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Vampirismo e Licantropia

Madhēbāh

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Shirlei Massapust

Enquanto eu realizava pesquisa para escrever o artigo O Funeral de Hylyl Ben Šaḥar percebi que algumas palavras correntes em 150 a.C. caíram em desuso mesmo entre os falantes de hebraico e se tornaram de difícil tradução para o homem medieval. O enigma mais complicado era talvez o estrangeirismo madhēbāh em Isaías 14:4b.

Depois que o Rei Madhu (मधु) governou Yadava por volta do ano 1600 a.C., a dinastia dos seus descendentes foi chamada Mấdava (माध्व). (Harivaṃśa 95.5242-8; Xrề∙cűrma∙marrá∙purấrna 1.23.72.). Uma bebida ritual indo-ariana, chamada somyám mádhu (सोम्यम् मधु), foi nomeada em sua honra (RV III 53.10cd)[1]. Sendo a beberagem produzida com Madhuca longifólia, a própria árvore ficou conhecida como mādhaba (মাধব) no idioma bengali e mādhava (माध्व) em sânscrito.

Sabemos que a Madhuca longifolia também era cultivada no Egito e talvez numa cidadela rural não muito distante de Hazor, chamada Mādabā (מהדבא), mencionada na oitava linha da Estela de Mesha. Tenho boas razões para crer que os israelitas usavam seu óleo como inseticida para preservar objetos de madeira, como alguns fazendeiros ainda fazem hoje. Esse é o מדהבה ou מרהבה de 1Q Isaa (Col. XII, linha 7) e 1Q Hª (3.25 e 12.18), atualmente pronunciado como madhēbāh.

Contudo o exegeta do período pós testamentário ignorava tal informação, fosse ele judeu ou cristão. Depois que os manuscritos das grutas de Ḫirbet Qumrân foram postos em jarros onde permaneceram ocultos até 1947, a palavra madhēbāh nas cópias de Isaías 14:4b foi considerada um hápax legomenon que não poderia ser traduzido, mas sim reinterpretado conforme um contexto ideologicamente deturpado por puro ódio.

Na tradução para latim do Antigo Testamento, concluída por São Jerônimo, c. 406, os três documentos compilados em Isaías 14:1-23 foram confundidos como uma só parábola contra o Rei da Babilônia, entendido como terrível personagem antagonista. Nesta versão de Isaías 14:4b lemos: “Quomodo cessavit exactor; quievit tributum?[2] E foi assim, sem base etimológica, que madhēbāh virou cobrança de tributos.[3]

Posteriormente Ibn Erza (1089-1167), um importante escritor judeu espanhol, endossou a confusão do trio de documentos e a interpretação de que o profeta avilta Babilônia, porque anteriormente esta nação subjugaria a todas as outras, sobretudo Israel. Segundo ele, a raiz da palavra מדהבה é דהב, a forma aramaica e árabe de זהב, “ouro”. Sendo assim Michael Friedländer (1833-1910), ao traduzir Ibn Erza, opinou que מדהבה é o particípio feminino Hipil de דהב no sentido de “a [cidade] exatora de ouro”.[4] Segundo Rabbi A. J. Rosenberg, em 1498[5] o filósofo judeu lisbonense Abarbanel (1437-1508) relatou que exegetas cristãos seguiram Ibn Erza ao traduzir Isaías 14:4b.

Ele sugere ainda que o dominador é Nabucodonosor, e madhēbāh é o reino dourado da Babilônia, dada esta denominação por causa de sua fabulosa riqueza. Redak combina ambas as interpretações[6]: Babilônia se tornou o reino de ouro porque exigia ouro de todas as nações.[7]

No século XVI a bíblia Reina-Valera[8] já celebrava a queda de “Lucero, hijo de la mañana” (Isaías 14:12) e do seu reino, “la ciudad codiciosa del oro!” (Isaías 14:4b). Era a boa e velha Babilônia, porém na boca do teólogo mais parecia o mitológico El dorado cobiçado pelos mais loucos colonizadores de terras sul-americanas. A lenda falava de uma cidade que foi toda feita de ouro maciço e puro, além de ter muitos outros tesouros. Subsequentemente, em 1611 a bíblia inglesa KJV admitiria a existência da golden city (Isaías 14:4b), uma incrível metrópole de metal ou madeira folheada a ouro.

Isso faz par com outra ofensa gratuita. No manuscrito 1Q Isaª a profissão do personagem protagonista é indicada por uma palavra composta pelas letras shin gimel vav nun (נוגש) e pode ser elegantemente traduzida como “supervisor de tarefas” (dentro do contexto, diz respeito à coleta de madeira para marcenaria ou carpintaria). No texto hebraico de Isaías 14:4a utilizado atualmente nas sinagogas esta palavra aparece diferente, composta pelas letras shin gimel nun (נגש), mas ainda pode apresentar o mesmo sentido. Todavia os tradutores geralmente preferem xingamentos, como se o homem fosse não um orientador bem humorado, mas um opressor terrível.

Imagino que a ojeriza venha do sincretismo judaico-cristão, pois os evangelistas expressavam preconceito contra ricos. Para eles “é mais fácil passar um barbante pelo buraco duma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19:24); “o príncipe deste mundo já está julgado e condenado” (João 16:11).

Enfim, é necessário estar bastante deslumbrado para atribuir importância mística à relação de cacofonia existente entre o nāgaś (נגש) de Isaías 14:4 e o nāḥāš (נחש) de Gênese 3:1, pois na mitologia oriental nāga (नाग) é um ofídio antropomorfo. A Tribo de Dan é nāḥāš (נחש) somente em metáfora, conforme lemos em Gênese 49:17. Então, embora Hylyl Ben Šaḥar transitasse em Tel Dan, é certo que não fosse um reptiliano.

Num belo dia os especialistas entenderam que qualquer menção a tesouros incomensuráveis era demais. Contudo continuaram sem saber o que é madhēbāh. A descoberta dos manuscritos do Mar Morto poderia ter preenchido o vazio de uma mente aberta, porém a oportunidade fornecida pela disponibilidade de menções suplementares acabou estraçalhada contra uma parede ideológica de hipóteses ad hoc. Afinal, madhēbāh tinha que ser isto ou aquilo, nunca aquilo outro.

Embora a caligrafia do escriba de 1Q Isaª não sugira distinções notórias entre consoantes extremamente parecidas, Millar Burrows rasurou o dalet de מדהבה em Isaías 14:4 como um resh em sua transcrição.[9] Segundo R. Mark Shipp o termo madhēbāh pode ser ratificado conforme a proposta de Millar Burrows produzindo um inteligível מרהבה no necessário – porque clássico – sentido de “tirania”. Diz ele:

 

מדהבה é notoriamente difícil. Duas correntes de raciocínio têm sido seguidas com relação a esta palavra. A primeira sustenta que o ד poderia ser rasurado como um ר, produzindo um inteligível מרהבה cujo sentido é “aquele que age rudemente, um arrogante”. A outra corrente sustenta que o texto não está corrompido, mas que nós deixamos de conhecer o significado exato deste vernáculo. Harry Orlinsky (“Madhebah in Isaiah 14:4”, VT 7 [1957]: 202-203) sugere que a raiz paralela nāgaś significa força. Ele cita como elemento probatório a descoberta da raiz db’, a qual sugere o sentido “ser forte, poderoso”. Ele sugere que poderia haver um reflexo da raiz db’ em madhēbāh caso o terceiro radical (א) estivesse perdido e que “pode ser que os antigos tenham reconhecido em דאב, דבא e דהב o elemento comum בא, no sentido de ‘força’” (p. 203). O primeiro argumento de Orlinsky derivado deste contexto não procede porque nāgaś não significa “força”, mas tanto “governador” quanto “opressor”. O suposto elemento comum בא nos idiomas semitas é especulativo, baseado mais em similaridade sonora do que em raízes verdadeiras. É possível que מדהבה seja a melhor leitura em outros locais. Preliminarmente observa-se o princípio da lectio difficilior. Esta é claramente a leitura mais difícil e logo não pode ser obrigatoriamente repudiada tão prontamente. Segundo o termo ocorre duas vezes em 1QHª (3.25 e 12.18), significando “opressão” e “aniquilação”, paralelo a “tumulto” e “ruína”. Vv. 4b e 6a são construídos de forma similar àquele que possui um particípio singular masculino na coluna A, seguido por um nome abstrato feminino na coluna B. Enquanto nós não conhecermos o sentido exato do termo, “tirania” ou “opressão”, paralelo a “opressor” no v.4b, parece indicado.[10]

Alberto Bentzion ministrou uma aula dominical, sobre o capítulo 14 do Sefer Ieshaiahu, por meio de conferência virtual no PalTalkScene, em 08/02/2009. Durante a aula, ele leu para a turma algumas das abundantes notas de rodapé de Rabbi A. J. Rosenberg, em sua tradução de Isaías 14:1-23.[11] E complementou com a instrução de Moses Maimônides sobre uso de linguagem figurativa na cena de alegria das árvores em Isaias 14:8, lembrando que Jonathan Ben Uziel[12] traduzia a parábola livremente: “Também os governantes regozijavam sobre [a morte] dos ricos em propriedades”.[13]

Nesta ocasião Alberto Bentzion opinou que certamente Gênese 6:1-4 não trata do nascimento de gigantes, mas por algum motivo crê que isso esteja atrelado ao exemplo de linguagem figurativa de Moses Maimônides no contexto de Isaías 14:1-23.

Anotei e comprei todas as referências bibliográficas. A princípio imaginei que não poderia estar adquirindo material mais sério e respeitável, pois, no que diz respeito a tópicos da cultura judaica, os rabinos são as maiores autoridades no assunto. Porém as análises etimológicas dos grandes filósofos judeus do passado se revelaram piores do que nada. Por exemplo, uma das fontes de Rabbi A. J. Rosenberg é uma narrativa atribuída por Rabi Shlomo Yitzhaki (1040-1105) a Rav Yehudah onde Tzedkiyahu (historicamente morto em 687 a.C.) encontra e mata Nebuchadnezzar II (historicamente morto em 562 a.C.). E como se o encontro de personalidades que viveram em períodos históricos distintos já não fosse absurdo, a causa morte foi empalamento em duelo de pênis magicamente estendidos em cento e cinquenta metros (Shabbos 149b)[14].

Noutra fonte o autor até percebe a contradição entre dois documentos (um sobre enterros, outro sobre as vítimas dum terremoto), mas Ibn Erza conclui que o povo poderia desejar exumar e executar o cadáver de Nebuchadnezzar II, perfurando-o, já que este homem teria revivido e tornado a reinar após um enterro anterior![15] E todos o chamam de Lúcifer, em Isaías 14:12, preferindo um termo latino ao nome hebraico.

Sem nenhum motivo razoável, o Rabbi A. J. Rosenberg interpretou madhēbāh como adjetivo pejorativo “o arrogante” em Isaías 14:4.[16] (No meu parecer opções como “tirania” e “arrogância” são desnecessariamente ofensivas e inventivas).

Fantasma tem direito de resposta?

Em 30/01/2009, antes de dormir, eu estava formulando perguntas sobre nāgaś e madhēbāh em Isaías 14:4, a serem feitas na aula de Alberto Bentzion nove dias depois. Na noite de 31/01/2009 sonhei que tinha alguém traduzido Isaías 14:4 do hebraico para português. Era impossível ver a pessoa porque eu só podia enxergar o livro e as mãos. A pessoa comentou que o termo madhēbāh no fim do versículo se referia a joias de ouro similares às que foram confiscadas dos egípcios pelo povo judeu (Êxodo 3:22, 11:2, 12:35) e depois entregues como dízimo ao templo para serem derretidas e usadas na fabricação de utensílios necessários e obras artísticas.

Isso porque seria costume tomar espólios de guerra e solicitar ouro de propriedades particulares como imposto, para ser derretido no processo de forja. Depois disso a pessoa falou que o versículo seguinte dizia respeito a um rito de vampirismo e citou o exemplo da hora em que Vlad (Gary Oldman) faz um corte no busto para Mina (Winona Ryder) beber seu sangue em Bram Stoker’s Dracula (EUA, 1992). Acordei.

 

[1] DAHL, Eystein. Time, Tense and Aspect in Early Vedic Grammar: Exploring inflectional semantics in the Rigveda. Netherlands, Brill, 2010, p 124.

[2] JEROME. Commentaires de Jerome Sur Le Prophete Isaie. Introduction. Livres V-VII. Texte établi par R. Gryson et J. Coulie avec la collaboration de E. Crousse et V. Somers. Breisgau, Verlag Herder Freiburg, 1994, p 564.

[3] Em 1498 o filósofo judeu lisbonense Abarbanel (1437-1508) tentou justificar o injustificável fazendo madhēbāh (מדהבה), interpretada como desmesura, expressar contradição de me’od habeh (מדד והבא), “mensurar e medir”. Sobre a observação de Redak, o Rabbi Dr. Isidore Epstein comentou em nota ao Talmude, Shabbath 149b: “These interpret madhēbāh either as me’od habeh (count and bring) or me’od habi (belo) middah (bring much, without measure)”.

[4] IBN ERZA. The Commentary of Ibn Ezra on Isaiah: Edited from MSS and translated, with notes, introduction and indexes by M. Friedländer, Ph. D. Vol I, translation of the Commentary. New York, Philipp Feldheim, 1873, p 69.

[5] Repare que Abarbanel publicou no ano de morte do inquisidor Tomás de Torquemada (1420-1498) que promovia tortura e queimas de livros judaicos na Espanha.

[6] Abarbanel tentou justificar o injustificável fazendo madhēbāh (מדהבה), interpretada como desmesura, expressar contradição de me’od habeh (מדד והבא), “mensurar e medir”.

[7] ROSENBERG, Rabbi A. J. Isaiah: A New English Translation. Brooklyn, Judaica Press, 2007, Vol 1, p 123, nota 4.

[8] A conhecida versão da Bíblia chamada como Reina-Valera que alcançou muita ampla difusão durante a Reforma protestante do Século XVI, representa a primeira tradução castelhana completa, direta e literal dos bíblicos textos em grego, hebraico e aramaico, e deve seu nome à suma de esforços de Casiodoro de Reina, seu autor principal, materializados na Bíblia do Urso (Basileia, Suíça, 1569), e de Cipriano de Valera, seu primeiro revisor, materializados na Bíblia do Cântaro (Amesterdão, Países Baixos, 1602).

[9] BURROWS, Millar & TREVER, John C. The Dead Sea Scrolls of St. Mark’s Monastery, vol. I: The Isaiah Manuscript and the Habakkuk Commentary. New Heaven, The American Schools of Oriental Research, 1950, plates XI-XII.

[10] SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 129-130, nota 1.

[11] ROSENBERG, Rabbi A. J. Isaiah: A New English Translation. Brooklyn, Judaica Press, 2007, Vol 1, p 122-129.

[12] Jonathan Ben Uzziel foi um dos 80 tannaim que estudou com Hilel, o Velho, durante o tempo da Judéia governada pelos romanos.

[13] MAIMONIDES, Moses. The Guide of the Perplexed. Trad. Shlomo Pines. USA, The University of Chicago, 1963, p 408.

[14] GOLDWURM, R’ Hersh (ed.) Talmud Bavli: The Schottenstein daf Yomi Edition – Tractate Shabbos. Brooklin, Mesorah Publications (Artscroll), 2004, 149b4.

[15] IBN ERZA. The Commentary of Ibn Ezra on Isaiah: Edited from MSS and translated, with notes, introduction and indexes by M. Friedländer, Ph. D. Vol I, translation of the Commentary. New York, Philipp Feldheim, 1873, p 70-71.

[16] ROSENBERG, Rabbi A. J. Isaiah: A New English Translation. Brooklyn, Judaica Press, 2007, Vol 1, p 123, nota 4.


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