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Shirlei Massapust
Antes do livro Drácula (1897) se tornar uma obra de literatura clássica, o folclore romeno jamais havia rotulado Vlad Drăculea (1431–1476/77) ou o seu pai, fundador da família Drăculești, como sendo “vampiros”. O historiador romeno Mihail Sadoveanu explica que Vlad II foi alcunhado “Diabo” e, por este motivo, seu sucessor Vlad III era o “Filho do Diabo[1]”. Tal era a opinião sincera dos conterrâneos mais bem informados antes do partido comunista assumir o poder e aparelhar o sistema educacional com historiadores instruídos a difundir uma versão revisionista dos dados biográficos de Vlad III, retratando-o como herói nacional e racionalizando seus crimes de guerra.
Aliás, em pleno período de exercício do governo de Nicolae Ceaușescu (1918-1989), certa vez a professora brasileira Georgette Mendonsa saiu em visita ao túmulo de Vlad III, em Snagov, onde escutou verdades indefensáveis misturadas com estranhas impossibilidades: “Ainda hoje (1988), ele vive nas lendas que nascem nas aldeias romenas (…). Lendas que falam de Drácula, voando sobre as muralhas das fortalezas”.[2]
Em 1499 os transilvanos erigiram o monumento de M. Pecchi, em Cluj, onde o brasão da Valáquia[3] aparece preso no emaranhado de chifres de um dragão[4]. Ao mesmo tempo foi publicado o opúsculo Dracule Waide (1499), ilustrado com uma xilogravura de Vlad III ceando entre os empalados.
Outras gravuras contemporâneas encaixam o empalador em contextos históricos impossíveis, ordenado a crucificação de Jesus e Santo André.[5] Contudo, ele não era um morto incorrupto que assombra as pessoas. Ou será que era? Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, político filiado ao Partido Social Cristão (PSC), pensa que europeus tratavam personae non grata com o mesmo cabedal de difamação reservado aos nativos americanos e população das ilhas, ditas selvagens.
Acreditava-se, ainda, em sereias e vampiros, e eram os europeus jurando pela existência dessas entidades. Alguém, hoje, ainda acredita nas lendas da Transilvânia? Nas maldades do Conde Drácula? Claro que não. Pois é hora de se levantar dúvidas sobre a suposta gula por carne de outros filhos de Deus[6].
Após produzir uma resenha biográfica completa e concisa sobre Vlad III, com auxílio da Universidade Din Craiova, o historiador brasileiro Arturo Branco concluiu que os germânicos tiravam vantagem da prensa de tipos móveis (uma tecnologia que ainda não havia chegado aos romenos) e usaram-na para difundir panfletos sensacionalistas repletos de detalhes repugnantes: “De fato, deve-se questionar grande parte do que é contado nesses panfletos, uma vez que eles foram escritos por inimigos rancorosos de Vlad Ţepeş com o intuito de difamá-lo[7]”.
Enquanto a voz daqueles que o consideravam herói e cruzado da cristandade não era ouvida, uma rentável campanha difamatória reescreveu a história atualizando-a com adição dos primeiros elementos míticos. Frank Lestringant, citando o Methodus ad facilem historiarum cognitionem (1566), obra do jurista francês Jean Bodin (1530-1596), compara a antropofagia dos tupinambás do Brasil com o terror psicológico gerado pelas táticas de guerra de Vlad III, bem como com “o exemplo do apetite bestial por carne humana” oferecido pelos citas nórdicos e outros caravanistas frequentadores dos limites setentrionais do mundo habitado. “Segundo testemunhos mal averiguados”, todos eles “bebiam o sangue quente dos inimigos e se fartavam prazerosamente com as carnes de seus semelhantes[8]”.
Os historiadores Raymond McNally (1931-2002) e Radu Florescu (1925-2014) procuraram por documentos que justificassem o rótulo de vampiro desde 1972 até o fim da vida, não achando nada muito melhor que uma licença poética do ficcionista Michel Beheim que, em 1463, teria escrito que Vlad III molhava pão no sangue de condenados à morte e vítimas da guerra[9]. Entendemos que a prática do canibalismo num texto narrativo onde o personagem protagonista passe fome, num cenário de cerco bélico, poderia ser uma ação compreensível caso não houvesse menção a pão molhado em sangue, contextualizando uma paródia blasfema de João 6:51-71.
Contra tal afirmativa, o sociólogo Hans Corneel de Roos argumenta haver consultado uma reimpressão datada de 1903 do referido opúsculo, redigido no idioma alemão medieval, onde está escrito coisa diferente:
Er waz sein lust und gab im mut
wann er sach swenden menschen plut;
wenn er dy gwonhait hete,
Das er sein hend darjnnen zwug,
wann man im zu den tische trug
wann er sein malzeit tete.[10]
Hans Corneel de Roos traduziu para inglês mais ou menos neste sentido:
Este era seu prazer e lhe dava coragem.
Ver o fluxo do sangue humano.
Este era seu habito.
Lavar as mãos nisto.
Portanto era levado à mesa.
Enquanto ele cortava sua carne.[11]
Aqui não há menção a pão molhado em sangue parodiando a eucaristia, quando Jesus fala aos judeus: Εαν δεν φαγητε την σαρκα του υιου του ανθρωπου και πιητε το αιμα αυτου, δεν εχετε ζωην εν εαυτοις – Se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos (João 6:53). Havendo paródia seria do episódio quando Pilatos lava as mãos dizendo Αθωος ειμαι απο του αιματος του δικαιου τουτου – Estou inocente do sangue deste sujeito (Mateus 27:24).
Vlad III no papel de Aegeas no quadro Crucificação de Santo André (c. 1475), exposto no museu Österreichische Galerie Belvedere, e como Poncius Pilatos no Julgamento de Jesus (1463), na Narodna Galerija.
Diante da questão levantada, conclui-se que os finados Raymond McNally e Radu Florescu cometeram um erro crasso de tradução ao interpretar a referida estrofe do poema de Michel Beheim ou tiveram acesso a um manuscrito com texto variável, diferente daquele impresso na edição transcrita em 1903.
No primeiro caso, a ação de lavar as mãos em sangue deveria ser interpretada como licença poética, comum em rimas, posto que isto não seria uma atitude inteligente em contexto literal (o sangue coagularia e apodreceria nas mãos do protagonista). Ou seja, o impacto visual traduz o habito ordinário de lavar a mão numa cuia d’água que se torna ensanguentada. A mão de Vlad III sujou ao pegar o bife durante a refeição.
A cenografia aparece completa numa xilogravura de Ambrosius Huber de Nuremberg, produzida em 1499, onde vemos Vlad III degustando uma refeição. Há um soldado valáquio esquartejando humanos. O alimento no prato é de difícil identificação.
O Manuscrito nº 806 da Biblioteca do Mosteiro de São Gall, na Suiça, descreve-o como antropófago incitador do hábito da antropofagia para fim punitivo-pedagógico e/ou de sobrevivência em tempos de guerra.
A narrativa informa que certa vez Vlad Ţepeş condenou um cigano acusado de roubo à pena de morte por enforcamento e obrigou àqueles que peticionaram em defesa do condenado a comerem o cadáver fervido num panelão. Ato contínuo, rendeu cerca de trezentos ciganos que entraram em suas terras, escolheu os três melhores, mandou assá-los e ordenou que os outros os comessem, dizendo-lhes: “Assim cada um de vós deve comer os outros até que não reste mais nenhum”, ou enviou-os contra os turcos integrados ao seu próprio exército[12]. Todavia a possibilidade de anistia era um privilégio dos pobres. Os velhos boiardos com poder de oposição política não tiveram nenhuma chance de firmar aliança ou declarar arrependimento perante o novo soberano:
Certa vez mandou decapitar diversos fidalgos e pegou seus corpos e mandou cozinhá-los. Depois convidou os amigos deles à sua casa e serviu-lhes aquela comida, dizendo-lhes: “Agora estais comendo os corpos de vossos amigos”. Depois disso empalou-os.[13]
Estes documentos de idoneidade duvidosa sugerem que Vlad III conhecia a Síndrome de Estocolmo[14], efeito colateral do choque de realidade ao qual os cativos eram submetidos, e desenvolveu um método para criar um exército de vampiros vivos. Qual o motivo da elite conservadora dos condados de Almaș e Făgăraș haver sido empalada cuidadosamente para não perfurar órgãos vitais, sobrevivendo por até três dias? Diferentemente dos esqueletos içados no entorno da capital Târgoviște, estes boiardos viviam em local de difícil acesso sem provisões alimentícias.
Enquanto permanecessem vivos eles forneceriam fatias de carne fresca para degustação[15]. “Alguns desses impressos mencionam que Drácula costumava colocar bacias de prata sob as lanças dos empalados para recolher o sangue deles, do qual bebia[16]”.
Notas:
[1] SADOVEANU, Mihail. Vie D’Etienne Le Grand. Trad. Al. Duiliu-Zamfiresco. Bucureşti, Ed. en langues étrangères, 1957, p 94.
[2] MENDONSA, Georgette. Dos Passos de Drácula aos Palácios dos Faraós. Recife, 1988, Comunicarte, p 88.
[3] Nesta época a Valáquia era governava por Radu cel Maré (1462-1508), filho de Vlad Călugărul (1425-1495), mas a memória do finado Vlad III ainda amedrontava os aldeões da Transilvânia.
[4] PASCU, Ştefan. Meșteșugurile din Transilvania: pînă în secolul al XVI-lea. București, Academiei Republicii Populare Romîne, 1954, fig. 24.
[5] No museu Österreichische Galerie Belvedere, em Viena, existe um quadro datado entre 1470 e 1480 onde Vlad III faz o papel de Aegeas ordenando a crucificação de Santo André. Na Narodna Galerija, em Ljubljana, há outro quadro datado de 1463, onde Vlad III faz o papel de Pâncio Pilatos julgando Jesus antes do episódio da crucificação.
[6] COUTINHO, Marcus Odilon Ribeiro. Antropofagia: Existiu ou não? (2ª edição), p 30-31.
[7] BRANCO, Arturo. As Origens de Drácula: O homem, o vampiro, o mito. São Paulo, Madras, 2012, p 106.
[8] LESTRINGANT, Frank. O Canibal: Grandeza e decadência, p 129.
[9] McNALLY, Raymond & FLORESCU, Radu. Em Busca de Drácula e Outros Vampiros. Trd. Luiz Carlos Lisboa. São Paulo, Mercuryo, 1995, p 8.
[10] BEHEIM, Michael. Von ainem wutrich der heis Trakle waida von der Walachei (1463). Em : CONDURATU, Gregor C. Michael Beheims Gedicht über den Woiwoden Wlad II. Drakul. Bucareste, Eminescu, 1903, p 33, linhas 170-176.
[11] ROOS, Hans Corneel. Bloody Nonsense: How Two Scholars Pulled Off the Great Dracula Swindle. Publicado no site temático VAMPED em 26/05/2016, 0:23 pm. URL: <http://vamped.org/2016/05/26/great-dracula-swindle/>
[12] McNALLY, Raymond & FLORESCU, Radu. Drácula: Mito ou Realidade? Trad. Pedro Lourenço Gomes. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975, p 169 § 17 e 171 § 29.
[13] McNALLY, Raymond & FLORESCU, Radu. Drácula: Mito ou Realidade? Trad. Pedro Lourenço Gomes. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975, p 170, § 26.
[14] Síndrome de Estocolmo é o nome dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia por seu agressor.
[15] Bodin leu num determinado impresso húngaro: “tríduo maceratos inedia milites eo crudelitatis adegerunt, vt dentibus spirantis ducis artus dilacerarent atque deglutirent deinde exenteratu in frusta secantes verubus coetum captiuis apposuerunt omito Draculæ Transilvaniæ principis sæuitiam omnium opinione opinione maiorem” (BODIN, Jean. Methodus ad facilem historiarum cognitionem. Genevæ, Apvd Iacobvm Stoer, 1610, p 92-93).
[16] BRANCO, Arturo. As Origens de Drácula: O homem, o vampiro, o mito. São Paulo, Madras, 2012, p 107.
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