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Por Klaus K. Klostermaier, em A Survey Of Hinduism.
Os Purāṇas, por muito tempo negligenciados e rejeitados pela cultura indológica ocidental,[1] sempre ocuparam um lugar central no hinduísmo contemporâneo.[2] De acordo com a tradição purânica Brahmā proferiu os Purāṇas como as primeiras de todas as escrituras; só depois disso ele comunicou os Vedas. Algumas das principais escolas do hinduísmo concedem o status de śruti a vários dos Purāṇas, atribuindo a mesma idade e autoridade aos Purāṇas e aos Vedas. De acordo com R. C. Hazra, uma grande autoridade no campo, “é difícil dizer definitivamente como e quando os Purāṇas surgiram inicialmente, embora a sua alegação de grande antiguidade, próxima apenas àquela dos Vedas, não possa ser negada”.[3] A palavra purāṇa, talvez não ainda no sentido exato da época posterior, já ocorre no Atharva Veda, no Śatapatha Brāhmaṇa, na Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, e em outras obras antigas.[4]
De acordo com Hazra,
“A maneira na qual o Purāṇa foi ligado ao sacrifício, bem como aos yajus no Atharvaveda, a teoria da origem do universo a partir do sacrifício como explicada no Puruṣa-sūkta do Ṛg-Veda, e os tópicos constituindo as pāriplava ākhyānas ou narrações recorrentes no sacrifício aśvamedha, tendem a indicar que o Purāṇa, como um ramo de conhecimento, teve seu início no período védico e se originou na parte narrativa (ākhyana bhāga) do sacrifício védico, que, nos Brāhmaṇas, é identificado repetidamente com o deus Prajāpati, o precursor do posterior Brahmā, o criador.”[5]
É dito que todos os Mahāpurāṇas existentes, em número de dezoito, com, conforme a tradição, quatrocentos mil ślokas no total, têm Vyāsa como seu autor. A análise textual dos Purāṇas é ainda mais complicada do que no caso dos grandes épicos; a enorme massa de material, as alegações sectárias ligadas a um bom número deles, e a grande liberdade tomada por escritores de todas as eras de interpolar passagens nos Purāṇas, fazem qualquer estudo acadêmico sério dos Purāṇas na fase atual parecer uma tarefa quase impossível.
Os Purāṇas, representando as tradições religiosas populares, nunca foram submetidos ao processo de codificação pelo qual passaram os sūktas védicos, que eram o texto oficial para as funções oficiais do estado e tinham que ser uniformes. Tendo existido por séculos em versões orais, com muitas variantes locais ao mesmo tempo, reduzidos à escrita em tempos muito diferentes sem seguir quaisquer regras estritas, eles provavelmente não podem ser apresentados em alguma edição definitiva que tenha significado. Textos purânicos escritos, com muitas variantes, existem há muitos séculos, e algum tipo de texto padrão se desenvolveu, que muitas vezes está disponível em várias edições impressas. Recentemente, a editora de Délhi Motilal Banarsidass reimprimiu todos os Mahā-Purāṇas, paralelos a uma série de traduções completas em inglês de todos eles. O compromisso da Kashiraj Trust ao publicar edições decisivas dos Purāṇas deve ser entendido como uma tentativa de agrupar os manuscritos e edições existentes e estabelecer algum tipo de versão aceita, que contenha o que a maioria dos testemunhos do texto tem em comum. O argumento de L. Rocher contra a possibilidade de edições definitivas é bastante convincente: os Purāṇas não foram feitos para serem livros. Há uma opinião amplamente compartilhada entre os estudiosos indianos que vários séculos antes do início da Era Comum havia uma “Purāṇa Saṃhitā original”. De acordo com V. S. Agrawala, Lomaharṣana, o professor original do Purāṇa, ensinou a Mūlasaṃhitā a seis alunos, os autores das Parasaṃhitās de quatro mil a seis mil versos cada, tratando basicamente dos mesmos quatro tópicos, cada uma constituindo um pāda: sarga ou criação do mundo, pratisarga ou dissolução, manvantara ou eras mundiais, e vaṃśa ou genealogias. Essa forma original catur-pāda é preservada no Vāyu Purāṇa e no Brahmāṇḍa Purāṇa existentes. Geralmente considera-se que o Vāyu chega mais perto do Ur-Purāṇa e Agrawala achou que podia recuperar do texto atual do Vāyu Purāṇa a Mūlasaṃhitā eliminando uns oitenta capítulos espúrios interpolados.
O Amarakośa, um antigo léxico sânscrito,[6] define purāṇa como pañcalakṣaṇa: o que tem cinco tópicos característicos, ou seja, os quatro anteriores mais vaṃśānucarita ou histórias sobre os feitos dos descendentes das dinastias glorificadas nele.
O Viṣṇu Purāṇa, um dos mais antigos, está mais de acordo com esse padrão; mas mesmo aqui um grande número de tópicos adicionais é tratado. Em muitos outros Purāṇas os “cinco tópicos” mal são tocados; ao todo o material que ilustra o pañcalakṣaṇa constitui apenas cerca de um quadragésimo dos textos atuais. Temas importantes, além dos já mencionados, são os puruṣārthas, os quatro objetivos da vida – ou seja, artha ou riqueza, kāma ou prazer, dharma ou regras para a vida, e mokṣa ou espiritualidade – as vratas ou observâncias religiosas, śrāddhas ou ritos para os antepassados falecidos, tīrtha ou descrição dos lugares de peregrinação, dāna ou doações, vṛtti ou meios de subsistência, rakṣa ou manifestações de seres superiores, mukti ou libertação, hetu ou o jīva potencial, e apāśraya ou Brahman como o amparo.
RC Hazra acha que do terceiro ao quinto século foram adicionados ao Ur-Purāṇa aqueles assuntos que formaram o tema das primeiras smṛtis, ao passo que do sexto século em diante novos tópicos foram adicionados tratando de lugares sagrados, adoração de imagens, astrologia, e assim por diante, que agora formam a massa do conhecimento purânico. A parte mais antiga e original dos Purāṇas parece ser sua mitologia e história. Muito poucos estudiosos estão inclinados a considerar as listas purânicas de dinastias como de valor histórico considerável. F. E. Pargiter passou a maior parte de sua vida em uma reconstrução da antiga tradição histórica indiana[7] de acordo com registros purânicos, e apresentou algumas sugestões muito interessantes em relação à história mais antiga da Índia.[8]
De acordo com uma teoria, os vários Purāṇas surgiram como uma tentativa de fornecer a cada um dos śākhas védicos um Purāṇa próprio; outra teoria, não menos plausível – especialmente tendo em conta os numerosos Sthala Purāṇas ou crônicas locais – conecta os vários Purāṇas com diferentes partes da Índia: “O Brahmā Purāṇa pode representar a versão de Orissa da obra original, assim como o Padma Purāṇa pode apresentar a de Puṣkara, o Agni a de Gāyā, o Varāha a de Mathurā, o Vāmana a de Thaneśvar, o Kūrma a de Banares, e o Matsya a dos brâmanes do Narmadā”.[9]
O esquema Vaiṣṇava divide os 18 Mahāpurāṇas de acordo com os três guṇas em sāttvika ou Viṣṇu, abrangendo o Viṣṇu, Bhāgavata, Nāradīya, Garuḍa, Padma, e Varāha; rājasa ou Brahmā, abrangendo o Brahmā, Brahmāṇḍa, Brahmavaivarta, Mārkaṇḍeya, Bhaviśya, e Vāmana; e tāmasa ou Śiva, abrangendo o Śiva, Liṅga, Skanda, Agni, Matsya e Kūrma. Que esse esquema é totalmente inadequado torna-se evidente quando se considera o fato, bastante evidente nos textos atuais, de que vários Purāṇas foram reformulados mais de uma vez a partir de diferentes pontos de vista sectários, combinando características Vaiṣṇava, Śaiva, e Śākta. Os Upapurāṇas se prestam ainda menos do que os Mahāpurāṇas a uma classificação satisfatória. Nem mesmo o seu número pode ser determinado exatamente. Alguns deles afirmam ser, e têm a posição de, Mahāpurāṇas, isto é, eles são śruti para os seguidores do grupo específico em questão.[10]
De um modo geral é possível afirmar que os textos dos Mahāpurāṇas, como eles foram impressos, foram determinados entre a época de 400 e 1000 da Era Comum, o Viṣṇu Purāṇa estando mais próximo da data mais antiga, o Bhāgavata Purāṇa mais perto da última; mas não é possível atribuir uma data específica para nenhuma dessas obras, contendo, como elas contêm, matérias de respeitável antiguidade junto com capítulos bastante recentes, tratando, entre outras coisas, da corte de Akbar e dos britânicos na Índia.[11] A maioria dos Purāṇas foi traduzida para o inglês, alguns várias vezes, por diferentes estudiosos, e é muito fácil para qualquer um interessado nessa literatura se familiarizar com os conteúdos e estilo dessa classe de escritos “cuja importância para o desenvolvimento do hinduísmo nunca pode ser superestimada”.[12]
Os Purāṇas, como todas as escrituras hindus, dão ao final a sucessão de sábios e santos através dos quais eles foram transmitidos concluindo com um phala-śloka, a promessa de recompensa por lê-los:
“Quem ouve esse grande mistério que remove a contaminação da Era de Kali ficará livre de todos os pecados. Quem o ouve todos os dias redime todas as obrigações para com devas, pitṛs, e homens. O mérito grandioso e raramente obtenível que se adquire pela doação de uma vaca marrom é obtido por ouvir dez capítulos desse Purāṇa. Quem ouve todo o Purāṇa obtém seguramente a recompensa que acompanha a celebração ininterrupta do Aśvamedha. Quem lê e mantém com fé esse Purāṇa adquire pureza como não existe no mundo, o eterno estado de perfeição.”[13]
Além dos textos nos Purāṇas que exaltam os méritos de lê-los, há Māhātmyas, Louvores à Grandeza de cada Purāṇa, muitas vezes impressos junto com os textos nas edições disponíveis. Eles derramam profuso louvor sobre os próprios textos e prometem felicidade indizível e recompensa para todos os que recitarem mesmo tão pouco quanto uma fração de um verso ou mantiverem uma parte do livro em suas habitações. Como o Bhāgavata Māhātmya diz:
“É melhor preservar em sua casa a metade ou mesmo um quarto de um verso copiado do Śrīmad Bhāgavata do que uma coleção de centenas e milhares de outras escrituras. Não há libertação em nenhum momento do laço de Yama para aquele cuja casa não contém uma cópia do Śrīmad Bhāgavata na Era de Kali. Eu, o Senhor, tomo minha residência na casa que contém um verso, uma metade de um verso ou mesmo um quarto de um verso do Śrīmad Bhāgavata escrito à mão. Eu nunca abandono a pessoa que narra diariamente as minhas histórias e que é atenta ao ouvi-las e cuja mente se deleita com elas.”[14]
Itihāsa-Purāṇa é literatura excelente, e com traduções mais adequadas tornando-se disponíveis esses livros podem se tornar bastante populares também nos países ocidentais. Eles contêm histórias fantásticas que encantam crianças ocidentais bem como indianas, e oferecem entretenimento também para o amante mais sofisticado de literatura. Tratando como tratam de experiências humanas atemporais, das alegrias e tragédias da humanidade em qualquer lugar, eles falam para uma audiência ocidental bem como para uma indiana.
Estudantes de mitos e símbolos os acharão uma fonte inesgotável não só de materiais, mas também de interpretações e teorias; estudantes de direito comparado e ética encontrarão alguns dos recursos mais interessantes neles. Sua vastidão e sua total falta de uma ideologia específica os tornam muito adaptáveis à mudança e lhes dão grande força e resiliência, sinais de vida vigorosa.
Notas:
[1] Segundo o Swāmi Dāyānanda Sarasvatī, o fundador da Ārya Samāj.
[2] Ludo Rocher, como parte dos vários volumes da History of Indian Literature, editada por Jan Gonda, publicou uma monografia sobre os Purāṇas que trata da história dos estudos dos Purāṇas, da questão do número de Purāṇas, das controvérsias em torno da divisão entre Mahāpurāṇas e Upapurāṇas, do debate sobre o “Ur-Purāṇa”, e, eventualmente, lista todos os Purāṇas, dando breves resumos dos conteúdos, indicando edições dos textos, traduções e estudos. Veja também G. Bailey, “The Purāṇas”, em A. Sharma (ed.) The Study of Hinduism, 139-68.
[3] R. C. Hazra, “The Purāṇas.”
[4] Atharva Veda XI, 7, 24. Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad IV, 5, 11.
[5] R. C. Hazra, op. cit.
[6] Sexto século da Era Comum.
[7] Veja F. E. Pargiter, Ancient Indian Historial Tradition.
[8] Veja o prefácio em Ibid. criticado por P. V. Kane, History of Dharmaśāstra, vol. 5, Parte 2, 851 e seguintes.
[9] M. A. Mehendale, “Purāṇas”, em The History and Culture of the Indian People, vol. 3, 296.
[10] Assim, o Devībhāgavata Purāṇa dos Śāktas afirma ser o verdadeiro Bhāgavata Purāṇa e é aceito como tal pelos Śāktas. Veja C. Mackenzie Brown, “The Origin and Transmission of the Two Bhāgavata Purāṇas: A Canonical and Theological Dilemma”.
[11] Como faz o Bhaviṣya Purāṇa, que afirma ser um antigo livro profético sobre o futuro (bhaviṣyam).
[12] Todos os Mahāpurāṇas foram publicados, a maioria deles por vários editores; a série Motilal Banarsidass, Ancient Indian Tradition and Mythology, visa fornecer uma tradução completa de todos os Mahāpurāṇas. Traduções mais antigas estão disponíveis do Mārkaṇḍeya, Bhāgavata, Matsya, Viṣṇu, Agni e Garuḍa Purāṇas. Para os Upapuraṇas consulte R. C. Hazra, Studies in the Upapurāṇas, dois volumes, e L. Rocher, The Purāṇas.
[13] Viṣṇu Purāṇa, 4, 8, 40 e seg.
[14] Skanda Purāṇa, Viṣṇukhaṇḍa Margaśirṣamāhātmya, XVI, 30 e seg.
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Fonte: KLOSTERMAIER, Klaus. Os Purāṇas – as Bíblias do Hinduísmo. In. A Survey Of Hinduism.
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Texto revisado e enviado por Ícaro Aron Soares.
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