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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier
Durante o Inverno de 1956, o doutor J. Ford Thomson, psiquiatra do Serviço de Educação de Wolverhampton, recebeu no seu gabinete um garoto de sete anos que inquietava muito os pais e o seu mestre.
“Evidentemente que ele não tinha à sua disposição as obras especializadas – escreve o doutor Thomson. – E se acaso as tivesse, ser-lhe-ia possível lê-las? No entanto, sabia as respostas exactas de problemas de astronomia extremamente complexos.”
Impressionado com o exame daquele caso, o doutor resolveu Fazer um inquérito sobre o nível de inteligência dos alunos e empreendeu fazer testes a cinco mil crianças através de toda a Inglaterra, com o auxílio do Conselho de Investigações Médicas Britânicas, dos físicos de Harwell e de numerosos professores de universidades. Após dezoito meses de trabalhos pareceu-lhe evidente que se estava a dar “uma brusca subida de temperatura na inteligência”.
“Nas últimas 90 crianças de sete a nove anos que interrogámos, 26 tinham um quociente intelectual de 140, o que equivale ao génio, ou quase. Creio, prossegue o doutor Thomson, que o estrôncio 90, produto radioactivo que penetra no corpo, pode ser o responsável. Este produto não existia antes da primeira explosão atómica.”
Dois sábios americanos, C. Brooke Worth e Robert K. Enders, num importante trabalho intitulado The Nature of Living things, julgam poder demonstrar que o agrupamento de genes está actualmente alterado e que, sob o efeito de influências ainda misteriosas, uma nova raça de homens está a surgir, dotada de poderes intelectuais superiores. Trata-se, evidentemente, de uma tese discutível. No entanto, o especialista Lewis Terman, depois de ter estudado durante trinta anos as crianças prodígios, chega às seguintes conclusões:
A maior parte das crianças prodígios perdiam as suas qualidades ao atingir a idade adulta. Parece, agora, que se tornam adultos superiores, de uma inteligência sem medida comum com os humanos de tipo corrente. Tem trinta vezes mais actividade que um homem normal bem dotado. O seu “índice de êxito” está multiplicado por vinte e cinco. A sua saúde é perfeita, assim como o equilíbrio sentimental e sexual. Finalmente, escapam às doenças psicossomáticas, inclusivamente o cancro. Será certo?
O que é certo é que assistimos a uma aceleração progressiva, no Mundo inteiro, das faculdades mentais, correspondendo aliás à das faculdades físicas. O fenómeno é tão evidente que outro sábio americano, o doutor Sydney Pressey, da Universidade de Ohio, acaba de estabelecer um plano para a instrução das crianças precoces, susceptível, segundo ele, de fornecer trezentas mil grandes inteligências por ano.
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Tratar-se-á de uma mutação na espécie humana? Estaremos nós a assistir à aparição de seres que se nos assemelham exteriormente e que, no entanto, são diferentes? É este formidável problema que vamos estudar. O que é certo é que assistimos ao nascimento de um mito: o do “homem transformado”[1]. O nascimento deste mito, na nossa civilização técnica e científica, não pode deixar de ter o seu significado e o seu valor dinâmico.
Antes de abordar este assunto, convém notar que a “subida de temperatura” da inteligência, constatada entre as crianças, conduz à ideia simples, prática, racional, de uma melhoria progressiva da espécie humana por meio da técnica. A técnica desportiva moderna demonstrou que o homem possui recursos físicos ainda longe de estarem esgotados. As experiências em curso sobre o comportamento do corpo humano nos foguetões interplanetários provaram uma resistência insuspeitada. Os sobreviventes dos campos de concentração puderam medir a extraordinária possibilidade de defesa da vida e descobrir consideráveis recursos na interacção entre o psiquismo e o físico. Finalmente, no que se refere à inteligência, a recente descoberta das técnicas mentais e dos produtos químicos susceptíveis de activar a memória, de reduzir a zero o esforço de memorização, abre perspectivas extraordinárias. Os princípios da ciência não são de forma nenhuma inacessíveis a um espírito normal. Se se alivia o cérebro do aluno e do estudante do enorme esforço de memória que é obrigado a fazer, tornar-se-á perfeitamente possível ensinar a estrutura do núcleo e a tabela periódica dos elementos aos alunos da quarta classe e fazer compreender a relatividade e os quanta a um estudante do 7.o ano. Por outro lado, quando os princípios da ciência estiverem divulgados de forma maciça em todos os países, quando houver cinquenta ou cem vezes mais investigadores, a multiplicação das ideias novas, a sua fecundação natural, as suas aproximações multiplicadas produzirão o mesmo efeito que um aumento do número de génios. Um efeito até melhor, pois o génio é muitas vezes instável e antisocial. Aliás é provável que uma ciência nova, a teoria geral da informação, permita dentro em breve precisar quantitativamente a ideia que nós aqui expomos de forma qualitativa. Dividindo equitativamente entre os homens os conhecimentos de que a humanidade já dispõe, e encorajando-os às permutas de maneira a produzir novas combinações, aumentar-se-á o potencial intelectual da sociedade humana tão rapidamente e seguramente como multiplicando o número dos génios.
Esta visão deve ser mantida paralelamente à visão mais fantástica do “homem transformado”.
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O nosso amigo Charles-Noel Martin, numa retumbante comunicação, revelou os efeitos acumulativos das explosões atómicas. As radiações espalhadas no decurso das experiências desenvolvem os seus efeitos em proporção geométrica. A espécie humana arriscar-se-ia portanto a ser vítima de mutações desfavoráveis. Para mais, há cinquenta anos que o rádio é utilizado em toda a parte do Mundo sem um controlo sério. Os raios X e certos produtos químicos radioactivos são explorados em inúmeras indústrias. Em que proporção e de que forma essa irradiação atinge o homem moderno? Ignoramos tudo do sistema das mutações. Não se poderiam produzir igualmente mutações favoráveis? Tomando a palavra durante uma conferência atómica de Genebra, sir Ernest Rock Carling, patologista ligado ao “Home Office”, declarou: “Pode igualmente esperar-se que, numa limitada proporção de casos, essas mutações produzam um efeito favorável e dêem uma criança de génio. Sob o risco de chocar a venerável assistência, afirmo que a mutação que nos dará um Aristóteles, um Leonardo da Vinci, um Newton, um Pasteur ou um Einstein compensará largamente os noventa e nove outros que tiverem resultado bastante menos brilhantes”.
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Primeiro uma palavra sobre a teoria das mutações.
No final do século, A. Weisman e Hugo de Vriés renovaram a ideia que até ali se fazia da evolução. Estava na moda o átomo cuja realidade começava a manifestar-se na física. Eles descobriram “o átomo de hereditariedade” e localizaram-no nos cromossomas. A nova ciência de genética assim criada trouxe à luz os trabalhos efectuados na segunda metade do século xIx pelo monge checo Gregor Mendel. Parece ser hoje indiscutível que a hereditariedade é alterada pelos genes. Estes são fortemente protegidos contra o meio exterior. No entanto, parece que as radiações atómicas, os raios cósmicos e certos venenos violentos como a colquicina podem atingi-los ou duplicar o número dos cromossomas. Observou-se que a frequência das mutações é proporcionada à intensidade da radioactividade. Ora a radioactividade é hoje trinta e cinco vezes superior ao que era no princípio do século. Foram apresentados exemplos precisos de selecção produzindo-se nas bactérias por mutação genética sob a acção dos antibióticos, por Luria e Debruck em 1943, e por Demerec em 1945. Nesses trabalhos vemos operar-se a mutação-selecção tal como Darwin a imaginara. Mitchourine e Lissenko, os adversários da tese de Lamarck sobre a hereditariedade dos caracteres adquiridos, parecem portanto ter razão. Mas poder-se-á generalizar, e supor que o caso das bactérias se repete nas plantas, nos animais, no homem? O caso já não parece duvidoso. Existirão mutações genéticas controláveis na espécie humana? Sim. Um dos casos indiscutíveis é o seguinte:
Este caso é extraído dos arquivos do hospital especial inglês para doenças infantis, em Londres. O doutor Louis Wolf, director desse hospital, pensa que nascem em Inglaterra trinta crianças com mutação fenil-cetónica por ano. Estas crianças possuem genes que não produzem no sangue certos fermentos em acção no sangue normal, e são portanto incapazes de dissociar a “fenil-alamina”. Essa incapacidade torna a criança vulnerável à epilepsia e ao eczema, provoca uma coloração cinzenta dos cabelos e torna o adulto vulnerável às doenças mentais. Uma certa raça “fenil-cetónica”, à margem da raça humana normal, está portanto viva entre nós… Trata-se aqui de uma mutação desfavorável: mas poder-se-á recusar todo o crédito à possibilidade de uma mutação favorável? Alguns “seres transformados” poderiam ter no sangue produtos susceptíveis de melhorar o seu equilíbrio físico e de aumentar bastante acima do nosso o seu coeficiente de inteligência. Eles poderiam transportar nas suas veias tranquilizantes naturais, colocando-os ao abrigo dos choques psíquicos da vida social e dos complexos de angústia. Formariam portanto uma raça diferente da raça humana, superior a ela. Os psiquiatras e os médicos descobrem as deficiências. De que forma descobrir aquilo que vai melhor que bem?
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Na ordem das mutações é necessário distinguir vários aspectos. A mutação celular que não atinge os genes, que não afecta a descendência, é nossa conhecida sob a sua forma desfavorável: o cancro, a leucemia são mutações celulares. Em que medida não se poderiam produzir mutações celulares favoráveis, generalizadas em todo o organismo? Os místicos falam da aparição de uma “carne nova”, de uma “transfiguração”.
A mutação genética desfavorável (o caso dos “fenil-cetónicos”) principia também a ser nossa conhecida. Em que medida é que não se poderia produzir uma mutação favorável? Também aqui seria ainda necessário distinguir dois aspectos do fenómeno,
ou antes, duas interpretações:
1.o- Essa mutação, essa aparição de outra raça poderia ser devida ao acaso. A radioactividade, entre outras causas, poderia produzir uma modificação dos genes de certos indivíduos. A proteína do gene, ligeiramente atingida, não forneceria mais, por exemplo, certos ácidos que provocam em nós a angústia. Ver-se-ia aparecer outra raça: a raça do homem tranquilo, do homem que não receia nada, que não sente nada de negativo. Que vai à guerra tranquilamente, que mata sem inquietação, que goza sem complexos, uma espécie de autómato sem qualquer espécie de mais testemunha que criador, mas testemunha hiperlúcida das aventuras extremas da inteligência moderna, o escritor André Breton, pai do Surrealismo, não hesitava em escrever em 1942:
“Talvez o homem não seja o centro, o ponto de mira do Universo. Podemos sonhar que existem acima dele, na escala animal, seres cujo comportamento lhe é tão estranho como o dele pode ser ao efémero ou à baleia. Nada se opõe necessariamente a que certos seres escapem de forma perfeita ao seu sistema de referências sensorial, graças a um disfarce de qualquer natureza que se queira imaginar, mas de que a teoria da forma e o estudo dos animais miméticos estabelecem por si só a possibilidade. Não é de duvidar que o maior campo especulativo se oferece a esta ideia, embora ela tenda a atribuir ao homem as mesmas modestas condições de interpretação do seu próprio universo que a criança atribui a uma formiga em cima da qual acaba, com um pontapé, de derruir o formigueiro. Considerando as perturbações do tipo ciclone, de que o homem é impotente em ser outra coisa senão a vítima ou a testemunha ou as do tipo guerra, a respeito das quais noções claramente insuficientes têm sido defendidas, não seria impossível, no decorrer de um vasto trabalho ao qual jamais deveria deixar de presidir a indução mais ousada, tentar definir até as tornar verosímeis a estrutura e a complexão de tais seres hipotéticos, que se manifestam obscuramente em nós no medo e no sentimento do acaso.
“Creio dever observar que não me afasto muito do testemunho de Novalis: “Nós vivemos, na realidade, num animal do qual somos os parasitas. A constituição desse animal determina a nossa, e vice-versa,” e não posso deixar de concordar com o pensamento de William James: “Quem sabe se, na natureza, nós não ocupamos um lugar tão pequeno junto de seres insuspeitados, como os nossos gatos e os nossos cães ao viverem ao nosso lado nas nossas casas?” Os próprios sábios não contra dizem todos esta opinião: “Circulam talvez em redor de nós seres concebidos sobre o mesmo plano que nos, mas diferentes, homens, por exemplo, cujas albuminas seriam direitas”. Assim fala Émile Duclaux, antigo director do Instituto Pasteur.
“O homem novo vive entre nós! Ele está aqui! Isto basta-lhe? Vou dizer-lhe um segredo: eu vi o homem novo. É intrépido e cruel! Tive medo diante dele!”, berra Hitler estremecendo.
Outro espírito, possesso de terror, atacado pela loucura: Maupassant, lívido e a transpirar, escreve de forma precipitada um dos textos mais inquietantes da literatura francesa: Le Horla.
“Agora, eu sei, eu adivinho. O reino do homem terminou. Chegou Aquele que o terror dos povos ingénuos receava. Aquele que exorcizavam os padres inquietos, que os feiticeiros evocavam nas noites sombrias, sem o ver ainda, a quem os pressentimentos dos mestres passageiros do Mundo emprestaram todas as formas monstruosas ou graciosas dos gnomos, dos espíritos, dos génios, das fadas, dos duendes. Após as grosseiras concepções dos primitivos pavores, os homens mais perspicazes pressentiram-no com maior clareza. Mesmer adivinhara-o, e os médicos descobriram, há já dez anos, a natureza do seu poder antes que ele próprio o tenha exercido. Jogaram com a arma do Senhor novo o domínio de misterioso poder sobre a alma humana, tornada escrava. Chamaram a isso magnetismo, hipnotismo, sugestão… que sei eu? Vi-os divertir-se como crianças imprudentes com esse horrível poder! Desgraçados de nós! Desgraçado do homem! Ele chegou, o. . . o. . . Como se chama ele?. . . o. . . parece-me que ele grita o seu nome, e eu não o oiço… sim… ele grita-o… escuto… não posso. . . repete. . . o. . . Horla. . . ouvi. . . o Horla. . . é ele. . . o Horla… ele chegou!”
Na sua interpretação balbuciante dessa visão cheia de deslumbramento e horror, Maupassant, homem da sua época, atribui ao “superior” poderes hipnóticos. A literatura moderna de ficção científica, mais próxima dos trabalhos de Rhine, de Soal, de Mac Connel que dos de Charcot, atribui-lhe poderes “para-psicológicos”: a telepatia, a acção a distância sobre os objectos. Alguns autores vão mais longe ainda e mostram-nos o Superior esvoaçando no espaço ou atravessando as paredes: aqui há apenas fantasia, agradável aspiração dos arquétipos dos contos de fadas. Da mesma forma que a ilha ou a galáxia dos seres superiores corresponde ao velho sonho das Ilhas Bem-Aventuradas, os poderes paranormais correspondem ao arquétipo dos deuses gregos. Mas, se nos colocarmos no plano do real, apercebemo-nos de que todos esses poderes seriam perfeitamente inúteis para seres que vivessem numa civilização moderna. De que serve a telepatia quando se tem a rádio? De que serve a levitação, quando há o avião? Se o “homem transformado” existe, o que estamos tentados a acreditar, ele dispõe de um poder muito superior a tudo o que a imaginação pode sonhar. De um poder que o homem vulgar não explora: ele dispõe da inteligência.
As nossas acções são irracionais e a inteligência não desempenha senão um papel ínfimo nas nossas decisões. Pode imaginar-se o Ultra-Humano, novo escalão da vida sobre o planeta como um ser racional, e já não apenas um ser que raciocina, um ser dotado de uma inteligência objectiva permanente, que toma decisões apenas depois de examinar lúcida e completamente a massa de informações em seu poder. Um ser cujo sistema nervoso fosse uma fortaleza capaz de resistir a qualquer assalto das impulsões negativas. Um ser de cérebro frio e rápido, equipado com uma memória total, infalível. Se o “homem transformado” existe, provavelmente ele é esse ser que fisicamente parece um humano, mas que dele difere radicalmente pelo simples facto de que ele controla a sua inteligência e a emprega sem um segundo de descanso. Esta visão parece simples. No entanto ela é mais fantástica que tudo o que a literatura de ficção científica nos sugere. Os biologistas principiam a distinguir as modificações químicas que seriam necessárias à criação dessa nova espécie.
As experiências sobre os tranquilizantes, sobre o ácido lisérgico e seus derivados mostraram que bastaria uma dose muito pequena de certos compostos orgânicos ainda desconhecidos para nos proteger contra a permeabilidade excessiva do nosso sistema nervoso e assim nos permitir exercer em todas as ocasiões uma inteligência objectiva. Tal como existem “homens transformados” fenil-cetónicos cuja química está menos adaptada à vida do que a nossa, também é admissível pensar que existem “homens transformados” cuja química está mais adaptada do que a nossa à vida neste mundo em transformação. São esses “superiores”, cujas glândulas segregariam espontaneamente tranquilizantes e substâncias susceptíveis de desenvolver a actividade cerebral, que seriam os anunciadores da espécie destinada a substituir o homem. O seu local de residência não seria uma ilha misteriosa ou um planeta proibido. A vida foi capaz de criar seres adaptados aos abismos submarinos ou à atmosfera rarificada dos cumes mais altos. É igualmente capaz de criar o ser ultra-humano para o qual a habitação ideal é Metrópolis, “a terra fumegante de fábricas, a terra trepidante de negócios, a terra vibrante de cem novas radiações…”
A vida nunca está perfeitamente adaptada, mas tende para a adaptação perfeita. Porque se relaxaria essa tensão desde que o homem foi criado? Porque não prepararia ela melhor que o homem, através do homem? E esse homem segundo o homem talvez já tenha nascido. “A vida, disse o doutor Loren Eiseley, é uma grande ribeira sonhadora que desliza através de todas as aberturas, modificando-se e adaptando-se à medida que avança[2]”. A sua aparente estabilidade é uma ilusão engendrada pela própria brevidade dos nossos dias. Nós não vemos o ponteiro das horas dar a volta ao mostrador: da mesma forma não vemos uma forma de vida fundir-se noutra.
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Este livro tem como objectivo expor factos e sugerir hipóteses, de forma alguma promover cultos. Nós não pretendemos conhecer “seres superiores”. No entanto, se admitimos a ideia de que o ser superior perfeito está perfeitamente camuflado, admitiremos a ideia de que a natureza falhe no seu esforço de criação ascensional e ponha em circulação “seres superiores” imperfeitos que são, estes, visíveis.
Nesse “ser transformado” imperfeito, as qualidades mentais excepcionais misturam-se com os defeitos físicos. Tal é o caso, por exemplo, de numerosos cALGUladores prodígios. O melhor especialista na matéria, o professor Robert Tocquet, declara a este respeito: “Vários cALGUladores foram a princípio considerados como crianças atrasadas. O cALGUlador prodígio belga Óscar Verhaeghe, aos dezassete anos, exprimia-se como um bebé de dois anos. Para mais, já dissemos que Zerah Colburn apresentava um sinal de degenerescência: um dedo suplementar em cada membro. Outro cALGUlador prodígio, Prolongeau, nascera sem braços nem pernas. Mondeux era histérico… Óscar Verhaeghe, nascido a 16 de Abril em Bousval, na Bélgica, numa família de modestos funcionários, pertence ao grupo de cALGUladores cuja inteligência está muito abaixo da média. As elevações às diversas potências de números formados pelos mesmos números é uma das suas especialidades. Assim, 888,888,888,888,888 é elevado ao quadrado em 40 segundos e 9,999,999 é elevado à quinta potência em 60 segundos, incluindo o resultado 35 números…”
Degenerados ou “seres superiores” falhados?
Eis aqui talvez um caso de “homem transformado” completo: o de Leonardo Euler, o qual estava em relações com Roger Boscovitch[3], cuja história contámos num capítulo anterior.
Leonardo Euler (1707-1783) é geralmente considerado um dos maiores matemáticos de todos os tempos. Mas esta classificação é pequena demais para demonstrar as qualidades supra-humanas do seu espírito. Ele folheava as obras mais complexas em alguns instantes e era capaz de recitar completamente todos os livros que lhe tinham passado pelas mãos desde que aprendera a ler. Conhecia a fundo a física, a química, a zoologia, a botânica a geologia, a medicina, a história, as literaturas grega e latina. Em todas essas disciplinas, nenhum homem do seu tempo o igualou. Possuía o poder de se isolar totalmente, quando lhe apetecesse, do mundo exterior, e de prosseguir um raciocínio acontecesse o que acontecesse. Perdeu a vista em 1766, o que não o afectou. Um dos seus alunos contou que durante uma discussão sobre cálculos que atingiam a décima sétima decimal, um desacordo se produziu no momento de estabelecer a décima quinta. Então Euler refez, com os olhos fechados, o cálculo numa fracção de segundo. Via relações, ligações, que escapavam ao resto da humanidade culta e inteligente. Foi assim que descobriu ideias matemáticas novas e revolucionárias nos poemas de Virgílio. Era um homem simples e modesto e todos os seus contemporâneos estão de acordo sobre o facto de que a sua principal preocupação era a de passar desapercebido. Euler e Boscovitch viviam numa época em que os sábios eram respeitados, em que não corriam o risco de ser presos por ideias políticas ou obrigados pelo governo a fabricar armas. Se tivessem vivido no nosso século, talvez se tivessem organizado de forma a disfarçarem-se por completo. Talvez existam actualmente alguns Euler e Boscovitch. Talvez passem a nosso lado disfarçados de professores de aldeia ou de agentes de seguros, “homens transformados” inteligentes e racionais, munidos de uma memória absoluta e de uma inteligência constantemente lúcida.
Formarão esses “homens transformados” uma sociedade invisível? Nenhum ser humano vive só. Ele só se pode realizar no seio de uma sociedade. A sociedade humana que conhecemos demonstrou mais do que suficientemente que é hostil à inteligência objectiva e à imaginação livre: Giordano Bruno queimado, Einstein exilado, Oppenheimer vigiado. Se existem “seres superiores” que correspondem à nossa descrição, tudo leva a pensar que eles trabalham e comunicam entre si no interior de uma sociedade sobreposta à nossa, e que sem dúvida se estende pelo Mundo inteiro. Que eles comuniquem servindo-se de meios psíquicos superiores, como a telepatia, parece-nos uma hipótese infantil. Mais perto do real, e portanto mais fantástica, nos parece a hipótese segundo a qual eles se serviriam de comunicações humanas normais para fazer circular mensagens e informações para seu serviço exclusivo. A teoria geral da informação e a semântica mostram bastante bem que é possível redigir textos com duplo, triplo ou quádruplo sentido. Existem textos chineses com sete significações encerradas umas nas outras. Um herói do romance de Van Vog, À la Poursuite des Slans, descobre a existência de outros “seres superiores” ao ler o jornal e ao decifrar artigos aparentemente inofensivos. Tal rede de comunicação dentro da nossa literatura, da nossa imprensa, etc., é concebível. O New York Herald Tribune publicava a 15 de Março de 1958 um estudo do seu correspondente em Londres sobre uma série de mensagens enigmáticas publicadas nos pequenos anúncios do Times. Essas mensagens tinham chamado a atenção dos especialistas da criptografia e das diversas polícias, pois era manifesto que tinham um segundo sentido. Mas esse sentido escapara a todos os esforços de decifração. Existem sem dúvida meios de comunicação menos decifráveis ainda. Tal romance de terceira ordem, tal obra técnica, tal livro de filosofia aparentemente sem valor, talvez transmitam secretamente complexos estudos, mensagens dirigidas a inteligências superiores, tão diferentes da nossa como esta é da de um grande macaco.
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Louis de Broglie escreve[4]: “Nunca devemos esquecer quanto os nossos conhecimentos continuam limitados e de que imprevistas evoluções são susceptíveis. Se a civilização humana subsiste, a física poderá dentro de alguns séculos ser tão diferente da nossa como esta é da física de Aristóteles. Talvez as concepções ampliadas que então atingiremos nos permitam englobar numa mesma síntese, onde cada um encontrará o seu lugar, o conjunto dos fenómenos físicos e biológicos. Se o pensamento humano, eventualmente tornado mais potente por qualquer mutação biológica, viesse um dia a elevar-se até lá, aperceber-se-ia, com uma clareza que nós nem sequer suspeitamos, da unidade dos fenómenos que distinguimos com o auxílio dos adjectivos “físico-químicos” “biológicos” ou mesmo “psíquicos”. E se esta mutação já se tivesse produzido? Um dos maiores biologistas franceses, Morand, inventor dos tranquilizantes, admite que os “homens transformados” apareceram ao longo da história e da humanidade[5]: “Os homens transformados foram, entre outros, Maomé, Confúcio, Jesus Cristo…” Talvez existam muitos outros. Não é de forma nenhuma inverosímil que, na época evolutiva em que nos encontramos, “seres superiores” considerem inútil apresentar-se como exemplos ou pregar qualquer nova forma de religião. Há mais que fazer, presentemente, do que dirigir-se ao indivíduo. Não é improvável que eles considerem necessária e benéfica a subida da nossa humanidade a caminho da colectividade. Finalmente não é improvável que eles considerem desejável o nosso sofrimento de parto, e mesmo feliz qualquer grande catástrofe susceptível de apressar a tomada de consciência da tragédia espiritual que constitui na sua totalidade o fenómeno humano. Para agir, para que se precise ò desvio que talvez nos arraste a todos para qualquer forma de ultra-humano que eles já possuem, talvez lhes seja necessário continuar escondidos, manter secreta a coexistência, enquanto se elabora, a despeito das aparências e talvez até graças à sua presença, a alma nova para um mundo novo que nós chamamos, quanto a nós, com toda a força do nosso amor.
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Eis-nos nas fronteiras do imaginário. Precisamos de parar. Apenas pretendemos sugerir o maior número possível de hipóteses não completamente insensatas. Entre elas, muitas serão, provavelmente, de desprezar. Mas se algumas abrirem à investigação portas até aqui dissimuladas, não teremos trabalhado em vão; não nos teremos exposto inutilmente ao ridículo. “O segredo da vida pode ser encontrado. Se me fosse dada a ocasião. não a deixaria escapar por receio da chacota”‘.
Toda a reflexão sobre os “seres superiores” conduz a uma meditação sobre a evolução, sobre os destinos da vida e do homem. O que é o tempo, à escala cósmica onde é necessário situar a história terrestre? Se assim posso dizer, não estará o futuro latente por toda a eternidade? Na aparição dos “seres superiores” tudo se passa, talvez, como se a sociedade humana fosse por vezes atingida por uma ressaca do futuro, visitada pelas testemunhas do conhecimento ainda por vir. Os seres superiores não serão a memória do futuro, de que o grande cérebro da humanidade é talvez dotado?
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Outra coisa: a ideia de mutação favorável é evidentemente ligada à ideia de progresso. Esta hipótese de uma mutação pode ser levada para o plano científico mais positivo. É perfeitamente certo que as regiões mais recentemente adquiridas pela evolução, e as menos especializadas, quer dizer, as zonas silenciosas da matéria cerebral, são as últimas a amadurecer. Alguns neurologistas pensam com razão que há ali outras possibilidades que o futuro da espécie nos revelará. O indivíduo poderia vir a gozar de outras possibilidades. Uma individualização superior. E, no entanto, o futuro das sociedades bem nos parece orientado em direcção a uma colectivização cada vez maior. Será contraditório? Não cremos. A nossos olhos, a existência não é contradição, mas complementaridade e síntese transcendental.
Numa carta ao seu amigo Laborit, o biologista Morand escreveu: “O homem tornado perfeitamente lógico, tendo abandonado toda a paixão assim como toda a ilusão, transformar-se-á numa célula do continuum vital que constitui uma sociedade chegada ao mais alto termo da sua evolução: é evidente que ainda lá não chegámos, mas não creio que possa haver evolução sem isso. Então, e só então, emergirá essa “consciência universal” do ser colectivo, em direcção à qual nos encaminhamos”.
Perante esta visão, altamente provável, sabemos muito bem que os partidários do velho humanismo que forjou a nossa civilização se desesperam. Imaginam o homem daqui em diante sem finalidade, entrando na sua fase de declínio. “Tornado perfeitamente lógico, tendo abandonado toda a paixão assim como toda a ilusão…” Mas como o homem transformado em centro de inteligência radiante poderia estar a caminho do declínio? Com certeza, o Eu psicológico, aquilo a que chamamos a personalidade, estaria em vias de desaparecer. Mas não cremos que essa “personalidade” seja a última riqueza do homem. Neste ponto, creio que somos religiosos. É o signo da nossa época, o facto de todas as observações activas se rematarem numa visão da transcendência. Não, a personalidade não é a última riqueza do homem. Ela não passa de um dos instrumentos que lhe são dados para passar ao estado de vigília. Feita a obra, o instrumento desaparece. Se tivéssemos espelhos capazes de nos mostrar essa “personalidade” à qual damos tanta importância, não lhe suportaríamos a vista, tantos são os monstros e as larvas que por lá formigam. Só o homem realmente desperto ali se poderia debruçar sem se arriscar a morrer de pavor, pois então o espelho não reflectiria mais nada, seria puro. Este é o verdadeiro rosto que, no espelho da verdade, não é reflectido. Neste sentido, nós ainda não temos rosto. E os deuses não nos falarão frente a frente senão quando nós próprios tivermos um rosto.
Aludindo à diferença entre o Eu psicológico, móvel e limitado (moi em francês) e o Eu racional, activo e desembaraçado (je em francês), Rimbaud já dizia: “Je est un autre” (Eu é um outro). É o Eu imóvel, transparente e puro, cujo entendimento e infinito: todas as tradições incitam o homem a abandonar tudo para lá chegar. Poder-se-ia dar o caso de que estivéssemos numa época em que o próximo futuro fale a mesma linguagem que o mais longínquo passado.
Fora destas considerações sobre as possibilidades outras do espírito, o pensamento, mesmo o mais generoso, só distingue contradições entre consciência individual e consciência universal, vida pessoal e vida colectiva. Mas um pensamento que vê contradições no que está vivo é um pensamento doente. A consciência individual realmente desperta entra no universal. A vida pessoal, concebida e utilizada toda como instrumento de vigília, funde-se sem perigo na vida colectiva.
Finalmente, não se afirma aqui que a constituição deste ser colectivo seja o termo máximo da evolução. O espírito da Terra a alma do que está vivo não acabaram de emergir. Os pessimistas, perante os grandes acontecimentos visíveis que produz essa secreta emergência, dizem que é pelo menos necessário tentar “salvar o homem”. Mas esse homem não é para salvar, ele é para mudar. O homem da psicologia clássica e das filosofias correntes está ultrapassado, condenado à inadaptação. Quer haja mutação ou não, é outro homem que convém entrever para ajustar o fenómeno humano ao destino em marcha. Então, não é uma questão nem de pessimismo, nem de optimismo: é uma questão de amor.
No tempo em que eu pensava possuir a verdade na minha alma e no meu corpo, em que imaginava ter em breve a solução para tudo, na escola do filósofo Gurdjieff há uma palavra que nunca ouvi pronunciar: a palavra amor. Não disponho hoje de qualquer certeza absoluta. Não afirmaria como válida a mais tímida das hipóteses formuladas nesta obra. Cinco anos de reflexão e de trabalho com Jacques Bergier não me proporcionaram senão uma única coisa: a vontade de manter o meu espírito em estado de surpresa e de confiança perante todas as formas de vida e perante todos os vestígios de inteligência no que é vivo. Esses dois estados: surpresa e confiança, são inseparáveis. A vontade de os alcançar e de aí se manter sofre com o tempo uma transformação. Deixa de ser vontade, quer dizer, jugo, para se tornar amor, quer dizer, alegria e liberdade. Numa palavra, a minha única aquisição é que trago comigo, para todo o sempre, o amor pelo que está vivo, neste mundo e na infinidade dos mundos.
Para honrar e exprimir esse amor poderoso, complexo, não nos limitámos, eu e Jacques Bergier, ao método científico, como o exigia a prudência. Mas o que é o amor prudente? Os nossos métodos foram os dos sábios, mas também os dos teólogos, dos poetas, dos feiticeiros, dos magos e das crianças. No fim de contas, conduzimo-nos como bárbaros, preferindo a invasão à evasão. É que qualquer coisa nos dizia que de facto fazíamos parte das tropas estranhas, dos bandos fantomáticos conduzidos por trombetas de ultra-som, coortes transparentes e desordenadas que principiam a irromper sobre a nossa civilização. Nós estamos do lado dos invasores, do lado da vida que chega, do lado da mudança de era e de pensamento. Erro? Loucura? Uma vida de homem só se justifica pelo esforço, mesmo desafortunado, de melhor compreender. E melhor compreender é melhor aderir.
Quanto mais eu compreendo, mais amo, pois tudo o que se compreende está certo.
1 O termo francês mutant subentende uma mutação de ordem genética e, portanto, hereditária. (N. da T.)
2 New York Herald Tribune, 23 de Novembro de 1959
3 Publicou-se na URSS, no princípio de 1959, o jornal do pai da astronáutica, Ziolkovsky. Conta que tirou a maior parte das suas ideias dos trabalhos de Boscovitch.
4 Cf. Nouvelles Littéraires, 2 de Março de 1950, artigo intitulado “Qu’est-ce que la vie?”.
5 P. Morand e H. Laborit: Les desttns de la vie et de l’homme, Masson ed., Paris, 1959.
6 Loren Eiseley
Alimente sua alma com mais:
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