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Quando acabou sua execução, sugeriu-me o pesquisador que passeássemos pelo jardim. Gostei da idéia e, embora meu corpo parecesse ter-se separado quase por completo de minha mente (ou, para ser mais preciso, embora minha perceptibilidade do transfigurado mundo exterior já não mais se fizesse acompanhar da de meu próprio organismo), do ponto de vista fisiológico verifiquei ser capaz de levantar-me, abrir a porta e sair para o jardim com um mínimo de hesitação. Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço, essa cabeça mesma. Era estranho; mas em breve acostumamo-nos a isso. E, seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si próprio. Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo o que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais — por exemplo, quando se esforça em demasia, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro —, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. Em meu estado, no momento, a perceptibilidade não era encaminhada a um ego; estava, por assim dizer, entregue a si mesma. Isso significava que a inteligência fisiológica que controla o organismo também estava entregue a si mesma. Nessa ocasião, aquele importuno neurótico que, nas horas de vigília, se esforça por “dirigir o espetáculo” estava, felizmente, fora de ação. Transpondo a porta, saí para uma espécie de pérgula, em parte coberta por uma roseira, em parte por ripas de uns dois centímetros de largo, a intervalos de um centímetro umas das outras. O sol brilhava, e a sombra das ripas formava um zebrado claro-escuro no chão da varanda, no assento e no encosto de uma cadeira de jardim que se achava próxima à casa. Aquela cadeira! Poderei algum dia esquecê-la? As alternâncias de sombra e luz formavam, sobre a lona de seu estofo, listras de um anil intenso, porém luzente, sucedidas por outras de uma incandescência tão intensamente brilhante que era difícil acreditar não fossem produzidas por chamas azuis. Por um tempo, que me pareceu intensamente longo, fitei-a sem saber, sem mesmo desejar saber que é que tinha diante de mim. Em outra ocasião qualquer teria visto apenas uma cadeira com barras alternadas de luz e sombra. Mas, no momento, a percepção sensorial dominara a idéia. Eu estava tão absorto na contemplação, tão estupefato pelo que via, que não pude ter consciência de nada mais. Mobiliário, ripas, luz do sol, sombra — tudo isso não passava de nomes e noções; de meras verbalizações para o aproveitamento científico ou utilitário dos resultados. O resultado era essa sucessão de portas de fornalha azul-celeste, separadas por insondáveis abismos de genciana. Aquilo era indizivelmente maravilhoso; de uma sublimidade que tocava as raias do terrífico. E então, repentinamente, tive uma vaga noção do que seja sentir-se louco. A esquizofrenia tem seus paraísos, de par com seus infernos e purgatórios. Lembro-me do que um velho amigo, de há muito falecido, contou-me sobre a doença da esposa. Um dia, nos primeiros estágios da enfermidade, quando ela ainda desfrutava intervalos de lucidez, tinha ido visitá-la no hospital e dar-lhe notícias dos filhos. Ela o ouviu por algum tempo e então, de súbito, interrompeu-o: como poderia ele perder tempo com um casal de crianças ausentes quando tudo o que verdadeiramente importava, ali e naquele instante, era a indizível beleza dos desenhos que ele criava, em seu casaco marrom de xadrez, a cada movimento de braços? Infeliz! Esse paraíso de percepção ilimitada, de contemplação pura, parcial, não iria durar. Os intervalos felizes tornaram-se mais raros, mais breves, até que, finalmente, desapareceram de vez; só restou o horror…
Muitos dos que ingerem mescalina experimentam apenas as sensações celestiais da esquizofrenia. A droga só leva o purgatório ou o inferno àqueles que tenham tido um acesso recente de icterícia ou que sofram de depressões periódicas ou ansiedade crônica. Se, como acontece com outras drogas de poder incomparavelmente menor, a mescalina fosse reconhecidamente tóxica, sua ingestão seria suficiente para provocar ansiedade. Mas o indivíduo razoavelmente saudável sabe antecipadamente que, para si, esse alcalóide será completamente inócuo e que seus efeitos terão cessado após oito ou dez horas, sem deixar sensações desagradáveis nem, conseqüentemente, ânsias por novas doses. Fortalecido por essa convicção, ele pode entregar-se à experiência sem temores — em outras palavras, sem qualquer predisposição para converter um ensaio de uma singularidade sem precedentes, inumano, em algo de aterrador, de verdadeiramente diabólico.
Diante de uma cadeira que parecia um Juízo Final — ou, para ser mais preciso, ante um Juízo Final que, depois de longo tempo e com considerável dificuldade, pude reconhecer como sendo uma cadeira —, eu me senti, de uma hora para outra, no limiar do pânico. Aquilo, percebi repentinamente, estava indo muito longe. Longe demais, muito embora marchasse para uma beleza sempre maior, para um sentido cada vez mais profundo. O temor, analisando-o retrospectivamente, foi o de me ver esmagado, desintegrado sob uma pressão de realidade muito superior à que uma mente, acostumada a viver a maior parte do tempo em um confortável mundo de símbolos, talvez pudesse suportar. Na literatura da experiência religiosa, abundam referências aos sofrimentos e terrores que esmagam os que se defrontam, com demasiada rapidez, face a face com qualquer manifestação do Mysterium Tremendum. Em linguagem teológica, esse temor é função da incompatibilidade entre o egotismo do homem e a pureza divina; entre a mesquinhez auto-agravada do homem e o Deus infinito. Segundo Boheme e William Law, podemos dizer que a Divina Luz, em toda a sua intensidade, só pode ser percebida pelas almas pecadoras sob a forma de chamas do purgatório. Doutrina praticamente idêntica é a exposta no Livro tibetano dos mortos, pelo qual a alma que se desprega foge atormentada da Serena Luz do Vazio, e até mesmo das Luzes menos intensas, indo lançar-se, precipitadamente, na confortadora escuridão da personalidade, reencarnando-se em um recém-nascido, transformando-se até em animal, em um infeliz fantasma ou indo ter ao inferno. Há de preferir qualquer coisa ao ígneo refulgir da implacável Realidade — qualquer coisa!
O esquizofrênico é uma alma, não só impura, como também desesperadamente desgostosa com sua situação. Seu tormento consiste na incapacidade de proteger-se contra a realidade, seja ela interior ou exterior (como faz normalmente o indivíduo são) refugiando-se no universo do senso comum, por nós mesmos construído — esse mundo estritamente humano das noções úteis, dos simbolos compartilhados pelos demais, das convenções socialmente aceitáveis. O esquizofrênico é qual homem sob a influência contínua da mescalina e, pois, incapaz de deixar de experimentar uma realidade que ele não pode suportar por lhe faltar pureza; que não pode interpretar por ser ela o mais inflexível dos fatos fundamentais e que, por jamais permitir-lhe encarar o mundo com olhos simplesmente humanos, força-o a interpretar suas incessantes singularidades, sua candente intensidade de valores, como a manifestação da maldade humana ou até cósmica, levando-o às mais desesperadas contramedidas que vão da violência assassina, de um lado da escala, até a catatonia — ou suicídio psicológico —, do outro. E, uma vez iniciada a descida pela rampa infernal, ninguém poderá mais deter-se. Isso, no momento, era por demais evidente para mim.
— Quem enveredar pelo caminho errado — disse eu em resposta às perguntas de meu inquiridor — encontrará, em tudo o que acontecer, uma prova da conspiração que se articula contra si. Tudo servirá de confirmação. A própria respiração estará fazendo parte do sinistro plano.
— Com que então você acha que sabe onde se aloja a loucura? Minha resposta foi um convicto e profundo “Sim”.
— E não poderia controlá-la?
— Não; não poderia fazê-lo. Quem começa com medo e ódio, como principais premissas, terá de ir até o fim.
— Você seria capaz — perguntou-me minha esposa — de fixar sua atenção naquilo que o Livro tibetano dos mortos chama de Serena Luz?
Fiquei em dúvida.
— Seria ela capaz de manter o mal afastado, caso você pudesse encará-la? — insistiu ela. — Ou será que você não poderia fitá-la?
Pensei por algum tempo para poder responder e, por fim, disse:
— Talvez; talvez o conseguisse. Mas só se houvesse lá alguém que pudesse esclarecer-me a respeito da Serena Luz. Não é possível fazer-se isso a sós. Daí a razão, creio eu, para o ritual tibetano — assentar-se alguém ao nosso lado, durante todo o tempo, para dizer o que vai ocorrendo.
Depois de escutar a gravação dessa parte da experiência, apanhei meu exemplar da tradução do Livro tibetano dos mortos por Evans-Wentz e o abri ao acaso: “Ó tu, que nasceste nobre! Não permitas que tua mente seja distraída”. Esse era o problema: permanecer sem distrair-se. Sem se distrair ante a recordação de pecados passados; ante a evocação de prazeres, a amarga lembrança de antigos erros e humilhações; ante todos os temores, ódios e ansiedades que, de ordinário, eclipsam a Luz. O que esses monges budistas faziam com os mortos e os agonizantes não poderia ser feito com os insanos pelo psiquiatra moderno? Que haja uma voz para lhes assegurar, durante as horas de vigília — e até mesmo enquanto dormem —, que, a despeito de todo o terror, de toda a perplexidade e confusão, a Realidade fundamental permanece imutável e é idêntica, em sua substância, à luz interior, mesmo à da alma mais cruelmente atormentada. Por meio de artifícios tais como gravadores, relógios de controle de circuitos, sistemas de alto-falantes, inclusive distribuídos pelos travesseiros, seria facílimo fazer com que os internados, mesmo em casas de saúde pobres em pessoal, fossem constantemente doutrinados sobre esse fato primordial. Talvez algumas dessas almas desgarradas pudessem ser assim auxiliadas na obtenção de um certo controle sobre o universo onde foram condenados a viver e que, a um só tempo maravilhoso e aterrador, é, no entanto, permanentemente inumano, sempre totalmente incompreensível.
Algum tempo depois fui afastado do inquietante esplendor de minha cadeira de jardim. Caindo em parábolas verdes do alto de uma sebe, a folhagem da hera luzia com um brilho vítreo que lembrava o jade. Logo após, um arbusto em flor surgiu repentinamente em meu campo visual. Suas flores rubras tinham tanta vida que pareciam a ponto de falar, voltadas para cima, para o azul do céu. Tal como a cadeira sob o caramanchão, elas chamavam demais minha atenção. Desviei o olhar para as folhas e descobri um caprichoso intricado das mais delicadas luzes e sombras no verde, a pulsar misteriosamente.
Roses:
The flowers are easy to paint,
The leaves difficult. *
*[Rosas:/ É fácil pintar-lhes as flores,/ Difíceis são as folhas.]
O haiku de Shiki (que cito na tradução de F. H. Blyth) exprime, de modo indireto, exatamente o que então senti — a excessiva, a por demais evidente beleza das flores, contrastando com o milagre mais sutil de sua folhagem.
Saímos para a rua. Um grande automóvel azul-claro estava estacionado junto à calçada. Ao vê-lo, fui repentinamente tomado de enorme alegria. Que prazer, que absurda satisfação comigo mesmo provinha daquelas superfícies abauladas do mais luzente esmalte! O homem o criara à sua própria imagem (ou melhor, segundo a imagem de seu personagem favorito no mundo de ficção). Ri até as lágrimas rolarem-me pelas faces.
por Aldous Huxley
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