “Robinson Crusoé da alma”.

As suas primeiras narrativas fantásticas foram publicadas em 1895. São elas The Great God Pan e The Immost Light. Aí afirma que o Grande Pã não morreu e que as forças do mal, no sentido mágico do termo, não cessam de esperar por alguns de nós para nos fazer passar para o outro lado do mundo. Nesse mesmo registo publicou no ano seguinte O Pó Branco, que é a sua obra mais poderosa juntamente com The Secret Glory, sua obra-prima, escrita aos sessenta anos.

Aos trinta e seis anos, após doze de amor, perdeu a mulher: “Não chegámos a estar separados doze horas durante esses doze anos; podem portanto avaliar o que sofri e continuo a sofrer todos os dias. Se sinto algum desejo de ver os meus manuscritos impressos é para lhe poder dedicar cada um deles nestes termos: Auctoris Anima ad Dominam”. É ignorado, vive na miséria, e tem o coração partido. Três anos depois, com trinta e nove anos, renuncia à literatura e faz-se actor ambulante.

“O senhor diz-me que não tem muita coragem, escreve ele a Toulet. Eu não tenho nenhuma. tão pouca que já não escrevo uma linha, e nunca mais escreverei, suponho. Tornei-me cabotino; dediquei-me ao teatro e neste momento represento um papel em Coriolano.”

Deambula através da Inglaterra, com a companhia shakespeariana de sir Frank Benson, depois reúne-se ao grupo do Teatro SaintJammes. Pouco antes da guerra de 1914, tendo tido de abandonar o teatro, faz um pouco de jornalismo, para sobreviver. Não escreve nenhum livro. Na barafunda de Fleet Street, entre os seus companheiros de trabalho sempre atarefados, a sua figura estranha de homem meditativo, as suas maneiras lentas e afáveis de erudito fazem sorrir.

Para Machen, como se pode verificar em toda a sua obra, “o homem é feito de mistério pará os mistérios e as visões”. A realidade é o sobrenatural. O mundo exterior é pouco instrutivo, a menos que seja visto como um reservatório de símbolos e de significações escondidas. Só as obras de imaginação produzidas por um espírito que procura as verdades eternas têm alguma probabilidade de ser obras reais e realmente úteis. Como diz o crítico Philip Van Doren Stern, “é possível que houvesse mais verdades essenciais nas narrativas fantásticas de Arthur Machen do que em todos os gráficos e todas as estatísticas do Mundo”.

*

Foi uma estranha aventura que reconduziu Machen à vida literária. Tornou o célebre durante algumas semanas e o choque que sofreu decidiu-o a acabar a vida como escritor.

O jornalismo pesava-lhe, e já não sentia desejos de escrever para ele próprio. A guerra acabava de se declarar. Havia necessidade de literatura heróica. Não era esse o seu género. The Evening News pediu-lhe uma narrativa. Ele escreveu-a ao correr da pena, mas apesar de tudo no seu estilo. Chamava-se The Bowmen (Os Archeiros). O jornal publicou essa narrativa a 29 de Setembro de 1914, no dia seguinte ao da retirada de Mons. Machen imaginara um episódio dessa batalha. São Jorge com a sua armadura rutilante, à frente de anjos que são os antigos archeiros de Azincourt, vem em auxílio do exército britânico.

Escreveram para o jornal dezenas de soldados: esse senhor Machen não inventara. Eles tinham visto, com os seus próprios olhos, diante de Mons, os anjos de São Jorge deslizarem para o meio das fileiras. Podiam testemunhá-lo sob a sua honra. Inúmeras dessas cartas foram publicadas. A Inglaterra, ávida de milagres num momento tão perigoso, comoveu-se. Machen sofrera por o terem ignorado quando tentara revelar as realidades secretas. Dessa vez, com um fantástico sem categoria, agitava o país inteiro. Ou então, dar-se-ia o caso de que as forças ocultas se levantassem e tomassem tal ou tal forma ao apelo da sua imaginação, tantas vezes agarrada às verdades essenciais e que trabalhara talvez, sem ele próprio o saber, em profundidade? Machen repetiu, nos jornais, mais de doze vezes, que a sua narrativa era pura ficção. Ninguém o admitiu. Na véspera da sua morte, mais de trinta anos depois, já muito velho, constantemente se referia a essa extravagante história dos anjos de Mons.

A despeito dessa celebridade, o livro que ele escreveu em 1915 não teve o menor êxito. Tratava-se de O Grande Regresso, meditação sobre o Graal. Depois veio, em 1922, The Secret Glory, que é uma crítica ao mundo moderno à luz da experiência religiosa. Aos sessenta anos começou uma autobiografia original em três volumes. Tinha alguns admiradores em Inglaterra e na América, mas morria de fome. Em 1943 (tinha então oitenta anos), Bernard Shaw, Max Beerbohn, T. S. Eliot organizaram uma comissão para tentar reunir fundos que lhe permitissem não acabar num asilo de indigentes. Pôde terminar os seus dias em paz, numa pequena casa de Buckinghamshire, e morreu em 1947. Sempre o encantara uma frase de Murger. Em A Vida de Boémia, Marcel, o pintor, nem sequer possui uma cama. “Mas então onde é que descansa?”, pergunta-lhe o proprietário. “Senhor, responde Marcel, descanso na Providência”.

*

Por volta de 1880, em França, na Inglaterra e na Alemanha fundam-se sociedades iniciáticas e ordens herméticas que agrupam poderosas personalidades. A história dessa crise mística pós-romântica ainda não foi escrita. Merecia sê-lo. Ali se encontraria a origem de várias correntes de pensamento importantes e que, por sua vez, determinariam correntes políticas.

Nas cartas de Arthur Machen a P.J. Toulet encontram-se duas curiosas passagens.

Em 1899:

“Quando escrevi Pã e O Pó Branco, não imaginava que acontecimentos tão estranhos alguma vez se dessem na vida real, ou até que jamais fossem susceptíveis de se produzir. Mas depois, e muito recentemente, verificaram-se na minha própria existência experiências que alteraram completamente o meu ponto de vista a esse respeito… De hoje em diante estou convencido de que nada é impossível sobre a Terra. Tenho apenas que acrescentar, acho eu, que nenhuma das experiências que fiz tem qualquer coisa a ver com aldrabices como o espiritualismo ou a teosofia. Mas creio que vivemos num mundo de grande mistério, de coisas insuspeitadas e absolutamente espantosas.

Em 1900:

“Uma coisa que pode divertir o meu amigo: enviei O Grande Deus Pã a um adepto, um “ocultista” avançado, que encontrei subrosa! e ele escreveu: “O livro prova bem que, por meio do pensamento e da meditação, mais do que pela leitura, V. Ex.a tem atingido um certo grau de iniciação independente das ordens e das organizações.”

Quem é esse “adepto”? E quais são essas “experiências”?

Noutra carta, após a passagem de Toulet por Londres Machen escreve:

“O sr. Waite simpatizou muito consigo, pede-me que envie os seus cumprimentos.”

Despertou a nossa atenção o nome desse íntimo de Machen que se dava com tão poucas pessoas. Waite foi um dos melhores historiadores de alquimia e um especialista da ordem de Rosa-Cruz.

Tínhamos chegado àquele ponto das nossas investigações que nos esclareciam a respeito das curiosidades intelectuais de Machen, quando um dos nossos amigos nos fez uma série de revelações sobre a existência, em Inglaterra, no final do século xIx e princípio do xx, de uma sociedade iniciática: inspirada na Rosa-Cruz.

Essa sociedade chamava-se a Golden Dawn. Era composta por alguns dos espíritos mais brilhantes de Inglaterra. Arthur
Machen foi um dos adeptos.

A Golden Dawn, fundada em 1887, era procedente da Sociedade da Rosa-Cruz inglesa, criada vinte anos antes por Robert Wentworth Little, e que angariava partidários entre os mestres mações. Esta última sociedade compreendia 144 membros, entre os quais Bulwer-Lytton, autor de Os últimos Dias de Pompeia.

A Golden Dawn, mais reduzida ainda, tinha como finalidade a prática da magia cerimonial e a obtenção dos poderes e conhecimentos iniciáticos. Os seus chefes eram Woodman, Mathers e Wynn Wescott (o “iniciado” de que Machen falava a Toulet
na sua carta do ano de 1900)[6]. Ela estava em contacto com sociedades similares alemãs de que mais tarde se encontrarão certos membros no famoso movimento de antroposofia do período pré-nazi. Viria a ter como mestre Aleister Crowley, um homem absolutamente extraordinário e com certeza um dos maiores espíritos do neopaganismo de que seguiremos a pista na Alemanha.

S. L. Mathers, após a morte de Woodmann, e a retirada de Wescott, foi o grande mestre da Golden Dawn, que governou durante algum tempo de Paris, onde acabava de desposar a irmã de Henri Bergson.

Mathers foi substituído na direcção da Golden Dawn pelo célebre poeta Yeats, que mais tarde viria a receber o Prémio Nobel.

Yeats tomou o nome de Irnzão Diabo é Deus Inversus. Presidia às sessões de kilt escocês, mascarado de preto e com um
punhal de ouro à cintura.

Arthur Machen tomara o nome de Filus Aquartá. Havia uma mulher filiada na Golden Dawn: Florence Farr, directora de teatro e amiga íntima de Bernard Shaw. Ali se encontravam também os escritores Blackwood, Stoker, o autor de Drácula, e Sax Rohmer, assim como Peck, o astrónomo real da Escócia, o célebre engenheiro Allan Bennett e sár Gerald Kelly, presidente da Real Academia. Segundo parece, esses espíritos de élite foram marcados de forma indelével pela Golden Dawn. Como eles próprios confessaram, a visão que tinham do mundo foi alterada e as práticas às quais se entregaram não deixaram de lhes parecer eficazes e exaltantes.

*

Certos textos de Arthur Machen ressuscitam uma sabedoria esquecida pela maior parte dos homens, e no entanto indispensável para uma justa compreensão do mundo. Mesmo para o leitor não prevenido, emana uma inquietante verdade das frases deste escritor.

Quando decidimos apresentar-vos certas páginas de Machen nada sabíamos da Golden Dawn. Guardadas todas as proporções e salva a nossa humildade, passou-se aqui connosco o que se passa com os maiores prestidigitadores: o que os distingue dos seus semelhantes em destreza é que, no decorrer dos seus melhores exercícios, os objectos começam a ter uma vida própria, escapam-se-lhes, entregando-se a proezas imprevistas. Nós sentimo-nos ultrapassados pelo mágico. Procurávamos num texto de Machen que nos impressionara um esclarecimento geral sobre os aspectos do nazismo que nos parecem mais significativos do que tudo o que foi dito pela história oficial. Verifica-se que uma lógica implacável rege, de facto, o nosso sistema aparentemente extravagante. De certo modo, não é de admirar que esse esclarecimento geral nos venha de um membro de uma sociedade iniciática com forte inclinação para o neopaganismo.

Eis o texto que serve de introdução a um conto intitulada The white People. Esse conto, escrito depois de O Grande Deus
Pã, figura numa colecção de textos de Machen publicada após a sua morte: Tales of Horror and the Supernatural (Richard’s
Press, Londres).

1 The Anatomy of Tobacco (1884). the Great God Pan (1895), The House of Souls (1906), the Hill of Dreams (1907), the Great Return (1915), The Bozumen (1915), The Terror (1917). The Secret Glory (1922), Strange Roads (1923), The London Adventure (1924), The Carning Wronder (1926), The Green Round (1933), Holy Terrors (1946).

2 Obra póstuma: Tales of Horror and the Supernaturad (1948).

3 Henri Martineau: Arthur Machen et Toulet, correspondência inédita. Le Mercure de France, n.º 4, Janeiro de 1938.

Henri Martineau: P. J. Toulet et Arthur Machen, Monsieur du Paur et le Grand Dieu Pan, “Le Divan,” Paris.

4 Reeditado em 1938 por Émile-Paul com um prefácio de Henri Martineau, é o único livro de Machen publicado em França.

5 Em Inglaterra, Paul Jordan Smith elogia-o num capítulo do seu livro On Strange Altars (Londres, 1923). Henri Martineau faz notar que na América o seu nome foi muito citado por volta de 1925 e que lhe foram consagrados bastantes artigos. Em 1918, Vincent Starett consagrara-lhe um livro: Arthur Machen, a novelist of ecstasy and sin (Chicago). Após a sua morte apareceu um trabalho de W. F. Gekle: Arthur Machen, weaver offantasy (Nova Iorque).

6 Ele viria a publicar essas revelações nos números 2 e 3 da revista La Tour SaintJacques, em 1956, sob o nome de Pierre Victor: L’ordre hermétique de la Golden Dawn.

Ambrose disse: “A feitiçaria e a santidade, eis as únicas realidades”.

E prosseguiu: “A magia justifica-se através dos seus filhos; eles comem côdeas de pão e bebem água com uma alegria muito mais intensa do que o epicúrio”.

– Quer falar dos santos?

– Sim. E também dos pecadores. Creio que o senhor cai no erro frequente daqueles que limitam o mundo espiritual às regiões do bem supremo. Os seres extremamente perversos também fazem parte do mundo espiritual. O homem comum, Carnal e sensual, nunca será um grande santo. Nem um grande pecador. Na maioria, somos simplesmente criaturas contraditórias e, no fim de contas, desprezíveis. Seguimos o nosso quotidiano caminho de lama sem compreender o profundo significado das coisas, e eis porque, em nós, o bem e o mal são idênticos: de ocasião, sem importância.

– Pensa então que um grande pecador é um asceta, da mesma forma que o grande santo?

– Aqueles que são grandes, tanto no bem como no mal, são os que abandonam as cópias imperfeitas e se dirigem aos originais perfeitos. Para mim, não tenho qualquer dúvida: os maiores de entre os santos nunca fizeram uma “boa acção”, no sentido vulgar do termo. E, por outro lado, existem homens que desceram ao fundo dos abismos do mal, e que, em toda a sua vida, nunca cometeram aquilo a que se chama uma “má acção”.

Deixou a sala por um momento; Cotgrave voltou-se para o amigo e agradeceu-lhe que o tivesse apresentado a Ambrose.

– É formidável – disse. – Nunca tinha visto este género de louco.

Ambrose reapareceu com uma nova provisão de uísque e serviu com generosidade os dois homens. Criticou ferozmente a seita dos abstinentes, mas serviu-se um copo de água. Ia recomeçar o monólogo, quando Cotgrave o interrompeu:

– Os seus paradoxos são monstruosos. Então um homem pode ser um grande pecador e no entanto nada fazer de culpável? Essa é boa!

– Está completamente enganado – disse Ambrose. – Eu nunca faço paradoxos; bem gostaria de poder fazê-los. Disse simplesmente que um homem pode ser um grande conhecedor dos vinhos de Borgonha e no entanto nunca ter provado vinho ruim nas tabernas. É tudo, e é provável que seja antes um truísmo do que um paradoxo, não é verdade? A sua reacção é a prova de que não faz a menor ideia do que pode ser o pecado. Oh, evidentemente, há uma relação entre o Pecado maiúsculo e os actos considerados culpáveis: assassínio, roubo adultério, etc. Exactamente a mesma relação que há entre o alfabeto e a mais genial poesia. O seu erro é quase universal: adquiriu, como toda a gente, o hábito de apreciar as coisas através de óculos sociais. todos pensamos que um homem que nos faz mal, a nós, ou aos nossos vizinhos, é um homem mau. E é-o, sob o ponto de vista social. Mas não compreende que o Mal, na sua essência, é uma coisa solitária, uma paixão da alma? O assassino médio, na sua qualidade de assassino, não é de forma alguma um pecador no verdadeiro sentido da palavra. É simplesmente um animal perigoso de que nos devemos desembaraçar para salvar a pele. Eu classificá-lo-ia de muito melhor vontade entre as feras do que entre os pecadores.

– Tudo isso me parece bastante estranho.

– Mas não é. O assassino não mata por razões positivas, mas negativas; falta-lhe qualquer coisa que os não-assassinos
possuem. O Mal, em contrapartida, é totalmente positivo. Mas positivo no mau sentido. E é raro. Há certamente menos pecadores verdadeiros do que santos. Quanto a esses a que chama criminosos, são seres incómodos, bem entendido, e dos quais a sociedade tem razão de se defender, mas entre os seus factos anti-sociais e o Mal há uma enorme distância, pode crer!

Fazia-se tarde. O amigo que levara Cotgrave a casa de Ambrose já ouvira sem dúvida tudo aquilo. Escutava com um sorriso fatigado e um pouco trocista, mas Cotgrave começava a pensar que o seu “alienado” talvez fosse um sábio.

– Sabe que estou imensamente interessado? – disse. – Julga então que não compreendemos a verdadeira natureza do mal?

– Damos-lhe valor demais. Ou então de menos. Por um lado, o que chamamos pecado são as infracções às leis da sociedade, aos tabus sociais. É um exagero absurdo. Por outro lado, damos tamanha importância ao “pecado” que consiste em deitarem a mão aos nossos bens ou às nossas mulheres que esquecemos completamente o que há de horrível nos verdadeiros pecados.

– Mas o que é então o pecado? – perguntou Cotgrave.

– Sou obrigado a responder à sua pergunta com outras perguntas. Que sensação experimentaria se o seu gato ou o seu cão lhe começasse a falar com voz humana? Se as rosas do seu jardim se pusessem a cantar? Se as pedras da rua aumentassem de volume sob os seus olhos? Pois bem, estes exemplos podem dar-lhe uma pálida ideia do que é realmente o pecado.

– Escutem – disse o terceiro homem, que até ali se mantivera muito calmo -, parecem-me ambos bastante excitados.

Eu vou para casa. Perdi o meu autocarro e vou ser obrigado a andar a pé.

Ambrose e Cotgrave instalaram-se mais profundamente nos respectivos cadeirões depois da sua partida. Com a bruma da madrugada que gelava as vidraças, a claridade dos candeeiros tornava-se pálida.

– O senhor surpreende-me – disse Cotgrave. – Nunca tinha pensado nessas coisas. Se é realmente assim, é necessário remover tudo. Então, na sua opinião, a essência do pecado seria…

– Pretender conquistar o céu de assalto – disse Ambrose.

– Para mim o pecado reside na vontade de penetrar de maneira interdita numa esfera diferente e mais elevada. Deve portanto compreender o motivo por que é tão raro. Poucos homens na verdade, desejam penetrar noutras esferas, quer sejam elevadas ou baixas, de forma permitida ou proibida. Há poucos santos. E os pecadores, no sentido em que o entendo, são ainda mais raros. E os homens de génio (que por vezes participam de ambos) são raros também. . . Mas é talvez mais difícil ser um grande pecador do que um grande santo.

– Por o pecado ser profundamente contra a natureza?

– Exactamente. A santidade exige um esforço grande, ou quase, mas é um esforço que se exerce em vias que outrora eram naturais. Trata-se de recuperar o êxtase que o homem conheceu antes da queda. Mas o pecado é uma tentativa para obter um êxtase e uma sabedoria que não são, e que nunca foram dados ao homem, e aquele que o tenta torna-se demónio. Eu disse-lhe que o simples assassino não é necessariamente um pecador. E é verdade, mas o pecador é, por vezes, um assassino. Estou a pensar em Gilles de Rais[1], por exemplo. Sabe que, se o bem e o mal estão igualmente fora do alcance do homem de hoje, do homem vulgar, social e civilizado, o mal é-o num sentido ainda mais profundo. O santo esforça-se por recuperar um dom que perdeu; o pecador esforça-se por qualquer coisa que nunca possuiu. No fim de contas, ele recomeça a Queda.

– É católico? – pergunta Cotgrave.

– Sim, sou um membro da igreja anglicana perseguida.

– Então o que pensa desses textos que chamam pecado aquilo que o senhor classifica de delito sem importância?

– Repare, por favor, que nesses textos da minha religião vê-se continuamente surgir o termo “feiticeiro”, que me parece a palavra-chave. Os delitos menores, que são chamados pecados, só são chamados assim na medida em que é o feiticeiro que é perseguido pela minha religião, sob a máscara do autor desses pequenos delitos. Pois os feiticeiros servem-se das fraquezas humanas resultantes da vida material e social como instrumentos para atingir o seu objectivo infinitamente execrável. E deixe-me dizer-lhe o seguinte: os nossos sentidos superiores estão tão embotados, estamos a tal ponto saturados de materialismo, que com certeza não reconheceríamos o verdadeiro mal se por acaso o encontrássemos.

– Mas não experimentaríamos, apesar de tudo, um certo horror? Esse horror que há pouco evocou ao convidar-me a imaginar
rosas que começassem a cantar?

– Se fôssemos seres naturais, sim. As crianças, certas mulheres e os animais experimentam esse horror. Mas, na maior parte de nós, as convenções, a civilização e a educação ensurdeceram e obscureceram a natureza. Por vezes podemos reconhecer o mal pelo seu ódio ao bem; é tudo e é puramente fortuito. Na realidade, os Hierarcas do Inferno passam despercebidos entre nós.

– Pensa que sejam eles próprios inconscientes do mal que encarnam?

– Creio que sim. O verdadeiro mal, no homem, é como a santidade e o génio. É um êxtase da alma, qualquer coisa que ultrapassa os limites naturais do espírito, que escapa à consciência.

Um homem pode ser infinitamente, horrivelmente mau e nunca o suspeitar. Mas, repito, o mal, no verdadeiro sentido da palavra, é raro. Creio mesmo que se torna cada vez mais raro.

– Tento segui-lo – disse Cotgrave. – Quer dizer que o Mal verdadeiro é de uma essência completamente diferente daquilo a que chamamos vulgarmente o mal?

– Absolutamente. Um pobre tipo aquecido pelo álcool entra em casa e mata a pontapés a mulher e os filhos. É um assassino. E Gilles de Rais também é um assassino. Mas compreende o fosso que os separa? A palavra é acidentalmente a mesma em cada caso, mas o sentido é totalmente diferente.

“É certo que existe a mesma fraca semelhança entre todos os pecados “sociais” e os verdadeiros pecados espirituais, mas aqui trata-se da sombra e ali da realidade. Se é um pouco teólogo deve compreendê-lo.

– Confesso que não dediquei muito tempo à teologia disse Cotgrave. – Lamento-o, mas, para voltar ao nosso assunto, acha que o pecado é uma coisa oculta, secreta?

– Sim. É o milagre infernal, como a santidade é o milagre sobrenatural. O verdadeiro pecado eleva-se a um tal grau que nós não podemos de forma alguma suspeitar da sua existência. Ele é como a nota mais baixa do órgão: tão profunda que ninguém a ouve. Por vezes há falhanços, quedas que conduzem ao hospital de loucos ou a desenlaces mais horríveis ainda. Mas em caso algum o deve confundir com as culpas sociais. Lembre-se do Apóstolo: ele falava do “outro lado” e fazia uma distinção entre as acções caridosas e a caridade. Assim como se pode dar tudo aos pobres e no entanto ter falta de caridade, podem evitar-se todos os pecados e no entanto ser uma criatura do mal.

– Aí está uma singular psicologia! – disse Cotgrave. Mas confesso que ela me agrada. Suponho que, na sua opinião, o verdadeiro pecador podia facilmente passar por uma personagem
inofensiva?

– Certamente. O mal verdadeiro nada tem a ver com a sociedade. O Bem também não, aliás. Acha que teria sentido “prazer” com a companhia de São Paulo? Pensa que se teria “entendido bem” com sir Galaad? Passa-se o mesmo com pecadores e com santos. Se encontrasse um verdadeiro pecador, e nele reconhecesse o pecado, é certo que se sentiria tomado de pânico. Mas talvez não houvesse qualquer motivo para que esse homem lhe “desagradasse”. Pelo contrário, é muito possível que se conseguisse esquecer o pecado dele, achasse a sua convivência agradável. E no entanto!… Não, ninguém pode adivinhar quanto o verdadeiro mal é pavoroso!… Se as rosas e os lírios deste jardim começassem subitamente a cantar nesta madrugada que desponta, se os móveis desta casa começassem a andar em procissão, como no conto de Maupassant!

– Estou satisfeito por ter voltado a essa comparação disse Cotgrave -, pois queria perguntar-lhe a que correspondem, na humanidade, essas proezas imaginárias das coisas de que fala. Mais uma vez, o que é então o pecado? Gostaria enfim de um exemplo concreto.

Pela primeira vez, Ambrose hesitou:

– Já lhe disse, o verdadeiro mal é raro. O materialismo da nossa época, que muito fez para suprimir a santidade, talvez tenha feito ainda mais para suprimir o mal. Nós achamos a Terra tão confortável que não temos vontade nenhuma de subir nem de descer. Tudo se passa como se o especialista do Inferno estivesse reduzido a trabalhos puramente arqueológicos.

– No entanto, consta que as suas investigações se estenderam até à época presente?

– Vejo que está realmente interessado. Pois bem, confesso que na verdade reuni alguns documentos. . .

1 Senhor feudal do século xv, célebre pelos seus crimes; chegou a
matar crianças nas suas cerimónias de magia negra. (N. da t).


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