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A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05/10/1988, coloca a liberdade religiosa como cláusula pétrea no decantado artigo 5º, cujo caput fora inspirado na máxima utópica da revolução francesa “Liberdade, igualdade e fraternidade”. Porém conceituar “religião” em Direito, é um problema espinhoso geralmente tratado de forma escassa pela doutrina e jurisprudência; muito embora seja necessário definir, por exemplo, o que se entende por “culto” para efeitos legais na alínea “b” do inciso VI do artigo 150 da CRFB, o qual assegura imunidade tributária aos “templos de qualquer culto”.
Ora, acaso um praticante de feng-shui pode pleitear imunidade para se eximir da obrigação de pagar IPTU sob alegação de tratar seu imóvel residencial como um templo privado? É garantida plena liberdade de culto ao índio bororó cuja tradição, de origem pré-colombiana, incluía a pratica de guerrear contra estranhos para encolher troféus cefálicos? Claro que não! O brasileiro que se converte ao islamismo e casa com duas mulheres ganha a bênção do Corão, mas continua bígamo na forma do art. 235 do Código Penal. Por isso, antes de pensar em implementar o vampirismo como religião alternativa em território nacional, é necessário conhecer a matéria e tomar algumas providências.
O PRINCÍPIO DA LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
Modernamente a separação entre Igreja e Estado, adotada nos Estados Unidos desde a Emenda nº 1, de 1791, é reconhecida pelas constituições da maioria dos Estados democráticos, e também por diversos tratados internacionais. No Brasil tal separação foi efetivada legalmente em 07/01/1890, pelo Decreto nº 119-A, e consagrada desde a Constituição de 1891. É por este motivo que a atual Constituição brasileira, de 1988, traz a seguinte proibição, no inciso I do art. 19:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Aceitar como constitucional a subvenção do poder público a uma igreja, a qualquer delas, seria o retorno ao sistema anterior, abolido com a proclamação da República. (É interessante citar também o art. 49 da Constituição Suíça, que expressamente determina que ninguém poderá ser obrigado a pagar impostos cujo produto se destine a subvencionar o culto de uma comunidade religiosa à qual não pertença). Contudo, malgrado a eleição da legalidade e o Direito como modos de organização da vida social e da estruturação das relações individuais e sociais, o mundo moderno não logrou acabar com o sentimento religioso. De fato, temos presenciado um constante desabrochar de novas alternativas de credo, incremento folclórico e experiências subjetivas que tornam a liberdade religiosa um tema da mais alta relevância na contemporaneidade.
Na base do direito à liberdade religiosa jaz uma prévia discussão a respeito do próprio conceito de direito subjetivo. O preceito constitucional da liberdade religiosa está inserido dentro do contexto dos direitos fundamentais e estes, por sua vez, no horizonte da própria liberdade humana. Daí, a doutrina desenvolvida a partir da declaração dos Direitos do Homem, de 1789, quanto à necessidade de serem criados limites para impedir o arbítrio governamental. O constitucionalista português Jorge Miranda ressaltou a importância da liberdade religiosa, afirmando que ela está no cerne da problemática dos direitos humanos fundamentais, e não existe plena liberdade cultural nem plena liberdade política sem essa liberdade pública, ou direito fundamental. Na classificação do direito à liberdade religiosa proposta pelo prof. José Afonso da Silva, a matéria é tratada segundo três direitos fundamentais: o de crença, o de culto e o de organização religiosa.
Segundo Celso Ribeiro Bastos, a liberdade de consciência gera a possibilidade de escolha daquilo em que se acredita, donde provém a liberdade de crença. Milton Ribeiro acresce que a liberdade de culto difere da liberdade de crença na medida em que é a exteriorização e a demonstração plena da liberdade de religião que reside interiormente. Para Guilherme Nucci, a partir da crença em algo nasce a liberdade de culto – definido como “cerimônia ou forma de adoração ou expressão da crença como ocorre na missa católica, por exemplo”. – O culto é conseqüência da crença e “a cerimônia ou liturgia (culto público instituído por uma igreja) constitui a materialização do culto”.
Vimos, na introdução, que a Constituição Federal de 1988 fixou o princípio da liberdade religiosa em cláusula pétrea inserida em seu artigo 5º:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
…………………
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Embora exista a possibilidade de inserção de novos incisos, a proposta de emenda constitucional tendente a abolir qualquer um destes direitos e garantias fundamentais não poderá sequer ser objeto de deliberação (Art. 60 da CRFB); de forma que a liberdade religiosa constitui cláusula pétrea inconteste e intocável. Assim escreveu o constitucionalista José Afonso da Silva, sobre a liberdade religiosa:
Ela se inclui entre as liberdades espirituais. Sua exteriorização é forma de manifestação do pensamento. Mas, sem dúvida, é de conteúdo mais complexo pelas implicações que suscita. Ela compreende três formas de expressão (três liberdades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de culto; (c) e a liberdade de organização religiosa. Todas estão garantidas na Constituição.
(a) Liberdade de crença: a Constituição de 1967/1969 não previa a liberdade de crença em si, mas apenas a liberdade de consciência e, na mesma provisão, assegurava aos crentes o exercício dos cultos religiosos (art. 153, § 52). Então, a liberdade de crença era garantida como simples forma da liberdade de consciência. A Constituição de 1988 voltou à tradição da Constituição de 1946, declarando inviolável a liberdade de consciência e de crença (art. 52, VI), e logo no inciso VIII estatui que ninguém será privado de seus direitos por motivo de crença religiosa.
Fez bem o constituinte em destacar a liberdade de crença da de consciência. Ambas são inconfundíveis — di-lo Pontes de Miranda —, pois, “o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito”, assim como a “liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença”.
PREVISÃO CONSTITUCIONAL DE IMUNIDADE TRIBUTÁRIA
Toda associação religiosa tem o direito de manter locais destinados aos cultos e criar instituições humanitárias ou de caridade. Porém, nem todas o fazem e esta opção produz efeitos no campo do Direito Tributário, posto que há diferença entre a imunidade tributária dos templos de qualquer culto, prevista na alínea “b” do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal, e a cobrança de contribuições previdenciárias das organizações religiosas. O texto constitucional diz, literalmente, o seguinte:
150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
…………………
VI – instituir impostos sobre:
…………………
b) templos de qualquer culto.
A Lei 5.172/1966 (O Código Tributário Nacional) repete a vedação:
9º. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
…………………
IV – cobrar impostos sobre:
…………………
b) templos de qualquer culto.
…………………
§ 4º – As vedações expressas no inciso VI, alíneas “b” e “c”, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.
Entende-se por “templo” o imóvel (terreno e/ou prédio) onde são o culto é prestado com regularidade embora a vedação de instituir imposto abranja a residência do Ministro Religioso, bem como todas os bens e atividades cuja renda seja utilizada em prol do culto e exclua eventual comércio privado (Ex: barraca de venda de alimentos) autorizado dentro do próprio templo. Isto ocorre porque o templo em si não tem personalidade jurídica. O imóvel destinado aos cultos religiosos pertence a uma organização religiosa. Em conseqüência, a organização religiosa como um todo não pode sofrer a incidência de impostos que vise a tributar o imóvel em particular, ou a renda auferida em decorrência do culto ou que se destine ao culto, ou os serviços integrantes da atividade religiosa em si mesma considerada.
Se a associação religiosa cria instituições humanitárias ou de caridade, além de manter locais destinados aos cultos, incide ainda a norma do § 7º do art. 195 da CRFB, o qual dispõe que “são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”. (A imunidade do inciso VI do art. 150 refere-se a imposto, enquanto o § 7º do art. 195 diz respeito a “contribuição para a seguridade social”). Porém, neste caso, a organização religiosa deverá atender às exigências legais pela lei para vir a ser considerada uma entidade beneficente de assistência social.
A ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA NO DIREITO CIVIL
Natureza jurídica
A igreja, em forma de pessoa jurídica de direito privado, na qualidade e categoria análoga à associação formada pela união de pessoas para fins não econômicos, perdeu o status quo de sociedade civil religiosa, como previa o Código de 1916. No lugar disto a Lei nº 10.825/2003 redefiniu a natureza jurídica das organizações religiosas e deu nova redação aos artigos 44 e 2.031 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
………………………….
IV – as organizações religiosas;
………………………….
§ 1º São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.
O fato que dá origem à pessoa jurídica de direito privado é a vontade humana, sem necessidade de qualquer ato administrativo de concessão ou autorização, salvo os casos especiais do Código Civil (artigos 1123 a 1125, 1128, 1130, 1131, 1132, 1133, 1134, § 1 °., 1135 a 1138, 1140 e 1141). Sua personalidade jurídica, no entanto, permanece em estado potencial, adquirindo status jurídico somente quando preencher as formalidades ou exigências legais. Isso significa que uma organização religiosa precisa ter atas e estatutos registrados em cartório para ter existência legal reconhecida.
Em razão da Lei 10.825/03 cada organização religiosa pode instituir suas próprias normas de organização. (Não há mais a obrigatoriedade de obedecer às diretrizes elencadas nos artigos 53 a 61 do Novo Código Civil, já que deixam de ser meras associações). Portanto as organizações religiosas podem, por exemplo, abrir mão da supremacia das decisões oriundas de Assembléia Geral.
Fases do processo de criação da pessoa jurídica de direito privado
Na criação da pessoa jurídica de direito privado há duas fases: a do ato constitutivo — que deve ser escrito, podendo ser público ou particular (art. 997 do CC), com exceção da fundação, que requer instrumento público ou testamento (art. 62 do CC) — e a do registro público (artigos 45, 984, 985, 998 e 1150 a 1154 do CC). A existência legal de uma organização religiosa começa com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro (caput e parágrafo único do art. 45 do CC).
Art. 46. O registro declarará:
I – a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver;
II – o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores;
III – o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente;
IV – se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo;
V – se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais;
VI – as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso.
Bom lembrar que continua em vigor o Decreto-Lei nº. 9.085/1946, o qual dispõe que os atos constitutivos das organizações religiosas (antigas pias e sociedades religiosas) não poderão ser averbados quando seu objeto ou circunstância relevante indique destino ou atividade ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes (art. 2º e 3º). Também não poderão ser registrados os atos constitutivos de organizações que, em data prévia, tenham praticado quaisquer dos núcleos supracitados (art. 4º).
Na prática a produção do estatuto a ser registrado não é tão simples quanto parece. Em momento algum a legislação se volta para as questões religiosas específicas de cada instituição. Como não poderia deixar de ser, a lei enfoca tão-somente as questões organizacionais da igreja como instituição da sociedade civil organizada. Por isso o responsável pela elaboração do estatuto deverá estar ciente das particularidades inerentes ao caso concreto que não estão contidas em nenhuma lei, doutrina ou jurisprudência. A respeito deste problema, o Dr. Gilberto Garcia – jurista responsável pela revisão estatutária da Igreja Batista no Brasil – conta-nos sobre a necessidade que ele próprio experimentou em realizar estudo complementar e pesquisa de campo antes iniciar seu trabalho:
Visando compreender as semelhanças e diferenças jurídicas entre as instituições religiosas cristãs, participamos do Curso de introdução ao Direito Canônico. Nele nos certificamos de que as igrejas regidas pelo código canônico têm nele sua disciplina orgânica, eclesiástica e administrativa de modo uniforme, em todo o mundo.
No caso das igrejas evangélicas, além das características individuais, há também orientações bíblicas, postulados doutrinários e princípios denominacionais, o que faz do estatuto social um documento específico para cada igreja. Assim como uma roupa sob medida, o estatuto deve ser uma peça jurídica artesanal. Além disso, é fundamental que a membresia participe de sua elaboração, devidamente assessorada por profissionais do Direito.
Conforme exposto, a organização religiosa só adquirirá personalidade jurídica com o assento, quando poderá exercer todos os direitos. Quaisquer alterações subseqüentes em seus atos constitutivos deverão ser averbadas no registro. Porém, se não há registro, é necessário o visto de um advogado, conforme estabelece a Lei nº 8 906/94, estatuto da OAB, artigo 1°, § 2°:
Os atos e contratos constitutivos de pessoas jurídicas, sob pena de nulidade, só podem ser admitidos a registro, nos órgãos competentes, quando visados por advogados.
Pelo atual Código Civil, se houver falha no ato constitutivo de pessoa jurídica de direito privado, pode-se desconstituí-la dentro do prazo decadencial de três anos, contado da publicação de sua inscrição no registro.
Direitos conferidos às associações religiosas devidamente registradas
Toda associação religiosa legalmente constituída tem os direitos de promover o ensino religioso em locais apropriados (inclusive mantendo escolas confessionais e faculdades teológicas); produzir e divulgar publicações religiosas; solicitar o dízimo dos membros (ou quaisquer outra espécie de doação voluntária) e até criar cemitérios se achar conveniente.
O ensino religioso deve constituir disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental (primeiro grau), mas se tratará de matéria de matrícula facultativa (CRFB art. 210, § 12). Vale dizer: é um direito do aluno religioso ter a possibilidade de matricular-se na disciplina, mas não lhe é dever fazê-lo. Nem é disciplina que demande provas e exames que importem reprovação ou aprovação para fins de promoção escolar. Note-se ainda que só as escolas públicas são obrigadas a manter a disciplina e apenas no ensino fundamental. As escolas privadas podem adotá-la ou não.
Casamento Religioso
O casamento válido juridicamente é o civil, mas o casamento religioso terá efeito civil, nos termos da lei (art. 226, §§ 12 e 22). De acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva, nas constituições anteriores que já estabeleciam as condições e requisitos da equiparação, trazendo, a esse propósito, norma de eficácia plena. Entretanto, a Constituição de 1988 preferiu tornar a norma de eficácia limitada, pois remete a regulamentação da validade civil do casamento para a lei.
O Ministro Religioso
Perante a lei, todo sacerdote (seja padre, rabino, pastor, pai-de-santo, etc.) é chamado de Ministro Religioso e todos gozam dos mesmos direitos. Cada organização religiosa tem o direito de preparar e nomear seus Ministros Religiosos de acordo com seus padrões e costumes. A nomeação deve constar em ata e ser registrada em cartório para efeitos legais. As organizações religiosas também podem resolver problemas de cunho jurídico-trabalhista desde que estes possam ser inseridos em classificação de cargos, sem, necessariamente, assumirem função de administração ou que lhes permitam tomar decisões separadamente.
O Ministro Religioso possui vários direitos, entre eles: ser inscrito como tal na previdência social (para fins de aposentadoria, benefícios, etc.); celebrar casamento e emitir o certificado de realização da cerimônia; ter livre acesso a hospitais, presídios e quaisquer outros locais de internação coletiva, visando dar assistência religiosa; ser preso em cela especial até o julgamento final do processo; ser sepultado no próprio templo religioso; ao Ministro Religioso estrangeiro é assegurado o direito de visto temporário.
Possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica
Como sociedade religiosa, como conceituado no Código Civil de 1916, os atos da diretoria que contrariam a lei não atingiam os bens particulares de seus integrantes. Mas hoje, como pessoa jurídica de direito privado, os bens particulares do(s) administrador(es) estão sujeitos a penhora, a exemplo do que ocorre na legislação tributária e no Código de Defesa do Consumidor; conforme norma do artigo 50 do Código Civil de 2003:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
O artigo 50 foi criado para limitar as igrejas que se utilizam suas prerrogativas de sociedade sem fins lucrativos para ingressar em negócios que direta ou indiretamente, possam enriquecer o patrimônio de seus representantes legais. Ou seja, o juiz poderá decidir que os bens do(s) administrador(es) poderão ser atingidos em caso de abuso ou de desvio de finalidade da igreja.
Possibilidade de suspensão das atividades da organização religiosa
Conforme entendimento doutrinário, existem apenas três hipóteses em que o culto religioso pode ser proibido: a) Quando não possuir caráter pacífico; b) se estiver sendo praticado um ato criminoso ou c) se houver uso de arma de fogo. Pode igualmente haver casos concretos onde as arestas da doutrina de uma organização religiosa chocam-se em antagonismo com a legislação. Nessas circunstâncias considera-se cabível a incidência das penalidades do Decreto-Lei nº. 9.085/1946.
Art. 5º A concessão do registro não obsta a propositura de ação de dissolução, fundada nos fatos referidos nos arts. 2º e 4º ou o procedimento referido no artigo seguinte.
Art. 6º As sociedades ou associações que houverem adquirido personalidade jurídica, mediante falsa declaração de seus fins, ou que, depois de registradas, passarem a exercer atividades das previstas no art. 2º, serão suspensas pelo Governo, por prazo não excedente de seis meses.
§ 1º No caso deste artigo, os representantes judiciais da União deverão propor, no Juízo competente para as causas em que esta for parte, a ação judicial de dissolução.
§ 2º Quando for decretada por exercer a pessoa jurídica atividade contrária à ordem pública ou à segurança nacional e a ação se propuser no prazo fixado neste artigo, a suspensão do funcionamento perdurará até que a sentença transite em julgado.
Tais dispositivos foram utilizados na ocasião em que o Poder Executivo expediu o Decreto n.º 27.395, publicado no Diário Oficial de 5 de novembro de 1949, suspendendo o funcionamento da Watchtower Bible and Tract Society em território brasileiro por seis meses. Ocorre que, em 20/11/1937, o engenheiro civil norte-americano Nathaniel Alston Yuille veio ao Brasil na qualidade de mandatário daquela organização religiosa e conseguiu registrar a tradução dos estatutos sob n.º 296, folha 67, do Livro 2 do Cartório do 2.º Ofício de Registro Especial de Títulos e Documentos. Mas como a doutrina pregada por seus Ministros Religiosos proibia o exercício de deveres cívicos como a prestação de serviço militar, a saudação da bandeira, o voto, etc., a incompatibilidade entre certos tópicos com a legislação vigente à época começou a gerar litígios judiciais.
Inconformada com esse ato do Poder Executivo, a organização religiosa impetrou a seu favor o Mandado de Segurança n.º 1.281, em 3 de março de 1950, o qual foi indeferido por decisão apoiada no voto do relator Ministro Luiz Gallotti. Destaco trecho de interesse:
No caso, está em curso a ação judicial de dissolução da impetrante onde lhe é facultada ampla defesa. O ato do Governo foi no sentido de suspender-lhe o funcionamento por seis meses conforme permite o Artigo 6 do Decreto-Lei n.º 9.085, de 25 de setembro de 1946. (…) Quanto à suspensão, desde que o governo acusa a impetrante de atividades ilícitas, nitidamente anárquicas, embora a impetrante o negue, surge aí controvérsia ou matéria de fato a excluir o cabimento do mandado. Na ação já em curso, é que há de caber a demonstração da impetrante no sentido de atacar os pressupostos de fato do ato impugnado. Indefiro a segurança.
Findo o referido processo, essa organização religiosa teve os direitos de liberdade de crença e culto reconhecidos e, conseqüentemente, todos os seus membros obtiveram a faculdade de propor “objeção de consciência” contra a prestação de serviço militar obrigatório, etc.
BREVE NOTA SOBRE A OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA
A objeção de consciência tem como requisitos a desobediência de norma jurídica ou autoridade pública, ou comportamento oposto ao imposto pela ordem social; Ser essa desobediência resultante de convicção do foro íntimo do objetor; E, em regra, a não utilização da violência para alcançar o fim determinado. (Somente são consideradas legítimas situações as quais, por motivos de foro íntimo). Por isso reflete o grau de consciência social em um Estado e de liberdade dos cidadãos, bem como a intensidade da intervenção estatal na esfera particular.
O argumento de objeção de consciência pode ser levantado pelos jovens religiosos desejosos de substituir o serviço militar obrigatório pela prestação de serviço alternativo (CRFB, art. 143, §§ 1º e 2º c/c Lei no 8.239/1991 e Portaria Nr 2.681 – COSEMI, de 28 de julho de 1992). Diz o art. 143 da CRFB de 1988:
Art. 143 – O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
§ 1º – Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.
§ 2º – As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.
Há calorosa discussão doutrinária em curso, girando em torno do art. 15 do Código Civil, o qual declara que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Por exemplo, Rogério Greco considera o art. 15 inconstitucional por entender que mesmo sendo a vítima maior e capaz, a recusa de tratamento necessário deverá ser encarado como uma tentativa de suicídio, podendo o médico intervir, inclusive sem o seu consentimento, uma vez que atuaria amparado pelo inciso I do § 3º do art. 146 do Código Penal, o qual declara não ser constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.
Alguns sustentam que, interpretado literalmente, esse artigo diz que apenas pessoas que correm risco de vida não podem ser forçadas a realizar determinado tratamento médico. Logo, se não correr risco de vida, o médico poderia constranger o paciente ao tratamento indicado. Com objetivo aperfeiçoar a lei ora em vigor, tramita na Câmara o Projeto de Lei 2945/08, do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), que da nova redação do artigo 15 do Código Civil:
Art. 15 – Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, ainda que com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Essa norma, incluída entre os direitos da personalidade, permite que a pessoa opte por recusar tratamento médico pelo fato de ferir princípios (em geral religiosos). Portanto o próprio agente, maior e capaz, pode alegar objeção de consciência caso prefira suportar as conseqüências da falta de tratamento médico a receber transfusão de sangue na crença de que deus o obrigará a pagar por todas as faltas do doador na vida futura. O que ninguém pode fazer, em nenhuma hipótese, sob o argumento de objeção de consciência, é exigir que não seja ministrado tratamento médico ao menor ou incapaz sob sua guarda, pois não pode haver conflito entre o direito do objetor e de terceiros.
Segundo o doutrinador lusitano Antônio Damasceno Correia, este é o caso do pai que não permite transfusão de sangue do filho, colocando em risco a vida deste, a solução para este caso foi tirar o poder paterno do pai para se salvar o filho, sendo incabível punir-se o pai, pois agiria contra a própria vida se estivesse em situação igual a que estava seu filho.
DISPOSITIVOS DO DIREITO PENAL BRASILEIRO DE PROTEÇÃO À RELIGIÃO E AO RELIGIOSO CONTRA INJÚRIA PRECONCEITUOSA, RACISMO, TORTUTA DISCRIMINATÓRIA, GENOCÍDIO E CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO
Breve histórico da evolução do Direito Penal brasileiro
Tanto a Constituição de 1824 (art. 179 § 5º) quanto o Código Criminal do Império (art. 9º, § 2º e 191) davam aos cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes o direito de questionar, fazendo análises razoáveis dos princípios e usos religiosos, e vedavam o ato de “perseguir por motivo de religião” ao ateu ou religioso de credo diverso do católico, sendo estipulada pena de um a três meses para este crime. Dessa forma foram revogados os artigos das Ordenações Filipinas, outorgadas em 1603, que criminalizavam a heresia (Livro V, Título I), o ateísmo (Livro V, Título II) e a feitiçaria (Livro V, Título III). Neste tópico, as palavras do douto Juiz Francisco Luiz, doutrinador à época, ainda permanecem perfeitamente adequadas ao tempo presente (linguagem atualizada por mim):
As nossas leis garantem a liberdade de crença e religião e até mesmo a de pensamento no sentido religioso; impõem respeito á todas as religiões. (…) Felizmente, já bem longe vão os tempos em que o fanatismo e a superstição, de mãos dadas com a ignorância e intolerância religiosa, deram lugar á matança de S. Bartolomeu e ás Vésperas Sicilianas; já longe vão os séculos dos autos de fé e dos tribunais do santo oficio. Convençam-se todos os fanáticos e supersticiosos de que as armas da razão e da lógica são mais poderosas do que as torturas, do que o martírio; convençam-se de que as crenças religiosas só podem ser ensinadas e abraçadas pela instrução e pela predica e jamais impostas pela força e pelo terror.
A fim de proteger os imigrantes britânicos de religião protestante contra o temor secular que a gente do povo tinha de certa lenda sobre seitas secretas que supostamente construíam réplicas idênticas de igrejas católicas para realizar sacrifícios de bebês humanos, o Don Pedro II fez incluir o seguinte trecho no art. XII do Tratado do Comércio e Navegação, de 19 de fevereiro de 1810:
O Príncipe Regente de Portugal declara e se obriga no seu próprio nome, e no de seus herdeiros e sucessores, que os vassalos de Sua Majestade Britânica, residentes nos seus territórios e domínios, não serão perturbados, inquietados, perseguidos, ou molestados por causa de sua religião, mas antes terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino (…) quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas igrejas e capelas (…). Contanto, porém, que as sobreditas igrejas e capelas sejam construídas de tal modo que externamente se assemelhem a casas de habitação; e também que o uso dos sinos não lhes seja permitido para o fim de anunciarem publicamente as horas do serviço divino.
Em verdade este artigo não causava nenhum prejuízo aos ingleses, pois os preceitos da religião protestante vedam o uso de sinos e decoração tanto interior quanto exterior dos templos à semelhança das igrejas católicas. Posteriormente o art. 5º da Constituição Política do Império, seguido pelo art. 976 do Código Criminal do Império, de 1830, estendeu a autorização a todas as demais organizações religiosas, desde que se abstivessem de erigir ofensivas imitações de templos católicos; caso contrário o Juiz de Paz poderia determinar que o culto fosse interrompido, os membros multados individualmente e o prédio demolido.
Apesar de tudo, a celebração de “culto de confissão religiosa” que não fosse autorizado permanecia proibida (art. 276) e obter tal autorização era tarefa especialmente custosa e trabalhosa. É fácil respeitar a estranheza do regramento alternativo quando este se encontra perdido num passado remoto ou isolado na savana africana. Mas quando a diversidade brota na cidade as minorias se vêem obrigadas a adequar seus costumes à legislação do Estado e cumprir sua parte no ficto contrato social, rodeadas de cidadãos que temem aquilo que não conhecem.
O primeiro Código Penal republicano, promulgado pelo Decreto no 847, de 11 de outubro de 1890, dedicou o capítulo III a supostos crimes contra a saúde pública; prevendo penas severas para quem “praticar o Espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para (…) para fascinar e subjugar a credulidade pública” (art. 157), bem como praticar o hipnotismo e homeopatia sem habilitação (art. 156). Foi, portanto, com justiça que o Reformador de 1890 destacou que essa pluralidade de núcleos dissonantes, que se encontram embaralhados no mesmoartigo, são tão diversos uns das outros que seu agrupamento traz à memória a frase dos velhos filósofos: ignoratio elenchi.
Já invadindo a segunda metade do século XX, a Lei do Estado da Bahia nº 3.097/1972, que esteve vigente até 1976, obrigava os templos baianos das religiões de matriz africana a se cadastrarem na Delegacia de Polícia mais próxima. A Lei do Estado da Paraíba nº 3445/1966 obrigava ministros religiosos das mesas religiões a se submeterem a exame de sanidade mental, por meio de laudo psiquiátrico. O Código Penal vigente, de 1940, mantém em seu bojo os delitos de charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284). E desgraçadamente ainda há juristas e doutrinadores de peso, como Rogério Greco e Guilherme Nucci, que consideram cultos que pregam “o morticínio de animais” como abuso atentatório à ordem pública e aos bons costumes, que devem ser evitados pelo Estado.
Injúria preconceituosa
Conforme a classificação doutrinária de Rogério Greco, a injúria é crime comum com relação aos sujeitos ativo e passivo; doloso; formal; comissivo; instantâneo; unissubsistente ou plurissubisistente (dependendo do meio utilizado na prática do delito); monossubjetivo; e, em regra, transeunte. A injúria simples visa principalmente causar dano moral, embora a injúria real possa englobar violência ou vias de fato consideradas aviltantes (CP, art. 140, § 2º).
O bem juridicamente protegido pelo tipo que prevê o delito de injúria é a honra subjetiva, o qual, segundo Muñoz Conde, citado por Greco, se traduz “na consciência e no sentimento que tem a pessoa de sua própria valia e prestígio, quer dizer, a auto-estima”. O próprio art. 140 do Código Penal conceitua a injúria como ato de ofender a dignidade ou o decoro de alguém, sendo que o § 3º (inserido pela Lei nº 9.459/1997, com nova redação determinada pela Lei nº 10.741/2003) eleva a pena de detenção de um a seis meses ou multa para reclusão de um a três anos e multa se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem.
Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena -detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
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§ 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena -reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
De todas as infrações penais tipificadas no Código Penal que visam proteger a honra, a injúria, na sua modalidade fundamental, é a considerada menos grave. Entretanto, ela se transforma na mais grave quando consiste na utilização de elementos referidos do § 3º, sendo então denominada pela doutrina de “injúria preconceituosa”. A pena a ela cominada se compara àquela prevista para o delito de homicídio culposo, sendo, inclusive, mais severa, pois que ao homicídio culposo se comina uma pena de detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e na injúria preconceituosa uma pena de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, sendo discutida sua proporcionalidade comparativamente às demais infrações penais.
Apesar da maior reprovabilidade do comportamento que se subsume ao conceito de injúria preconceituosa, vale o registro, aqui, da desproporcionalidade das penas a ela cominadas, que foram sensivelmente aumentadas por intermédio da Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, se comparadas àquelas previstas para o delito de homicídio culposo, ou mesmo para o crime de auto-aborto, tipificado no art. 124 do Código Penal.
A despeito do rigor sancionatório, a Lei 9.459/1997 que introduziu a injúria por preconceito no ordenamento jurídico brasileiro, manteve a ação de exclusiva iniciativa privada. Dessa forma o legislador criminalizou a conduta, mas não impôs a obrigatoriedade da ação penal dando ao ofendido a oportunidade de perdoar o ofensor ou optar por formas menos radicais de composição de conflitos.
Racismo motivado por preconceito religioso
Como conseqüência das felizes mudanças sócio-culturais que galgavam o mundo, a segunda metade do século XX conheceu uma superabundância de tipos penais ligados a atos de racismo. Cedo a Lei nº 1.390/1951 (Lei Afonso Arinos) incluiu a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor entre as contravenções penais; sendo posteriormente revogada pela Lei Nº 7.437/1985, apelidada de Lei Cao, que incluiu a prática de atos resultantes de preconceito de sexo ou estado civil na antiga lista de contravenções. Neste ínterim o art. 1° da Lei Nº 2.889/1956 conceituou o crime de genocídio, cometido com a intenção de destruir no todo ou em parte grupo religioso, racial, étnico ou nacional.
A seguir veio a Lei Nº 7.716/1989 (alterada pelas Leis nº 8.081/1990 e 9.459/1997) estipulando penas diferenciadas para várias situações de ocorrência na vida quotidiana sofridas pela vítima de racismo, tais como negar-lhes emprego em empresa privada, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino, etc. Nesta vemos menção expressa ao preconceito contra a religiosidade alheia:
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
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Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
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§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fim de divulgação do nazismo.
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena reclusão de dois a cinco anos e multa.
Não se deve confundir a injúria preconceituosa com o crime de racismo. Durante a prática do delito, o autor da injúria preconceituosa utiliza elementos ligados a religião, raça, cor, etnia, etc. Mas a finalidade do agente, com a utilização desses meios, é atingir a honra subjetiva da vítima, bem juridicamente protegido pelo delito em questão. Já no crime de racismo – resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional –, são proibidos comportamentos discriminatórios em regra mais graves, a exemplo do que acontece quando alguém recusa, nega ou impede a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau, tendo o legislador cominado uma pena de reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos para essa infração penal, tipificada no art. 6º da Lei nº 7.716/1989.
Ademais, quando a Constituição Federal assevera que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (CRFB, art. 5º, XLII) não está se referindo à injúria preconceituosa, mas sim às infrações penais catalogadas pela referida Lei nº 7.716/1989.
Abuso de autoridade
O abuso de autoridade é crime de mão própria regulado por lei especial, a saber, a Lei nº 4.898/1965, que define “autoridade” como aquele que exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração (art. 5º). Em casos de abuso de autoridade a tentativa é punida com a mesma pena aplicada ao ato consumado.
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
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d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;
O Regimento Interno do Senado Federal tomou precauções extras contra atos arbitrários de senadores:
Ao Senador é vedado (…) fazer pronunciamentos que envolvam ofensas às instituições nacionais, propaganda de guerra, de subversão da ordem pública ou social, de preconceito de raça, de religião ou de classe, configurem crimes contra a honra ou contenham incitamento à prática de crimes de qualquer natureza (art. 21, a).
O abuso de autoridade sujeita o seu autor à sanção administrativa civil e penal (art. 6º). Guilherme Nucci lembra que há tipo penal similar prevendo punição a quem atenta prevendo contra o sentimento religioso na lei comum (art. 208, CP). Segundo este autor, a autoridade deve abster-se de coibir manifestações pacíficas de pensamento e exercícios de crença sob pena de figurar o delito previsto no art. 3º, d, da Lei nº 4.898/1965. “É evidente, no entanto, que abusos do indivíduo (ou de um grupo qualquer) devem ser evitados pelo Estado”, pois não há direito absoluto. Exemplo disso seria uma organização religiosa que pregasse o sacrifício humano durante seus cultos.
Tortura discriminatória e genocídio
O art. 1º da Lei nº 9.455/1997 define o crime de tortura, sendo que o seu § 3º comina uma pena de reclusão, que varia de 8 (oito) e 16 (dezesseis) anos, se da prática da tortura sobrevier a morte da vítima. A tortura também se encontra no rol dos meios considerados cruéis, que têm por finalidade qualificar o homicídio (CP, § 2º, III). Porém, a tortura enquanto qualificadora do homicídio não se confunde com aquela prevista pela Lei nº 9.455/1997. A diferença entre uma e outra reside no fato de que a tortura, no art. 121, é tão-somente um meio para o cometimento do homicídio. Já na Lei nº 9.455/1997 a tortura é um fim em si mesmo. Ademais, a tortura discriminatória é equiparada a crime hediondo (CRFB, art. 5º, XLIII) e constitui uma das modalidades previstas pela Lei Nº 9.455/1997:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
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c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
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Pena – reclusão, de dois a oito anos.
Se vier a ocorrer o resultado morte, este somente poderá qualificar a tortura a título de culpa. Rogério Grecco explica:
A tortura qualificada pelo resultado morte é um delito eminentemente preterdoloso. O agente não pode, dessa forma, para que se aplique a lei de tortura, pretender a morte do agente, pois, caso contrário, responderá pelo crime de homicídio tipificado pelo Código Penal.
Concluindo o raciocínio, no art. 121, a tortura é um meio cruel, utilizado pelo agente na prática do homicídio; na Lei nº 9.455/1997, ela é um fim em si mesmo e, caso ocorra a morte da vítima, terá o condão de qualificar o delito, que possui o status de crime preterdoloso.
Mesmo nos casos em que o sofrimento é apenas “mental”, pertencente à esfera puramente subjetiva, a tortura discriminatória não se confunde com injúria preconceituosa ou racismo de idêntica motivação, necessitando haver “violência ou grave ameaça” para constituir o tipo. O crime de tortura também não é próprio, podendo ser cometido por qualquer pessoa e não apenas por policiais civis ou militares. Essa opção do legislador não retrata fielmente a Convenção Internacional assinada pelo Brasil, na qual o país se compromete a combater a tortura cometida “por agentes públicos”. A lei, portanto, é mais abrangente que a convenção. O Código Penal prevê, em seu art. 1º, § 4º, I, que o crime terá sua pena aumentada de um sexto a um terço, se o delito for cometido por agente público. Segundo obra de Victor Eduardo Rios Gonçalves,
Na tortura-discrimitatória (alínea c), a lei pune o emprego da violência ou grave ameaça motivadas por discriminação racial ou religiosa. É possível que, nesses casos, além de responder pela tortura, seja o agente responsabilizado também pelo crime de racismo (art. 20 da Lei n. 7.716/890).
Note que na hipótese da alínea “c” do art. 1º da Lei Nº 9.455/1997 não há intenção de destruir um grupo religioso no todo ou em parte por intermédio do aviltamento do indivíduo, bastando que o constrangimento ilegal seja feito em razão de discriminação. É nesse ponto – e no fato de não necessitar que o crime seja cometido contra mais de um sujeito passivo – que a tortura se diferencia do crime de genocídio motivado por preconceito religioso, conceituado pelo art. 1° da Lei Nº 2.889/1956.
Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo;
Será punido: com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a; com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b; com as penas do art. 270, no caso da letra c; com as penas do art. 125, no caso da letra d; com as penas do art. 148, no caso da letra e.
Considera-se hediondo o crime de genocídio tentado ou consumado (Lei n° 8.072/1990, art. 1º, parágrafo único). Ao contrário do que pensa o senso comum, o genocídio não é crime de mão própria cuja execução esteja restrita aos governantes ou outros funcionários públicos. A Resolução da Assembleia Geral da ONU de 11 de Dezembro de 1946 definiu “genocídio” como a recusa do direito à existência de inteiros grupos humanos, declarando como um delito do direito dos povos. Na Convenção aprovada pela mesma entidade em 9 de Dezembro de 1948, desenvolve-se a definição, abrangendo-se vários atos cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional, étnica, racial ou religioso.
Ultraje a Culto e Impedimento ou Perturbação de Ato a Ele Relativo
A “blasfêmia de Deus ou dos Santos” foi um dos crimes tipificados nas Ordenações Filipinas (Livro V, Título II) que migrou para o Código Criminal do Império (art. 277) e cuja essência sobrevive até os dias de hoje na forma do art. 208 do atual Código Penal; que trata dos crimes contra o sentimento religioso:
Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.
Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
A organização religiosa, enquanto personalidade jurídica, é passível de sofrer dano moral, podendo pleitear indenização civil em quaisquer circunstâncias que configurem tal dano. Contudo, é uma lástima que o atual Código Penal tenha absorvido a ininteligível proibição de publicar desenhos obscenos, mas não a norma que transformava em contravenção o ato de “abusar ou zombar de qualquer culto” por meio de discursos proferidos em local publico “ou na ocasião, e lugar, em que o culto se prestar” (Código Criminal do Império, art. 277). Com isso desapareceu a possibilidade de promover ação criminal contra o Ministro Religioso que, dentro de seu próprio templo, ataca ferozmente o culto alheio.
O delito de ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo, previsto no art. 208 do Código Penal, engloba vários comportamentos possíveis. Primeiramente proíbe-se a conduta de escarnecer de alguém por motivo de crença ou função religiosa; ato que difere da injúria preconceituosa pela exigência de ser este realizado em público, podendo a injúria ocorrer em local privado, sem espectadores. Também, consuma-se o delito no momento em que o agente escarnece, publicamente, de alguém, por motivo de crença ou função religiosa, não importando o fato de ter a vítima se sentido, ou não, menosprezada, ridicularizada em virtude do comportamento praticado pelo sujeito ativo.
O verbo escarnecer é utilizado pelo texto legal no sentido de zombar, troçar, ridicularizar, humilhar, etc. O agente deverá atuar por motivo de “crença” ou “função religiosa” da vítima. Rogério Greco define crença como “fé religiosa”. Guilherme Nucci, ao contrário, conceitua crença como um anexo mais sutil, uma “convicção íntima à fé religiosa”.
Vale dizer, cada um pode acreditar em qualquer tipo de força sobrenatural, divindade, Deus (ou deuses), ou não acreditar em nada disso. Para melhor ilustrar tais conceitos, vale lembrar as palavras do antropólogo anglo-americano Victor Turner (1920-1983) sobre o pensamento religioso:
Em matéria de religião, assim como de arte, não há povos “mais simples”, há somente povos com tecnologias mais simples do que as nossas. A vida “imaginativa” e “emocional” do homem é sempre, e em qualquer parte do mundo, rica e complexa. (…) Também não é inteiramente correto falar da “estrutura de uma mentalidade diferente da nossa”. Não se trata de estruturas cognoscitivas diferentes, mas de uma idêntica estrutura cognoscitiva articulando experiências culturais muito diversas.
A seguir, função religiosa é definida como sendo todo ato praticado pelo Ministro Religioso (padre, rabino, pastor, pai-de-santo, etc.) desde diga respeito “ao ministério exercido pela vítima em sua crença”. A norma contida no tipo do art. 208 do Código Penal responsabiliza criminalmente, ainda, o agente que vier impedir ou perturbar o ato cerimonial ou votivo. Nélson Hungria comenta:
A ação pode consistir em impedir ou em perturbar o ato de culto religioso. Impedir é evitar que comece ou que prossiga o ato; perturbar é desnormalizá-lo, tumultuá-lo, quebrar-lhe a regularidade. Não basta, neste último caso, um simples desvio de atenção ou recolhimento dos fiéis: é necessária uma alteração material, sensível, do curso regular do ato de culto. O meio executivo, em qualquer caso, é onímodo: violências, vias de fato, ameaças, altos brados, vaias, vozes propositadamente dissonantes com as rezas ou cantos religiosos, ruídos de matracas, bater os pés, disparos de tiros, explosões, emissão de gases tóxicos ou fumaça incomodativa, colocação de obstáculos à entrada do templo.
Rogério Greco complementa:
Hoje em dia, dependendo do dolo do agente, poderia ser considerada como típica a conduta daquele que, querendo perturbar o normal andamento da cerimônia ou culto religioso, utilizasse o telefone celular no interior de um templo religioso, comunicando-se, em voz alta, com seu interlocutor.
A cerimônia consiste num ato complexo normalmente orquestrado pelo(s) Ministro(s) Religioso(s), a exemplo do que acontece com a missa dominical, o casamento, o batismo, B’nai Mitzvá, festa em honra aos Orixás, etc.; a prática de culto religioso é utilizada para identificar o ato regular de adoração como a reza, a distribuição de periódicos no caso das Testemunhas de Jeová – cujo trabalho voluntário é tido por ato de fé –, a confecção de despachos e serviços, etc.
A última modalidade de conduta proibida pelo tipo penal do art. 208 do diploma repressivo diz respeito ao ato de vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. (Chutar estátua de santo em programa de televisão, tirar foto para revista pornográfica usando terço). Destaca Guilherme Nucci:
O tipo penal exige que o ultraje seja feito em local público ou de acesso público (como o realizado através dos meios de comunicação), não se configurando o delito quando o vilipêndio é realizado em lugar privado, sem divulgação. O objetivo é impedir que várias pessoas tomem conhecimento das manifestações desairosas a respeito de determinado ato ou objeto de culto religioso, o que pode ferir a liberdade de culto e crença.
Enfim, consuma-se o delito de acordo com as lições de Noronha:
Com o vilipêndio realizado. O delito tanto pode ser material como de mera conduta ou simples atividade. Na primeira hipótese, temos os atos de destruir imagem, atirar lixo sobre o objeto de culto, etc. Na segunda, v.g., a injúria verbal, como se alguém, à hora em que os fiéis estiverem reunidos, proferir impropério contra o ato que se realiza.
Segundo Rogério Greco, as duas últimas hipóteses (atentatórias a direito difuso) pode ser consideradas características do chamado crime vago, que atinge um número indeterminado de pessoas. Em todo caso, trata-se de um tipo misto cumulativo no qual o agente pode ser responsabilizado, em concurso de crimes, na hipótese de praticar mais de um comportamento previsto pelo tipo penal em estudo. O tipo penal do art. 208 é crime comum com relação ao sujeito ativo e próprio no que diz respeito ao sujeito passivo. Não admite a modalidade culposa. No entanto, será possível a prática do delito via omissão imprópria, na hipótese em que o agente, gozando do status de garantidor, dolosamente, não impedir que o sujeito leve a efeito qualquer dos comportamentos narrados pela figura típica.
Causa de aumento de pena:
O parágrafo único do art. 208 do Código Penal assevera que, se houver o emprego de violência, a pena será aumentada em um terço, sem prejuízo da correspondente à violência. Nesta hipótese a violência referida pode ser praticada contra pessoa ou coisa. Sempre responderá pelo delito majorado o agente que, mediante violência contra a coisa, destruir um objeto de culto religioso. Porém, afim de evitar o bis in idem, no caso daquele que agride a vítima com a finalidade de escarnecê-la por motivo de crença ou função religiosa, ou a violência servirá para aumentar a pena do delito previsto pelo art. 208 do Código Penal, ou será punida isoladamente, como um delito de lesões corporais (art. 129).
PONDERAÇÃO NA COLISÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS RELIGIOSAS DE MATRIZ AFRICANA E O DA PROTEÇÃO AOS ANIMAIS
A Constituição Federal de 1988 deu ao Poder Público a incumbência de proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII). Em 1998 sobreveio grande mudança na proteção penal do meio ambiente, com a Lei nº 9.605/1998, que estipula pena de três meses a um ano de detenção, aumentada de um sexto a um terço, para quem comete maus-tratos contra animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos dos quais resulte a morte do animal (art. 32, caput e § 2º).
Desde então tem sido motivo de polêmica a questão sobre se a lei de proteção ambiental coíbe ou não o livre exercício de cultos afro-brasileiros. (A antropóloga Yvonne Maggie dissertou longamente, em sua tese de doutorado, sobre vinte e quatro processos contra pais e mães de santos datados de 1890 a 1940, originários do Rio de Janeiro; época em que a Lei nº 173 de 10 de setembro de 1893 permitia a qualquer pessoa do povo “denunciar instituições com fins religiosos”. Apesar das severas acusações de curandeirismo e estelionato, em todos os casos concretos que puderam ser localizados ninguém jamais logrou comparar o sacrifício animal em contexto ritual ao ilícito de maus tratos, de forma que tal equiparação é tendência recente e retrógrada).
De fato, o único dispositivo da legislação brasileira que faz uma referência vaga e obscura a certo contexto de crendice popular dentre as condutas conceituadas como “maus tratos” é o inciso XXX do art. 3º do Decreto 4.645/1934, de Junho de 1934, do Presidente Getúlio Vargas, quando proíbe a exibição de animais “para tirar sortes”. O mesmo decreto estipula que a palavra “animal”, para efeitos legais, “compreende todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos” (art 17º); não sendo considerada ilícita a prática de tiro ao alvo contra pombos (inciso XXVIII do art. 3º).
Art 3º – Consideram-se maus tratos:
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VI – não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não;
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XXX – arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculo, exibi-los, para tirar sortes ou realizar acrobacias;
Consta igualmente na Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembléia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978, que “nenhum animal será submetido a maus tratos e a atos cruéis”, mas o abatimento é permitido “se a morte de um animal é necessária” (art 3º, alíneas “a” e “b”). Ou seja, não é ilícito dar morte a animal não destinado a consumo humano desde que seu extermínio seja necessário. Nesse quesito, vale citar as palavras no voto do desembargador relator Araken de Assis, sobre a ADIn nº 70010129690, proposta pelo Procurador-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul.
Não vejo como presumir que a morte de um animal, a exemplo de um galo num culto religioso, seja uma ‘crueldade’ diferente daquela praticada (e louvada pelas autoridades econômicas) pelos matadouros de aves. Existindo algum excesso eventual, talvez se configure, nas peculiaridades do caso concreto, a já mencionada contravenção; porém, em tese nenhuma norma de ordem pública, ou outro direito fundamental, restringe a prática explicitada no texto controvertido.
Para dar fluência ao livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana, a Câmara dos Deputados do Rio Grande do Sul aprovou o Projeto de Lei n.º 282/2003, que acrescentou o parágrafo único ao artigo 2º da Lei 11.915/2003 (Código Estadual de Proteção aos Animais):
Art. 2º – É vedado:
I – ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
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IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
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Parágrafo único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.
Vale citar a justificativa do Projeto de Lei n.º 282/2003 de autoria do Deputado Edson Portilho (PT), o qual pronunciou-se da seguinte forma:
Diante dos direitos e deveres individuais e coletivos garantidos na Constituição Federal no art. 5º, especificamente no Inciso VI (…) ou do Código Penal sobre os crimes contra o sentimento religioso em seu art. 208 (…) faz-se necessária a apresentação deste projeto de lei que define, em parágrafo único, a garantia constitucional que vem sendo violada por interpretações dúbias e inadequadas da Lei nº 11.915, de 21 de maio de 2003 que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais. Face a essa dubiedade de interpretação, os Templos Religiosos de matriz africana vêm sendo interpelados e autuados sob influência e manifestação de setores da sociedade civil que usam indevidamente esta lei para denunciar ao poder público práticas que, no seu ponto de vista, maltratam os animais.
O governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto, sancionou com ressalvas o referido projeto de lei; estabelecendo em decreto que somente animais destinados à alimentação humana poderiam ser sacrificados, ficando proibidos rituais com requintes de crueldade. Posteriormente o dispositivo recém incluso foi objeto da ADIn nº 70010129690 cuja ação terminou por ser julgada improcedente, proporcionando a geração de preciosa jurisprudência… Votou pela procedência parcial da ação a Desembargadora Maria Berenice Dias, propondo a retirada da expressão final do parágrafo, que faz referência à matriz africana, argumentando que outras religiões também têm como prática o sacrifício de animais.
Conforme exposto, o relator Araken de Assis se manifestou pela improcedência da ação, sendo acompanhado integralmente por outros 17 Desembargadores. Araken frisou que homens e mulheres diariamente matam número incalculável de animais para comê-los, variando de acordo com a cultura de cada povo o caráter doméstico do animal ou seu uso para fins alimentares. Exemplificando, citou a figura do cachorro, que, dependendo dos costumes, é considerado animal de estimação ou fina iguaria. Também citou como precedente, no sentido de consagrar a liberdade de culto, caso julgado pela Suprema Corte dos EUA no qual, apesar de leis locais proibirem expressamente o sacrifício de animais, aquele Tribunal entendeu que deveria ser respeitada a tolerância religiosa.
Concluímos que se por um lado há a obrigação de se fazer cumprir às normas de proteção aos animais, por outro não podemos deixar de notar que a liberdade de culto é direito constitucionalmente assegurado, inclusive tido por fundamental. Diante da paixão que se pode instalar pela polêmica, o intérprete da norma têm o dever de manter-se focado no ordenamento jurídico positivo.
EXIGÊNCIA DE ISOLAMENTO ACÚSTICO EM TEMPLOS EM RESPEITO AO DIREITO DE VIZINHANÇA
O finado doutrinador Celso Bastos era de opinião que a religião não pode se contentar com a sua dimensão espiritual; como acontece com as demais liberdades de pensamento. “Ela vai procurar necessariamente uma externação, que diga-se de passagem, demanda um aparato, um ritual, uma solenidade mesmo, que a manifestação do pensamento não requer necessariamente”. Duas das formas comuns de exteriorização são a pregação ao público – atualmente até com uso de aparelhagem de som – e a música gospel.
A noção de que o poder do som e dos mantras, especialmente a palavra entoada, pode influir no curso do destino humano, remonta às mais antigas formas sobreviventes da música indiana, onde o poder das palavras enunciadas com a entonação correta determina a eficiência dos ritos. Aristóteles escreveu que emoções de toda espécie são produzidas pela melodia e pelo ritmo, tendo a música o poder de auxiliar na formação do caráter. Confúcio acreditava que todas as civilizações se afeiçoam e moldam de acordo com o tipo de música que nelas se executa. Se a música de uma civilização era predominantemente melancólica, suave, o próprio povo seria cordado. Sendo vigorosa e militar os países vizinhos deveriam acautelar-se com a possibilidade de guerra. O problema é que, da pregação ao coral, do órgão de tubo ao batuque, o ato de remeter preces ao céu muitas vezes significou sibilar tão alto que, de lá, deus pudesse nos ouvir; sendo fato notório que qualquer manifestação de religiosidade que implica em ruído pode ou não ser apreciada pela vizinhança.
Por este motivo, mesmo em acórdãos mais antigos, como o nº 2.493 de 1º de fevereiro de 1917 (Itapira, SP), afirma-se que “a liberdade de culto garantida pela Constituição está sujeita a algumas limitações impostas pelas necessidades de ordem pública”. Dentre as contravenções previstas no Decreto-Lei nº 3.688/41 se encontra a “perturbação do trabalho ou sossego alheios” cujo sujeito ativo pode ser qualquer pessoa física ou jurídica, incluindo as associações religiosas.
Art. 42 – Perturbar alguém, o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
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Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa.
Em jurisprudência publicada pela Revista dos Tribunais, nº 732, de outubro de 1996 – sobre caso concreto onde julgou-se admissível a notificação pelo município à igreja a fim de fazer cessar a emissão de “som abusivo” dos instrumentos utilizados em culto religioso, sob pena de cassação do alvará de funcionamento – vê-se a seguinte ementa:
O município, no uso do poder de polícia que lhe é peculiar, pode a qualquer momento, sem interferir no exercício do culto religioso, notificar as Igrejas para moderar a utilização dos seus instrumentos de som, sob pena de cassação do alvará de funcionamento.
Assim versa outro acórdão de data anterior:
Culto religioso – Liberdade de exercício – artigo 5º, VI da CF – Direito que não autoriza o abuso na utilização de instrumentos sonoros a desrespeitar o repouso da coletividade e normas municipais -Legalidade do fechamento do templo pela autoridade municipal ante o desatendimento pela entidade de prévia notificação para regularização da situação – Direito líquido e certo inexistente – Mandado de segurança denegado.
Destaco trecho do acórdão redigido pelo relator Cláudio Augusto Rosa Lopes Nunes, sobre a Apelação Cível julgada pela Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual determinou-se a aplicação do Código Municipal de Posturas contra o “uso nocivo da propriedade” devido à produção de “ruídos” reconhecidos como poluição sonora.
Direito de vizinhança – Terreiro de Umbanda. Culto religioso e perturbação do sossego. Prédios excessivamente próximos, a impor ao proprietário daquele onde realizados rituais marcados por acompanhamento de tambor e outros instrumentos musicais, a realização de obras de isolamento acústico. (14 FLS).
Segundo Victor Gonçalves, não basta que uma única pessoa se sinta atingida pela perturbação nem tampouco se deve considerar o grau de suscetibilidade do incomodado. É necessário utilizar o critério do homem médio, sendo exigível que um número considerável de pessoas sejam incomodadas, pois o caput do art. 42 do Decreto-Lei nº 3.688/41 utiliza a palavra “alheios” no plural. Para que exista a contravenção é preciso que o fato ocorra em desacordo com as prescrições legais. Trata-se, assim, de norma penal em branco, que exige complementação.
É preciso analisar as posturas e regulamentos municipais na intenção de determinar qual o limite de decibéis admitido para a área e horário do dia, etc. Caso o estabelecimento esteja atuando dentro das normas ditadas não haverá contravenção mesmo que esteja incomodando pessoas. A jurisprudência também tem exigido habitualidade na configuração da hipótese prevista nesse dispositivo. No mais, em matéria de defesa, Milton Ribeiro é de opinião que as organizações religiosas possuidoras de poucos recursos deveriam ser tratadas com clemência, em respeito ao princípio da isonomia, posto que a imposição de realizar de obras de isolamento acústico, que exigem somas vultuosas, impediria permanentemente o exercício da liberdade de culto. Segundo este autor, “os meios oficiais estatais” utilizam “argumentos enviesados”, a exemplo da defesa urbanística contra a poluição sonora, para fazer uma distinção entre credos que nem mais a teoria e a norma jurídica admitiam. Portanto, por meio dos dispositivos constitucionais já amplamente debatidos percebe-se a garantia explícita que dá o legislador brasileiro às questões da liberdade de crença e de culto, “embora a expressão na forma da lei possa ser reveladora do modo pelo qual as brechas jurídicas podem ser criadas, a fim de empreender, nas rebarbas da Constituição, o contrário da sua estipulação”.
CONCLUSÃO
Pesquisamos os artigos que regulamentam as pessoas jurídicas de direito privado visando detectar de que forma a legislação brasileira interfere na rotina de organizações religiosas bem como dos religiosos em geral, sujeitos de direitos e deveres. O que assegura a Constituição Federal não é apenas a liberdade à religião, mas também a exteriorização do pensamento religioso, desde que dentro dos padrões de aceitabilidade dos moldes legais. Em suma, se quizermos estabelecer o vampirismo como religião precisaremos de registro legal, coro mínimo de participantes, sede fixa, um estatuto da “ordem”, etc.
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Um guia para a luta secularista nacional por Shirlei Massapust
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